Mostrando postagens com marcador Bíblia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Bíblia. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

"Eu adoro ver uma garota sair e conquistar o mundo pelas lapelas. A vida é escrota. Você tem que encarar e quebrar tudo." (Maya Angelou)

 

                          



                               A BIODIVERSIDADE

 

Quem atrever-se a pedir razoabilidade ao comportamento humano deveria consultar os anais da história para verificar que a loucura, a insanidade, a desrazão, a perversidade acompanham a evolução da espécie humana desde tempos remotos. Conta-se que, em Sodoma e Gomorra, a prática de infanticídio era comum no modo de vida dos cananeus, habitantes daquelas regiões. Escavações em Megido, Jericó e Gezer revelaram uma área inteira que teria sido um cemitério de crianças. Era comum o sacrifício dos alicerces naquele tempo: quando se construía uma casa, sacrificava-se uma criança e seu corpo era depositado em um alicerce, porque os habitantes da casa acreditavam que isso traria felicidade ao resto da família. Antropólogos, historiadores, arqueólogos dirão: felizmente os costumes mudam , o processo civilizatório tende a coibir tais práticas , a Lei as tipifica como crimes... mas o que me inquieta é que, algum dia, tenha sido possível praticar o infanticídio como parte de um ritual religioso, que, algum dia, grupos humanos tenham podido acreditar que, ao fazê-lo, tornaria feliz ou bem-aventurada a vida de seus familiares. Como não há uma autoridade metafísica e divina, que possa julgar os criminosos e a quem até possamos imputar a responsabilidade pela criação de seres tão insanos, desvairados e perversos, resta que dentre um grupo destes seres extravagantes, excêntricos subsistam alguns ajuizados, esclarecidos, que concluam que, se a prática de infanticídio se tornar uma prática generalizada e normal na comunidade como um todo, ao fim de 60 ou 70 anos, não sobrará mais ninguém para dar continuidade à espécie. Então, instituiu-se o interdito pela Lei proibindo que crianças sejam sistematicamente assassinadas, com punição aos perpetradores do assassínio. Talvez, a seleção natural tenha alguma participação nesse processo de esclarecimento gradual da humanidade. Talvez, a Natureza, mais sábia que estes macacos pelados ufanos, tenha contribuído, sem planejamento e intenção, para selecionar aqueles que poderiam pôr fim a uma barbárie, que, se não cessasse, levaria à extinção a espécie. A Natureza parece “saber” mais que o animal humano que a vida é que deve ser o valor maior a ser cultuado, cultivado, perpetuado em toda a sua diversidade. Que a morte só pode se dar na medida em que contribui para a eco-organização do todo. O excesso de morte responde ao excesso de vida. A oposição entre a fecundidade desenfreada ( que gera um crescimento exponencial da população) e a mortalidade sem peias desempenha o papel de regular mutuamente os níveis demográficos. Assim, a natureza opera por meio do processo de reorganização que é parte inerente ao processo de desorganização. A eco-organização é nutrida e regenerada não apenas pela vida, mas também pela morte, e é regulada pelo antagonismo entre os excessos de vida e de morte. Todos os ecossistemas tendem ao equilíbrio e parecem lutar contra as tendências do grande predador humano para causar sistematicamente o desequilíbrio, para arruinar a ordem, para deflagrar a morte em excesso. As sociedades humanas se instituem a partir deste princípio natural: a necessidade de se reorganizar, de produzir continuamente novas ordens em meio à irrupção necessária das desordens, das perturbações. Todo excesso seja para o lado da ordem (totalitarismos) , seja para o da desordem (entropia), deve ser combatido. Uma lição que os macacos pelados ainda não conseguiram aprender com a natureza é que a eco-organização é inseparável da constituição, da manutenção e do desenvolvimento da DIVERSIDADE BIOLÓGICA - diversidade, aliás, é um fato biofísico que esses animais doentes, loucos e desnaturados insistem em recusar no modo de organização de suas sociedades e culturas. É em virtude dessa insistência com que esses animais erram na aprendizagem da diversidade como um elemento vital constitucional da biocenose (o conjunto de todas as interações entre os seres vivos no meio geofísico) que ainda é preciso combater os preconceitos ( no sentido amplo do termo, tanto como pré-concepção enganosa ou falsa quanto como repúdio, aversão) contra o que é diferente, diverso de um padrão normativo, que eles mesmos criaram na vida comum, um padrão que não é algo dado (decretado, posto) nem por um deus, nem legitimado pela ordem natural. Felizmente, vivemos numa época histórica em que as vozes da diversidade em todas as suas legítimas manifestações clamam e lutam pelo direito de reconhecimento, de viver, de contribuir para a construção de sociedades mais democráticas e plurais. Esse movimento vital, essa agonística devem ser estimulados, devem ser intensificados contra as forças reacionárias, conservadoras, contra as mentalidades esclerosadas que persistem em reagir contra o modo de ser da vida, que se manifesta como pluralidade, diversidade e exuberância.

 

(...)

 

Aquele caso de Sodoma e Gomorra se me deparou num livro que versa sobre o que diz a Bíblia sobre a homossexualidade. Não há, como já sabia, pois já havia lido outro livro dedicado ao tema, nenhuma condenação bíblica da homossexualidade, ao contrário do que acreditam o homem comum e os fundamentalistas... enfim... mas o que me deixa deveras estarrecido é como se pode ainda hoje tomar a Bíblia como referência para fundamentar a moral e os costumes. É claro que muita gente ignora que as morais modernas é produto de um longo processo de secularização. Nem tudo na Bíblia serve de parâmetro para normatizar o comportamento moral do homem moderno, pelo menos nas sociedades industrializadas ocidentais. Em Juízes 19, por exemplo, conta-se a história de homens que desejavam estuprar um homem estrangeiro hospedado na casa de um levita. Esse relato é semelhante ao caso de Sodoma e Gomorra. O hóspede deveria ser entregue aos homens para que fosse violentado sexualmente. Mas o senhor da casa se nega a fazê-lo e oferece sua filha virgem e sua concubina para que fossem estupradas no lugar do forasteiro. E assim elas foram abusadas “toda a noite até pela manhã”. Tal costume (o de oferecer mulheres para que fossem estupradas no lugar de um forasteiro) é simplesmente repulsivo às sensibilidades modernas. Todos nós sentimos repulsa a isso. E as mulheres hoje deveriam todas se sentirem escandalizadas e deveriam se recusar a admitir qualquer tentativa de usar a Bíblia para admoestá-las e moldar seu modo de viver, de ser, de pensar... enfim, sua conduta... Sabemos que a sociedade judaica dos tempos bíblicos era patriarcal; que o patriarcado é uma herança nefasta que herdamos das culturas que constituem o berço da civilização ocidental. No mundo antigo, as mulheres eram servas dos seus maridos. Essa condição de submissão, de servidão das mulheres é patente nos textos bíblicos.  Simplesmente os códigos morais vigentes à época – estamos falando de um período que cobre os séculos VIII e  VI a.C. – não são os nossos, não podem balizar nossas condutas nas sociedades modernas de hoje. Mas ainda encontramos milhares de mulheres ostentando a Bíblia, pregando a Palavra de Deus em favor da “Família Tradicional” (lê-se “família patriarcal”) a outras mulheres!... Eis aí um caso emblemático do oprimido que aceita a sua opressão por não se reconhecer como sujeito que vive em condições históricas de opressão... Não quero aqui suscitar discussões intermináveis sobre religião e Bíblia, embora muito me agradem... (sou ateu), mas não sou nenhum perseguidor de religiosos... Embora eu acredite que eles vivam num mundo construído por um imaginário-simbólico entretecido por suas fantasias (mas também sei que todos nós vivemos nossa relação com o real pela mediação da fantasia no sentido de Lacan... nós evitamos o confronto com o real como condição necessária para podermos suportar a existência (mas isso é outro tema)...

Está claro, para quem quer que se debruce sobre as Escrituras Sagradas, (particularmente, sobre o Antigo Testamento) que o que lá encontramos é uma literatura heterogênea que reflete os modos de viver, de pensar, de se organizar politicamente e de compreender o mundo, próprios de  comunidades humanas que viveram  do século VIII ao século VI a .C, e que tais condições históricas são muito diferentes das nossas. A Bíblia – não me canso de repetir – é uma obra humana, demasiado humana. É produto de acontecimentos socioculturais, políticos, econômicos que cobrem a extensão territorial que inclui hoje o Líbano, Israel, partes da Jordânia, Egito, Palestina e Síria. Em suma, toda uma região banhada pelos rios Tigre e Eufrates. Lá se encontra o berço da civilização ocidental (sem esquecer os gregos e romanos, evidentemente)... mas o bebê cresceu e deveria ser capaz, agora adulto, de emancipar-se definitivamente de seus pais e seus preconceitos milenares...

sexta-feira, 27 de abril de 2018

´"O homem, em sua arrogância, pensa de si mesmo como uma grande obra, merecedora da intervenção de uma divindade" (Charles Darwin)


          

                                      Imagem relacionada


                                        Javé ou um Deus entre deuses
                                        Revisitando as origens sócio-históricas da ideia de Deus



1. Introdução

No escopo deste texto situam-se duas preocupações basilares: 1) contribuir para reavivar no espírito do crente comum o caráter filosófico-teológico da semanticidade do conceito de Deus; 2) retomar e desenvolver um pouco mais a concepção da materialidade histórica da ideia de Deus. A preocupação 1) encontra sua razão de ser na convicção por mim sustentada de que a experiência da fé do cristão comum em nossas sociedades secularizadas quase nunca encontra apoio numa concepção filosófica e teologicamente profunda de Deus. Na fala do homem comum, as referências a Deus, na maioria das vezes, descrevem um tipo de relacionamento de barganha entre um pedinte-adorador e um fornecedor-socorrista a quem se deve apelar em causa própria para obter benesses ou proveitos. Que o leitor não tome essa consideração do relacionamento entre o crente comum e Deus como uma crítica moralizadora, muito embora, mesmo quando um religioso solicita a intervenção divina em favor de outrem, a motivação egoísta não se oblitera totalmente. O que espero seja retido aqui é, na verdade, minha percepção de que a palavra Deus aparece, na fala do teísta comum, semanticamente empobrecida ou mesmo esvaziada das características mais relevantes (filosoficamente falando) que entram a fazer parte da intensão do conceito que essa palavra descreve.
Ainda no tocante à preocupação 1), oportunas são as palavras de Hans Kung, em Freud e a questão da religião (2010: p. 81), ao aludir à crítica freudiana “à imagem tradicional de Deus”. Segundo Kung, “com razão Freud critica (...) a imagem tradicional de Deus. As pessoas ainda estão muito pouco conscientes quanto ao modo como ela é formada” (grifo no original). Essa ignorância comum e persistente acerca do modo como se formou historicamente “a imagem tradicional de Deus” é extensiva às condições sócio-históricas nas quais a ideia de Deus surgiu e se desenvolveu.[1]. Na verdade, trata-se de uma e a mesma ignorância, pois que desconhecer como se formou a imagem tradicional de Deus é desconhecer como a ideia de Deus se constituiu historicamente.
Mais relevante para minha alusão ao “empobrecimento semântico da palavra Deus” na fala do crente comum é o seguinte excerto de Kung, que se topa na mesma página anteriormente referida: “Vezes sem conta a imagem que o crente tem de Deus, em lugar de surgir de uma decisão livre, nasce de uma imagem pré-fabricada de um pai castigador ou bonzinho”. Sem dúvida, a redução do conceito de Deus a “um pai castigador ou bonzinho” faz obliterar muito a complexidade semântica envolvida na compreensão deste conceito – complexidade esta tão fartamente desfiada, esquadrinhada, discutida pela teologia e filosofia. Todavia, há uma explicação plausível para aquela redução: a imagem de Deus com que o crente comum se habitou experienciar sua fé  lhe foi transmitida pela tradição. Ora, por tradição se entende justamente um sistema de significados ou ideias que, consolidado no passado, é transmitido às gerações futuras. Destarte, os indivíduos vivenciam os conteúdos de uma tradição como coisas persistentes com poucas mudanças ao longo do tempo. A tradição é, portanto, responsável pela instituição de costumes, de formas ritualísticas de agir. O caráter dessa instituição é percebido como impositivo pelos indivíduos, os quais tomam as maneiras costumeiras de agir e pensar como assuntos inquestionáveis. Na verdade, em razão do peso da tradição, não vejo como o crente comum possa assumir uma imagem original de Deus, resultante de uma decisão livre. Para a ideia de Deus vale o mesmo que para a história das ideias: não há que buscar algo de novo e original nesse domínio. Quando se nos deparam “inovações” na forma como são apresentados e redefinidos conceitos já pensados e definidos, o que se percebe são formas diferentes de defini-los, de repensá-los, de recriá-los. O problema de que me ocuparei, portanto, na preocupação 1), que me incitou a escrever este texto, não reside em questionar por que o teísta comum não pensa de modo original o conceito de Deus. O problema, na verdade, para mim, consiste em reconhecer que a semanticidade do conceito de Deus aparece à consciência do crente comum como esvaziada de sua relevância teológica e filosófica. Esse mesmo “esvaziamento semântico do conceito de Deus” pode ser surpreendido na fala de muitos ateus pouco familiarizados com a produção teológica e filosófica sobre o problema de Deus. Não raro, se ouve dizer, em muitos espaços das redes de relacionamentos e mídias sociais, que Deus é, para os que nele creem, um mero “amigo imaginário”. Escusa alongar-me sobre essa alusão à maneira como Deus é experienciado pelos teístas porquanto a considero preconceituosa e equivocada. Quem diz que Deus é um “amigo imaginário” desconhece a profundidade teológica e filosófica da questão de Deus; nenhum estudioso sério dessa questão aceitaria a opinião segundo a qual Deus é um mero “amigo imaginário” (muito embora, se considerada à luz das investigações da Análise do Discurso, essa expressão não deixa de ser interessante na medida em que diz muito a respeito do modo como a religião é percebida em discursos de uma época em que vige o espírito da desconstrução). Sem embargo do interesse que essa expressão pode ter para uma Análise do Discurso, mantenho que uma crítica ateísta deve ser teológica e filosoficamente consistente com os termos em que se expressa o debate. Mas resta a questão que consiste em pesar até que ponto o empobrecimento semântico do conceito de Deus na fala dos teístas comuns contribuiu para a redução desse conceito àquela corruptela (a do “amigo imaginário”).
Parece-me que não é desprezível a influência da secularização na forma como o conceito de Deus se afigura esvaziado semanticamente na consciência dos teístas e de vários ateus. Na medida em que a secularização caracteriza o fato de que as crenças, as práticas e as instituições religiosas perderam sua relevância social na modernidade, é de se esperar que a própria compreensão de Deus ou se torne semanticamente empobrecida, ou mesmo banalizada. É bem verdade que muitos críticos da tese da secularização argumentam que o processo não é universal nem irreversível. Para esses críticos, a secularização só explica as formas como se deu o recuo da religião nas sociedades europeias no auge da modernidade industrial. Não escapa a esses críticos a percepção de que, na pós-modernidade, há muitas possibilidades para o ressurgimento da religião e para o reencantamento do mundo. Essa é uma discussão que não precisa ganhar terreno aqui. Vale, no entanto, apresentar as três dimensões da secularização identificadas por Peter Berger.

