Javé ou um Deus entre deuses
Revisitando
as origens sócio-históricas da ideia de Deus
1.
Introdução
No escopo deste
texto situam-se duas preocupações basilares: 1) contribuir para reavivar no espírito
do crente comum o caráter filosófico-teológico da semanticidade do conceito de
Deus; 2) retomar e desenvolver um pouco mais a concepção da materialidade
histórica da ideia de Deus. A preocupação 1) encontra sua razão de ser na
convicção por mim sustentada de que a experiência da fé do cristão comum em
nossas sociedades secularizadas quase nunca encontra apoio numa concepção
filosófica e teologicamente profunda de Deus. Na fala do homem comum, as
referências a Deus, na maioria das vezes, descrevem um tipo de relacionamento
de barganha entre um pedinte-adorador e um fornecedor-socorrista a quem se deve
apelar em causa própria para obter benesses ou proveitos. Que o leitor não tome
essa consideração do relacionamento entre o crente comum e Deus como uma crítica
moralizadora, muito embora, mesmo quando um religioso solicita a intervenção
divina em favor de outrem, a motivação egoísta não se oblitera totalmente. O
que espero seja retido aqui é, na verdade, minha percepção de que a palavra Deus aparece, na fala do
teísta comum, semanticamente empobrecida ou mesmo esvaziada das características
mais relevantes (filosoficamente falando) que entram a fazer parte da intensão
do conceito que essa palavra descreve.
Ainda no tocante à
preocupação 1), oportunas são as palavras de Hans Kung, em Freud e a questão da religião (2010: p. 81), ao aludir à crítica
freudiana “à imagem tradicional de Deus”. Segundo Kung, “com razão Freud
critica (...) a imagem tradicional de
Deus. As pessoas ainda estão muito pouco conscientes quanto ao modo como
ela é formada” (grifo no original). Essa ignorância comum e persistente acerca
do modo como se formou historicamente “a imagem tradicional de Deus” é
extensiva às condições sócio-históricas nas quais a ideia de Deus surgiu e se
desenvolveu..
Na verdade, trata-se de uma e a mesma ignorância, pois que desconhecer como se
formou a imagem tradicional de Deus é desconhecer como a ideia de Deus se
constituiu historicamente.
Mais relevante para minha
alusão ao “empobrecimento semântico da palavra Deus” na fala do crente comum é
o seguinte excerto de Kung, que se topa na mesma página anteriormente referida:
“Vezes sem conta a imagem que o crente tem de Deus, em lugar de surgir de uma
decisão livre, nasce de uma imagem pré-fabricada de um pai castigador ou
bonzinho”. Sem dúvida, a redução do conceito de Deus a “um pai castigador ou
bonzinho” faz obliterar muito a complexidade semântica envolvida na compreensão
deste conceito – complexidade esta tão fartamente desfiada, esquadrinhada,
discutida pela teologia e filosofia. Todavia, há uma explicação plausível para
aquela redução: a imagem de Deus com que o crente comum se habitou experienciar
sua fé lhe foi transmitida pela tradição.
Ora, por tradição se entende
justamente um sistema de significados ou ideias que, consolidado no passado, é
transmitido às gerações futuras. Destarte, os indivíduos vivenciam os conteúdos
de uma tradição como coisas persistentes com poucas mudanças ao longo do tempo.
A tradição é, portanto, responsável pela instituição de costumes, de formas
ritualísticas de agir. O caráter dessa instituição é percebido como impositivo
pelos indivíduos, os quais tomam as maneiras costumeiras de agir e pensar como
assuntos inquestionáveis. Na verdade, em razão do peso da tradição, não vejo
como o crente comum possa assumir uma imagem original de Deus, resultante de
uma decisão livre. Para a ideia de Deus vale o mesmo que para a história das
ideias: não há que buscar algo de novo e original nesse domínio. Quando se nos
deparam “inovações” na forma como são apresentados e redefinidos conceitos já
pensados e definidos, o que se percebe são formas diferentes de defini-los, de
repensá-los, de recriá-los. O problema de que me ocuparei, portanto, na preocupação
1), que me incitou a escrever este texto, não reside em questionar por que o
teísta comum não pensa de modo original o conceito de Deus. O problema, na
verdade, para mim, consiste em reconhecer que a semanticidade do conceito de
Deus aparece à consciência do crente comum como esvaziada de sua relevância
teológica e filosófica. Esse mesmo “esvaziamento semântico do conceito de Deus”
pode ser surpreendido na fala de muitos ateus pouco familiarizados com a
produção teológica e filosófica sobre o problema de Deus. Não raro, se ouve
dizer, em muitos espaços das redes de relacionamentos e mídias sociais, que
Deus é, para os que nele creem, um mero “amigo imaginário”. Escusa alongar-me
sobre essa alusão à maneira como Deus é experienciado pelos teístas porquanto a
considero preconceituosa e equivocada. Quem diz que Deus é um “amigo
imaginário” desconhece a profundidade teológica e filosófica da questão de
Deus; nenhum estudioso sério dessa questão aceitaria a opinião segundo a qual
Deus é um mero “amigo imaginário” (muito embora, se considerada à luz das
investigações da Análise do Discurso, essa expressão não deixa de ser
interessante na medida em que diz muito a respeito do modo como a religião é
percebida em discursos de uma época em que vige o espírito da desconstrução). Sem
embargo do interesse que essa expressão pode ter para uma Análise do Discurso,
mantenho que uma crítica ateísta deve ser teológica e filosoficamente
consistente com os termos em que se expressa o debate. Mas resta a questão que
consiste em pesar até que ponto o empobrecimento semântico do conceito de Deus
na fala dos teístas comuns contribuiu para a redução desse conceito àquela
corruptela (a do “amigo imaginário”).
Parece-me que não é
desprezível a influência da secularização na forma como o conceito de Deus se
afigura esvaziado semanticamente na consciência dos teístas e de vários ateus.
Na medida em que a secularização caracteriza o fato de que as crenças, as
práticas e as instituições religiosas perderam sua relevância social na
modernidade, é de se esperar que a própria compreensão de Deus ou se torne
semanticamente empobrecida, ou mesmo banalizada. É bem verdade que muitos
críticos da tese da secularização argumentam que o processo não é universal nem
irreversível. Para esses críticos, a secularização só explica as formas como se
deu o recuo da religião nas sociedades europeias no auge da modernidade
industrial. Não escapa a esses críticos a percepção de que, na pós-modernidade,
há muitas possibilidades para o ressurgimento da religião e para o
reencantamento do mundo. Essa é uma discussão que não precisa ganhar terreno
aqui. Vale, no entanto, apresentar as três dimensões da secularização
identificadas por Peter Berger.
1. Dimensão socioestrutural, caracterizada pela transferência de
funções das igrejas para instituições de serviço social sustentadas por
dinheiro público;
2. Dimensão cultural, que se revela na ascensão das ciências seculares
e no declínio do conteúdo religioso na arte, na música, na literatura e na
filosofia;
3. Dimensão individual, que consiste na observação de que cada vez
menos pessoas pensam em termos religiosos.
Não me parece que a dimensão
individual caracterize verdadeiramente a situação da religião nem nos Estados
Unidos, nem na América Latina. No Brasil, mais importante é reconhecer como a
experiência comum da fé em Deus está afastada ou divorciada de uma experiência
teoricamente fundada num corpo doutrinário de uma elite religiosa
institucional. O homem comum não pensa Deus nos termos em que ele foi pensado e
é pensado por filósofos e teólogos (outrora e nos dias atuais). Ao pretender revisitar
o tratamento dispensado por alguns pensadores da tradição ao problema da
semanticidade do conceito de Deus, estou, ao mesmo tempo, preocupado em
despertar na consciência dos que creem em Deus como uma instância
suprassensível doadora de sentido para as suas vidas a necessidade de se
reapropriarem do saber acerca da complexidade semântica envolvida no debate
sobre o conceito de Deus, se quiserem engajar-se num contexto plural de práticas
discursivas que tendem a questionar a validade das metanarrativas da tradição.
No que tange à minha segunda
preocupação, mostrarei que Javé, ou o Deus abraâmico, não surgiu com o estatuto
de único Deus verdadeiro, mas coexistiu, por muito tempo, com outros deuses
(cuja existência não era negada pelos israelitas). Na minha volta às raízes
históricas da ideia de Deus, procurarei mostrar que até atingir o estado
monoteísta, Israel experienciou o politeísmo e a monolatria. A religião
israelita antiga se desenvolveu de religiões pagãs. Assim, assumirei que deuses são categorias culturais; são produtos da evolução cultural. E isso
vale também para o Deus abraâmico, em outras palavras, vale para o Deus teísta
(o Deus das três maiores religiões monoteístas do mundo).
Finalmente e antes de me
ocupar da questão da semanticidade do conceito de Deus, gostaria de dar a
conhecer de que modo compreendo os conceitos de cultura e ideologia, que
integrarão a base de sustentação de minha argumentação. Duas definições de
cultura se combinam para efeitos do que considero relevante ter em conta quando
esse vocábulo aparecer ao longo do texto. A primeira definição de cultura,
inspirada em Goodnough, consiste na afirmação de que a cultura é um sistema de
conhecimento que abriga tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou aquilo em que
tem de acreditar para atuar de modo aceitável numa sociedade. A segunda
definição de cultura nos vem da pena de David Schneider, para quem a cultura é
um sistema de símbolos e significados que compreende categorias e regras sobre
relações e modos de comportamento. As coisas culturais, portanto, não dependem
da sua observabilidade, de modo que fantasmas, deuses e pessoas mortas podem
ser categorias culturais.
O conceito de ideologia, na
medida em que se apresenta com uma gama variada de significados dependendo do
autor e da escola de pensamento com que ele se alinhe, precisará ter seu
domínio semântico delimitado. Ideologia, portanto, será por mim entendida à luz
da teoria de Althusser, para quem a ideologia não é apenas uma distorção ou
reflexo invertido do real, tampouco um efeito automático da produção de
mercadorias (Marx). É, na verdade, um veículo indispensável à constituição de
sujeitos sociais. A produção das próprias formas de subjetividade é tão
material e historicamente variável quanto a produção de automóveis. Destarte,
com base em Althusser, trata-se de pensar a ideologia não como primariamente
uma questão de “ideias”, mas como uma estrutura que se impõe ao sujeito social
sem que dela ele esteja necessariamente consciente. Psicologicamente, a
ideologia é menos um sistema de doutrinas articuladas que um conjunto de
imagens e símbolos e, ocasionalmente, conceitos que “povoam” o inconsciente.
Sociologicamente, ela consiste em um repertório de práticas materiais ou
rituais (votar, saudar, ajoelhar-se, etc.) que sempre estão inseridas em
instituições materiais.
2.
Um olhar filosófico-teológico sobre a semanticidade do conceito de Deus
Antes de dar início ao
tratamento da semanticidade do conceito de Deus, assumo como postulado que a
crítica ateísta séria avança a partir de três frentes de consideração da
problemática filosófica e teológica que cerca a crença na existência de Deus:
1) a consideração lógico-semântica do conceito de Deus, domínio de análise onde
se expõem as dificuldades e/ou incoerências lógicas na busca por definir o que
é Deus; 2) a consideração da dificuldade de conciliar a crença num Deus
onipotente e sumamente bom com a existência irrecusável do mal no mundo (o
chamado “Problema do Mal”); 3) a consideração da formação histórica da ideia de
Deus, domínio de análise onde se busca examinar as condições políticas,
ideológicas, econômicas, culturais, teológicas, em suma, históricas que tornaram
possível o desenvolvimento da concepção de Deus. Assumo que o exame que realizo
tanto da semanticidade do conceito de Deus quanto das condições
sócio-históricas da constituição da ideia de Deus é orientado por um viés
ateísta. Não porque insistirei na inexistência de Deus, mas porque assinalarei
o caráter cultural da ideia de Deus. É preciso esclarecer o que significa
“assinalar o caráter cultural da ideia de Deus”. Como ficou claro a partir do exposto na
introdução, todos os deuses, incluindo o Deus judaico-cristão, é uma categoria
cultural. Como toda categoria, Deus
expressa um escaninho sociocognitivo através do qual certo modo de se
relacionar com o Absoluto e de sobre ele pensar é codificado linguisticamente
para atender a necessidades tanto práticas da vida ordinária quanto
existencialmente profundas que se prendem ao surgimento nos homens da
consciência de sua finitude.
Feitas essas considerações
preliminares, vou-me demorar no exame do modo como Deus foi pensado no
neoplatonismo e na escola de Alexandria, já no período em que vige um
pensamento filosófico cristão. Como seja impraticável tratar de todos os
autores dessas tradições, tomarei para consideração, no âmbito do neoplatonismo,
os pensamentos de Fílon e Plotino. É bem verdade que Fílon não é um pensador
neoplatônico, muito embora tenha preparado o terreno para o desenvolvimento do
neoplatonismo. Ele é mais bem caracterizado como o mais notável representante
do alexandrismo judaico. A opção por associá-lo ao pensamento neoplatônico se
deve ao fato de sua exegese conter muitos elementos platônicos e estoicos. A
importância de Fílon na história do desenvolvimento da filosofia cristã
consiste em ter sido um judeu de exímia formação e o primeiro a relacionar a fé
bíblica com a filosofia grega. Ao interpretar a fé bíblica filosoficamente,
Fílon volta-se para o platonismo, servindo-se, porém, de elementos da filosofia
estoica e neopitagórica. No respeitante a Plotino, a relevância de seu
pensamento para a presente discussão explica-se não só pelo fato de ele ter
sido o fundador do neoplatonismo e seu principal representante (de sorte que
não é possível abordar o neoplatonismo sem considerar o pensamento de Plotino),
mas também porque ele insistiu em sublinhar a impossibilidade de enunciar algo
sobre Deus. Com Plotino, a teologia negativa torna-se uma marca fundamental de
todo o neoplatonismo.
Já no período da filosofia
cristã propriamente dita, dois pensadores serão objeto de minhas considerações.