1. Dimensão socioestrutural, caracterizada pela transferência de funções das igrejas para instituições de serviço social sustentadas por dinheiro público;

2. Dimensão cultural, que se revela na ascensão das ciências seculares e no declínio do conteúdo religioso na arte, na música, na literatura e na filosofia;

3. Dimensão individual, que consiste na observação de que cada vez menos pessoas pensam em termos religiosos.

Não me parece que a dimensão individual caracterize verdadeiramente a situação da religião nem nos Estados Unidos, nem na América Latina. No Brasil, mais importante é reconhecer como a experiência comum da fé em Deus está afastada ou divorciada de uma experiência teoricamente fundada num corpo doutrinário de uma elite religiosa institucional. O homem comum não pensa Deus nos termos em que ele foi pensado e é pensado por filósofos e teólogos (outrora e nos dias atuais). Ao pretender revisitar o tratamento dispensado por alguns pensadores da tradição ao problema da semanticidade do conceito de Deus, estou, ao mesmo tempo, preocupado em despertar na consciência dos que creem em Deus como uma instância suprassensível doadora de sentido para as suas vidas a necessidade de se reapropriarem do saber acerca da complexidade semântica envolvida no debate sobre o conceito de Deus, se quiserem engajar-se num contexto plural de práticas discursivas que tendem a questionar a validade das metanarrativas da tradição.
No que tange à minha segunda preocupação, mostrarei que Javé, ou o Deus abraâmico, não surgiu com o estatuto de único Deus verdadeiro, mas coexistiu, por muito tempo, com outros deuses (cuja existência não era negada pelos israelitas). Na minha volta às raízes históricas da ideia de Deus, procurarei mostrar que até atingir o estado monoteísta, Israel experienciou o politeísmo e a monolatria. A religião israelita antiga se desenvolveu de religiões pagãs. Assim, assumirei que deuses são categorias culturais; são produtos da evolução cultural. E isso vale também para o Deus abraâmico, em outras palavras, vale para o Deus teísta (o Deus das três maiores religiões monoteístas do mundo).
Finalmente e antes de me ocupar da questão da semanticidade do conceito de Deus, gostaria de dar a conhecer de que modo compreendo os conceitos de cultura e ideologia, que integrarão a base de sustentação de minha argumentação. Duas definições de cultura se combinam para efeitos do que considero relevante ter em conta quando esse vocábulo aparecer ao longo do texto. A primeira definição de cultura, inspirada em Goodnough, consiste na afirmação de que a cultura é um sistema de conhecimento que abriga tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou aquilo em que tem de acreditar para atuar de modo aceitável numa sociedade. A segunda definição de cultura nos vem da pena de David Schneider, para quem a cultura é um sistema de símbolos e significados que compreende categorias e regras sobre relações e modos de comportamento. As coisas culturais, portanto, não dependem da sua observabilidade, de modo que fantasmas, deuses e pessoas mortas podem ser categorias culturais.
O conceito de ideologia, na medida em que se apresenta com uma gama variada de significados dependendo do autor e da escola de pensamento com que ele se alinhe, precisará ter seu domínio semântico delimitado. Ideologia, portanto, será por mim entendida à luz da teoria de Althusser, para quem a ideologia não é apenas uma distorção ou reflexo invertido do real, tampouco um efeito automático da produção de mercadorias (Marx). É, na verdade, um veículo indispensável à constituição de sujeitos sociais. A produção das próprias formas de subjetividade é tão material e historicamente variável quanto a produção de automóveis. Destarte, com base em Althusser, trata-se de pensar a ideologia não como primariamente uma questão de “ideias”, mas como uma estrutura que se impõe ao sujeito social sem que dela ele esteja necessariamente consciente. Psicologicamente, a ideologia é menos um sistema de doutrinas articuladas que um conjunto de imagens e símbolos e, ocasionalmente, conceitos que “povoam” o inconsciente. Sociologicamente, ela consiste em um repertório de práticas materiais ou rituais (votar, saudar, ajoelhar-se, etc.) que sempre estão inseridas em instituições materiais.

2. Um olhar filosófico-teológico sobre a semanticidade do conceito de Deus

Antes de dar início ao tratamento da semanticidade do conceito de Deus, assumo como postulado que a crítica ateísta séria avança a partir de três frentes de consideração da problemática filosófica e teológica que cerca a crença na existência de Deus: 1) a consideração lógico-semântica do conceito de Deus, domínio de análise onde se expõem as dificuldades e/ou incoerências lógicas na busca por definir o que é Deus; 2) a consideração da dificuldade de conciliar a crença num Deus onipotente e sumamente bom com a existência irrecusável do mal no mundo (o chamado “Problema do Mal”); 3) a consideração da formação histórica da ideia de Deus, domínio de análise onde se busca examinar as condições políticas, ideológicas, econômicas, culturais, teológicas, em suma, históricas que tornaram possível o desenvolvimento da concepção de Deus. Assumo que o exame que realizo tanto da semanticidade do conceito de Deus quanto das condições sócio-históricas da constituição da ideia de Deus é orientado por um viés ateísta. Não porque insistirei na inexistência de Deus, mas porque assinalarei o caráter cultural da ideia de Deus. É preciso esclarecer o que significa “assinalar o caráter cultural da ideia de Deus”. Como ficou claro a partir do exposto na introdução, todos os deuses, incluindo o Deus judaico-cristão, é uma categoria cultural. Como toda categoria, Deus expressa um escaninho sociocognitivo através do qual certo modo de se relacionar com o Absoluto e de sobre ele pensar é codificado linguisticamente para atender a necessidades tanto práticas da vida ordinária quanto existencialmente profundas que se prendem ao surgimento nos homens da consciência de sua finitude.
Feitas essas considerações preliminares, vou-me demorar no exame do modo como Deus foi pensado no neoplatonismo e na escola de Alexandria, já no período em que vige um pensamento filosófico cristão. Como seja impraticável tratar de todos os autores dessas tradições, tomarei para consideração, no âmbito do neoplatonismo, os pensamentos de Fílon e Plotino. É bem verdade que Fílon não é um pensador neoplatônico, muito embora tenha preparado o terreno para o desenvolvimento do neoplatonismo. Ele é mais bem caracterizado como o mais notável representante do alexandrismo judaico. A opção por associá-lo ao pensamento neoplatônico se deve ao fato de sua exegese conter muitos elementos platônicos e estoicos. A importância de Fílon na história do desenvolvimento da filosofia cristã consiste em ter sido um judeu de exímia formação e o primeiro a relacionar a fé bíblica com a filosofia grega. Ao interpretar a fé bíblica filosoficamente, Fílon volta-se para o platonismo, servindo-se, porém, de elementos da filosofia estoica e neopitagórica. No respeitante a Plotino, a relevância de seu pensamento para a presente discussão explica-se não só pelo fato de ele ter sido o fundador do neoplatonismo e seu principal representante (de sorte que não é possível abordar o neoplatonismo sem considerar o pensamento de Plotino), mas também porque ele insistiu em sublinhar a impossibilidade de enunciar algo sobre Deus. Com Plotino, a teologia negativa torna-se uma marca fundamental de todo o neoplatonismo.
Já no período da filosofia cristã propriamente dita, dois pensadores serão objeto de minhas considerações. Um deles é Clemente de Alexandria (150-216 d.C..), que também insistiu na incognoscibilidade da essência de Deus, mas admitiu a possibilidade de termos um conhecimento de Deus por via negativa. O outro pensador que considerarei será Gregório Nazianzo (329 (330)- 390 d.C.), que, tal como Clemente, assumiu a incognoscibilidade de Deus, sem deixar de reconhecer as fórmulas com que, na tradição, se busca conhecer a Deus.  Com este cenário filosófico-teológico, busco fornecer um panorama de duas atitudes gerais implicadas na tentativa de investigar racionalmente a questão de Deus durante a Idade Média.
Antes de me lançar à consideração do pensamento neoplatônico e dos pensadores a ele relacionados, é importante deixar claro que, ao volvermos olhares sobre toda a filosofia grega, não resta dúvida de que deus nunca é reconhecido como criador do mundo. Os filósofos gregos sempre o tomaram como ordenador e formador do mundo (razão do mundo, demiurgo). O demiurgo é responsável por constituir um mundo dotado de ordem racional a partir de uma matéria preexistente. Segue-se daí que deus não é ainda o fundamento único e absoluto, já que a matéria também existe como princípio indispensável e necessário para a formação do mundo. É somente no neoplatonismo que a matéria será considerada como uma emanação de um princípio divino (Plotino), muito embora ela não resulte de um ato livre de criação. Vale sublinhar aqui que o conceito de criação ex nihilo é estranho ao pensamento grego. Os antigos gregos também desconheciam o conceito de Deus como ser pessoal. É verdade que Deus era considerado um ser racional (Platão, Aristóteles até Plotino), mas a ele nenhum pensador grego associou uma vontade e uma ação livres. O pensamento grego enfatiza a necessidade do acontecimento. Do que se expôs não parece difícil inferir que o deus pensado na filosofia grega não é um deus de adoração religiosa, não é um deus para o qual podemos rezar. Trata-se de um deus do mundo, do cosmo. De Platão aos estoicos, encontramos a insistência de que devemos nos esforçar para deus; em Plotino, há o anseio pela união com deus, mas não se trata aí de um deus a quem possamos rogar pessoalmente, ou adorar religiosamente. Em suma, o deus do pensamento grego está muito longe do Deus pessoal da fé cristã, do Criador todo-poderoso e Pai de amor.

2.1. A filosofia no pensamento cristão

A filosofia só entra em cena na história do cristianismo no momento em que alguns cristãos se veem quase obrigados a se posicionar sobre ela, quer para condená-la, quer para incorporá-la à nova religião, quer para servir-se dela para fins de apologética. O termo filosofia, a partir desta época, passa a significar “sabedoria pagã”, sentido que viria a conservar durante séculos. O que muitos cristãos comuns ainda hoje talvez ignorem é que o cristianismo desde muito cedo teve de levar em conta as filosofias pagãs. As atitudes dos cristãos cultos dos primeiros séculos em relação à filosofia variavam consideravelmente. Alguns deles, que só se converteram ao cristianismo depois de ter recebido uma educação filosófica, eram menos inclinados a condená-la, visto que sua conversão era considerada o estágio final de uma busca de Deus iniciada com os filósofos de períodos antecedentes. Era inevitável que os pensadores cristãos vissem os pensadores pagãos como precursores da sabedoria cujo termo seria revelado definitivamente pelo cristianismo. Houve, no entanto, pensadores cristãos que eram mais resistentes à especulação filosófica. Estes costumavam assumir uma atitude decididamente negativa em relação às doutrinas dos filósofos pagãos. Durante todo o período da filosofia da Idade Média dominada pelo pensamento cristão, o que sabemos a respeito da filosofia pagã será sempre uma interpretação que os pensadores cristãos farão dela.


2.2. O neoplatonismo

O neoplatonismo foi extremamente importante para o desenvolvimento da reflexão filosófica sobre Deus, sobretudo em seus desdobramentos ulteriores. Tendo sido o último florescimento na Antiguidade posterior da filosofia grega, cujos conhecimentos adotou, resumiu e desenvolveu, o neoplatonismo teve como preocupação central a questão de deus. Essa questão será, no entanto, abordada não mais à luz da compreensão de deus como o fundamento ontológico do mundo, mas sim como o fim para o qual tende todo anseio e esforço humanos. É deus mesmo e o caminho que nos leva a ele que estará sob o foco da investigação neoplatônica.
No neoplatonismo, a metafísica torna-se primariamente doutrina filosófica de deus e filosofia da religião. Consequentemente, a metafísica se desenvolve com um interesse religioso cujo fim é conduzir o homem para a união com deus. O neoplatonismo, cujo fundador foi Plotino (séc. III d.C.), tem sua origem na interpretação do pensamento platônico, sobretudo da fase conhecida como “platonismo médio” (que se estende do século I a.C ao século II d.C.). O neoplatonismo foi a nova e última realização do pensamento grego num período animado pelo desejo e pela busca religiosos. No entanto, as condições espirituais da época foram marcadas pela decadência da antiga crença greco-romana nos deuses.
A esta altura, chamo a atenção do leitor para as consequências previstas na consideração dos deuses como entes de razão historicamente determinados, ou como categorias culturais. A decadência da crença greco-romana nos deuses decai muito também em virtude da expedição de um decreto pelo Estado que determinava o culto ao imperador. É, por outro lado, verdade que outras formas de culto e religião, em sua maioria de origem oriental, ganharam notabilidade nesse período. Além do culto de Mitra e outros cultos de mistérios, movimentos gnósticos e o próprio cristianismo encontrarão ocasião para avanço. O avanço do cristianismo foi irrefreável a despeito da repressão e perseguição que sofrera pelo Estado.
É nesse contexto sócio-histórico religiosamente confuso que o neoplatonismo se afirmará como um ataque à fé cristã – ataque de que nos dá testemunho Porfírio (300 d.C.) em seus quinze livros Contra christianos. O neoplatonismo pretende não só revitalizar resumidamente a filosofia grega, como também salvar da barbárie a religião greco-romana então considerada o fundamento da ordem estatal. Mas foi justamente essa empresa que levou o neoplatonismo a preparar o caminho para o desenvolvimento do pensamento filosófico-teológico cristão. Na patrística, sobretudo pela pena de Santo Agostinho, a fé cristã se apresentará sob a luzes do neoplatonismo. Passemos em revista o pensamento de Plotino na próxima subseção. Ao fazê-lo, pretendo que o leitor que me acompanha, mesmo não sendo versado nos estudos filosóficos, não se olvide de que meu intento é lançar luzes sobre a problematicidade do conceito do Deus cristão – problematicidade esta que me parece estar obnubilada na consciência dos crentes comuns. Espero também que o leitor se torne cônscio de que o conceito do Deus do teísmo é uma construção para cuja consolidação confluíram inúmeras contribuições filosófico-teológicas ao longo da história. O conhecimento da história da formação e desenvolvimento do conceito do Deus teísta importa não só ao ateu (que pode, apropriando-se dele, tornar mais aguda sua crítica), mas também ao teísta em cuja consciência a ideia de Deus parece esvaecida no que tange à sua força significativa. Para o teísta, o conhecimento da história da formação e desenvolvimento do conceito de Deus pode instrumentalizá-lo para uma afirmação mais vigorosa e filosoficamente consistente de sua fé.


2.2.1. Plotino: o fundador do neoplatonismo

Natural do Egito, Plotino (205-270) foi o fundador e o principal representante do neoplatonismo. Ocupou-se da filosofia somente com  28 anos. Em Alexandria, conheceu Amônio Sacas, que se tornou seu mestre. Além de Plotino, Amônio Sacas teve como discípulo Orígenes; mas isso é praticamente tudo que se sabe sobre ele.
Plotino viveu e ensinou em Roma, onde fundou sua escola. A obra de Plotino foi editada por seu discípulo Porfírio, mas numa ordenação bastante arbitrária. A edição feita por Proclo, no século V, é mais fiel à sistematização feita por Plotino. Nesse edição feita por Proclo, acha-se o cerne da doutrina plotiniana representada pela tríade mone – a permanência ou o ser uno originário divino em si mesmo; prohodos, ou a emanação de tudo o mais a partir da origem divina; e epístrofe, o retorno do todo a sua origem na união da alma com o uno originário.

O Uno originário

A doutrina de Plotino calca-se sobre a problemática que envolve a relação entre a unidade e a pluralidade. Em outras palavras, sendo o pensamento de Plotino um pensamento da unidade, a questão que se imporá inapelavelmente é a que consiste em explicar como da pura unidade surge a pluralidade. Essa questão ocupou especialmente o pensamento platônico, se bem que já estivesse presente no pensamento dos filósofos pré-socráticos. Podemos vê-la em Parmênides: se a verdade do ser é a identidade da unidade, ou seja, o fato de a unidade do ser identificar-se consigo mesma, como pode então resultar daí a pluralidade das coisas que se encontram no mundo sensível? Essa indagação pode também ser reportada a Plotino; todavia, é forçoso protelar a problemática que ela supõe para o final da próxima subseção. Vejamos como Plotino concebe o Uno originário.
Partindo da experiência que temos do mundo sensível, a qual nos coloca em contato com uma pluralidade de coisas e propriedades opostas e considerando que a experiência que temos de nós mesmos é caracterizada por uma pluralidade de impulsos e esforços opostos, Plotino postulará que é necessário que haja uma unidade originária. A pluralidade é a própria experiência do finito, já que as coisas plurais se limitam umas as outras. A pluralidade, no entanto, na medida em que é o mais complexo, pressupõe o mais simples. Em outras palavras, sem uma unidade originária, a pluralidade enquanto tal não seria possível nem pensável. Segue-se daí que é necessário que exista um princípio originário e supremo concebido como pura unidade anterior e determinante de cada multiplicidade. A essa unidade originária Plotino chamará o Uno mesmo (to hen).
Desse Uno originário, que será identificado com deus por Plotino, nada podemos dizer. Em outras palavras, o Uno ou Deus é inefável; não podemos enunciar nada a respeito dessa unidade originária. Sempre que tentamos enunciar algo sobre o Uno (ou Deus), no ato mesmo da enunciação, se revelam diferenciados aquele sobre o qual falamos (sujeito) e aquilo que predicamos do sujeito (predicado). O predicado encerra uma série de atributos e propriedades do sujeito. Ora, ao predicarmos do Uno essa série de atributos, estabelecendo, gramaticalmente, a separação entre sujeito e predicado, inserimos no Uno a multiplicidade. Se tomamos o Uno para objeto de conhecimento, nos separamos dele enquanto sujeitos. Por conseguinte, instituímos uma dicotomia entre sujeito e objeto, sempre que ousamos dizer algo sobre o Uno.
A multiplicidade que se segue do ato de enunciar algo sobre o Uno jamais pode alcançá-lo essencialmente. Daí resulta que não podemos enunciar verdadeiramente algo sobre Deus. Deus não é objeto de conhecimento declarativo. Fílon, conforme veremos, ensinará algo semelhante. Mas Plotino é mais radical: nenhum predicado do mundo da experiência sensível se aplica a Deus. Deus é mais que o ser (to on), mais que o bem (agathon), mais que o espírito (nous). Deus é o indivíduo e o inominável. Assim, estabelece-se no seio do neoplatonismo uma teologia negativa, que lhe será o traço fundamental. O neoplatonismo enquanto teologia negativa recorrerá constantemente ao epikeina tes ousias (o para além das essências) platônico.
Todavia, é verdade que a designação “teologia negativa” não significa uma negação absoluta e pura, mas a ultrapassagem do conteúdo positivo enunciado. A teologia negativa está baseada no registro do para além de toda enunciação. Plotino não pôde esquivar-se, no entanto, de falar do Uno originário, nomeando-o o Uno (to hen), à semelhança do que fizera Platão ao chamá-lo o Bem ele mesmo. Em Plotino, entretanto, o Bem é superlativizado: o Uno é o superbom; é mais que existente, é o hiperexistente. O uso frequente do prefixo superlativizador aponta para o fato de que aquilo de que se predica sob a forma superlativizada é algo que ultrapassa os limites das palavras e dos conceitos. Em suma, Plotino nomeia o Uno “princípio originário” ou “causa” (arché), ou simplesmente “o Deus” ( to theos), sem pretender que, ao fazê-lo, alcance seu ser (essência). Destarte, a essência de Deus permanece para Plotino um mistério incompreensível.


A emanação

Avançando um pouco mais as considerações sobre o pensamento de Plotino, é indispensável entendermos o que significa a segunda instância da tríade a que nos referimos. A segunda instância é a emanação (prohodos). Para Plotino, todo existente emana do Uno originário por meio de imagens. Essa emanação segue o modelo platônico da “irradiação” do Sol em A República. Assim como o Sol irradia sua luz sem que ele perca sua plenitude, assim também tudo irradia do Uno originário divino sem que a unidade desse princípio originário seja de algum modo afetada.
Não se pode perder de vista o fato de que essa doutrina neoplatônica da emanação a partir do Uno originário contrasta com a doutrina bíblica da Criação através de um ato da vontade livre de Deus. No neoplatonismo, o ato livre da Criação por parte de Deus é impensável. Um Deus que age conscientemente e decide livremente criar o mundo não pode existir para Plotino, porquanto toda consciência espiritual pressupõe a separação entre aquilo que conhece e o objeto de conhecimento, entre o pensante e o pensado, ou ainda, para falar nos termos da filosofia moderna, entre o sujeito e o objeto. Acontece que o Uno originário precede a essa separação. A emanação a partir do Uno originário é uma emanação necessária e se expressa na forma de uma irradiação ou eflúvio da plenitude do ser de Deus que ao mesmo tempo conserva-se em si mesmo. Plotino mantém, portanto, a crença grega na necessidade (ananke) de todo acontecimento.
Há, decerto, passagens controversas em Plotino que dão margem à compreensão de seu Uno originário como um Deus pessoal. Plotino chega a falar em um hiperpensamento consciente de possuir a si mesmo, e de uma vontade no amor a si mesma. Nesse sentido, parece que já em Plotino há um primeiro esboço de uma representação pessoal de Deus, muito embora o Deus de Plotino não seja ainda o Deus pessoal a quem se possa orar. Penso, no entanto, que a pessoalidade do Deus teísta ultrapassa a propriedade de ‘ter consciência de si’; a pessoalidade do Deus teísta está fundada na abertura afetiva e interessada de Deus ao homem, cuja expressão máxima é o ter assumido uma forma humana em Cristo. Em suma, os traços sêmicos ‘consciência de si’, ‘vontade’ não são os mais determinantes do conceito de pessoalidade na representação do Deus teísta; a pessoalidade do Deus teísta inclui muito mais do que ‘consciência de si’ e ‘vontade’. Nesse sentido, o Deus de Plotino permanece radicalmente diverso do Deus teísta. Este é afetivamente interessado nos assuntos humanos; aquele não o é. A pessoalidade do Deus cristão se define fundamentalmente no mistério da assunção por Deus da forma humana por intermédio de Cristo, permitindo a Deus habitar entre os homens e padecer por eles.
A doutrina de Plotino da emanação se torna mais complexa quando se considera que do uno-originário também emanam seres intermediários. Assim, o primeiro grau de emanação é nous – o Espírito ou a Razão. O nous de Plotino remete à razão do mundo de Anaxágoras, muito embora seja esse conceito interpretado platonicamente em Plotino. O nous de Plotino equivale ao logos de Fílon, sobre o qual ainda falaremos. A doutrina das Ideias de Platão também será ressignificada no pensamento de Plotino. Para Plotino, elas não são essências autônomas, mas pensamento e espírito pensante. Em face do Uno originário, é no nous que se forma a separação entre pensante e pensado, entre sujeito e objeto. É a partir dessa primeira dicotomia que se desenvolverá a pluralidade das ideias. É o espírito, portanto, que forma e ordena o mundo, quando ele volta sua visão para as ideias eternas. O nous é, portanto, o demiurgo.
O próximo grau da emanação é a Alma (psyche). Plotino concebe a Alma como Alma do mundo, a qual constitui a passagem do mundo puramente espiritual para o mundo sensível e material. Assim, fica estabelecida a tríade que sustenta o edifício do sistema de Plotino: Uno, Espírito e Alma. A Alma, uma vez que é única, participa do Uno, mas porque se refere à pluralidade (já que torna possível a passagem do mundo espiritual para o mundo sensível), torna-se alma dos homens e de outros seres vivos, cuja alma individual participa da Alma única do mundo.
Por fim, a matéria (hyle) é o último grau da emanação. Ela não é um princípio eterno e imutável (diferentemente de como a concebem Platão e Aristóteles). A matéria, para Plotino, carece de positividade; ela é o princípio da negação ou mesmo o princípio de todo mal. A questão que consiste em indagar sobre como tal princípio pode emanar do Uno originário permanece insolúvel.


A União com o Uno Originário

O retorno ao Uno originário é sem dúvida o ponto doutrinário que mais importou a Plotino. Uma vez que tudo emana do Uno-originário, é forçoso que todas as coisas retornem a ele. No homem, esse retorno deve ocorrer por meio de sua alma espiritual. Como a alma é parte da Alma do mundo, seu retorno ao Uno originário é um processo cósmico no qual o mundo deve unir-se ao Uno, que é sua origem. Também esse retorno acontece em graus. O primeiro grau é o da purificação da alma mediante a superação do mal e da dissolução dos vínculos com a matéria, ela mesma princípio do mal. Tendo-se purificado, a alma se une ao nous, constituindo assim o segundo grau do retorno. Unida ao nous, a alma se volta para uma vida de acordo com a razão, iluminada pelo espírito, o qual se deixa orientar pelas Ideias Eternas. Tendo a alma cumprido essa etapa, ela atinge o terceiro grau do retorno: a união com o próprio Uno originário divino. Essa união e fusão é de ordem religiosa, mística: é a união da alma com Deus.
Com a doutrina do retorno ao Uno originário, Plotino exercerá uma influência duradoura na tradição filosófica, não só nela, mas também na tradição espiritual e mística. A união com Deus excede qualquer conhecimento intelectual. Por conseguinte, fracassam todas as tentativas de descrevê-la por meio de palavras. É somente depois que a alma rompe com a realidade sensível e se volta para si mesma que pode reluzir em si a luz divina. É necessário, para tanto, renunciar à pretensão de todo conhecimento objetivo, de todo pensamento que aspire à clareza racional. Plotino tinha como objetivo “tornar-se um com Deus, que está sobre tudo”. É nesses termos que se expressa a profundidade religiosa do pensamento de Plotino, cujo fim é a união com o Deus único.
Retomando-se a questão sobre como é possível emanar da unidade originária algo diverso de si mesma, somos levados a concluir que também em Plotino não se encontra resposta racional possível. Resta-nos crer na possibilidade da emanação a partir da origem ou não. Essa atitude de crença se estende à doutrina da Criação. Nunca poderemos compreender como é possível um mundo finito ser criado por Deus, um Ser Infinito. Resta-nos apenas acreditar nela com base na experiência que temos do mundo finito, cuja existência, pelo menos segundo creem os partidários dessa doutrina, pressupõe Deus como seu Criador.