Um deles é Clemente de Alexandria (150-216 d.C..), que também insistiu na
incognoscibilidade da essência de Deus, mas admitiu a possibilidade de termos
um conhecimento de Deus por via negativa. O outro pensador que considerarei
será Gregório Nazianzo (329 (330)- 390 d.C.), que, tal como Clemente, assumiu a
incognoscibilidade de Deus, sem deixar de reconhecer as fórmulas com que, na
tradição, se busca conhecer a Deus. Com
este cenário filosófico-teológico, busco fornecer um panorama de duas atitudes
gerais implicadas na tentativa de investigar racionalmente a questão de Deus
durante a Idade Média.
Antes de me lançar à
consideração do pensamento neoplatônico e dos pensadores a ele relacionados, é
importante deixar claro que, ao volvermos olhares sobre toda a filosofia grega,
não resta dúvida de que deus nunca é reconhecido como criador do mundo. Os
filósofos gregos sempre o tomaram como ordenador e formador do mundo (razão do
mundo, demiurgo). O demiurgo é responsável por constituir um mundo dotado de
ordem racional a partir de uma matéria preexistente. Segue-se daí que deus não
é ainda o fundamento único e absoluto, já que a matéria também existe como
princípio indispensável e necessário para a formação do mundo. É somente no
neoplatonismo que a matéria será considerada como uma emanação de um princípio
divino (Plotino), muito embora ela não resulte de um ato livre de criação. Vale
sublinhar aqui que o conceito de criação ex
nihilo é estranho ao pensamento grego. Os antigos gregos também
desconheciam o conceito de Deus como ser pessoal. É verdade que Deus era
considerado um ser racional (Platão, Aristóteles até Plotino), mas a ele nenhum
pensador grego associou uma vontade e uma ação livres. O pensamento grego
enfatiza a necessidade do acontecimento. Do que se expôs não parece difícil
inferir que o deus pensado na filosofia grega não é um deus de adoração
religiosa, não é um deus para o qual podemos rezar. Trata-se de um deus do
mundo, do cosmo. De Platão aos estoicos, encontramos a insistência de que
devemos nos esforçar para deus; em Plotino, há o anseio pela união com deus,
mas não se trata aí de um deus a quem possamos rogar pessoalmente, ou adorar
religiosamente. Em suma, o deus do pensamento grego está muito longe do Deus
pessoal da fé cristã, do Criador todo-poderoso e Pai de amor.
2.1.
A filosofia no pensamento cristão
A filosofia só entra em cena
na história do cristianismo no momento em que alguns cristãos se veem quase
obrigados a se posicionar sobre ela, quer para condená-la, quer para incorporá-la
à nova religião, quer para servir-se dela para fins de apologética. O termo
filosofia, a partir desta época, passa a significar “sabedoria pagã”, sentido
que viria a conservar durante séculos. O que muitos cristãos comuns ainda hoje
talvez ignorem é que o cristianismo desde muito cedo teve de levar em conta as
filosofias pagãs. As atitudes dos cristãos cultos dos primeiros séculos em
relação à filosofia variavam consideravelmente. Alguns deles, que só se
converteram ao cristianismo depois de ter recebido uma educação filosófica,
eram menos inclinados a condená-la, visto que sua conversão era considerada o
estágio final de uma busca de Deus iniciada com os filósofos de períodos
antecedentes. Era inevitável que os pensadores cristãos vissem os pensadores
pagãos como precursores da sabedoria cujo termo seria revelado definitivamente
pelo cristianismo. Houve, no entanto, pensadores cristãos que eram mais
resistentes à especulação filosófica. Estes costumavam assumir uma atitude decididamente
negativa em relação às doutrinas dos filósofos pagãos. Durante todo o período
da filosofia da Idade Média dominada pelo pensamento cristão, o que sabemos a
respeito da filosofia pagã será sempre uma interpretação que os pensadores
cristãos farão dela.
2.2.
O neoplatonismo
O neoplatonismo foi
extremamente importante para o desenvolvimento da reflexão filosófica sobre
Deus, sobretudo em seus desdobramentos ulteriores. Tendo sido o último
florescimento na Antiguidade posterior da filosofia grega, cujos conhecimentos
adotou, resumiu e desenvolveu, o neoplatonismo teve como preocupação central a
questão de deus. Essa questão será, no entanto, abordada não mais à luz da
compreensão de deus como o fundamento ontológico do mundo, mas sim como o fim
para o qual tende todo anseio e esforço humanos. É deus mesmo e o caminho que
nos leva a ele que estará sob o foco da investigação neoplatônica.
No neoplatonismo, a
metafísica torna-se primariamente doutrina filosófica de deus e filosofia da
religião. Consequentemente, a metafísica se desenvolve com um interesse
religioso cujo fim é conduzir o homem para a união com deus. O neoplatonismo,
cujo fundador foi Plotino (séc. III d.C.), tem sua origem na interpretação do
pensamento platônico, sobretudo da fase conhecida como “platonismo médio” (que
se estende do século I a.C ao século II d.C.). O neoplatonismo foi a nova e
última realização do pensamento grego num período animado pelo desejo e pela
busca religiosos. No entanto, as condições espirituais da época foram marcadas
pela decadência da antiga crença greco-romana nos deuses.
A esta altura, chamo a
atenção do leitor para as consequências previstas na consideração dos deuses
como entes de razão historicamente determinados, ou como categorias culturais. A decadência da crença greco-romana nos
deuses decai muito também em virtude da expedição de um decreto pelo Estado que
determinava o culto ao imperador. É, por outro lado, verdade que outras formas
de culto e religião, em sua maioria de origem oriental, ganharam notabilidade
nesse período. Além do culto de Mitra e outros cultos de mistérios, movimentos
gnósticos e o próprio cristianismo encontrarão ocasião para avanço. O avanço do
cristianismo foi irrefreável a despeito da repressão e perseguição que sofrera
pelo Estado.
É nesse contexto
sócio-histórico religiosamente confuso que o neoplatonismo se afirmará como um
ataque à fé cristã – ataque de que nos dá testemunho Porfírio (300 d.C.) em
seus quinze livros Contra christianos.
O neoplatonismo pretende não só revitalizar resumidamente a filosofia grega,
como também salvar da barbárie a religião greco-romana então considerada o
fundamento da ordem estatal. Mas foi justamente essa empresa que levou o
neoplatonismo a preparar o caminho para o desenvolvimento do pensamento
filosófico-teológico cristão. Na patrística, sobretudo pela pena de Santo
Agostinho, a fé cristã se apresentará sob a luzes do neoplatonismo. Passemos em
revista o pensamento de Plotino na próxima subseção. Ao fazê-lo, pretendo que o
leitor que me acompanha, mesmo não sendo versado nos estudos filosóficos, não
se olvide de que meu intento é lançar luzes sobre a problematicidade do
conceito do Deus cristão – problematicidade esta que me parece estar obnubilada
na consciência dos crentes comuns. Espero também que o leitor se torne cônscio
de que o conceito do Deus do teísmo é uma construção para cuja consolidação
confluíram inúmeras contribuições filosófico-teológicas ao longo da história. O
conhecimento da história da formação e desenvolvimento do conceito do Deus
teísta importa não só ao ateu (que pode, apropriando-se dele, tornar mais aguda
sua crítica), mas também ao teísta em cuja consciência a ideia de Deus parece
esvaecida no que tange à sua força significativa. Para o teísta, o conhecimento
da história da formação e desenvolvimento do conceito de Deus pode
instrumentalizá-lo para uma afirmação mais vigorosa e filosoficamente consistente de sua fé.
2.2.1.
Plotino: o fundador do neoplatonismo
Natural do Egito, Plotino
(205-270) foi o fundador e o principal representante do neoplatonismo.
Ocupou-se da filosofia somente com 28
anos. Em Alexandria, conheceu Amônio Sacas, que se tornou seu mestre. Além de
Plotino, Amônio Sacas teve como discípulo Orígenes; mas isso é praticamente
tudo que se sabe sobre ele.
Plotino viveu e ensinou em
Roma, onde fundou sua escola. A obra de Plotino foi editada por seu discípulo
Porfírio, mas numa ordenação bastante arbitrária. A edição feita por Proclo, no
século V, é mais fiel à sistematização feita por Plotino. Nesse edição feita
por Proclo, acha-se o cerne da doutrina plotiniana representada pela tríade mone – a permanência ou o ser uno
originário divino em si mesmo; prohodos,
ou a emanação de tudo o mais a partir da origem divina; e epístrofe, o retorno do todo a sua origem na união da alma com o
uno originário.
O
Uno originário
A doutrina de Plotino
calca-se sobre a problemática que envolve a relação entre a unidade e a
pluralidade. Em outras palavras, sendo o pensamento de Plotino um pensamento da
unidade, a questão que se imporá inapelavelmente é a que consiste em explicar
como da pura unidade surge a pluralidade. Essa questão ocupou especialmente o
pensamento platônico, se bem que já estivesse presente no pensamento dos
filósofos pré-socráticos. Podemos vê-la em Parmênides: se a verdade do ser é a
identidade da unidade, ou seja, o fato de a unidade do ser identificar-se consigo
mesma, como pode então resultar daí a pluralidade das coisas que se encontram
no mundo sensível? Essa indagação pode também ser reportada a Plotino; todavia,
é forçoso protelar a problemática que ela supõe para o final da próxima
subseção. Vejamos como Plotino concebe o Uno originário.
Partindo da experiência que
temos do mundo sensível, a qual nos coloca em contato com uma pluralidade de
coisas e propriedades opostas e considerando que a experiência que temos de nós
mesmos é caracterizada por uma pluralidade de impulsos e esforços opostos,
Plotino postulará que é necessário que haja uma unidade originária. A
pluralidade é a própria experiência do finito, já que as coisas plurais se
limitam umas as outras. A pluralidade, no entanto, na medida em que é o mais
complexo, pressupõe o mais simples. Em outras palavras, sem uma unidade
originária, a pluralidade enquanto tal não seria possível nem pensável.
Segue-se daí que é necessário que exista um princípio originário e supremo
concebido como pura unidade anterior e determinante de cada multiplicidade. A
essa unidade originária Plotino chamará o
Uno mesmo (to hen).
Desse Uno originário, que
será identificado com deus por Plotino, nada podemos dizer. Em outras palavras,
o Uno ou Deus é inefável; não podemos enunciar nada a respeito dessa unidade
originária. Sempre que tentamos enunciar algo sobre o Uno (ou Deus), no ato
mesmo da enunciação, se revelam diferenciados aquele sobre o qual falamos
(sujeito) e aquilo que predicamos do sujeito (predicado). O predicado encerra
uma série de atributos e propriedades do sujeito. Ora, ao predicarmos do Uno
essa série de atributos, estabelecendo, gramaticalmente, a separação entre
sujeito e predicado, inserimos no Uno a multiplicidade. Se tomamos o Uno para
objeto de conhecimento, nos separamos dele enquanto sujeitos. Por conseguinte,
instituímos uma dicotomia entre sujeito e objeto, sempre que ousamos dizer algo
sobre o Uno.
A multiplicidade que se
segue do ato de enunciar algo sobre o Uno jamais pode alcançá-lo
essencialmente. Daí resulta que não podemos enunciar verdadeiramente algo sobre
Deus. Deus não é objeto de conhecimento declarativo. Fílon, conforme veremos,
ensinará algo semelhante. Mas Plotino é mais radical: nenhum predicado do mundo da experiência sensível se aplica a Deus.
Deus é mais que o ser (to on), mais
que o bem (agathon), mais que o
espírito (nous). Deus é o indivíduo e
o inominável. Assim, estabelece-se no seio do neoplatonismo uma teologia
negativa, que lhe será o traço fundamental. O neoplatonismo enquanto teologia
negativa recorrerá constantemente ao epikeina
tes ousias (o para além das essências) platônico.
Todavia, é verdade que a
designação “teologia negativa” não significa uma negação absoluta e pura, mas a
ultrapassagem do conteúdo positivo enunciado. A teologia negativa está baseada
no registro do para além de toda
enunciação. Plotino não pôde esquivar-se, no entanto, de falar do Uno
originário, nomeando-o o Uno (to hen),
à semelhança do que fizera Platão ao chamá-lo o Bem ele mesmo. Em Plotino,
entretanto, o Bem é superlativizado: o Uno é o superbom; é mais que existente,
é o hiperexistente. O uso frequente do prefixo superlativizador aponta para o
fato de que aquilo de que se predica sob a forma superlativizada é algo que
ultrapassa os limites das palavras e dos conceitos. Em suma, Plotino nomeia o
Uno “princípio originário” ou “causa” (arché),
ou simplesmente “o Deus” ( to theos),
sem pretender que, ao fazê-lo, alcance seu ser (essência). Destarte, a essência
de Deus permanece para Plotino um mistério incompreensível.
A
emanação
Avançando um pouco mais as
considerações sobre o pensamento de Plotino, é indispensável entendermos o que
significa a segunda instância da tríade a que nos referimos. A segunda
instância é a emanação (prohodos).
Para Plotino, todo existente emana do Uno originário por meio de imagens. Essa
emanação segue o modelo platônico da “irradiação” do Sol em A República. Assim como o Sol irradia
sua luz sem que ele perca sua plenitude, assim também tudo irradia do Uno
originário divino sem que a unidade desse princípio originário seja de algum
modo afetada.
Não se pode perder de vista
o fato de que essa doutrina neoplatônica da emanação a partir do Uno originário
contrasta com a doutrina bíblica da Criação através de um ato da vontade livre
de Deus. No neoplatonismo, o ato livre da Criação por parte de Deus é
impensável. Um Deus que age conscientemente e decide livremente criar o mundo
não pode existir para Plotino, porquanto toda consciência espiritual pressupõe
a separação entre aquilo que conhece e o objeto de conhecimento, entre o
pensante e o pensado, ou ainda, para falar nos termos da filosofia moderna,
entre o sujeito e o objeto. Acontece que o Uno originário precede a essa
separação. A emanação a partir do Uno originário é uma emanação necessária e se
expressa na forma de uma irradiação ou eflúvio da plenitude do ser de Deus que
ao mesmo tempo conserva-se em si mesmo. Plotino mantém, portanto, a crença
grega na necessidade (ananke) de todo
acontecimento.