2.2.2. Fílon: um judeu helenístico

Fílon de Alexandria (25 a.C.- 50 d.C.), embora não pertencente ao neoplatonismo, preparou, de modo autônomo, o pensamento neoplatônico. Fílon viveu e ensinou em Alexandria, então centro espiritual e cultural da Antiguidade posterior no Egito, onde se encontrava uma grande comunidade de judeus helenísticos.
Fílon foi um judeu bastante instruído, perseverante na fé bíblica e o primeiro a estabelecer uma relação entre essa fé e a filosofia grega. A mediação entre a fé bíblica e a filosofia grega era até então estranha ao judaísmo. Mas graças a Fílon, ela influenciou o início do pensamento cristão em Alexandria, como nos dão testemunho dela os pensamentos de Clemente de Alexandria e de Orígenes.
A interpretação filosófica que Fílon empreendeu da fé bíblica bebeu da fonte platônica, conquanto incorporasse também elementos da filosofia estoica e neopitagórica. Seguindo uma prática que remonta aos estoicos, Fílon explicou as Sagradas Escrituras de modo alegórico, apelando para um sentido espiritual dos textos. A interpretação alegórica da Bíblia também fora uma prática comum dos alexandrinos cristãos, mormente dos capadócios posteriores.
Fílon acreditava no Deus único e verdadeiro revelado a Moisés e aos profetas. Aqui já se pode entrever o novo e perturbador aspecto da fé em Deus, estranho ao pensamento grego: Deus não é somente o fundamento do mundo, mas o Deus vivo, atuante na história do seu povo. Todavia, Deus é tão transcendente em relação ao mundo, que só podemos dizer dele que “é”, mas não podemos dizer “o que” ele é. Podemos dizer de Deus que ele é o Ser mesmo, o existente, o Eu Sou, segundo a revelação de seu nome a Moisés no texto grego da Sepetuaginta. De resto, nada mais podemos enunciar sobre Deus. Deus é o mais perfeito que perfeito. Vale sublinhar este aspecto: a ideia de que Deus está acima de tudo o que podemos saber e dizer perpassa toda a filosofia grega – desde Anaxágoras, Xenófanes e Heráclito. A impossibilidade de ter acesso cognitivo à essência de Deus ou de dizer algo sobre ela ressurgirá nos neopitagóricos, aparecerá sob a forma de teologia negativa no neoplatonismo e acarretará, no mundo cristão, a elaboração da doutrina do conhecimento analógico de Deus.
É certo que Fílon concebia Deus como Criador do mundo, conquanto seja difícil saber se ele admitia uma Criação ex nihilo ou se acolhia a doutrina grega da matéria eterna. Para superar o dualismo entre Deus e o mundo, Fílon concebeu a existência de seres intermediários, que proviriam de Deus como forças (dynameis). Tais forças são caracterizadas  não só como ideias de Deus, como também seus mensageiros, enviados para cumprir a sua vontade.
Essas forças atuam no mundo determinando gêneros e espécies – as formas essenciais das coisas no sentido dos logoi spermatikoi dos estoicos. Assim como nos estoicos os múltiplos logoi originaram-se no logos spermatikos único, assim também em Fílon as forças têm sua origem e sua unidade no logos único. Logos é um conceito central no pensamento de Fílon; é o locus das ideias de Deus.; é a ideia das ideias. Resulta daí que as Ideias Eternas de Platão não são compreendidas como Essências subsistentes em si mesmas, mas, como o será no neoplatonismo, pensamentos de um espírito pensante. Esse espírito que elabora as ideias não é, no entanto, Deus mesmo, mas uma parte originada dele e que lhe é subordinada. Em Fílon, essa parte subordinada que se origina de Deus é o logos. Em Plotino, como vimos, é o nous (Espírito). Mas, em ambos os pensadores, essa parte subordinada é o locus das ideias.
Fílon mantém também que o logos é a força das forças, como anjo supremo enviado por Deus ao mundo para agir segundo sua vontade; é também seu filho primogênito, criado antes de toda a criação. Para Fílon, o logos é o sacerdote supremo do mundo e o intercessor perante Deus.
A doutrina de Fílon tem uma proximidade impressionante com o cristianismo, malgrado o fato de sua influência imediata ter sido muito pequena. Judeus ortodoxos consideraram Fílon um pensador demasiadamente grego; e os filósofos cuidaram-no um judeu demasiadamente crente, cujo trabalho consistiu em redigir comentários às Sagradas Escrituras.
A influência mais forte de Fílon ocorreu no pensamento cristão inicial em Alexandria. O diálogo com a filosofia grega marcou significativamente o começo do pensamento cristão, e Fílon foi um predecessor desse acontecimento.


2.3.  A Escola de Alexandria e o conceito de Deus

2.3.1. Clemente de Alexandria: a Teologia Natural

Chamado Tito Flávio Clemente, Clemente de Alexandria, tal como se tornou conhecido, nasceu provavelmente em Atenas pelos idos de 150 d.C. Após ter-se convertido ao cristianismo, esteve na Grécia, na Ásia Menor e na Palestina. Mas foi só em Alexandria que encontrou a ciência que o satisfez. Lá, associou-se a Panteno na função de professor-assistente. Tendo morrido seu mestre, Clemente assumiu a direção da escola.
Um dos problemas de que se ocupou Clemente de Alexandria foi o da justificação da filosofia, a saber, o de demonstrar, contra aqueles que a rejeitavam, que a filosofia é útil à fé cristã. Para Clemente de Alexandria, aqueles que se dedicam à filosofia estão cumprindo a vontade do próprio Deus. A filosofia, como tal, é boa, e o uso razoável dela só pode acarretar benefícios.
Ora, para Clemente, a filosofia torna os homens virtuosos; logo ela é boa; sendo boa, ela tem origem em Deus, porque Deus é bom e tudo que dele provém é bom e é destinado para o bem. Há que destacar um importante aspecto da defesa que Clemente de Alexandria faz da filosofia. Para ele, a filosofia é útil aos que professam a fé cristã, dado que lhes fornece os subsídios necessários para a defesa da fé. Ademais, o estudo da filosofia é uma vocação agradável a Deus. Não obstante, sustenta Clemente que a filosofia não pode cumprir cabalmente sua função, se ela exceder os limites do domínio de sua competência. Sua função é apenas auxiliar. A filosofia é serva da sabedoria (teologia) ou é a fé iluminada.
Para fins desta exposição, o recorte que farei do pensamento de Clemente de Alexandria impõe-me o abandono do curso dessas considerações sobre a relação entre a filosofia e a fé cristã, para me concentrar no tratamento dos termos em que se expressam a Teologia Natural proposta por esse pensador cristão. É nessa Teologia Natural que a concepção clementiana de Deus, objeto de interesse desta parte de nosso estudo, será trazida a lume.
Embora sua Teologia Natural não tenha logrado um desenvolvimento sistemático, é possível apresentar-lhe os pontos teológicos essenciais:

1. A existência de Deus é universalmente conhecida

Para Clemente de Alexandria, trata-se de uma proposição evidente, porque nunca houve um povo sequer que não tenha concebido uma ideia de Deus. Todos os homens, em qualquer lugar e época, sofreram a influência de uma espécie de iluminação natural de Deus.

2. A essência de Deus permanece oculta ao homem

Nota-se aqui a influência neoplatônica sobre o pensamento de Clemente. Não sabemos o que Deus é, mas podemos saber o que Ele não é. Para Clemente de Alexandria, é impossível à razão humana, pois, atingir o conhecimento da essência de Deus, porque Deus é a própria Razão e a causa de todas as outras coisas. Clemente lembra que o apóstolo Paulo pregou, em Atenas, o “Deus desconhecido”, pois que reconhecia que Deus é incognoscível à razão natural.

3. O conhecimento negativo de Deus é obtido por via analítica

Não obstante a impossibilidade de a razão natural ter acesso direto à essência de Deus, Clemente de Alexandria admite a possibilidade de conhecermos Deus por meio da análise calcada sobre os dados da experiência. Esta análise se desenvolve mediante uma série progressiva de abstrações, atendendo ao seguinte método. Primeiramente, abstraem-se das coisas sensíveis as dimensões de comprimento, altura e largura, de sorte que restará um simples ponto que, por mais simples, ainda continuará a ocupar um lugar no espaço. O segundo passo consistirá em fazer abstração dessa posição espacial, a fim de chegarmos a uma unidade espiritual ou a uma causa situada para além de todo lugar, de todo tempo, de todo conhecimento. Mas é somente se abstrairmos de todos os aspectos corporais e incorporais do ser e se nos elevarmos à grandeza de Cristo, até atingirmos o conceito de imensidade, que poderemos dispor de um conhecimento de Deus Todo-Poderoso, ainda que continue impossível para nós saber o que ele é essencialmente. Só podemos pretender alcançar um conhecimento negativo de Deus, já que, em consonância com o pensamento de Fílon, dirá Clemente Deus está acima da própria Unidade.


2.3.2. Gregório de Nazianzo e a incognoscibilidade de Deus


Gregório de Nazianzo (330-390 d.C) combateu com notável eloquência as afirmações heréticas dos eunomianos, que formavam uma seita cuja visão teológica constituía uma verdadeira ameaça à fé ortodoxa na capital do Império. Seus partidários sustentavam a crença de que a essência de Deus era ingênita e, portanto, completamente inteligível. O Filho, por seu turno, era essencialmente gerado e, por conseguinte, não era Deus. O que se seguiu daí foi uma acirrada e violenta controvérsia que se estendia por toda parte, inclusive nas ruas e nas praças públicas. Gregório investiu vigorosamente contra as afirmações heréticas dos eunomianos com sermões cuja repercussão foi tão intensa, que a posteridade lhe conferiu o título de o Teólogo.
Tal como Clemente de Alexandria, Gregório insiste na incognoscibilidade de Deus: é impossível dizer algo sobre Deus e mais impossível ainda é conhecê-lo. Mas aqui cumpre fazer uma observação urgente: não é a existência de Deus que é incognoscível, mas tão só a sua natureza ou essência. Não é que Deus nos tenha denegado tal conhecimento; o obstáculo que nos impede de conhecê-lo em sua essência reside em nossa natureza corporal. Por conseguinte, assumir a incognoscibilidade de Deus é o mesmo que reconhecer nossa incapacidade para formar conceitos puramente espirituais a respeito dele. Não obstante, Gregório admite a possibilidade de alcançarmos um conhecimento negativo de Deus. Temos de nos contentar em saber o que Deus não é.
Ao trilhar o caminho de uma teologia negativa, Gregório, no entanto, se limitou a abordar o problema da incorporeidade de Deus. Deus não é um ser corporal, porquanto carece das propriedades distintivas dos corpos. Deus está presente em todo lugar e, por isso, é incorporal. Se fosse ele um corpo, não haveria espaço para as demais coisas. Além disso, diferentemente de um corpo, Deus carece de composição. Os corpos, ao contrário, são compostos; e o que é composto traz em si o germe da corrupção. Deus, no entanto, desconhece a dissolução.
Tanto a incorporeidade quanto o não ser gerado, a carência de começo e fim são conceitos negativos com os quais buscamos definir Deus. Gregório de Nazianzo dá a entender que todo os conceitos aplicados a Deus são produtos humanos e, por isso, inadequados. Não podemos, no ato de conhecer, fazer abstração total da sensibilidade, de modo que nossos conceitos a respeito de Deus incluem sempre um elemento corporal.
Em suma, Deus sempre excederá as analogias de que nos servimos a fim de dizer o que ele é. Destarte, embora Deus esteja presente no mundo, ele o transcende; embora seja Deus toda a beleza, ele excede toda a beleza.
Sem embargo de sua adesão à teologia negativa, Gregório reconhece o valor de algumas fórmulas, legadas pela tradição, com as quais os autores cristãos buscaram compreender o que é Deus. O problema, a esta altura, para Gregório, consiste em saber como nos é possível tender a Deus, se ele nos é absolutamente incognoscível. A absoluta incognoscibilidade de Deus não impediu os doutos padres da tradição de nos legar fórmulas com as quais buscaram definir Deus. Duas delas são referidas por Gregório.

1. Deus é o ser infinito

Deus é a plenitude do ser, carece de princípio e fim; ou ainda, Deus é o Ser mesmo, um oceano imensurável e ilimitada substância. Orígenes se recusou a lançar mão do conceito de infinidade para caracterizar Deus, mas Gregório e, de modo especial, Duns Escoto acreditam que a infinidade é a característica que melhor se aplica à essência divina.


2. Deus é o ser eterno

Dada a sua imensidade, Deus excede todos os limites do espaço e do tempo. Sua independência em relação ao espaço se deve a sua incorporeidade. Todavia, Deus também independe do tempo. De Deus só podemos dizer que é, jamais que foi ou será. Nele se encerra todo o presente. Deus é eterno significa que sua eternidade recusa qualquer elemento temporal.


2.4. Algumas inconsistências lógicas na conceituação de Deus

Disse que a crítica ateísta se estrutura em três frentes de ataque, uma das quais toca ao exame das inconsistências lógicas na construção do conceito de Deus. Um conhecido problema na construção do conceito do Deus teísta é o que diz respeito à sua onipotência. Trata-se do chamado “Paradoxo da Onipotência”. Segundo esse Paradoxo, dado que Deus é onipotente, ele poderia criar uma pedra tão pesada que nem ele mesmo poderia levantar? Se respondemos que “sim”, então Deus não seria capaz de levantar essa pedra e, portanto, não é onipotente; se, por outro lado, respondemos que “não”, então Deus não é onipotente desde o início. No primeiro caso, ele não seria onipotente, porque seria incapaz de levantá-la; no segundo, ele não seria onipotente, porque seria incapaz de criá-la.
Outro problema que toca ao aspecto lógico da construção do conceito de Deus diz respeito à relação entre Deus e a criação. Admitindo-se que Deus é o Ser sumamente perfeito, por que ele criou o mundo? Se dissermos que ele o criou porque tinha necessidade da criação, então Deus não é perfeito, porque ter necessidade é encontrar-se em estado de carência e, portanto, é ser imperfeito. Um ser perfeito de nada carece. Se, como argumentam alguns teólogos, Deus criou o mundo por uma superanbundância de amor, por que ofereceu às suas criaturas o mal e o sofrimento?
Uma vez que toda criação é finita, logo imperfeita em relação ao Ser infinito, que é Deus, como é possível que o ser infinito crie o finito e o imperfeito?  Se Deus é puro espírito, como foi capaz de criar a matéria? Como um ser espiritual pode criar algo material?
Uma vez criada a matéria, como ela se relaciona com seu Criador? Se ela é independente de Deus, então este perde sua onipotência e infinitude; torna-se finito e limitado por sua criação. Mas, se a matéria está em Deus como manifestação imediata dele, então Deus terá de assumir a materialidade, a finitude e os defeitos atribuídos inerentes à matéria.
Como vemos, o conceito de Deus, quando examinado considerando-se suas propriedades definitórias, está prenhe de contradições ou ilogicidades. A razão exige que pensemos de modo organizado, exige que os conceitos através dos quais representamos nossas experiências de mundo sejam consistentes entre si. Assim, quando se diz que Deus é um ser atemporal, eterno (embora não saibamos o que significa existir fora do tempo) e, ao mesmo tempo, que ele atua na história (no tempo) do mundo, produz-se uma contradição. A crença no livre-arbítrio humano colide com a crença na predestinação: ou bem Deus concede ao homem livre-arbítrio, ou Deus determina o curso da vida de cada ser humano. A onisciência de Deus não traz alguma dificuldade para nosso livre-arbítrio? Se Deus sabe o que vou fazer (no futuro), como posso ser livre para escolher não fazer o que farei, ou para fazer outra coisa diferente do que necessariamente farei?
Como bem observa Verret, em Os marxistas e a religião (1975, p. 58):


O metafísico idealista não encontra em Deus senão as suas próprias contradições inconscientes. Nega a contradição à face da realidade: ela não se manifesta aí com mais acuidade, dentro do seu pensamento. Define Deus segundo os critérios da lógica formal por uma série de atributos isolados, absolutos e imóveis (a infinidade, a perfeição, etc.) excluindo os seus contrários. Mas este Deus sem contradições supostas não consegue pensar senão ao preço da contradição. A contradição desprezada vinga-se. Sobre ele. E até sobre Deus. Pois se Deus é pura ideia, toda a contradição na ideia de Deus recai em Deus.






3. Javé ou um Deus entre deuses

Antes de discutir os assuntos recobertos por esta última parte de nosso estudo, eu preciso deixar claro ao leitor o ponto de vista sob o qual esses assuntos serão abordados. O ponto de vista a partir do qual os considerarei é o da materialidade histórica da ideia de Deus. Por materialidade histórica da ideia de Deus, entendo o conjunto de acontecimentos políticos, econômicos, sociais, teológicos, ideológicos, em suma, históricos, que tornaram, de algum modo, possível o surgimento e o desenvolvimento da ideia do Deus judaico-cristão no Antigo Oriente Próximo. Na literatura especializada, há, pelo menos, duas maneiras de explicar as mudanças nas doutrinas religiosas: numa perspectiva, realça-se o poder das ideias nessa transformação; noutra perspectiva, enfatiza-se a força das circunstâncias materiais. A questão, portanto, que se impõe à investigação à luz dessas duas perspectivas é: Israel foi conduzido à monolatria e, finalmente, ao monoteísmo por força da reflexão teológica (ou seja, das ideias sobre Deus), ou por força das condições políticas, econômicas e sociais concretas? É verdade que a Bíblia favorece a interpretação segundo a qual são as ideias que moldam os acontecimentos terrenos e não o contrário. Um marxista, em face da interpretação bíblica, não hesitaria em dizer que a perspectiva bíblica é ideológica, pois que supõe que as ideias por si mesmas são suficientes para explicar os acontecimentos históricos.
O meu método de análise, denominado de materialidade histórica da ideia de Deus, tem inspiração no materialismo marxista, de sorte que assumo a perspectiva filosófica segundo a qual a concepção de Deus se altera em resposta às condições sócio-históricas em que ela foi gestada e se desenvolveu. Nesse tocante, acompanho de perto o ponto de vista adotado por Wright, em seu A Evolução de Deus (2012). Decerto, o ponto de vista que assumo reduz a fé em Deus a mero reflexo ilusório de condições sócio-históricas determinadas, e isso pode parecer desalentador para muitos religiosos. Mas creio que o desalento é uma etapa necessária da desmitificação da consciência religiosa. A consciência religiosa (como toda forma de consciência) é historicamente determinada. O estudo da materialidade histórica da ideia de Deus deve cumprir um único objetivo deveras significativo: demonstrar, à luz das evidências históricas e arqueológicas, que o Deus teísta, bem como qualquer um dos inúmeros deuses produzidos na história humana, é pura e simplesmente uma ideia, ou, como o entendo neste texto, uma categoria cultural, por meio da qual e em nome da qual seres humanos, numa determinada época histórica, buscavam agir de modo a influenciar o curso dos acontecimentos do mundo, explicá-los, dar sentido a eles e às suas vidas pessoais. Toda e qualquer especulação teológico-filosófica sobre Deus que, fazendo abstração das condições sócio-históricas em que a ideia de Deus foi gestada e se desenvolveu, para convertê-lo num ente suprassensível, atemporal, a-histórico, princípio originário ou outros equivalentes conceituais, é uma especulação ideológica, produto da imaginação e da fantasia humanas.

3. 1. Deuses como sustentáculos do Direito Internacional

Tudo que, doravante, se dirá a respeito do enraizamento dos deuses, particularmente de Javé (o Deus hebraico), no solo histórico tem como pano de fundo um contexto religioso marcadamente politeísta. Para mostrar como os deuses estavam imiscuídos em interesses políticos e econômicos, ou seja, como os deuses, entendidos como produções históricas, categorias culturais, estavam a serviço de interesses políticos e econômicos, minhas reflexões se reportarão, inicialmente, à Mesopotâmia do terceiro milênio AEC (Antes da Era Comum).
As religiões sempre estiveram envolvidas nas relações entre governos. Elas atendiam a um propósito bastante conveniente: facilitar essas relações. Mas foi, sobretudo, com o surgimento dos Estados que os deuses passaram a sustentar o que pode ser chamado de “direito internacional”.
Na Mesopotâmia, no terceiro milênio AEC, deuses e direito internacional estavam intimamente ligados nas cidades-estados. O deus Enlil, rei de todas as terras e pai de todos os deuses, definiu a fronteira para o deus da cidade-estado Lagash e para o deus de Umma mediante um decreto. É bem verdade que a autoridade divina nem sempre bastava. O decreto foi violado pelo rei de Umma, que então foi punido pelo exército de Lagash. Como era comum no mundo antigo atribuir aos deuses a responsabilidade pelos feitos históricos, encontram-se registros nos quais se diz que foi o deus de Lagash que se serviu do exército para punir o rei de Umma. Por que deixar todo crédito para o exército? Esse modelo de pensamento que instrumentaliza os homens, suas ações e seus esforços para garantir a Deus o papel de verdadeiro agente responsável por um evento ou situação persiste ainda hoje na mentalidade religiosa. Não são os médios quem curam; é Deus que o faz através dos médicos! Prossigamos...
Embora, em geral, acordos como aquele fossem respeitados, a guerra desempenhava um papel fundamental no mundo antigo, e os deuses eram evocados para tomar parte na responsabilidade por ela. Em toda parte, a vontade divina era a justificativa formal para a guerra. Os deuses que apoiavam os massacres e as extorsões em tempos de guerra podiam ser redimidos em função do amplo período de paz que sobrevinha ao conflito.
No curso do terceiro milênio, a Mesopotâmia tornar-se-ia um Estado regional dirigido de modo centralizado. Os deuses também acompanharam essa evolução para apoiar uma unidade mesopotâmica mais ampla já no fim desse terceiro milênio. A evolução dos deuses foi possível, porque os conquistadores do mundo antigo eram menos inclinados a destruir os ídolos dos inimigos vencidos do que a adorá-los.
Por volta de 2.350 AEC, Sargão da Acádia tornou-se o primeiro grande conquistador da Mesopotâmia. No seu esforço por dominar completamente o sul da Mesopotâmia a partir do norte, ele teve de enfrentar um grande multiculturalismo. O sul da Mesopotâmia tinha base étnica e linguística suméria, enquanto Sargão era um estrangeiro que falava o acádio, uma língua semítica. O que, aparentemente, poderia representar um obstáculo para a investida bélica de Sargão foi compensado por sua flexibilidade teológica. Embora os deuses acádios o tivessem ajudado a subjugar os sumérios, isso não significava que os deuses sumérios fossem seus inimigos. Na cidade de Nippur, Sargão fez com que os sacerdotes locais concordassem com ele em que a sua vitória fora vontade do importante deus sumério Enlil (um julgamento que contou com o apoio da exibição do rei deposto de Nippur preso por uma coleira).
Os devotos de An, o deus sumério dos céus, não precisavam recear o domínio de Sargão, pois que ele era cunhado de An. A filha de Sargão Enheduanna, a quem ele faria a suprema sacerdotisa de Ur (centro religioso da Suméria) escreveu hinos de louvor a Inanna. Conquanto Enheduanna a considerasse a deusa superior, a superioridade da deusa não conseguiu evitar que seu nome fosse alterado. É que Ishtar era uma deusa acádia consagrada, e, é claro, Sargão, interessado em afirmar a unidade política divinamente sancionada de seu império acádio-sumério, declarou que Ishtar e Inanna eram a mesma divindade. Afinal, dois nomes seriam supérfluos! Graças ao poder político e ao poder eficaz da palavra de Sargão, Inanna, embora conservando suas características essenciais, passou a ser conhecida como Ishtar.
É preciso não perder de vista o fato de que a combinação de crenças ou conceitos religiosos (sincretismo) atende ao interesse de criar unidade cultural e política, contribuindo para a consolidação da conquista. E com frequência, como foi o caso aqui, os próprios deuses são combinados, ou subsumidos uns nos outros. Não surpreende que, quando duas culturas se fundem, alguns de seus deuses podem não se corresponder. Os deuses sumérios, não encontrando uma contraparte aproximada, foram assimilados à cultura acádia ou com nomes sumérios (Enlil, por exemplo), ou com alguma variação acádia (An tornou-se Anu). Todavia, a maioria dos deuses sumérios sobreviveu, seja mantendo sua identidade, seja pela fusão com um deus acádio. No mundo antigo politeísta, a sabedoria de um conquistador residia em sua flexibilidade teológica. Essa flexibilidade teológica poupava o conquistador de disputas desnecessárias quando, terminada a guerra, restava um império para governar.
O politeísmo tem uma maleabilidade bastante conveniente, e a conveniência dessa maleabilidade politeísta pode ser compreendida em dois sentidos: 1) ela servia aos interesses de tiranos brutais, contribuíam para a consolidação de impérios; 2) era um elixir a serviço da harmonia intercultural. Consoante ensina Wright (2012, p. 109), “por mais cruéis que fossem os conquistadores, por mais egoístas que fossem suas ambições, no longo prazo eles conduziam mais e mais povos, sobre territórios cada vez mais vastos, em um intercâmbio cultural e econômico”.
Sargão logrou êxito levando a Mesopotâmia a quase atingir o universalismo. Ele estendeu o alcance dos deuses sumérios para além de seu território ao sul. Mas isso ainda não se compararia ao universalismo simples e monoteísta que decorreria da tradição abraâmica, cujo deus estenderia seu governo sobre toda a humanidade. Não obstante, na Mesopotâmia do terceiro milênio AEC, mesmo quando o politeísmo exibia sua eficácia geopolítica, já havia forças empurrando a teologia para o monoteísmo. É este o tema que atacaremos na próxima subseção.