Há, decerto, passagens
controversas em Plotino que dão margem à compreensão de seu Uno originário como
um Deus pessoal. Plotino chega a falar em um hiperpensamento consciente de
possuir a si mesmo, e de uma vontade no amor a si mesma. Nesse sentido, parece
que já em Plotino há um primeiro esboço de uma representação pessoal de Deus,
muito embora o Deus de Plotino não seja ainda o Deus pessoal a quem se possa
orar. Penso, no entanto, que a pessoalidade do Deus teísta ultrapassa a
propriedade de ‘ter consciência de si’; a pessoalidade do Deus teísta está
fundada na abertura afetiva e interessada de Deus ao homem, cuja expressão
máxima é o ter assumido uma forma humana em Cristo. Em suma, os traços sêmicos
‘consciência de si’, ‘vontade’ não são os mais determinantes do conceito de
pessoalidade na representação do Deus teísta; a pessoalidade do Deus teísta
inclui muito mais do que ‘consciência de si’ e ‘vontade’. Nesse sentido, o Deus
de Plotino permanece radicalmente diverso do Deus teísta. Este é afetivamente
interessado nos assuntos humanos; aquele não o é. A pessoalidade do Deus
cristão se define fundamentalmente no mistério da assunção por Deus da forma
humana por intermédio de Cristo, permitindo a Deus habitar entre os homens e
padecer por eles.
A doutrina de Plotino da
emanação se torna mais complexa quando se considera que do uno-originário
também emanam seres intermediários. Assim, o primeiro grau de emanação é nous – o Espírito ou a Razão. O nous de Plotino remete à razão do mundo
de Anaxágoras, muito embora seja esse conceito interpretado platonicamente em
Plotino. O nous de Plotino equivale
ao logos de Fílon, sobre o qual ainda
falaremos. A doutrina das Ideias de Platão também será ressignificada no
pensamento de Plotino. Para Plotino, elas não são essências autônomas, mas
pensamento e espírito pensante. Em face do Uno originário, é no nous que se forma a separação entre
pensante e pensado, entre sujeito e objeto. É a partir dessa primeira dicotomia
que se desenvolverá a pluralidade das ideias. É o espírito, portanto, que forma
e ordena o mundo, quando ele volta sua visão para as ideias eternas. O nous é,
portanto, o demiurgo.
O próximo grau da emanação é
a Alma (psyche). Plotino concebe a
Alma como Alma do mundo, a qual constitui a passagem do mundo puramente espiritual
para o mundo sensível e material. Assim, fica estabelecida a tríade que
sustenta o edifício do sistema de Plotino: Uno,
Espírito e Alma. A Alma, uma vez que é única, participa do Uno, mas porque se
refere à pluralidade (já que torna possível a passagem do mundo espiritual para
o mundo sensível), torna-se alma dos homens e de outros seres vivos, cuja alma
individual participa da Alma única do mundo.
Por fim, a matéria (hyle) é o último grau da emanação. Ela
não é um princípio eterno e imutável (diferentemente de como a concebem Platão
e Aristóteles). A matéria, para Plotino, carece de positividade; ela é o
princípio da negação ou mesmo o princípio de todo mal. A questão que consiste
em indagar sobre como tal princípio pode emanar do Uno originário permanece
insolúvel.
A
União com o Uno Originário
O retorno ao Uno originário
é sem dúvida o ponto doutrinário que mais importou a Plotino. Uma vez que tudo
emana do Uno-originário, é forçoso que todas as coisas retornem a ele. No
homem, esse retorno deve ocorrer por meio de sua alma espiritual. Como a alma é
parte da Alma do mundo, seu retorno ao Uno originário é um processo cósmico no
qual o mundo deve unir-se ao Uno, que é sua origem. Também esse retorno
acontece em graus. O primeiro grau é o da purificação da alma mediante a
superação do mal e da dissolução dos vínculos com a matéria, ela mesma
princípio do mal. Tendo-se purificado, a alma se une ao nous, constituindo assim o segundo grau do retorno. Unida ao nous, a alma se volta para uma vida de
acordo com a razão, iluminada pelo espírito, o qual se deixa orientar pelas
Ideias Eternas. Tendo a alma cumprido essa etapa, ela atinge o terceiro grau do
retorno: a união com o próprio Uno originário divino. Essa união e fusão é de
ordem religiosa, mística: é a união da alma com Deus.
Com a doutrina do retorno ao
Uno originário, Plotino exercerá uma influência duradoura na tradição
filosófica, não só nela, mas também na tradição espiritual e mística. A união
com Deus excede qualquer conhecimento intelectual. Por conseguinte, fracassam
todas as tentativas de descrevê-la por meio de palavras. É somente depois que a
alma rompe com a realidade sensível e se volta para si mesma que pode reluzir
em si a luz divina. É necessário, para tanto, renunciar à pretensão de todo
conhecimento objetivo, de todo pensamento que aspire à clareza racional. Plotino
tinha como objetivo “tornar-se um com Deus, que está sobre tudo”. É nesses
termos que se expressa a profundidade religiosa do pensamento de Plotino, cujo
fim é a união com o Deus único.
Retomando-se a questão sobre
como é possível emanar da unidade originária algo diverso de si mesma, somos
levados a concluir que também em Plotino não se encontra resposta racional
possível. Resta-nos crer na possibilidade da emanação a partir da origem ou
não. Essa atitude de crença se estende à doutrina da Criação. Nunca poderemos
compreender como é possível um mundo finito ser criado por Deus, um Ser
Infinito. Resta-nos apenas acreditar nela com base na experiência que temos do
mundo finito, cuja existência, pelo menos segundo creem os partidários dessa
doutrina, pressupõe Deus como seu Criador.
2.2.2.
Fílon: um judeu helenístico
Fílon de Alexandria (25
a.C.- 50 d.C.), embora não pertencente ao neoplatonismo, preparou, de modo
autônomo, o pensamento neoplatônico. Fílon viveu e ensinou em Alexandria, então
centro espiritual e cultural da Antiguidade posterior no Egito, onde se
encontrava uma grande comunidade de judeus helenísticos.
Fílon foi um judeu bastante
instruído, perseverante na fé bíblica e o primeiro a estabelecer uma relação
entre essa fé e a filosofia grega. A mediação entre a fé bíblica e a filosofia
grega era até então estranha ao judaísmo. Mas graças a Fílon, ela influenciou o
início do pensamento cristão em Alexandria, como nos dão testemunho dela os
pensamentos de Clemente de Alexandria e de Orígenes.
A interpretação filosófica
que Fílon empreendeu da fé bíblica bebeu da fonte platônica, conquanto
incorporasse também elementos da filosofia estoica e neopitagórica. Seguindo
uma prática que remonta aos estoicos, Fílon explicou as Sagradas Escrituras de
modo alegórico, apelando para um sentido espiritual dos textos. A interpretação
alegórica da Bíblia também fora uma prática comum dos alexandrinos cristãos,
mormente dos capadócios posteriores.
Fílon acreditava no Deus
único e verdadeiro revelado a Moisés e aos profetas. Aqui já se pode entrever o
novo e perturbador aspecto da fé em Deus, estranho ao pensamento grego: Deus não é somente o fundamento do mundo,
mas o Deus vivo, atuante na história do seu povo. Todavia, Deus é tão
transcendente em relação ao mundo, que só podemos dizer dele que “é”, mas não
podemos dizer “o que” ele é. Podemos dizer de Deus que ele é o Ser mesmo, o existente,
o Eu Sou, segundo a revelação de seu nome a Moisés no texto grego da
Sepetuaginta. De resto, nada mais podemos enunciar sobre Deus. Deus é o mais
perfeito que perfeito. Vale sublinhar este aspecto: a ideia de que Deus está acima de tudo o que podemos saber e dizer
perpassa toda a filosofia grega – desde Anaxágoras, Xenófanes e Heráclito.
A impossibilidade de ter acesso cognitivo à essência de Deus ou de dizer algo
sobre ela ressurgirá nos neopitagóricos, aparecerá sob a forma de teologia
negativa no neoplatonismo e acarretará, no mundo cristão, a elaboração da
doutrina do conhecimento analógico de Deus.
É certo que Fílon concebia
Deus como Criador do mundo, conquanto seja difícil saber se ele admitia uma
Criação ex nihilo ou se acolhia a
doutrina grega da matéria eterna. Para superar o dualismo entre Deus e o mundo,
Fílon concebeu a existência de seres intermediários, que proviriam de Deus como
forças (dynameis). Tais forças são
caracterizadas não só como ideias de
Deus, como também seus mensageiros, enviados para cumprir a sua vontade.
Essas forças atuam no mundo
determinando gêneros e espécies – as formas essenciais das coisas no sentido
dos logoi spermatikoi dos estoicos.
Assim como nos estoicos os múltiplos logoi
originaram-se no logos spermatikos
único, assim também em Fílon as forças têm sua origem e sua unidade no logos único. Logos é um conceito central no pensamento de Fílon; é o locus das ideias de Deus.; é a ideia das
ideias. Resulta daí que as Ideias Eternas de Platão não são compreendidas como
Essências subsistentes em si mesmas, mas, como o será no neoplatonismo,
pensamentos de um espírito pensante. Esse espírito que elabora as ideias não é,
no entanto, Deus mesmo, mas uma parte originada dele e que lhe é subordinada.
Em Fílon, essa parte subordinada que se origina de Deus é o logos. Em Plotino, como vimos, é o nous (Espírito). Mas, em ambos os
pensadores, essa parte subordinada é o locus
das ideias.
Fílon mantém também que o logos é a força das forças, como anjo
supremo enviado por Deus ao mundo para agir segundo sua vontade; é também seu
filho primogênito, criado antes de toda a criação. Para Fílon, o logos é o sacerdote supremo do mundo e o
intercessor perante Deus.
A doutrina de Fílon tem uma
proximidade impressionante com o cristianismo, malgrado o fato de sua
influência imediata ter sido muito pequena. Judeus ortodoxos consideraram Fílon
um pensador demasiadamente grego; e os filósofos cuidaram-no um judeu
demasiadamente crente, cujo trabalho consistiu em redigir comentários às Sagradas
Escrituras.
A influência mais forte de
Fílon ocorreu no pensamento cristão inicial em Alexandria. O diálogo com a
filosofia grega marcou significativamente o começo do pensamento cristão, e
Fílon foi um predecessor desse acontecimento.
2.3.
A Escola de Alexandria e o conceito de
Deus
2.3.1.
Clemente de Alexandria: a Teologia Natural
Chamado Tito Flávio
Clemente, Clemente de Alexandria, tal como se tornou conhecido, nasceu
provavelmente em Atenas pelos idos de 150 d.C. Após ter-se convertido ao
cristianismo, esteve na Grécia, na Ásia Menor e na Palestina. Mas foi só em
Alexandria que encontrou a ciência que o satisfez. Lá, associou-se a Panteno na
função de professor-assistente. Tendo morrido seu mestre, Clemente assumiu a
direção da escola.
Um dos problemas de que se
ocupou Clemente de Alexandria foi o da justificação da filosofia, a saber, o de
demonstrar, contra aqueles que a rejeitavam, que a filosofia é útil à fé
cristã. Para Clemente de Alexandria, aqueles que se dedicam à filosofia estão
cumprindo a vontade do próprio Deus. A filosofia, como tal, é boa, e o uso
razoável dela só pode acarretar benefícios.
Ora, para Clemente, a
filosofia torna os homens virtuosos; logo ela é boa; sendo boa, ela tem origem
em Deus, porque Deus é bom e tudo que dele provém é bom e é destinado para o
bem. Há que destacar um importante aspecto da defesa que Clemente de Alexandria
faz da filosofia. Para ele, a filosofia
é útil aos que professam a fé cristã, dado que lhes fornece os subsídios necessários para a defesa da fé. Ademais,
o estudo da filosofia é uma vocação agradável a Deus. Não obstante, sustenta
Clemente que a filosofia não pode cumprir cabalmente sua função, se ela exceder
os limites do domínio de sua competência. Sua função é apenas auxiliar. A filosofia
é serva da sabedoria (teologia) ou é a fé iluminada.
Para fins desta exposição, o
recorte que farei do pensamento de Clemente de Alexandria impõe-me o abandono
do curso dessas considerações sobre a relação entre a filosofia e a fé cristã,
para me concentrar no tratamento dos termos em que se expressam a Teologia
Natural proposta por esse pensador cristão. É nessa Teologia Natural que a
concepção clementiana de Deus, objeto de interesse desta parte de nosso estudo,
será trazida a lume.
Embora sua Teologia Natural
não tenha logrado um desenvolvimento sistemático, é possível apresentar-lhe os
pontos teológicos essenciais:
1.
A existência de Deus é universalmente conhecida
Para Clemente de Alexandria,
trata-se de uma proposição evidente, porque nunca houve um povo sequer que não
tenha concebido uma ideia de Deus. Todos os homens, em qualquer lugar e época,
sofreram a influência de uma espécie de iluminação natural de Deus.
2.
A essência de Deus permanece oculta ao homem
Nota-se aqui a influência neoplatônica
sobre o pensamento de Clemente. Não sabemos o que Deus é, mas podemos saber o
que Ele não é. Para Clemente de Alexandria, é impossível à razão humana, pois, atingir
o conhecimento da essência de Deus, porque Deus é a própria Razão e a causa de
todas as outras coisas. Clemente lembra que o apóstolo Paulo pregou, em Atenas,
o “Deus desconhecido”, pois que reconhecia que Deus é incognoscível à razão
natural.
3.
O conhecimento negativo de Deus é obtido por via analítica
Não obstante a impossibilidade
de a razão natural ter acesso direto à essência de Deus, Clemente de Alexandria
admite a possibilidade de conhecermos Deus por meio da análise calcada sobre os
dados da experiência. Esta análise se desenvolve mediante uma série progressiva
de abstrações, atendendo ao seguinte método. Primeiramente, abstraem-se das
coisas sensíveis as dimensões de comprimento, altura e largura, de sorte que
restará um simples ponto que, por mais simples, ainda continuará a ocupar um
lugar no espaço. O segundo passo consistirá em fazer abstração dessa posição
espacial, a fim de chegarmos a uma unidade espiritual ou a uma causa situada
para além de todo lugar, de todo tempo, de todo conhecimento. Mas é somente se
abstrairmos de todos os aspectos corporais e incorporais do ser e se nos
elevarmos à grandeza de Cristo, até atingirmos o conceito de imensidade, que
poderemos dispor de um conhecimento de Deus Todo-Poderoso, ainda que continue
impossível para nós saber o que ele é essencialmente. Só podemos pretender alcançar
um conhecimento negativo de Deus, já que, em consonância com o pensamento de
Fílon, dirá Clemente Deus está acima da
própria Unidade.