3.2. A caminho do monoteísmo

Vimos na subseção anterior que o divino tem uma tendência para acompanhar o político. Essa tendência não se limita às relações políticas entre cidades-estados da Mesopotâmia, mas se estende também à política interna. As cidades-estados possuíam uma ordem política vertical, o que significa dizer que sua organização política apresentava uma liderança clara, hierarquicamente situada, mais elaborada e burocrática. A mesma complexidade hierárquica que se observava na terra se refletia no céu. Por isso, não só as cidades-estados – e, posteriormente, toda a região – possuíam um só deus líder (chamado, às vezes, de rei), como também esse deus tinha deuses subalternos que formavam uma corte real e celestial. Num documento mesopotâmico datado do segundo milênio AEC elenca deuses com títulos como valete, chefe principal, pastor principal, jardineiro, embaixador, vizir, grão-vizir, ajudante de ordens, secretário, etc. (Wright, 2012, p. 110).
Embora possamos encontrar semelhante hierarquia divina no Egito e na China da dinastia Shang, foi na Mesopotâmia que a hierarquização dos deuses se tornou tão clara quanto bem documentada. Essa “pirâmide de poderes” foi uma etapa importante em direção ao monoteísmo. Enlil, encontrando-se no topo da pirâmide, era chamado “o magnífico e poderoso legislador que domina o Céu e a Terra, que tudo conhece e entende”. Embora os escritores da Mesopotâmia tivessem uma tendência a exagerar quando tomamos por referência o consenso geral, é inegável que havia uma tendência teológica em ação: “uma tendência em direção à majestade concentrada” (ib.id., p.110-111). Enlil teria um sucessor, cuja ascensão ao posto de deus supremo no panteão mesopotâmico levaria a Mesopotâmia a aproximar-se mais do moderno pensamento religioso ocidental.
O sucessor de Enlil foi Marduk, deus babilônico. Como era de esperar, Marduk não conquistou sua majestade por conta própria. Na verdade, ele contou com o importante apoio do rei babilônico Hamurabi, que entra na cena histórica no começo do segundo milênio AEC, séculos depois de o Império Acádio estabelecido por Sargão ter sucumbido. A Mesopotâmia se encontrava, àquela altura, outra vez politicamente fragmentada.
Hamurabi é famoso por ter produzido um dos primeiros códigos morais (ou de leis) do mundo antigo. Seu código foi uma alternativa à religião: incluía regras mundanas de comportamento, impostas pela polícia, dispensando-se, assim, o ditame sobrenatural. Mas devemos enfatizar um fato importante: nos Estados antigos, tanto a lei nacional quanto as leis internacionais eram sustentadas pelos deuses. Não havia o que conhecemos hoje como Estado laico, baseado no princípio de separação entre Estado e religião. Hamurabi foi divinamente autorizado a organizar as leis. Na introdução do código de Hamurabi, lê-se que Anu e Enlil, os deuses principais do panteão mesopotâmico, escolheram Hamurabi como rei “para produzir a lei da justiça na terra, destruir os maus e os perversos”. Cerca de trinta deuses são citados ao longo do código, alguns dos quais cumpriam função judicial. A prática de atirar um suspeito em um rio se acompanhava da expectativa de verificar se o deus do rio o prenderia; se o prendesse, o suspeito era declarado (postumamente) culpado.
Mas o tratamento dispensado a Marduk no código de Hamurabi não se comparava ao tipo de tratamento dado aos demais deuses. No código, Anu e Enil declaram Marduk um deus “magnífico” e lhe atribuem “o domínio sobre o homem terreno”. Marduk, como já disse, era deus da cidade da Babilônia, de onde provinha Hamurabi; e este intentava expandir o controle da cidade sobre toda a Mesopotâmia. Não seria custoso aos deuses da Mesopotâmia admitir a majestade de Marduk entre eles. Mas sucedeu que Hamurabi morreu antes de dominar toda a Mesopotâmia. Nos séculos seguintes, porém, a Babilônia estendeu, de fato, seu domínio total sobre a Mesopotâmia, e Marduk pôde, assim, tornar-se o deus mais importante do panteão mesopotâmico, destruindo Enlil.
Os que defendiam Marduk não cessariam de lhe dispensar louvores, exaltando sua supremacia. A devoção a Marduk operou uma radical transformação teológica: os outros deuses do panteão, àquela altura já subordinados a Marduk, se converteram em meros aspectos dele. Assim, o deus Adad- antes conhecido como deus da chuva – era agora “Marduk da chuva”. Outro deus, chamado Nabu, o deus escriba, tornou-se “Marduk dos escribas”. E assim, sucessivamente, como num efeito em cascata, “os principais deuses da Mesopotâmia foram engolidos por Marduk, um a um” (ibid., p. 112).
É bem verdade que não há consenso entre os estudiosos acerca da causa principal que levaria sociedades politeístas a se tornarem monoteístas. Alguns estudiosos concordam com Edward Tylor, para quem a passagem do politeísmo para o monoteísmo era parte de um movimento natural em direção ao racionalismo científico. Nesse sentido, seguindo a interpretação de Tylor, a série de deuses mesopotâmicos aos quais se impunha uma hierarquia crescente no panteão não era mero reflexo do governo hierárquico, mas consequência do anseio humano de ordem intelectual e de unidade de compreensão do mundo. A ascensão de Marduk e seu domínio sobre os outros deuses devem ser interpretados, segundo essa linha de raciocínio, como expressão de um tipo de grande teoria unificada da natureza. Marduk representava essa teoria unificada da natureza.
Malgrado o fato de não podermos falar de uma investigação científica ampla e acelerada no mundo antigo, ela pode ter contribuído, de modo incipiente, para a eliminação parcial do mistério do universo, suprimindo gradativamente a necessidade intelectual de muitos deuses. Por muito tempo, os mesopotâmicos pensaram que demônios eram a causa de eclipses e batiam tambor para afastá-los. Durante o primeiro milênio AEC, sacerdotes-astrônomos babilônicos descobriram que os eclipses podiam ser previstos com exatidão, não obstante suas causas demoníacas. O ritual sagrado dos tambores permaneceu, no entanto. Outros muitos costumes religiosos subsistiram como o da antiga e precursora árvore de Natal escandinava, cuja função era dispersar os demônios.
As explicações “intelectualistas” para a transformação de sociedades politeístas em monoteístas concorrem com explicações completamente políticas. Volvendo olhares sobre a situação da Mesopotâmia sob o domínio babilônico, uma tendência para o monoteísmo de Marduk pela redução dos rivais a meras partes de sua anatomia constitui um expediente teológico bastante adequado às pretensões imperialistas babilônicas. Em outras palavras, citando Wright: “(...) para os babilônicos que queriam permear a Mesopotâmia com o entendimento e o bom convívio multicultural, haveria melhor cimento social que um único deus que abrangesse todos os deuses”?
Façamos uma breve digressão para esclarecer a consequência principal que o leitor deve extrair de tudo que se expôs até aqui. Com vistas a esclarecê-la, chamo a atenção para o uso que Wright fez da expressão “cimento social” para recategorizar o deus Marduk com base na função que ele passou a desempenhar. Essa expressão nominal “cimento social”, de conotação francamente secularizadora e metafórica, expressa um tipo de avaliação do enunciador relativamente ao referente (objeto-de-discurso) designado pela forma “deus” (ou “deus Marduk”). Em outras palavras, “cimento social” estabelece um outro horizonte de compreensão, de interpretação, de leitura a partir do qual deve-se tomar o significado de “deus”. Ora, “deus” não é mais entendido como “ente sobrenatural e causa necessária e última de tudo que há”, mas deve ser lido a partir do horizonte de sentido instaurado pela expressão “cimento social”. O que está em jogo aqui não é a mera substituição de uma palavra (deus) por uma expressão (cimento social), mas a expressão de um modo diverso de categorizar, de conceituar a experiência com aquilo que, noutro domínio semântico, chamamos normalmente de “deus”. Ao nos referirmos a deus como “cimento social”, estamos codificando uma outra forma de representa-lo, de pensá-lo, interpretá-lo, compreendê-lo, de situá-lo como objeto sociocognitivo-cultural. O que significa um deus como cimento social? Um cimento serve para unir e fixar partes de uma construção (de uma casa, por exemplo). Assim também um “cimento social” designa algo capaz de unir indissociavelmente os indivíduos, os grupos entre si a partir de uma crença ou ideias comuns. No caso em tela, Marduk, como cimento social, uniria toda a sociedade mesopotâmica, culturalmente heterogênea, em torno da crença num único deus, identificado com o poder do Estado. Para atingir uma correta compreensão desse processo discursivo de recategorização, é necessário assumir que as coisas, os referentes sobre os quais fala o discurso não são as coisas ou referentes do mundo extralinguístico, mas objetos-de-discurso. Quando produzimos textos ou buscamos compreendê-los, importa considerar como o mundo é textualizado, como seus objetos são introduzidos, mantidos, transformados no discurso. Os objetos-de-discurso são as entidades (referentes) construídas pelo discurso e é nele e por ele que são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc.
Entendendo-se o significado não como reflexo da realidade (de uma realidade que existiria independentemente da linguagem), mas sim como uma construção sociocognitivo-interacional por meio da qual o mundo é apreendido e experienciado, resta que a adequada compreensão do significado de “deus como cimento social” supõe que sejamos capazes de reconhecer que o mecanismo metafórico define-se como a conceptualização de um domínio de experiência nos termos de outro. Em outras palavras, o domínio de experiência ativado pelo conceito de “deus” é reinterpretado a partir do domínio de experiência ativado pelo conceito de “cimento social”. É importante perceber que a ‘verticalidade-transcendência’ implicada no domínio de experiência de “deus” é transformada para a ‘horizontalidade-imanência’ envolvida no domínio de experiência de “cimento social”. Em outras palavras, deus deixa de atender a propósitos superiores, existencialmente mais elevados, para atender a necessidades mundanas, pragmáticas, da vida comum, qual seja, a de unir, conformar, juntar num todo, estabelecer vínculos mais sólidos social e politicamente com vistas a facilitar o domínio do poder estatal e produzir consenso.
A exposição que se tem feito até aqui sobre o vínculo entre os deuses e o âmbito político deve encaminhar a conclusão de que deuses são categorias culturais mediante as quais nossas experiências de mundo são organizadas, classificadas, interpretadas e das quais nossas relações com o mundo e os outros recebem bases normativas. Claro está também que encapsular o objeto-discurso ‘deus’ na expressão [CATEGORIA CULTURAL] é expressar uma outra maneira de codificá-lo, de experienciá-lo, de pensá-lo, identificá-lo, interpretá-lo. É claro que deuses como “categorias culturais” não se equivalem semanticamente e funcionalmente a outras categorias culturais, tais como “pai”, “mãe”, “filho”, “família”, “clã”, “primitivo”, “selvagem”, entre outras. Apesar das especificidades semânticas e funcionais da categoria cultural “deus”, entre as quais está a qualidade de ser a instância suprassensível garantidora de um sentido transcendente para a vida (se pensarmos na representação do Deus metafísico cristão), nada há que obste à possibilidade de a categoria cultural “deus” absorver as propriedades de outras categorias como a de [PAI] (se levarmos em conta a representação do Deus cristão como “Pai”). Por analogia, do “pai”, o Deus cristão herda a progenitura, certamente; mas também a pessoalidade, a função provedora, a autoridade, o poder patriarcal e a afetividade protetora. Não por acaso o Freud mais maduro e autor de O Futuro de uma ilusão viu no Deus pessoal cristão um pai sublimado, que responderia à necessidade infantil humana de amparo e proteção.
Retomando o fio discursivo cuja interrupção se impôs pela digressão que agora se encerra, Marduk não reinou como deus soberano ad infinitum. Ele foi obrigado a estabelecer um acordo que previa a divisão de poder com outro deus supremo. Todavia, o reinado de Marduk representou a maior aproximação de um monoteísmo universalista na Mesopotâmia. Wright (ibid. p. 113-114) parece sugerir que a explicação política para uma tendência ao monoteísmo, baseada no argumento da necessidade de unificar uma região etnicamente diversificada, dá conta do que realmente aconteceu no caso da ascensão de Marduk.