2.3.2.
Gregório de Nazianzo e a incognoscibilidade de Deus
Gregório de Nazianzo
(330-390 d.C) combateu com notável eloquência as afirmações heréticas dos
eunomianos, que formavam uma seita cuja visão teológica constituía uma
verdadeira ameaça à fé ortodoxa na capital do Império. Seus partidários
sustentavam a crença de que a essência de Deus era ingênita e, portanto,
completamente inteligível. O Filho, por seu turno, era essencialmente gerado e,
por conseguinte, não era Deus. O que se seguiu daí foi uma acirrada e violenta
controvérsia que se estendia por toda parte, inclusive nas ruas e nas praças
públicas. Gregório investiu vigorosamente contra as afirmações heréticas dos
eunomianos com sermões cuja repercussão foi tão intensa, que a posteridade lhe
conferiu o título de o Teólogo.
Tal como Clemente de
Alexandria, Gregório insiste na incognoscibilidade de Deus: é impossível dizer
algo sobre Deus e mais impossível ainda é conhecê-lo. Mas aqui cumpre fazer uma
observação urgente: não é a existência
de Deus que é incognoscível, mas tão só a sua natureza ou essência. Não é
que Deus nos tenha denegado tal conhecimento; o obstáculo que nos impede de
conhecê-lo em sua essência reside em nossa natureza corporal. Por conseguinte,
assumir a incognoscibilidade de Deus é o mesmo que reconhecer nossa
incapacidade para formar conceitos puramente espirituais a respeito dele. Não
obstante, Gregório admite a possibilidade de alcançarmos um conhecimento
negativo de Deus. Temos de nos contentar em saber o que Deus não é.
Ao trilhar o caminho de uma
teologia negativa, Gregório, no entanto, se limitou a abordar o problema da
incorporeidade de Deus. Deus não é um ser corporal, porquanto carece das
propriedades distintivas dos corpos. Deus está presente em todo lugar e, por
isso, é incorporal. Se fosse ele um corpo, não haveria espaço para as demais
coisas. Além disso, diferentemente de um corpo, Deus carece de composição. Os
corpos, ao contrário, são compostos; e o que é composto traz em si o germe da
corrupção. Deus, no entanto, desconhece a dissolução.
Tanto a incorporeidade
quanto o não ser gerado, a carência de começo e fim são conceitos negativos com
os quais buscamos definir Deus. Gregório de Nazianzo dá a entender que todo os
conceitos aplicados a Deus são produtos humanos e, por isso, inadequados. Não
podemos, no ato de conhecer, fazer abstração total da sensibilidade, de modo
que nossos conceitos a respeito de Deus incluem sempre um elemento corporal.
Em suma, Deus sempre
excederá as analogias de que nos servimos a fim de dizer o que ele é. Destarte,
embora Deus esteja presente no mundo, ele o transcende; embora seja Deus toda a
beleza, ele excede toda a beleza.
Sem embargo de sua adesão à
teologia negativa, Gregório reconhece o valor de algumas fórmulas, legadas pela
tradição, com as quais os autores cristãos buscaram compreender o que é Deus. O
problema, a esta altura, para Gregório, consiste em saber como nos é possível
tender a Deus, se ele nos é absolutamente incognoscível. A absoluta
incognoscibilidade de Deus não impediu os doutos padres da tradição de nos
legar fórmulas com as quais buscaram definir Deus. Duas delas são referidas por
Gregório.
1.
Deus é o ser infinito
Deus é a plenitude do ser,
carece de princípio e fim; ou ainda, Deus é o Ser mesmo, um oceano imensurável
e ilimitada substância. Orígenes se recusou a lançar mão do conceito de
infinidade para caracterizar Deus, mas Gregório e, de modo especial, Duns
Escoto acreditam que a infinidade é a característica que melhor se aplica à
essência divina.
2.
Deus é o ser eterno
Dada a sua imensidade, Deus
excede todos os limites do espaço e do tempo. Sua independência em relação ao
espaço se deve a sua incorporeidade. Todavia, Deus também independe do tempo.
De Deus só podemos dizer que é, jamais que foi ou será. Nele se encerra todo o
presente. Deus é eterno significa que sua eternidade recusa qualquer elemento
temporal.
2.4.
Algumas inconsistências lógicas na conceituação de Deus
Disse que a crítica ateísta se
estrutura em três frentes de ataque, uma das quais toca ao exame das
inconsistências lógicas na construção do conceito de Deus. Um conhecido
problema na construção do conceito do Deus teísta é o que diz respeito à sua
onipotência. Trata-se do chamado “Paradoxo da Onipotência”. Segundo esse
Paradoxo, dado que Deus é onipotente, ele poderia criar uma pedra tão pesada
que nem ele mesmo poderia levantar? Se respondemos que “sim”, então Deus não
seria capaz de levantar essa pedra e, portanto, não é onipotente; se, por outro
lado, respondemos que “não”, então Deus não é onipotente desde o início. No
primeiro caso, ele não seria onipotente, porque seria incapaz de levantá-la; no
segundo, ele não seria onipotente, porque seria incapaz de criá-la.
Outro problema que toca ao
aspecto lógico da construção do conceito de Deus diz respeito à relação entre
Deus e a criação. Admitindo-se que Deus é o Ser sumamente perfeito, por que ele
criou o mundo? Se dissermos que ele o criou porque tinha necessidade da
criação, então Deus não é perfeito, porque ter necessidade é encontrar-se em
estado de carência e, portanto, é ser imperfeito. Um ser perfeito de nada
carece. Se, como argumentam alguns teólogos, Deus criou o mundo por uma
superanbundância de amor, por que ofereceu às suas criaturas o mal e o
sofrimento?
Uma vez que toda criação é
finita, logo imperfeita em relação ao Ser infinito, que é Deus, como é possível
que o ser infinito crie o finito e o imperfeito? Se Deus é puro espírito, como foi capaz de
criar a matéria? Como um ser espiritual pode criar algo material?
Uma vez criada a matéria,
como ela se relaciona com seu Criador? Se ela é independente de Deus, então
este perde sua onipotência e infinitude; torna-se finito e limitado por sua
criação. Mas, se a matéria está em Deus como manifestação imediata dele, então
Deus terá de assumir a materialidade, a finitude e os defeitos atribuídos inerentes
à matéria.
Como vemos, o conceito de
Deus, quando examinado considerando-se suas propriedades definitórias, está
prenhe de contradições ou ilogicidades. A razão exige que pensemos de modo
organizado, exige que os conceitos através dos quais representamos nossas
experiências de mundo sejam consistentes entre si. Assim, quando se diz que
Deus é um ser atemporal, eterno (embora não saibamos o que significa existir
fora do tempo) e, ao mesmo tempo, que ele atua na história (no tempo) do mundo,
produz-se uma contradição. A crença no livre-arbítrio humano colide com a
crença na predestinação: ou bem Deus concede ao homem livre-arbítrio, ou Deus
determina o curso da vida de cada ser humano. A onisciência de Deus não traz
alguma dificuldade para nosso livre-arbítrio? Se Deus sabe o que vou fazer (no
futuro), como posso ser livre para escolher não fazer o que farei, ou para fazer
outra coisa diferente do que necessariamente farei?
Como bem observa Verret, em Os marxistas e a religião (1975, p. 58):
O metafísico
idealista não encontra em Deus senão as suas próprias contradições
inconscientes. Nega a contradição à face da realidade: ela não se manifesta aí
com mais acuidade, dentro do seu pensamento. Define Deus segundo os critérios
da lógica formal por uma série de atributos isolados, absolutos e imóveis (a
infinidade, a perfeição, etc.) excluindo os seus contrários. Mas este Deus sem
contradições supostas não consegue pensar senão ao preço da contradição. A
contradição desprezada vinga-se. Sobre ele. E até sobre Deus. Pois se Deus é
pura ideia, toda a contradição na ideia de Deus recai em Deus.
3.
Javé ou um Deus entre deuses
Antes de discutir os
assuntos recobertos por esta última parte de nosso estudo, eu preciso deixar
claro ao leitor o ponto de vista sob o qual esses assuntos serão abordados. O
ponto de vista a partir do qual os considerarei é o da materialidade histórica da ideia de Deus. Por materialidade histórica da ideia de Deus, entendo o conjunto de acontecimentos políticos,
econômicos, sociais, teológicos, ideológicos, em suma, históricos, que
tornaram, de algum modo, possível o surgimento e o desenvolvimento da ideia do
Deus judaico-cristão no Antigo Oriente Próximo. Na literatura
especializada, há, pelo menos, duas maneiras de explicar as mudanças nas
doutrinas religiosas: numa perspectiva, realça-se o poder das ideias nessa
transformação; noutra perspectiva, enfatiza-se a força das circunstâncias
materiais. A questão, portanto, que se impõe à investigação à luz dessas duas
perspectivas é: Israel foi conduzido à monolatria e, finalmente, ao monoteísmo
por força da reflexão teológica (ou seja, das ideias sobre Deus), ou por força
das condições políticas, econômicas e sociais concretas? É verdade que a Bíblia
favorece a interpretação segundo a qual são as ideias que moldam os
acontecimentos terrenos e não o contrário. Um marxista, em face da interpretação
bíblica, não hesitaria em dizer que a perspectiva bíblica é ideológica, pois
que supõe que as ideias por si mesmas são suficientes para explicar os
acontecimentos históricos.
O meu método de análise, denominado
de materialidade histórica da ideia de
Deus, tem inspiração no materialismo marxista, de sorte que assumo a
perspectiva filosófica segundo a qual a concepção de Deus se altera em resposta
às condições sócio-históricas em que ela foi gestada e se desenvolveu. Nesse
tocante, acompanho de perto o ponto de vista adotado por Wright, em seu A Evolução de Deus (2012). Decerto, o
ponto de vista que assumo reduz a fé em Deus a mero reflexo ilusório de
condições sócio-históricas determinadas, e isso pode parecer desalentador para
muitos religiosos. Mas creio que o desalento é uma etapa necessária da
desmitificação da consciência religiosa. A consciência religiosa (como toda
forma de consciência) é historicamente determinada. O estudo da materialidade
histórica da ideia de Deus deve cumprir um único objetivo deveras
significativo: demonstrar, à luz das
evidências históricas e arqueológicas, que o Deus teísta, bem como qualquer um
dos inúmeros deuses produzidos na história humana, é pura e simplesmente uma
ideia, ou, como o entendo neste texto, uma categoria cultural, por meio da qual
e em nome da qual seres humanos, numa determinada época histórica, buscavam
agir de modo a influenciar o curso dos acontecimentos do mundo, explicá-los, dar
sentido a eles e às suas vidas pessoais. Toda e qualquer especulação
teológico-filosófica sobre Deus que, fazendo abstração das condições sócio-históricas
em que a ideia de Deus foi gestada e se desenvolveu, para convertê-lo num ente
suprassensível, atemporal, a-histórico, princípio originário ou outros
equivalentes conceituais, é uma especulação ideológica, produto da imaginação e
da fantasia humanas.
3.
1. Deuses como sustentáculos do Direito Internacional
Tudo que, doravante, se dirá
a respeito do enraizamento dos deuses, particularmente de Javé (o Deus
hebraico), no solo histórico tem como pano de fundo um contexto religioso
marcadamente politeísta. Para mostrar como os deuses estavam imiscuídos em
interesses políticos e econômicos, ou seja, como os deuses, entendidos como
produções históricas, categorias culturais, estavam a serviço de interesses
políticos e econômicos, minhas reflexões se reportarão, inicialmente, à
Mesopotâmia do terceiro milênio AEC (Antes da Era Comum).
As religiões sempre
estiveram envolvidas nas relações entre governos. Elas atendiam a um propósito
bastante conveniente: facilitar essas relações. Mas foi, sobretudo, com o
surgimento dos Estados que os deuses passaram a sustentar o que pode ser
chamado de “direito internacional”.
Na Mesopotâmia, no terceiro
milênio AEC, deuses e direito internacional estavam intimamente ligados nas
cidades-estados. O deus Enlil, rei de todas as terras e pai de todos os deuses,
definiu a fronteira para o deus da cidade-estado Lagash e para o deus de Umma
mediante um decreto. É bem verdade que a autoridade divina nem sempre bastava.
O decreto foi violado pelo rei de Umma, que então foi punido pelo exército de
Lagash. Como era comum no mundo antigo atribuir aos deuses a responsabilidade
pelos feitos históricos, encontram-se registros nos quais se diz que foi o deus
de Lagash que se serviu do exército para punir o rei de Umma. Por que deixar
todo crédito para o exército? Esse modelo de pensamento que instrumentaliza os
homens, suas ações e seus esforços para garantir a Deus o papel de verdadeiro
agente responsável por um evento ou situação persiste ainda hoje na mentalidade
religiosa. Não são os médios quem curam; é Deus que o faz através dos médicos! Prossigamos...
Embora, em geral, acordos
como aquele fossem respeitados, a guerra desempenhava um papel fundamental no
mundo antigo, e os deuses eram evocados para tomar parte na responsabilidade
por ela. Em toda parte, a vontade divina era a justificativa formal para a
guerra. Os deuses que apoiavam os massacres e as extorsões em tempos de guerra
podiam ser redimidos em função do amplo período de paz que sobrevinha ao
conflito.
No curso do terceiro milênio,
a Mesopotâmia tornar-se-ia um Estado regional dirigido de modo centralizado. Os
deuses também acompanharam essa evolução para apoiar uma unidade mesopotâmica
mais ampla já no fim desse terceiro milênio. A evolução dos deuses foi
possível, porque os conquistadores do mundo antigo eram menos inclinados a
destruir os ídolos dos inimigos vencidos do que a adorá-los.
Por volta de 2.350 AEC,
Sargão da Acádia tornou-se o primeiro grande conquistador da Mesopotâmia. No
seu esforço por dominar completamente o sul da Mesopotâmia a partir do norte,
ele teve de enfrentar um grande multiculturalismo. O sul da Mesopotâmia tinha
base étnica e linguística suméria, enquanto Sargão era um estrangeiro que
falava o acádio, uma língua semítica. O que, aparentemente, poderia representar
um obstáculo para a investida bélica de Sargão foi compensado por sua
flexibilidade teológica. Embora os deuses acádios o tivessem ajudado a subjugar
os sumérios, isso não significava que os deuses sumérios fossem seus inimigos.
Na cidade de Nippur, Sargão fez com que os sacerdotes locais concordassem com
ele em que a sua vitória fora vontade do importante deus sumério Enlil (um
julgamento que contou com o apoio da exibição do rei deposto de Nippur preso
por uma coleira).
Os devotos de An, o deus
sumério dos céus, não precisavam recear o domínio de Sargão, pois que ele era
cunhado de An. A filha de Sargão Enheduanna, a quem ele faria a suprema
sacerdotisa de Ur (centro religioso da Suméria) escreveu hinos de louvor a
Inanna. Conquanto Enheduanna a considerasse a deusa superior, a superioridade
da deusa não conseguiu evitar que seu nome fosse alterado. É que Ishtar era uma
deusa acádia consagrada, e, é claro, Sargão, interessado em afirmar a unidade
política divinamente sancionada de seu império acádio-sumério, declarou que
Ishtar e Inanna eram a mesma divindade. Afinal, dois nomes seriam supérfluos!
Graças ao poder político e ao poder eficaz da palavra de Sargão, Inanna, embora
conservando suas características essenciais, passou a ser conhecida como
Ishtar.
É preciso não perder de
vista o fato de que a combinação de crenças ou conceitos religiosos
(sincretismo) atende ao interesse de criar unidade cultural e política,
contribuindo para a consolidação da conquista. E com frequência, como foi o caso
aqui, os próprios deuses são combinados, ou subsumidos uns nos outros. Não surpreende
que, quando duas culturas se fundem, alguns de seus deuses podem não se
corresponder. Os deuses sumérios, não encontrando uma contraparte aproximada,
foram assimilados à cultura acádia ou com nomes sumérios (Enlil, por exemplo),
ou com alguma variação acádia (An tornou-se Anu). Todavia, a maioria dos deuses
sumérios sobreviveu, seja mantendo sua identidade, seja pela fusão com um deus
acádio. No mundo antigo politeísta, a sabedoria de um conquistador residia em
sua flexibilidade teológica. Essa flexibilidade teológica poupava o
conquistador de disputas desnecessárias quando, terminada a guerra, restava um
império para governar.
O politeísmo tem uma
maleabilidade bastante conveniente, e a conveniência dessa maleabilidade
politeísta pode ser compreendida em dois sentidos: 1) ela servia aos interesses
de tiranos brutais, contribuíam para a consolidação de impérios; 2) era um
elixir a serviço da harmonia intercultural. Consoante ensina Wright (2012, p.
109), “por mais cruéis que fossem os conquistadores, por mais egoístas que
fossem suas ambições, no longo prazo eles conduziam mais e mais povos, sobre
territórios cada vez mais vastos, em um intercâmbio cultural e econômico”.
Sargão logrou êxito levando
a Mesopotâmia a quase atingir o universalismo. Ele estendeu o alcance dos
deuses sumérios para além de seu território ao sul. Mas isso ainda não se
compararia ao universalismo simples e monoteísta que decorreria da tradição
abraâmica, cujo deus estenderia seu governo sobre toda a humanidade. Não
obstante, na Mesopotâmia do terceiro milênio AEC, mesmo quando o politeísmo
exibia sua eficácia geopolítica, já havia forças empurrando a teologia para o
monoteísmo. É este o tema que atacaremos na próxima subseção.
3.2.
A caminho do monoteísmo
Vimos na subseção anterior
que o divino tem uma tendência para acompanhar o político. Essa tendência não
se limita às relações políticas entre cidades-estados da Mesopotâmia, mas se
estende também à política interna. As cidades-estados possuíam uma ordem
política vertical, o que significa dizer que sua organização política
apresentava uma liderança clara, hierarquicamente situada, mais elaborada e
burocrática. A mesma complexidade hierárquica que se observava na terra se
refletia no céu. Por isso, não só as cidades-estados – e, posteriormente, toda
a região – possuíam um só deus líder (chamado, às vezes, de rei), como também
esse deus tinha deuses subalternos que formavam uma corte real e celestial. Num
documento mesopotâmico datado do segundo milênio AEC elenca deuses com títulos
como valete, chefe principal, pastor principal, jardineiro, embaixador, vizir,
grão-vizir, ajudante de ordens, secretário, etc. (Wright, 2012, p. 110).
Embora possamos encontrar
semelhante hierarquia divina no Egito e na China da dinastia Shang, foi na
Mesopotâmia que a hierarquização dos deuses se tornou tão clara quanto bem
documentada. Essa “pirâmide de poderes” foi uma etapa importante em direção ao
monoteísmo. Enlil, encontrando-se no topo da pirâmide, era chamado “o magnífico
e poderoso legislador que domina o Céu e a Terra, que tudo conhece e entende”.
Embora os escritores da Mesopotâmia tivessem uma tendência a exagerar quando
tomamos por referência o consenso geral, é inegável que havia uma tendência
teológica em ação: “uma tendência em direção à majestade concentrada” (ib.id.,
p.110-111). Enlil teria um sucessor, cuja ascensão ao posto de deus supremo no
panteão mesopotâmico levaria a Mesopotâmia a aproximar-se mais do moderno
pensamento religioso ocidental.
O sucessor de Enlil foi
Marduk, deus babilônico. Como era de esperar, Marduk não conquistou sua
majestade por conta própria. Na verdade, ele contou com o importante apoio do
rei babilônico Hamurabi, que entra na cena histórica no começo do segundo
milênio AEC, séculos depois de o Império Acádio estabelecido por Sargão ter
sucumbido. A Mesopotâmia se encontrava, àquela altura, outra vez politicamente
fragmentada.
Hamurabi é famoso por ter
produzido um dos primeiros códigos morais (ou de leis) do mundo antigo. Seu
código foi uma alternativa à religião: incluía regras mundanas de
comportamento, impostas pela polícia, dispensando-se, assim, o ditame
sobrenatural. Mas devemos enfatizar um fato importante: nos Estados antigos,
tanto a lei nacional quanto as leis internacionais eram sustentadas pelos
deuses. Não havia o que conhecemos hoje como Estado laico, baseado no princípio
de separação entre Estado e religião. Hamurabi foi divinamente autorizado a
organizar as leis. Na introdução do código de Hamurabi, lê-se que Anu e Enlil,
os deuses principais do panteão mesopotâmico, escolheram Hamurabi como rei
“para produzir a lei da justiça na terra, destruir os maus e os perversos”.
Cerca de trinta deuses são citados ao longo do código, alguns dos quais
cumpriam função judicial. A prática de atirar um suspeito em um rio se
acompanhava da expectativa de verificar se o deus do rio o prenderia; se o prendesse,
o suspeito era declarado (postumamente) culpado.
Mas o tratamento dispensado
a Marduk no código de Hamurabi não se comparava ao tipo de tratamento dado aos
demais deuses. No código, Anu e Enil declaram Marduk um deus “magnífico” e lhe
atribuem “o domínio sobre o homem terreno”. Marduk, como já disse, era deus da
cidade da Babilônia, de onde provinha Hamurabi; e este intentava expandir o
controle da cidade sobre toda a Mesopotâmia. Não seria custoso aos deuses da
Mesopotâmia admitir a majestade de Marduk entre eles. Mas sucedeu que Hamurabi
morreu antes de dominar toda a Mesopotâmia. Nos séculos seguintes, porém, a
Babilônia estendeu, de fato, seu domínio total sobre a Mesopotâmia, e Marduk
pôde, assim, tornar-se o deus mais importante do panteão mesopotâmico,
destruindo Enlil.
Os que defendiam Marduk não
cessariam de lhe dispensar louvores, exaltando sua supremacia. A devoção a
Marduk operou uma radical transformação teológica: os outros deuses do panteão,
àquela altura já subordinados a Marduk, se converteram em meros aspectos dele.
Assim, o deus Adad- antes conhecido como deus da chuva – era agora “Marduk da
chuva”. Outro deus, chamado Nabu, o deus escriba, tornou-se “Marduk dos
escribas”. E assim, sucessivamente, como num efeito em cascata, “os principais
deuses da Mesopotâmia foram engolidos por Marduk, um a um” (ibid., p. 112).
É bem verdade que não há
consenso entre os estudiosos acerca da causa principal que levaria sociedades
politeístas a se tornarem monoteístas. Alguns estudiosos concordam com Edward
Tylor, para quem a passagem do politeísmo para o monoteísmo era parte de um
movimento natural em direção ao racionalismo científico. Nesse sentido,
seguindo a interpretação de Tylor, a série de deuses mesopotâmicos aos quais se
impunha uma hierarquia crescente no panteão não era mero reflexo do governo
hierárquico, mas consequência do anseio humano de ordem intelectual e de
unidade de compreensão do mundo. A ascensão de Marduk e seu domínio sobre os
outros deuses devem ser interpretados, segundo essa linha de raciocínio, como
expressão de um tipo de grande teoria unificada da natureza. Marduk
representava essa teoria unificada da natureza.
Malgrado o fato de não
podermos falar de uma investigação científica ampla e acelerada no mundo
antigo, ela pode ter contribuído, de modo incipiente, para a eliminação parcial
do mistério do universo, suprimindo gradativamente a necessidade intelectual de
muitos deuses. Por muito tempo, os mesopotâmicos pensaram que demônios eram a
causa de eclipses e batiam tambor para afastá-los. Durante o primeiro milênio
AEC, sacerdotes-astrônomos babilônicos descobriram que os eclipses podiam ser
previstos com exatidão, não obstante suas causas demoníacas. O ritual sagrado
dos tambores permaneceu, no entanto. Outros muitos costumes religiosos
subsistiram como o da antiga e precursora árvore de Natal escandinava, cuja
função era dispersar os demônios.
As explicações
“intelectualistas” para a transformação de sociedades politeístas em
monoteístas concorrem com explicações completamente políticas. Volvendo olhares
sobre a situação da Mesopotâmia sob o domínio babilônico, uma tendência para o
monoteísmo de Marduk pela redução dos rivais a meras partes de sua anatomia
constitui um expediente teológico bastante adequado às pretensões imperialistas
babilônicas. Em outras palavras, citando Wright: “(...) para os babilônicos que
queriam permear a Mesopotâmia com o entendimento e o bom convívio
multicultural, haveria melhor cimento social que um único deus que abrangesse
todos os deuses”?
Façamos uma breve digressão
para esclarecer a consequência principal que o leitor deve extrair de tudo que
se expôs até aqui. Com vistas a esclarecê-la, chamo a atenção para o uso que
Wright fez da expressão “cimento social” para recategorizar o deus Marduk com
base na função que ele passou a desempenhar. Essa expressão nominal “cimento
social”, de conotação francamente secularizadora e metafórica, expressa um tipo
de avaliação do enunciador relativamente ao referente (objeto-de-discurso)
designado pela forma “deus” (ou “deus Marduk”). Em outras palavras, “cimento
social” estabelece um outro horizonte de compreensão, de interpretação, de
leitura a partir do qual deve-se tomar o significado de “deus”. Ora, “deus” não
é mais entendido como “ente sobrenatural e causa necessária e última de tudo
que há”, mas deve ser lido a partir do horizonte de sentido instaurado pela
expressão “cimento social”. O que está em jogo aqui não é a mera substituição
de uma palavra (deus) por uma expressão (cimento social), mas a expressão de um
modo diverso de categorizar, de conceituar a experiência com aquilo que, noutro
domínio semântico, chamamos normalmente de “deus”. Ao nos referirmos a deus
como “cimento social”, estamos codificando uma outra forma de representa-lo, de
pensá-lo, interpretá-lo, compreendê-lo, de situá-lo como objeto
sociocognitivo-cultural. O que significa um deus como cimento social? Um
cimento serve para unir e fixar partes de uma construção (de uma casa, por
exemplo). Assim também um “cimento social” designa algo capaz de unir
indissociavelmente os indivíduos, os grupos entre si a partir de uma crença ou
ideias comuns. No caso em tela, Marduk, como cimento social, uniria toda a
sociedade mesopotâmica, culturalmente heterogênea, em torno da crença num único
deus, identificado com o poder do Estado. Para atingir uma correta compreensão
desse processo discursivo de recategorização, é necessário assumir que as
coisas, os referentes sobre os quais fala o discurso não são as coisas ou
referentes do mundo extralinguístico, mas objetos-de-discurso.
Quando produzimos textos ou buscamos compreendê-los, importa considerar como o
mundo é textualizado, como seus objetos são introduzidos, mantidos,
transformados no discurso. Os objetos-de-discurso são as entidades
(referentes) construídas pelo discurso e é nele e por ele que são postos,
delimitados, transformados, desenvolvidos, etc.
Entendendo-se
o significado não como reflexo da realidade (de uma realidade que existiria
independentemente da linguagem), mas sim como uma construção sociocognitivo-interacional
por meio da qual o mundo é apreendido e experienciado, resta que a adequada
compreensão do significado de “deus como cimento social” supõe que sejamos
capazes de reconhecer que o mecanismo metafórico define-se como a
conceptualização de um domínio de experiência nos termos de outro. Em outras
palavras, o domínio de experiência ativado pelo conceito de “deus” é
reinterpretado a partir do domínio de experiência ativado pelo conceito de
“cimento social”. É importante perceber que a ‘verticalidade-transcendência’
implicada no domínio de experiência de “deus” é transformada para a
‘horizontalidade-imanência’ envolvida no domínio de experiência de “cimento
social”. Em outras palavras, deus deixa de atender a propósitos superiores,
existencialmente mais elevados, para atender a necessidades mundanas,
pragmáticas, da vida comum, qual seja, a de unir, conformar, juntar num todo,
estabelecer vínculos mais sólidos social e politicamente com vistas a facilitar
o domínio do poder estatal e produzir consenso.