3.3. O monoteísmo no Egito

Segundo Wright (ibid., p. 114), “a experiência do Egito com o monoteísmo foi mais abrupta e envolveu menos cordialidade”. Ainda segundo o autor, essa experiência foi tão comparativamente radical e violenta quanto um golpe de Estado. Para compreendermos como se deu essa transformação radical da teologia egípcia, devemos trazer à cena histórica o faraó excêntrico e enigmático chamado Amenófis IV. Foi ele o responsável, no século XIV AEC, por arquitetar o golpe institucional que transformaria o Egito politeísta numa sociedade monoteísta. A depender do estudioso, a motivação de Amenófis pode variar entre um entusiasmo religioso e uma conspiração política; mas, seja qual for a linha de interpretação assumida, parece indiscutível a relevância do contexto político que ele herdou ao assumir o trono, ou da teologia imiscuída nesse contexto.
O panteão do Egito trazia o germe de um monoteísmo emergente: Amon preenchia a função de dominador do firmamento divino. Amon viria a se tornar mais poderoso depois de sustentar uma série de campanhas militares no Egito e de angariar para si prestígio com as vitórias decorrentes. Os templos de Amon possuíam vastas terras e riqueza, e os sacerdotes, reais promotores das guerras, tornaram-se mais poderosos, passando a administrar um império comercial que abrangia a mineração, a manufatura e o comércio. É difícil mensurar até que ponto esse acúmulo de poder nas mãos dos sacerdotes ameaçava o poder do próprio faraó, mas é possível que as denominações dadas a Amon – rei dos deuses, príncipe dos príncipes – possam ter contribuído para lhe arrefecer a confiança. Também o indício de que Amon não só poderia ser soberano sobre os outros deuses, como também poderia absorvê-los, à semelhança de Marduk, possa tê-lo impulsionado a tomar providências.
Amenófis precisava subjugar Amon, para o que ele se serviu indiretamente do legado do deus Rá. O deus Rá era, por vezes, associado a um disco solar com duas hastes, conhecido como Aton, que significa disco. Esse disco solar originalmente representava a energia radiante de Rá, mas Amenófis III, pai do jovem faraó, decidiu conferir-lhe o papel de uma divindade independente. Amenófis IV, seguindo os passos do pai, promoveu Aton ao posto de deus que representa “aquele que decreta a vida”, “aquele que criou a terra”, “aquele que construiu a si mesmo por si mesmo”, “aquele cujos raios solares significam visão para tudo que ele criou”. Aton se tornara um deus maior que Amon, e o faraó fez desaparecer o nome de Amon, proibindo seu uso em qualquer circunstância. Pessoas com nomes que encerram Amon tiveram de mudá-los. O antes poderoso sumo sacerdote de Amon foi, durante o reinado de Amenófis IV, foi deslocado para o trabalho que consistia em quebrar pedras em uma pedreira.
Não só Amon foi extinto, mas também a forma “deuses” foi apagada de alguns textos e seu uso passou a ser severamente limitado, já que, afinal, só existia um único verdadeiro deus. Os deuses que então faziam parte do panteão egípcio sequer mereceram a cortesia que Marduk oferecia às demais divindades mesopotâmicas que ele veio a suplantar – a absorção em um novo ser supremo. Os deuses egípcios foram simplesmente declarados extintos juntamente de seus sacerdócios. O faraó ergueu uma grande cidade em homenagem a Anton, dando-lhe o nome de Akhetaton (“Horizonte de Anton”). Dela fez a capital, e a si próprio batizou de Akhenaton (“Auxiliar de Anton”). Não satisfeito, ainda nomeou-se sumo sacerdote de Anton e se declarou filho de Anton, passando a ser reverenciado como tal. A conclusão dou a conhecer nas palavras de Wright:

Enquanto Marduk, depois de absorver os principais deuses da Mesopotâmia, mantinha algumas divindades por perto como esposa e servos, Anton, no ápice de seu poder, firmou-se solitário no firmamento divino, um claro prenúncio do deus hebreu, Jeová. E do famoso universalismo de Jeová: Aton criara os seres humanos e cuidava deles – de todos eles. (ib.id., p. 116, ênfase no original).



3.4. O politeísmo da antiga religião de Israel



No politeísmo “primitivo”, as forças da natureza podiam ser representadas como deuses, ou se assemelharem livremente a eles. No entanto, no monoteísmo que viria a ganhar forma no Antigo Oriente Próximo, havia maior distanciamento entre a natureza e a divindade. Diferentemente das divindades pagãs, Javé não se identificava com nenhuma força da natureza, mas “habitava” um domínio separado.
Na Bíblia, o deus cananeu Baal tem uma importância significativa na carreira de Javé em direção à soberania. Baal era adorado pelos cananeus, mas também pelos israelitas desiludidos que renunciaram à devoção a Javé. Baal era o deus da fertilidade, também chamado de Senhor da Chuva e do Orvalho; por outro lado, Javé não era Senhor de nada em particular e, ao mesmo tempo, era Senhor de tudo; ele era a fonte de todo poder natural, sem, contudo, exercer poder administrativo sobre a natureza em seus detalhes.
Importa enfatizar que o Javé da época de Elias, embora fosse sumamente poderoso e “transcendente” num sentido moderno, era desprovido do que poderíamos chamar de sensibilidade moral. Por exemplo, ele não era muito tolerante com perspectivas teológicas divergentes. No episódio do primeiro livro dos Reis, Deus usa sua “voz silenciosa” para instruir Elias sobre como aniquilar os adoradores de Baal da vizinhança.
Quando alguns assírios duvidaram do poder de Javé,  foi o próprio Javé que se encarregou de matar 127.000 assírios. A primeira questão importante que precisa ser contemplada, se quisermos saber se a violência tem algo a ver com o caráter do deus abraâmico, é investigar como se formou o caráter desse deus.
Cristãos, muçulmanos e judeus falam de seu deus como aquele que, de acordo com a Bíblia, se revelou a Abraão no segundo milênio AEC. Essas três religiões abraâmicas totalizam mais de 3 bilhões de fiéis e, embora essas três religiões monoteístas declarem a mesma linhagem para seu deus, nem sempre seus seguidores se veem adorando o mesmo deus. Nas palavras de Wright (ibid., p. 125): “Essa percepção parece ter estimulado certa quantidade de violência Javé x Javé (as Cruzadas, Jihads, etc.) que apenas reforçou a reputação de intolerância beligerante do monoteísmo abraâmico”.
Pode parecer surpreendente para aqueles que consolidaram sua fé em Deus através do catecismo o fato de que uma leitura atenta da Bíblia hebraica (O Antigo Testamento) revela um deus cujo caráter muda radicalmente do começo ao fim. A Bíblia se apresenta como um conjunto de livros obscuro para um leitor que tenha pouca ou nenhuma instrumentalização em estudos exegéticos, e isso por várias razões que não precisam ser enumeradas aqui. Mas há que mencionar uma dificuldade imediata enfrentada por todo leitor comum da Bíblia, quando se debruça sobre ela a fim de acompanhar o desdobramento da história da formação da ideia de Deus. Essa história não se lhe apresenta numa sequência narrativa coerente e a razão disso é que a Bíblia hebraica foi tomando corpo lentamente, ao longo de muitos séculos, e a ordem em que os seus livros foram escritos não corresponde à ordem em que eles foram muito posteriormente organizados para a constituição do cânone. Assim, por exemplo, o primeiro livro do Gênesis foi escrito depois do segundo livro, por um autor diferente. Os duplos relatos e as contradições em torno da figura de Abraaão foram explicados pela exegese bíblica, no século XIX, com a chamada “teoria documental clássica”, proposta pelo consagrado exegeta e orientalista alemão Julius Welhausen (1844-1918). A história contada no Gênesis, assim como outras do Pentateuco, resulta da combinação de documentos originários de duas fontes redacionais distintas do Antigo Testamento: a J (Javista), originária de Judá (ao sul), a E (Eloísta), originária do norte, mais próxima do centro de adoração de El. Assim, os relatos duplos e as contradições foram reconhecidos como originários dessas diferentes fontes.
Hoje, temos à disposição três grandes contribuições que nos permitem saber com segurança a exata ordem de composição dos livros que viriam a integrar o que conhecemos como Bíblia. A primeira contribuição nos vem dos estudos de interpretação bíblica calcados sobre o método histórico-crítico que funciona como uma espécie de decodificador das condições históricas de produção dos textos a fim de determinar o que eles significavam nessas circunstâncias históricas em que foram produzidos, ainda que a empresa seja dificultada pelo fato de os estudiosos não disporem dos textos originais (mas de cópias de cópias...). A segunda contribuição é dada pela arqueologia que tornou possível uma compreensão maior e mais consistente da história de Israel e do mundo bíblico. A terceira contribuição reside na descoberta de antigos textos ugaríticos (provenientes da cidade cananeia de Ugarit), os quais contam a história do ponto de vista dos adoradores do deus Baal. Assim, quando reunimos essas três contribuições, é possível construir um retrato totalmente novo do deus hebraico.
De fato, no primeiro milênio AEC, quando a maior parte – senão a totalidade – do Gênesis foi produzida, Deus é descrito como alguém que “plantou” o Jardim do Éden e fez vestes para Adão e Eva, os vestindo. Depois que Eva e Adão comeram do fruto proibido, eles decidiram se esconder – uma tática, aliás, bastante ingênua diante de um Deus onisciente, mas, àquela altura, Deus ainda não tinha o atributo da onisciência, já que procurava por Adão, preguntando “Onde estás?” (Gn 3: 9). Causa estranheza que o Deus que criou o universo tenha sua capacidade limitada. Mas não está claro se o Deus que “passeava” no Jardim do Éden era o mesmo Deus que criou o universo. Sim, de fato, o relato da criação está lá, no primeiro capítulo do Gênesis; mas o que a maioria dos leitores comuns da Bíblia ignora é que o relato da criação muito provavelmente foi um acréscimo posterior. Javé não se apresenta inicialmente como um criador cósmico.
Quando nos voltamos para os poemas, que a maioria dos estudiosos considera os textos mais antigos da Bíblia, encontramos um Deus interessado em destruir. Não se fala aí num deus criador, mas num deus guerreiro.  Êxodo 15, texto que alguns estudiosos consideram o mais antigo da Bíblia, é uma ode a Javé por ter afogado o exército egípcio no mar Vermelho: “Cantarei ao SENHOR, porque realmente triunfou, lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro” (Ex 15: 1). Javé não era ainda o administrador do universo. E, se perguntarmos quem então estava encarregado de administrá-lo, a resposta certa é: os outros deuses. Naquele momento, Israel estava imersa num contexto politeísta; os próprios israelitas adoravam outros deuses além de Javé. A história bíblica pode ser resumida da seguinte forma: os israelitas adoravam outros deuses, Javé os punia; os israelitas se corrigiam, porém não tardavam em se desviar novamente; Javé os punia, e assim por diante. Mas a adoração a outros deuses pelos israelitas não é propriamente a questão importante; o que é importante é o reconhecimento de que os israelitas acreditavam na existência de outros deuses além de Javé. Em Êxodo 15, no antigo cântico a Javé “guerreiro”, encontramos a pergunta: “Quem entre os deuses é semelhante a vós, Senhor?”. Do simples fato de as Escrituras advertirem os israelitas de que não deviam servir a outros deuses segue-se que esses deuses eram considerados existentes. Javé seria um deus ciumento caso não existissem deuses dos quais pudesse sentir ciúmes? Um exame atento da Bíblia hebraica encaminha a conclusão de que o próprio Deus não era ainda monoteísta no começo. Mesmo a famosa passagem “Não terás outros deuses além de mim”, que se topa em Êxodo 20: 3, não elide a existência de outros deuses. Portanto, não resta dúvida de que a religião israelita, antes de assumir sua forma monoteísta, ou seja, antes de negar a existência de quaisquer outros deuses exceto Javé, reconhecia, durante muito tempo, a existência deles, muito embora condenasse a adoração deles pelos israelitas. Assim, a religião israelita só atingiu o monoteísmo após passar por uma fase de monolatria – devoção exclusiva a um deus, sem negar a existência de outros deuses. A maioria dos estudiosos, entre eles judeus e cristãos, concorda nesse ponto. O que acarreta mais controvérsia, contudo, é a admissão de que Javé não começou como um deus soberano, mas como um integrante de uma assembleia divina, “operando ao lado de outros deuses” (ibid., p. 130). O fato é que uma leitura atenta da Bíblia mostra-nos que ela fala realmente em uma “assembleia divina”. O Salmo 82:1 diz que “É Deus quem preside a assembleia divina...”. No versículo 6, Deus se dirige aos demais membros da assembleia com um “Vós sois deuses”.
Não há dúvida quanto ao caráter politeísta da antiga Israel, mas quando nos perguntamos como esse politeísmo plenamente desenvolvido era, devemos buscar respostas em outra fonte além da Bíblia, visto que “a história como contada na Bíblia foi, em alguns casos, obliterada pelos fatos no solo” (ibid., p. 131).