A
exposição que se tem feito até aqui sobre o vínculo entre os deuses e o âmbito
político deve encaminhar a conclusão de que deuses são categorias culturais
mediante as quais nossas experiências de mundo são organizadas, classificadas,
interpretadas e das quais nossas relações com o mundo e os outros recebem bases
normativas. Claro está também que encapsular o objeto-discurso ‘deus’ na expressão
[CATEGORIA CULTURAL] é expressar uma outra maneira de codificá-lo, de
experienciá-lo, de pensá-lo, identificá-lo, interpretá-lo. É claro que deuses
como “categorias culturais” não se equivalem semanticamente e funcionalmente a
outras categorias culturais, tais como “pai”, “mãe”, “filho”, “família”, “clã”,
“primitivo”, “selvagem”, entre outras. Apesar das especificidades semânticas e
funcionais da categoria cultural “deus”, entre as quais está a qualidade de ser
a instância suprassensível garantidora de um sentido transcendente para a vida
(se pensarmos na representação do Deus metafísico cristão), nada há que obste à
possibilidade de a categoria cultural “deus” absorver as propriedades de outras
categorias como a de [PAI] (se levarmos em conta a representação do Deus
cristão como “Pai”). Por analogia, do “pai”, o Deus cristão herda a
progenitura, certamente; mas também a pessoalidade, a função provedora, a
autoridade, o poder patriarcal e a afetividade protetora. Não por acaso o Freud
mais maduro e autor de O Futuro de uma
ilusão viu no Deus pessoal cristão um pai sublimado, que responderia à
necessidade infantil humana de amparo e proteção.
Retomando
o fio discursivo cuja interrupção se impôs pela digressão que agora se encerra,
Marduk não reinou como deus soberano ad
infinitum. Ele foi obrigado a estabelecer um acordo que previa a divisão de
poder com outro deus supremo. Todavia, o reinado de Marduk representou a maior
aproximação de um monoteísmo universalista na Mesopotâmia. Wright (ibid. p.
113-114) parece sugerir que a explicação política para uma tendência ao
monoteísmo, baseada no argumento da necessidade de unificar uma região
etnicamente diversificada, dá conta do que realmente aconteceu no caso da
ascensão de Marduk.
3.3. O monoteísmo
no Egito
Segundo
Wright (ibid., p. 114), “a experiência do Egito com o monoteísmo foi mais
abrupta e envolveu menos cordialidade”. Ainda segundo o autor, essa experiência
foi tão comparativamente radical e violenta quanto um golpe de Estado. Para
compreendermos como se deu essa transformação radical da teologia egípcia,
devemos trazer à cena histórica o faraó excêntrico e enigmático chamado
Amenófis IV. Foi ele o responsável, no século XIV AEC, por arquitetar o golpe
institucional que transformaria o Egito politeísta numa sociedade monoteísta. A
depender do estudioso, a motivação de Amenófis pode variar entre um entusiasmo
religioso e uma conspiração política; mas, seja qual for a linha de
interpretação assumida, parece indiscutível a relevância do contexto político
que ele herdou ao assumir o trono, ou da teologia imiscuída nesse contexto.
O panteão do Egito trazia o
germe de um monoteísmo emergente: Amon preenchia a função de dominador do
firmamento divino. Amon viria a se tornar mais poderoso depois de sustentar uma
série de campanhas militares no Egito e de angariar para si prestígio com as
vitórias decorrentes. Os templos de Amon possuíam vastas terras e riqueza, e os
sacerdotes, reais promotores das guerras, tornaram-se mais poderosos, passando
a administrar um império comercial que abrangia a mineração, a manufatura e o
comércio. É difícil mensurar até que ponto esse acúmulo de poder nas mãos dos sacerdotes
ameaçava o poder do próprio faraó, mas é possível que as denominações dadas a
Amon – rei dos deuses, príncipe dos príncipes – possam ter contribuído para lhe
arrefecer a confiança. Também o indício de que Amon não só poderia ser soberano
sobre os outros deuses, como também poderia absorvê-los, à semelhança de Marduk,
possa tê-lo impulsionado a tomar providências.
Amenófis precisava subjugar
Amon, para o que ele se serviu indiretamente do legado do deus Rá. O deus Rá
era, por vezes, associado a um disco solar com duas hastes, conhecido como
Aton, que significa disco. Esse disco solar originalmente representava a
energia radiante de Rá, mas Amenófis III, pai do jovem faraó, decidiu
conferir-lhe o papel de uma divindade independente. Amenófis IV, seguindo os
passos do pai, promoveu Aton ao posto de deus que representa “aquele que
decreta a vida”, “aquele que criou a terra”, “aquele que construiu a si mesmo
por si mesmo”, “aquele cujos raios solares significam visão para tudo que ele
criou”. Aton se tornara um deus maior que Amon, e o faraó fez desaparecer o
nome de Amon, proibindo seu uso em qualquer circunstância. Pessoas com nomes
que encerram Amon tiveram de mudá-los. O antes poderoso sumo sacerdote de Amon
foi, durante o reinado de Amenófis IV, foi deslocado para o trabalho que
consistia em quebrar pedras em uma pedreira.
Não só Amon foi extinto, mas
também a forma “deuses” foi apagada de alguns textos e seu uso passou a ser
severamente limitado, já que, afinal, só existia um único verdadeiro deus. Os
deuses que então faziam parte do panteão egípcio sequer mereceram a cortesia
que Marduk oferecia às demais divindades mesopotâmicas que ele veio a suplantar
– a absorção em um novo ser supremo. Os deuses egípcios foram simplesmente
declarados extintos juntamente de seus sacerdócios. O faraó ergueu uma grande
cidade em homenagem a Anton, dando-lhe o nome de Akhetaton (“Horizonte de
Anton”). Dela fez a capital, e a si próprio batizou de Akhenaton (“Auxiliar de
Anton”). Não satisfeito, ainda nomeou-se sumo sacerdote de Anton e se declarou
filho de Anton, passando a ser reverenciado como tal. A conclusão dou a
conhecer nas palavras de Wright:
Enquanto Marduk,
depois de absorver os principais deuses da Mesopotâmia, mantinha algumas
divindades por perto como esposa e servos, Anton, no ápice de seu poder,
firmou-se solitário no firmamento divino, um claro prenúncio do deus hebreu,
Jeová. E do famoso universalismo de Jeová: Aton criara os seres humanos e
cuidava deles – de todos eles.
(ib.id., p. 116, ênfase no original).
3.4. O politeísmo da antiga religião de Israel
No politeísmo “primitivo”,
as forças da natureza podiam ser representadas como deuses, ou se assemelharem
livremente a eles. No entanto, no monoteísmo que viria a ganhar forma no Antigo
Oriente Próximo, havia maior distanciamento entre a natureza e a divindade.
Diferentemente das divindades pagãs, Javé não se identificava com nenhuma força
da natureza, mas “habitava” um domínio separado.
Na Bíblia, o deus cananeu
Baal tem uma importância significativa na carreira de Javé em direção à
soberania. Baal era adorado pelos cananeus, mas também pelos israelitas
desiludidos que renunciaram à devoção a Javé. Baal era o deus da fertilidade,
também chamado de Senhor da Chuva e do Orvalho; por outro lado, Javé não era
Senhor de nada em particular e, ao mesmo tempo, era Senhor de tudo; ele era a
fonte de todo poder natural, sem, contudo, exercer poder administrativo sobre a
natureza em seus detalhes.
Importa enfatizar que o Javé
da época de Elias, embora fosse sumamente poderoso e “transcendente” num
sentido moderno, era desprovido do que poderíamos chamar de sensibilidade
moral. Por exemplo, ele não era muito tolerante com perspectivas teológicas
divergentes. No episódio do primeiro livro dos Reis, Deus usa sua “voz
silenciosa” para instruir Elias sobre como aniquilar os adoradores de Baal da
vizinhança.
Quando alguns assírios
duvidaram do poder de Javé, foi o
próprio Javé que se encarregou de matar 127.000 assírios. A primeira questão
importante que precisa ser contemplada, se quisermos saber se a violência tem
algo a ver com o caráter do deus abraâmico, é investigar como se formou o
caráter desse deus.
Cristãos, muçulmanos e
judeus falam de seu deus como aquele que, de acordo com a Bíblia, se revelou a
Abraão no segundo milênio AEC. Essas três religiões abraâmicas totalizam mais
de 3 bilhões de fiéis e, embora essas três religiões monoteístas declarem a
mesma linhagem para seu deus, nem sempre seus seguidores se veem adorando o
mesmo deus. Nas palavras de Wright (ibid., p. 125): “Essa percepção parece ter
estimulado certa quantidade de violência Javé x Javé (as Cruzadas, Jihads,
etc.) que apenas reforçou a reputação de intolerância beligerante do monoteísmo
abraâmico”.
Pode parecer surpreendente
para aqueles que consolidaram sua fé em Deus através do catecismo o fato de que
uma leitura atenta da Bíblia hebraica (O Antigo Testamento) revela um deus cujo
caráter muda radicalmente do começo ao fim. A Bíblia se apresenta como um
conjunto de livros obscuro para um leitor que tenha pouca ou nenhuma
instrumentalização em estudos exegéticos, e isso por várias razões que não
precisam ser enumeradas aqui. Mas há que mencionar uma dificuldade imediata
enfrentada por todo leitor comum da Bíblia, quando se debruça sobre ela a fim
de acompanhar o desdobramento da história da formação da ideia de Deus. Essa
história não se lhe apresenta numa sequência narrativa coerente e a razão disso
é que a Bíblia hebraica foi tomando corpo lentamente, ao longo de muitos
séculos, e a ordem em que os seus livros foram escritos não corresponde à ordem
em que eles foram muito posteriormente organizados para a constituição do
cânone. Assim, por exemplo, o primeiro livro do Gênesis foi escrito depois do
segundo livro, por um autor diferente. Os duplos relatos e as contradições em
torno da figura de Abraaão foram explicados pela exegese bíblica, no século
XIX, com a chamada “teoria documental clássica”, proposta pelo consagrado
exegeta e orientalista alemão Julius Welhausen (1844-1918). A história contada
no Gênesis, assim como outras do Pentateuco, resulta da combinação de
documentos originários de duas fontes redacionais distintas do Antigo
Testamento: a J (Javista), originária de Judá (ao sul), a E (Eloísta),
originária do norte, mais próxima do centro de adoração de El. Assim, os relatos duplos e as contradições foram reconhecidos
como originários dessas diferentes fontes.
Hoje, temos à disposição
três grandes contribuições que nos permitem saber com segurança a exata ordem
de composição dos livros que viriam a integrar o que conhecemos como Bíblia. A
primeira contribuição nos vem dos estudos de interpretação bíblica calcados
sobre o método histórico-crítico que funciona como uma espécie de decodificador
das condições históricas de produção dos textos a fim de determinar o que eles
significavam nessas circunstâncias históricas em que foram produzidos, ainda
que a empresa seja dificultada pelo fato de os estudiosos não disporem dos
textos originais (mas de cópias de cópias...). A segunda contribuição é dada
pela arqueologia que tornou possível uma compreensão maior e mais consistente
da história de Israel e do mundo bíblico. A terceira contribuição reside na
descoberta de antigos textos ugaríticos (provenientes da cidade cananeia de
Ugarit), os quais contam a história do ponto de vista dos adoradores do deus
Baal. Assim, quando reunimos essas três contribuições, é possível construir um
retrato totalmente novo do deus hebraico.
De fato, no primeiro milênio
AEC, quando a maior parte – senão a totalidade – do Gênesis foi produzida, Deus
é descrito como alguém que “plantou” o Jardim do Éden e fez vestes para Adão e
Eva, os vestindo. Depois que Eva e Adão comeram do fruto proibido, eles
decidiram se esconder – uma tática, aliás, bastante ingênua diante de um Deus
onisciente, mas, àquela altura, Deus ainda não tinha o atributo da onisciência,
já que procurava por Adão, preguntando “Onde estás?” (Gn 3: 9). Causa
estranheza que o Deus que criou o universo tenha sua capacidade limitada. Mas
não está claro se o Deus que “passeava” no Jardim do Éden era o mesmo Deus que
criou o universo. Sim, de fato, o relato da criação está lá, no primeiro
capítulo do Gênesis; mas o que a maioria dos leitores comuns da Bíblia ignora é
que o relato da criação muito provavelmente foi um acréscimo posterior. Javé
não se apresenta inicialmente como um criador cósmico.
Quando nos voltamos para os
poemas, que a maioria dos estudiosos considera os textos mais antigos da
Bíblia, encontramos um Deus interessado em destruir. Não se fala aí num deus
criador, mas num deus guerreiro. Êxodo
15, texto que alguns estudiosos consideram o mais antigo da Bíblia, é uma ode a
Javé por ter afogado o exército egípcio no mar Vermelho: “Cantarei ao SENHOR,
porque realmente triunfou, lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro” (Ex 15:
1). Javé não era ainda o administrador do universo. E, se perguntarmos quem
então estava encarregado de administrá-lo, a resposta certa é: os outros
deuses. Naquele momento, Israel estava imersa num contexto politeísta; os próprios
israelitas adoravam outros deuses além de Javé. A história bíblica pode ser
resumida da seguinte forma: os israelitas adoravam outros deuses, Javé os
punia; os israelitas se corrigiam, porém não tardavam em se desviar novamente; Javé
os punia, e assim por diante. Mas a adoração a outros deuses pelos israelitas
não é propriamente a questão importante; o que é importante é o reconhecimento
de que os israelitas acreditavam na existência de outros deuses além de Javé.
Em Êxodo 15, no antigo cântico a Javé “guerreiro”, encontramos a pergunta:
“Quem entre os deuses é semelhante a vós, Senhor?”. Do simples fato de as
Escrituras advertirem os israelitas de que não deviam servir a outros deuses
segue-se que esses deuses eram considerados existentes. Javé seria um deus
ciumento caso não existissem deuses dos quais pudesse sentir ciúmes? Um exame
atento da Bíblia hebraica encaminha a conclusão de que o próprio Deus não era
ainda monoteísta no começo. Mesmo a famosa passagem “Não terás outros deuses
além de mim”, que se topa em Êxodo 20: 3, não elide a existência de outros
deuses. Portanto, não resta dúvida de que a religião israelita, antes de
assumir sua forma monoteísta, ou seja, antes de negar a existência de quaisquer
outros deuses exceto Javé, reconhecia, durante muito tempo, a existência deles,
muito embora condenasse a adoração deles pelos israelitas. Assim, a religião
israelita só atingiu o monoteísmo após passar por uma fase de monolatria –
devoção exclusiva a um deus, sem negar a existência de outros deuses. A maioria
dos estudiosos, entre eles judeus e cristãos, concorda nesse ponto. O que
acarreta mais controvérsia, contudo, é a admissão de que Javé não começou como
um deus soberano, mas como um integrante de uma assembleia divina, “operando ao
lado de outros deuses” (ibid., p. 130). O fato é que uma leitura atenta da
Bíblia mostra-nos que ela fala realmente em uma “assembleia divina”. O Salmo
82:1 diz que “É Deus quem preside a assembleia divina...”. No versículo 6, Deus
se dirige aos demais membros da assembleia com um “Vós sois deuses”.
Não há dúvida quanto ao
caráter politeísta da antiga Israel, mas quando nos perguntamos como esse
politeísmo plenamente desenvolvido era, devemos buscar respostas em outra fonte
além da Bíblia, visto que “a história como contada na Bíblia foi, em alguns
casos, obliterada pelos fatos no solo” (ibid., p. 131).
3.4.1.
Javé e El: um mesmo deus ou dois deuses?
Na busca por desenterrar as
raízes históricas da ideia de Deus, não podemos perder de vista o fato de que o
monoteísmo israelita se desenvolveu após séculos de imersão na cultura
cananeia. É possível deveras que Javé, que, na Bíblia, aparece ocupado na luta
contra os deuses cananeus, tenha sido inicialmente um deus cananeu.
Quando, às vésperas do
nascimento de Israel, na cidade de Ugarit, foram encontrados textos antigos que
remontam ao fim da Idade do Bronze, tornou-se
possível conhecer mais sobre a religião israelita. Conta-se, nesses textos, que
havia um conselho divino, cujo deus hierarquicamente superior era chamado El.
El é muito semelhante a Javé: ambos eram muito poderosos. El era reconhecido
como o “touro”, se bem que também chamado de “Amável El, o misericordioso”.
Também Javé combina o traço guerreiro implacável com a compaixão. Ambos os
deuses apareciam em sonhos; os dois foram deuses criadores paternalistas. El
foi “o criador das criaturas” e “pai da humanidade”. Mas seriam Javé e El
deuses diferentes? Veremos que há boas razões para responder “sim”.
Comecemos, pois, por
elucidar o aspecto linguístico envolvido na questão. Segundo Wright (ibid., p.
136), “(...) se pesquisarmos a palavra “deus” em algumas partes da Bíblia,
encontraremos não a palavra hebraica para Javé, mas sim a palavra hebraica El”. O El cananeu tem uso mais antigo que a palavra Javé, nome com que é
conhecido o deus israelita. De fato, o
El cananeu figura nos registros
históricos antes do deus israelita Javé. Em vista disso, seríamos tentados a
concluir que Javé surgiu de El.
Quiçá, Javé seja uma versão linguística de El.
Mas essa conclusão pode ser rechaçada quando consideramos o uso da palavra
hebraica El. Essa palavra designa
“deus” – tanto como um deus em geral quanto um deus específico. Mas o hebraico
antigo dispensava a convenção maiúscula/ minúscula para a grafia das palavras.
Portanto, não estamos autorizados a inferir de cada ocorrência da palavra El que ela esteja a designar o deus
hebreu.
No entanto, há momentos na
Bíblia em que a ocorrência da forma El
se refere ao deus hebreu. Nesses casos, El
lhe serve de nome próprio. No Gênesis, por exemplo, quando se diz que Jacó
“erigiu um altar, que chamou de El-Deus de Israel”, a tradução adequada deve incluir
a grafia El (com inicial maiúscula).
A grafia com inicial minúscula tornaria o texto incoerente (o resultado seria
“(...) que chamou divindade, a divindade de Israel”). Está mais próximo da
verdade assumir que o primeiro “deus” (El) é um deus específico chamado El. Ele fora líder do panteão no norte
de Canaã. Outra evidência do vínculo estreito entre a religião israelita e o El cananeu encontra-se na forma da
palavra Isra-el. Nomes inspirados em deuses era, no mundo antigo, com
frequência, terminados em “-el”, forma
esta que se referia ao deus El.
Embora tenhamos até aqui
buscado na Bíblia passagens que deem sustentação a uma compreensão do que
realmente aconteceu, o que, decerto, aprendemos com os estudos bíblicos
baseados no método histórico-crítico é que as histórias bíblicas em geral dizem
mais da época em que foram criadas do que da época que alegam descrever.
Já mencionamos a Hipótese
Documental de Wellhausen como uma tentativa de explicar as discrepâncias, as contradições
na narrativa de vários livros do Pentateuco; mas silenciamos a respeito de sua
outra função explicativa. Na medida em que a Hipótese Documental sugere que a
produção dos livros recobertos pelo nome de Pentateuco tem origem em fontes
redacionais diferentes, uma delas baseada na crença em Javé; e a outra, na
crença em El, ela também sugere que,
em algum momento da história, havia duas tradições religiosas distintas que,
posteriormente, se reconciliaram: a tradição baseada na crença em Javé e a
tradição baseada na crença em El.
Ainda que essa hipótese não atraia hoje a mesma unanimidade que tinha em meados
do século XX, é inegável que a Bíblia apresenta vários nomes para o deus de
Israel. Se, de fato, houve uma fusão entre duas tradições religiosas calcadas
na crença em deuses diferentes, tal acontecimento não seria nenhuma novidade;
afinal, o mundo antigo é repleto de fusões teológicas politicamente
convenientes. É certo que a Bíblia faz alusões à união de grupos antes
separados. Israel é descrita no fim do segundo milênio AEC como uma confederação
de doze tribos.
Como a Bíblia constitui um
acervo de livros cuja produção, ao longo de séculos, se deu por meio de uma
série de falsificações, reedições, acréscimos, supressões que explicam não só
por que é tão árdua a tarefa de reconstruir a verdadeira história por trás das
Escrituras, como também por que se encontram tantas inconsistências entre
passagens de um mesmo livro ou entre livros, ela pode autorizar interpretações
divergentes de uma interpretação calcada numa versão mais antiga do texto. É o
que sucede com Deuteronômio 32, versículos 8 e 9, que transcrevemos abaixo:
Quando
o Altíssimo deu às nações
a
sua herança,
quando
dividiu toda a humanidade,
estabeleceu
fronteiras para os povos
de
acordo com o número
dos
filhos de Israel.
Pois
o povo preferido do Senhor
é
este povo,
Jacó
é a herança que lhe coube.
O uso dos Manuscritos do Mar
Morto e da Septuaginta tornou possível a reconstrução da versão original da
passagem em que figura a expressão “filhos de Israel”. Para alguns estudiosos,
essa expressão foi usada em substituição a “filhos de El”. A versão restaurada
esclareceu o sentido de um trecho antes obscuro. El, chamado o Altíssimo,
dividiu os povos do mundo em grupos étnicos e deu um grupo a cada um de seus
filhos. A Javé, um de seus filhos, foi dado o povo de Jacó. Nesse ponto da
história israelita, Javé não era ainda Deus, mas apenas um deus – um filho de
Deus, um filho entre vários.
Se perguntarmos como foi
possível que Javé passasse de um nível inferior para um nível superior no
panteão, acabando por combinar-se com o deus principal El, a resposta deve ser buscada no âmbito de práticas que explica a
ascensão divina no mundo antigo: o âmbito
político. Uma explicação razoável para a ascensão de Javé é a mudança de
poder na relação entre o norte e o sul de Israel, isto é, entre a região de El
e a de Javé. O sul de Israel pode ter alcançado mais poder por volta do século
VIII AEC. Foi só depois que se deu a consolidação desse poder que a Bíblia
hebraica foi escrita. Como os escribas provenientes do sul eram adeptos da fé
em Javé, eles não hesitaram em ampliar o poder deste, reduzindo gradativamente
até a supressão total o poder da perspectiva do norte, baseada em El. Trata-se – eu enfatizo – de uma
explicação razoável, mas não significa que ela seja consistente com o que
realmente aconteceu. Como nota sobriamente Wright (ibid., p. 144), “talvez não
haja reconstrução da história antiga de Israel que explique satisfatoriamente
todas essas curiosas evidências, incluindo a descrição de Iavé como filho de Elyon na versão não adulterada do
Deuteronômio 32 e a fusão de Iavé e El Shaddai, em Êxodo 6”. Segundo o autor, a
resposta certa pode ser encontrada na investigação da história posterior de
Israel, muito tempo depois de a confederação tribal ter-se consolidado e muito
tempo depois de ela tornar-se um Estado pleno, com um rei.
Enquanto isso,
qualquer que seja a verdade sobre a história antiga de Iavé, há uma coisa que
podemos dizer com certeza: os editores e tradutores da Bíblia às vezes a
tornaram obscura – talvez deliberadamente, em uma tentativa de ocultar as
evidências do antigo politeísmo predominante. (ibid., p. 145).
3.4.2.
Javé, um deus mitológico?
3.4.2.1. A relação
“genética” entre Javé e Baal
Referências bíblicas a uma
deusa chamada Aserá, que alguns estudiosos acreditam se tratar da versão
hebraica para Athirat, suscitam a questão de uma possível vida sexual de Javé.
Conquanto os autores bíblicos não declarem ser Aserá a esposa de Deus,
arqueólogos, no fim do século XX, encontraram indícios de que Aserá possa ter
sido esposa de Deus, em inscrições antigas datadas de aproximadamente 800 AEC
em dois sítios diferentes no Oriente Médio. Nessas inscrições, figuram bênçãos
em nome de Javé e de “sua Aserá”. Mas há uma questão mais interessante
implicada na questão sobre uma possível vida sexual de Javé: teria sido Javé um
deus mitológico em algum momento de seu desenvolvimento histórico? O aspecto
mitológico de Javé – devo enfatizar – diz respeito a possíveis relacionamentos
com seres extraordinários; a combates com outros deuses ou semideuses; à
participação dele numa “novela sobrenatural”. De fato, tudo indica que Javé não
rompeu claramente com o mito pagão. A história de Javé é muito mais
evolucionária do que revolucionária. A árvore genealógica de Javé encerra muito
mais do que uma fusão com o deus cananeu El.
Javé também herdou as características da mais abominada divindade cananeia:
Baal.
Baal era um deus
profundamente vinculado ao mito. Ele lutou contra Yamm, o deus do mar e contra
Mot, o deus da morte. Um texto ugarítico declara que Baal derrotou Lotan, um
“dragão” de sete cabeças. A Bíblia, por sua vez, também homenageia Javé por ter
esmagado “as cabeças de dragões”. A antiga palavra hebraica Livyaton (Leviatã, em português) é a
mesma palavra usada para designar Lotan. Parece então que Javé não matou
simplesmente dragões de várias cabeças, mas matou o mesmo dragão de várias
cabeças suplantado por Baal. No Salmo 82, Javé aparece subjugando o mar,
palavra grafada com inicial maiúscula em algumas traduções da Bíblia, porquanto
Mar se refere a Yam, antiga palavra
hebraica que servia para designar o deus do mar que Baal derrotou.
É importante lembrar que o
hebraico antigo desconhecia as letras maiúsculas, de sorte que os tradutores
podem escolher entre a grafia com inicial minúscula e a grafia com inicial
maiúscula. Mas a opção não pode desconsiderar o que se sabe, por exemplo, sobre
a mitologia cananeia. Uma tradução que opte por conservar a forma Mot, em vez
de “morte”, está bem afinada com o fato de que, na mitologia cananeia, Mot era
reconhecido por fazer as pessoas desaparecer no final de suas vidas,
conduzindo-as ao Sheol – mundo inferior da vida após morte. Nessa versão que
opte pela manutenção da forma Mot, Javé faria desaparecer Mot juntamente de
Baal.
A Bíblia também alude à
cólera de Javé contra os rios e o mar. Todavia, faz sentido um deus
encolerizar-se contra entes inanimados, naturais? A cólera de Javé contra rios
e mar faz mais sentido se essas palavras forem traduzidas como Nahar e Yamm,
seres sobrenaturais contra os quais Baal lutou. O eminente estudioso bíblico
Frank Moore argumenta que a submissão do mar por Javé é um eco distante de Baal
dominando o Mar (Yamm) numa batalha. É Moore também que argumenta em favor de
uma linhagem mítica da travessia do Mar Vermelho, cujas raízes repousam na
mitologia de Baal. É claro que há uma diferença clara entre o episódio bíblico
do Mar Vermelho e os acontecimentos míticos protagonizados por Baal: os mitos
de Baal se dão no mundo sobrenatural; a história bíblica da travessia do Mar
Vermelho, por outro lado, é fundamentalmente uma história humana. As ações
envolvidas no episódio bíblico ocorrem no mundo habitado pelos seres humanos.
As batalhas de Javé, ao contrário das de Baal, são circunscritas temporal e
espacialmente.
Como minhas considerações
sobre as raízes históricas da ideia de Deus não se pretendem exaustivas, muitos
outros fatos deverão situar-se fora do escopo desta exposição. Isso não me
impede, contudo, de reafirmar a validade da tese segundo a qual há uma conexão
orgânica entre a religião israelita e as religiões pagãs que a antecederam.
Mais ainda, as reflexões que vêm sendo elaboradas até aqui visam a demonstrar
que os deuses mudam de natureza e se combinam com outros deuses. Dessa mudança
e combinação resulta uma mudança considerável nas visões teológicas. O que
aconteceu com deuses como Aton, que fez sua emergência num contexto politeísta
e ascendeu ao posto de deus único e verdadeiro, sucedeu também com o Deus
hebraico. Javé não só herdou muitas das características de El, como também se desenvolveu a partir de uma linhagem que remonta
a Baal. É certo que as linhas de descendência, quando se trata de deuses, não
são claras, mas a obscuridade da linhagem se deve ao fato de deuses serem
produto da evolução cultural e não da evolução biológica. Por mais difícil que seja
explicar como Baal, que é representado na Bíblia como rival de Javé, pode ter
“transferido” suas características principais para Javé, é sempre bom lembrar
que, na competição cultural, a competição enseja, muitas vezes, as
assimilações, as convergências.
Por fim, gostaria de dar a
saber uma síntese do caráter evolucionário de Javé, referindo um excerto de
Wright. A leitura deste trecho se faz tanto mais inteligível quanto mais
convencidos estejamos de que deuses são produtos históricos e de que o Deus
judaico-cristão é igualmente uma produção histórica da imaginação humana. Um
exame cuidadoso da História da constituição dos textos bíblicos combinado com
as descobertas arqueológicas contribuem decisivamente para o desilusionamento
da consciência religiosa, erodindo todas as alegadas razões
teológico-filosóficas pelas quais o Deus judaico-cristão é, no mundo ocidental,
assumido como o Deus verdadeiramente existente. Todas as evidências históricas
disponíveis apoiam a visão segundo a qual deuses são, num sentido comum do
termo, hipóstases, ou seja, entidades
fictícias falsamente consideradas como uma realidade existente fora do
pensamento. Na hipóstase, se dá a transformação de um mero conceito numa coisa
em si, num ente, por meio de um processo chamado de reificação. A reificação, num sentido psicanalítico, designa a
transformação de uma representação mental (p.ex, deus) em uma coisa, em um
ente, ao qual é atribuído uma realidade autônoma e objetiva, ou seja, uma
realidade fora do pensamento.
É claro, a ordem na
qual os livros bíblicos (e capítulos e versículos) da Bíblia aparecem não é a
ordem na qual foram escritos. Mas mesmo que olhemos o texto na ordem de sua
autoria, veremos uma tendência (pelo menos, se usarmos a perspectiva
predominante, embora não inquestionável, de datação dos textos). As antigas
escrituras oferecem um deus participativo, antropomórfico, que caminha pelo
jardim, convoca pessoas, lhes faz roupas, gentilmente conclui uma arca antes de
desencadear uma inundação devastadora, e afoga egípcios assoprando sob o mar
(através de seu nariz). Esse deus respira “o agradável odor” dos sacrifícios
ofertados sob o fogo. Nas escrituras posteriores, vemos menos Deus em pessoa e
começamos a ver um deus incorpóreo. O quarto capítulo do Deuteronômio,
aparentemente um produto de meados do primeiro milênio, destaca que mesmo
quando Deus falou para o seu povo, “nenhuma forma víeis” (e, por essa razão,
seria um erro adorar ídolos e fabricar “para vós uma imagem esculpida
representado o que quer que seja”). (ib.id., p. 156).
Consoante ensina Wright,
dificilmente, encontra-se harmonia na transformação de um deus participativo e
antropomórfico em um deus menos imiscuído nos assuntos humanos e mais abstrato.
A segunda metade do primeiro milênio conheceu uma irrupção de textos
apocalípticos, repletos de imagística mitológica. Já o livro de Daniel
representa Deus como pessoa. “Entretanto – adverte Wright
- , no conjunto, parece haver uma tendência: o movimento, durante o primeiro
milênio AEC, de afastamento de um politeísmo antropomórfico para um monoteísmo
abstrato”. (ibid.).
Quando consideramos a
referida tendência, ou seja, esse movimento errático que leva a representação dos
deuses de um politeísmo antropomórfico para um monoteísmo abstrato; quando,
enfim, consideramos a conversão de uma concepção de deus em outra, somos
praticamente forçados, por exigências racionais, a aderir à conclusão de que a
história do deus abraâmico está vinculada à história de religiões pagãs
anteriores. A religião israelita antiga se desenvolveu a partir de religiões
pagãs, tal como estas se desenvolveram a partir de outras. O Deus monoteísta
dos judeus, muçulmanos e cristãos – o Deus transcendente, onipotente e
onisciente, identificados pelos filósofos cristãos com o Ser mesmo – se
desenvolveu a partir dos deuses de outras religiões com as quais os israelitas
estavam em contato num mundo histórico profundamente politeísta.
Que forças sócio-históricas
conduziram Israel ao monoteísmo será assunto para outro texto; mas cabem ainda
algumas considerações sobre uma fase transitória entre o politeísmo e o
monoteísmo – a monolatria. Na próxima e última seção deste estudo, buscarei destacar
as condições sociopolíticas que conduziriam Israel a adesão à monolatria.
Escusa dizer que não contemplarei todas as condições sociopolíticas e
econômicas que ensejaram o desenvolvimento de uma visão teológica monolátrica.
Minha análise estará limitada ao contexto sócio-histórico em que viveu e pregou
o profeta Oseias.
3.4.2.
A emergência da monolatria israelita
Vale lembrar que há duas
perspectivas básicas à luz das quais se explicam as mudanças religiosas: 1) uma
que enfatiza o poder das ideias e sua influência sobre as condições materiais
da existência; 2) outra que enfatiza a influência das condições materiais na
adoção e transformação das ideias.
A Bíblia afina-se com a
perspectiva de número 1). Destarte, o texto bíblico sugere a interpretação
segundo a qual Elias e seus seguidores, buscando defender a verdade divina,
opuseram-se à adoração a Baal e, consequentemente,
tornaram-se inimigos de todos aqueles que apoiassem a devoção a esse deus. Num
sentido contrário, o ponto de vista por mim assumido, sendo consonante com o
método da materialidade histórica da ideia de Deus, consiste em explicar as
mudanças na concepção de Deus com base no exame das circunstâncias
sociopolítico-econômicas. Uma vez que deuses são ideias historicamente
constituídas, as representações que os homens fazem deles, as formas como eles
são definidos, pensados, as maneiras como os homens se relacionam com eles são
determinadas por condições sociais, políticas e econômicas concretas.
A primeira evidência de que
o movimento em favor da fé exclusiva em Javé ganharia força e carrearia a
adesão cada vez maior dos israelitas remete ao século VII AEC – tempo em que
viveu e pregou o profeta Oseias. Os relatos da vida e da atividade profética de
Oseias sofreram alterações posteriores, mas muitos estudiosos estão convencidos
de que o essencial da mensagem do profeta se consolidou pouco tempo depois de
sua morte.
O livro de Oseias expressa
certa tendência teológica que reflete o pensamento israelita do final do século
VII AEC. Oseias não era ainda um monoteísta, visto que nunca negou a existência
dos outros deuses. Também não se opôs à adoração desses deuses pelos
estrangeiros. Mas ele insistiu em que os israelitas deveriam ser fieis apenas a
Javé. Pode-se dizer que Oseias foi a primeira figura influente de uma
monolatria que despontava em Israel. Mas suas motivações refletem a relação,
comum no mundo antigo em geral, entre teologia e geopolítica. Trata-se aqui de
um aspecto importante em nossa argumentação: a pregação de Oseias em favor da
necessidade de que os israelitas se voltassem exclusivamente para a adoração de
Javé deixa entrever uma conexão muito comum entre teologia e geopolítica.
Oseias menciona, várias
vezes, duas grandes potências político-econômicas – a Assíria e o Egito. Ele
não se agrada da aliança com qualquer uma dessas potências. Para Oseias,
Efraim, o reino do norte, onde ele vivia, não deveria fazer aliança com a
Assíria, já que ela “não nos salvará”; tampouco deve manter negócios com os
líderes egípcios, que se valem desses negócios para escarnecer do povo de
Israel. Como Israel era um pequeno Estado situado entre duas grandes potências,
fazer aliança significava admitir a submissão ao poder hegemônico que elas
representavam. No entanto, esse não era o único problema para Oseias. Ele era
hostil aos estrangeiros em geral. Não admitia que Efraim se misturasse com
outros povos. Ao contrário do que pensavam Acab, Salomão e outros reis que
adotaram uma política externa internacionalista, Oseias não acreditava que as
alianças com estrangeiros tornariam Israel mais rico. Oseias via Israel cada
vez mais pobre, e a pobreza de seu povo só se acentuava com a submissão de
Israel às potências internacionais. Ora, para esse profeta feroz, se nenhuma
nação se preocupa com os interesses de Israel, então nenhum deus de outras
nações merece adoração ou respeito. Oseias expressa, portanto, um isolacionismo
político e religioso que o identificava cada vez mais com uma visão de mundo
monolátrica.
O tom anti-internacionalista
dos livros proféticos não causa surpresa. Muitos estudiosos, há tempo, chamaram
a atenção para essa característica marcante desses livros. Mas não se segue daí
que todos os estudiosos concordem na admissão de que as forças políticas e
econômicas é que determinam a visão teológica. Ora, por que não poderia ser o
caso de a monolatria de Oseias constituir a causa de sua aversão ao
internacionalismo? Wright pensa que talvez não importe muito determinar em que
direção segue o processo; o que mais importa, segundo o autor, é entender por
que a mensagem de Oseias se popularizou, por que ela alcançou tamanha
ressonância. No que toca a saber se são as condições político-econômicas que
determinam a monolatria de Oseias ou se é a sua visão teológica que leva à
aversão ao internacionalismo, quiçá seja lícito admitir uma influência mútua
entre a visão teológica e as condições político-econômicas. Assim, as duas
formas de interpretação não precisam ser excludentes entre si, muito embora eu
seja inclinado a acolher o ponto de vista segundo o qual não é possível
compreender satisfatoriamente por que uma ideia ou visão teológica se
desenvolveu e se consolidou sem considerar a influência das condições
sociopolíticas e econômicas concretas. São essas condições que, ao menos,
favorecem a disseminação do desprezo de Oseias pelo culto de deuses
estrangeiros. Embora eu não assuma a visão marxista da determinação
unidirecional da superestrutura pela infraestrutura, ou seja, embora eu não
assuma a tese de que, em qualquer caso observado, são sempre as condições
materiais de existência que determinam as produções espirituais, e nunca o
contrário, o que eu defendo é que não se pode compreender como foi possível que
a crença na existência do Deus pessoal
monoteísta tornasse hegemônica no Ocidente, sem lançarmos olhares sobre
as condições sócio-históricas concretas nas quais a ideia desse Deus foi
gestada e propagada até atingir o estágio de universalização com o
cristianismo. O estudo das condições sócio-históricas que levaram à formação da
ideia de Deus torna a própria fé uma atitude historicamente determinada, um
acontecimento histórico, e não um dom (sobre) natural ou uma graça divina
herdada pelo homem à semelhança de uma disposição ou vocação naturais.
Passo, então, antes de
terminar, a examinar em que medida as condições político-econômicas; em uma
palavra, as condições sócio-históricas, são decisivas na formação de uma visão
teológica monolátrica na atividade profética de Oseias.
Devemos ter em conta o fato
de que a carreira de Oseias se iniciou durante os anos derradeiros do reinado
de Jeroboão II. Os anos finais de seu reinado foram os anos de um século
marcado pela estabilidade e prosperidade econômicas e pelo renascimento
político de Israel ao norte. Em pouco tempo, após a morte do rei Jeroboão II,
em 747 AEC, as relações internacionais de Israel entraram em declínio. O
período de declínio se estendeu por 25 anos. O que resultou daí foi a percepção
de que Israel não se beneficiava mais com as relações com as nações
estrangeiras.
Israel se viu forçada a
pagar tributos a Assíria. Conquanto Israel tenha buscado apoio em alianças
contra a Assíria, o poder assírio estendeu seu domínio por todo o território
israelita, arrasando todas as suas grandes cidades. Somente a capital Samaria
permaneceu sob o controle de Israel. Para não desaparecer completamente, Israel
continuou a pagar tributos a Assíria, mas apenas pelo tempo suficiente para que
alimentasse a esperança de contar com o apoio egípcio. A expectativa desse
apoio levou Israel a suspender o pagamento dos tributos. Esperança frustrada, a
Assíria ocupou a Samaria e subjugou a cidade em 722 AEC. Grande parte da
população de Samaria foi deportada. E assim chegava ao fim o reino de Israel ao
norte. Sobrara apenas o reino do sul como detentor do legado israelita. À época
da destruição do reino do norte, a política externa isolacionista de Oseias,
combinada com seu correlato teológico, a saber, com sua aversão aos deuses
estrangeiros, encontrou eco suficiente para que suas ideias fossem levadas para
Judá – provavelmente, por força da fuga de seus partidários em face do ataque
assírio.
Com o ataque assírio ao
reino do norte e a subsequente queda desse reino, não surpreende que as
relações exteriores não tenham sido prósperas no reino do sul. Judá também teve
de enfrentar a violência avassaladora dos assírios. Nas duas décadas seguintes,
as tentativas de defesa em face da ferocidade assíria não lograram sucesso.
Judá ainda chegou a rebelar-se contra a Assíria, mas a consequência imediata
foi a queda do reino ao sul, cujo rei viu-se preso numa Jerusalém sitiada.
Jerusalém teve de submeter-se ao poder assírio, cedendo seus ouros e tesouros.
Embora Judá tenha, nos anos
seguintes, experimentado sucesso em suas alianças, a sua posição geopolítica de
um pequeno Estado que tinha de lidar com uma agressiva superpotência
mesopotâmica (primeiro a Assíria, depois o Império Caldeu, ou Neobabilônico)
não se alterou. Judá permaneceu, por muito tempo, tendo não só de mobilizar
esforços, infrutíferos porém, na contínua resistência à superpotência
dominante, mas também de aceitar a humilhante submissão a ela. Não surpreende,
portanto, que o principal fator que estimulava o respeito aos deuses
estrangeiros, a saber, as relações internacionais proveitosas, não pudessem mais
justificá-lo. Não havendo mais relações internacionais favoráveis, por que
razão Israel se sentiria obrigada a respeitar os deuses estrangeiros? Tão
importante quanto a política externa na emergência da monolatria foi a
influência da política interna. Mas esse tema deverá ser objeto de reflexão
noutra oportunidade.
Conclusão
A perspectiva ateísta à luz
da qual este texto foi escrito calca-se sobre o pressuposto de que quanto mais
vasto e profundo for o conhecimento sobre as condições sócio-históricas da
formação da ideia do Deus das três maiores religiões monoteístas do mundo tanto
mais enfraquecida se torna a fé teísta e tanto mais insustentáveis são as
alegações do monoteísmo. Creio que uma das frentes de análise da fé teísta que
pode abrir caminho para a descrença é a que consiste em investigar como a ideia
de Deus foi gestada e como se desenvolveu historicamente. Deuses têm uma história,
e isso significa dizer que são construções sociocognitivas, culturais e
humanas. Essa é a tese principal que este texto procurou sustentar.
Obras
consultadas
CORETH, Emerich. Deus no pensamento filosófico. São
Paulo: Loyola, 2009.
GILSON, Etienne; PHILOTHEUS,
Boehner. História da filosofia cristã:
desde as origens até Nicolau de Cusa. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2012.
KUNG, Hans. Freud e a questão da religião.
Campinas, SP: Verus Editora, 2010.
WRIGHT, Robert. A evolução de Deus. Rio de Janeiro:
Record, 2012.