3.4.1. Javé e El: um mesmo deus ou dois deuses?

Na busca por desenterrar as raízes históricas da ideia de Deus, não podemos perder de vista o fato de que o monoteísmo israelita se desenvolveu após séculos de imersão na cultura cananeia. É possível deveras que Javé, que, na Bíblia, aparece ocupado na luta contra os deuses cananeus, tenha sido inicialmente um deus cananeu.
Quando, às vésperas do nascimento de Israel, na cidade de Ugarit, foram encontrados textos antigos que remontam ao fim da Idade do Bronze,  tornou-se possível conhecer mais sobre a religião israelita. Conta-se, nesses textos, que havia um conselho divino, cujo deus hierarquicamente superior era chamado El. El é muito semelhante a Javé: ambos eram muito poderosos. El era reconhecido como o “touro”, se bem que também chamado de “Amável El, o misericordioso”. Também Javé combina o traço guerreiro implacável com a compaixão. Ambos os deuses apareciam em sonhos; os dois foram deuses criadores paternalistas. El foi “o criador das criaturas” e “pai da humanidade”. Mas seriam Javé e El deuses diferentes? Veremos que há boas razões para responder “sim”.
Comecemos, pois, por elucidar o aspecto linguístico envolvido na questão. Segundo Wright (ibid., p. 136), “(...) se pesquisarmos a palavra “deus” em algumas partes da Bíblia, encontraremos não a palavra hebraica para Javé, mas sim a palavra hebraica El”. O El cananeu tem uso mais antigo que a palavra Javé, nome com que é conhecido o deus israelita. De fato, o El cananeu figura nos registros históricos antes do deus israelita Javé. Em vista disso, seríamos tentados a concluir que Javé surgiu de El. Quiçá, Javé seja uma versão linguística de El. Mas essa conclusão pode ser rechaçada quando consideramos o uso da palavra hebraica El. Essa palavra designa “deus” – tanto como um deus em geral quanto um deus específico. Mas o hebraico antigo dispensava a convenção maiúscula/ minúscula para a grafia das palavras. Portanto, não estamos autorizados a inferir de cada ocorrência da palavra El que ela esteja a designar o deus hebreu.
No entanto, há momentos na Bíblia em que a ocorrência da forma El se refere ao deus hebreu. Nesses casos, El lhe serve de nome próprio. No Gênesis, por exemplo, quando se diz que Jacó “erigiu um altar, que chamou de El-Deus de Israel”, a tradução adequada deve incluir a grafia El (com inicial maiúscula). A grafia com inicial minúscula tornaria o texto incoerente (o resultado seria “(...) que chamou divindade, a divindade de Israel”). Está mais próximo da verdade assumir que o primeiro “deus” (El) é um deus específico chamado El. Ele fora líder do panteão no norte de Canaã. Outra evidência do vínculo estreito entre a religião israelita e o El cananeu encontra-se na forma da palavra Isra-el. Nomes inspirados em deuses era, no mundo antigo, com frequência, terminados em “-el”, forma esta que se referia ao deus El.
Embora tenhamos até aqui buscado na Bíblia passagens que deem sustentação a uma compreensão do que realmente aconteceu, o que, decerto, aprendemos com os estudos bíblicos baseados no método histórico-crítico é que as histórias bíblicas em geral dizem mais da época em que foram criadas do que da época que alegam descrever.
Já mencionamos a Hipótese Documental de Wellhausen como uma tentativa de explicar as discrepâncias, as contradições na narrativa de vários livros do Pentateuco; mas silenciamos a respeito de sua outra função explicativa. Na medida em que a Hipótese Documental sugere que a produção dos livros recobertos pelo nome de Pentateuco tem origem em fontes redacionais diferentes, uma delas baseada na crença em Javé; e a outra, na crença em El, ela também sugere que, em algum momento da história, havia duas tradições religiosas distintas que, posteriormente, se reconciliaram: a tradição baseada na crença em Javé e a tradição baseada na crença em El. Ainda que essa hipótese não atraia hoje a mesma unanimidade que tinha em meados do século XX, é inegável que a Bíblia apresenta vários nomes para o deus de Israel. Se, de fato, houve uma fusão entre duas tradições religiosas calcadas na crença em deuses diferentes, tal acontecimento não seria nenhuma novidade; afinal, o mundo antigo é repleto de fusões teológicas politicamente convenientes. É certo que a Bíblia faz alusões à união de grupos antes separados. Israel é descrita no fim do segundo milênio AEC como uma confederação de doze tribos.
Como a Bíblia constitui um acervo de livros cuja produção, ao longo de séculos, se deu por meio de uma série de falsificações, reedições, acréscimos, supressões que explicam não só por que é tão árdua a tarefa de reconstruir a verdadeira história por trás das Escrituras, como também por que se encontram tantas inconsistências entre passagens de um mesmo livro ou entre livros, ela pode autorizar interpretações divergentes de uma interpretação calcada numa versão mais antiga do texto. É o que sucede com Deuteronômio 32, versículos 8 e 9, que transcrevemos abaixo:

Quando o Altíssimo deu às nações
a sua herança,
quando dividiu toda a humanidade,
estabeleceu fronteiras para os povos
de acordo com o número
dos filhos de Israel.
Pois o povo preferido do Senhor
é este povo,
Jacó é a herança que lhe coube.

O uso dos Manuscritos do Mar Morto e da Septuaginta tornou possível a reconstrução da versão original da passagem em que figura a expressão “filhos de Israel”. Para alguns estudiosos, essa expressão foi usada em substituição a “filhos de El”. A versão restaurada esclareceu o sentido de um trecho antes obscuro. El, chamado o Altíssimo, dividiu os povos do mundo em grupos étnicos e deu um grupo a cada um de seus filhos. A Javé, um de seus filhos, foi dado o povo de Jacó. Nesse ponto da história israelita, Javé não era ainda Deus, mas apenas um deus – um filho de Deus, um filho entre vários.
Se perguntarmos como foi possível que Javé passasse de um nível inferior para um nível superior no panteão, acabando por combinar-se com o deus principal El, a resposta deve ser buscada no âmbito de práticas que explica a ascensão divina no mundo antigo: o âmbito político. Uma explicação razoável para a ascensão de Javé é a mudança de poder na relação entre o norte e o sul de Israel, isto é, entre a região de El e a de Javé. O sul de Israel pode ter alcançado mais poder por volta do século VIII AEC. Foi só depois que se deu a consolidação desse poder que a Bíblia hebraica foi escrita. Como os escribas provenientes do sul eram adeptos da fé em Javé, eles não hesitaram em ampliar o poder deste, reduzindo gradativamente até a supressão total o poder da perspectiva do norte, baseada em El. Trata-se – eu enfatizo – de uma explicação razoável, mas não significa que ela seja consistente com o que realmente aconteceu. Como nota sobriamente Wright (ibid., p. 144), “talvez não haja reconstrução da história antiga de Israel que explique satisfatoriamente todas essas curiosas evidências, incluindo a descrição de Iavé como filho de Elyon na versão não adulterada do Deuteronômio 32 e a fusão de Iavé e El Shaddai, em Êxodo 6”. Segundo o autor, a resposta certa pode ser encontrada na investigação da história posterior de Israel, muito tempo depois de a confederação tribal ter-se consolidado e muito tempo depois de ela tornar-se um Estado pleno, com um rei.


Enquanto isso, qualquer que seja a verdade sobre a história antiga de Iavé, há uma coisa que podemos dizer com certeza: os editores e tradutores da Bíblia às vezes a tornaram obscura – talvez deliberadamente, em uma tentativa de ocultar as evidências do antigo politeísmo predominante. (ibid., p. 145).


3.4.2. Javé, um deus mitológico?

3.4.2.1. A relação “genética” entre Javé e Baal

Referências bíblicas a uma deusa chamada Aserá, que alguns estudiosos acreditam se tratar da versão hebraica para Athirat, suscitam a questão de uma possível vida sexual de Javé. Conquanto os autores bíblicos não declarem ser Aserá a esposa de Deus, arqueólogos, no fim do século XX, encontraram indícios de que Aserá possa ter sido esposa de Deus, em inscrições antigas datadas de aproximadamente 800 AEC em dois sítios diferentes no Oriente Médio. Nessas inscrições, figuram bênçãos em nome de Javé e de “sua Aserá”. Mas há uma questão mais interessante implicada na questão sobre uma possível vida sexual de Javé: teria sido Javé um deus mitológico em algum momento de seu desenvolvimento histórico? O aspecto mitológico de Javé – devo enfatizar – diz respeito a possíveis relacionamentos com seres extraordinários; a combates com outros deuses ou semideuses; à participação dele numa “novela sobrenatural”. De fato, tudo indica que Javé não rompeu claramente com o mito pagão. A história de Javé é muito mais evolucionária do que revolucionária. A árvore genealógica de Javé encerra muito mais do que uma fusão com o deus cananeu El. Javé também herdou as características da mais abominada divindade cananeia: Baal.
Baal era um deus profundamente vinculado ao mito. Ele lutou contra Yamm, o deus do mar e contra Mot, o deus da morte. Um texto ugarítico declara que Baal derrotou Lotan, um “dragão” de sete cabeças. A Bíblia, por sua vez, também homenageia Javé por ter esmagado “as cabeças de dragões”. A antiga palavra hebraica Livyaton (Leviatã, em português) é a mesma palavra usada para designar Lotan. Parece então que Javé não matou simplesmente dragões de várias cabeças, mas matou o mesmo dragão de várias cabeças suplantado por Baal. No Salmo 82, Javé aparece subjugando o mar, palavra grafada com inicial maiúscula em algumas traduções da Bíblia, porquanto Mar se refere a Yam, antiga palavra hebraica que servia para designar o deus do mar que Baal derrotou.
É importante lembrar que o hebraico antigo desconhecia as letras maiúsculas, de sorte que os tradutores podem escolher entre a grafia com inicial minúscula e a grafia com inicial maiúscula. Mas a opção não pode desconsiderar o que se sabe, por exemplo, sobre a mitologia cananeia. Uma tradução que opte por conservar a forma Mot, em vez de “morte”, está bem afinada com o fato de que, na mitologia cananeia, Mot era reconhecido por fazer as pessoas desaparecer no final de suas vidas, conduzindo-as ao Sheol – mundo inferior da vida após morte. Nessa versão que opte pela manutenção da forma Mot, Javé faria desaparecer Mot juntamente de Baal.
A Bíblia também alude à cólera de Javé contra os rios e o mar. Todavia, faz sentido um deus encolerizar-se contra entes inanimados, naturais? A cólera de Javé contra rios e mar faz mais sentido se essas palavras forem traduzidas como Nahar e Yamm, seres sobrenaturais contra os quais Baal lutou. O eminente estudioso bíblico Frank Moore argumenta que a submissão do mar por Javé é um eco distante de Baal dominando o Mar (Yamm) numa batalha. É Moore também que argumenta em favor de uma linhagem mítica da travessia do Mar Vermelho, cujas raízes repousam na mitologia de Baal. É claro que há uma diferença clara entre o episódio bíblico do Mar Vermelho e os acontecimentos míticos protagonizados por Baal: os mitos de Baal se dão no mundo sobrenatural; a história bíblica da travessia do Mar Vermelho, por outro lado, é fundamentalmente uma história humana. As ações envolvidas no episódio bíblico ocorrem no mundo habitado pelos seres humanos. As batalhas de Javé, ao contrário das de Baal, são circunscritas temporal e espacialmente.
Como minhas considerações sobre as raízes históricas da ideia de Deus não se pretendem exaustivas, muitos outros fatos deverão situar-se fora do escopo desta exposição. Isso não me impede, contudo, de reafirmar a validade da tese segundo a qual há uma conexão orgânica entre a religião israelita e as religiões pagãs que a antecederam. Mais ainda, as reflexões que vêm sendo elaboradas até aqui visam a demonstrar que os deuses mudam de natureza e se combinam com outros deuses. Dessa mudança e combinação resulta uma mudança considerável nas visões teológicas. O que aconteceu com deuses como Aton, que fez sua emergência num contexto politeísta e ascendeu ao posto de deus único e verdadeiro, sucedeu também com o Deus hebraico. Javé não só herdou muitas das características de El, como também se desenvolveu a partir de uma linhagem que remonta a Baal. É certo que as linhas de descendência, quando se trata de deuses, não são claras, mas a obscuridade da linhagem se deve ao fato de deuses serem produto da evolução cultural e não da evolução biológica. Por mais difícil que seja explicar como Baal, que é representado na Bíblia como rival de Javé, pode ter “transferido” suas características principais para Javé, é sempre bom lembrar que, na competição cultural, a competição enseja, muitas vezes, as assimilações, as convergências.
Por fim, gostaria de dar a saber uma síntese do caráter evolucionário de Javé, referindo um excerto de Wright. A leitura deste trecho se faz tanto mais inteligível quanto mais convencidos estejamos de que deuses são produtos históricos e de que o Deus judaico-cristão é igualmente uma produção histórica da imaginação humana. Um exame cuidadoso da História da constituição dos textos bíblicos combinado com as descobertas arqueológicas contribuem decisivamente para o desilusionamento da consciência religiosa, erodindo todas as alegadas razões teológico-filosóficas pelas quais o Deus judaico-cristão é, no mundo ocidental, assumido como o Deus verdadeiramente existente. Todas as evidências históricas disponíveis apoiam a visão segundo a qual deuses são, num sentido comum do termo, hipóstases, ou seja, entidades fictícias falsamente consideradas como uma realidade existente fora do pensamento. Na hipóstase, se dá a transformação de um mero conceito numa coisa em si, num ente, por meio de um processo chamado de reificação. A reificação, num sentido psicanalítico, designa a transformação de uma representação mental (p.ex, deus) em uma coisa, em um ente, ao qual é atribuído uma realidade autônoma e objetiva, ou seja, uma realidade fora do pensamento.

É claro, a ordem na qual os livros bíblicos (e capítulos e versículos) da Bíblia aparecem não é a ordem na qual foram escritos. Mas mesmo que olhemos o texto na ordem de sua autoria, veremos uma tendência (pelo menos, se usarmos a perspectiva predominante, embora não inquestionável, de datação dos textos). As antigas escrituras oferecem um deus participativo, antropomórfico, que caminha pelo jardim, convoca pessoas, lhes faz roupas, gentilmente conclui uma arca antes de desencadear uma inundação devastadora, e afoga egípcios assoprando sob o mar (através de seu nariz). Esse deus respira “o agradável odor” dos sacrifícios ofertados sob o fogo. Nas escrituras posteriores, vemos menos Deus em pessoa e começamos a ver um deus incorpóreo. O quarto capítulo do Deuteronômio, aparentemente um produto de meados do primeiro milênio, destaca que mesmo quando Deus falou para o seu povo, “nenhuma forma víeis” (e, por essa razão, seria um erro adorar ídolos e fabricar “para vós uma imagem esculpida representado o que quer que seja”). (ib.id., p. 156).


Consoante ensina Wright, dificilmente, encontra-se harmonia na transformação de um deus participativo e antropomórfico em um deus menos imiscuído nos assuntos humanos e mais abstrato. A segunda metade do primeiro milênio conheceu uma irrupção de textos apocalípticos, repletos de imagística mitológica. Já o livro de Daniel representa Deus como pessoa.Entretanto – adverte Wright - , no conjunto, parece haver uma tendência: o movimento, durante o primeiro milênio AEC, de afastamento de um politeísmo antropomórfico para um monoteísmo abstrato”. (ibid.).
Quando consideramos a referida tendência, ou seja, esse movimento errático que leva a representação dos deuses de um politeísmo antropomórfico para um monoteísmo abstrato; quando, enfim, consideramos a conversão de uma concepção de deus em outra, somos praticamente forçados, por exigências racionais, a aderir à conclusão de que a história do deus abraâmico está vinculada à história de religiões pagãs anteriores. A religião israelita antiga se desenvolveu a partir de religiões pagãs, tal como estas se desenvolveram a partir de outras. O Deus monoteísta dos judeus, muçulmanos e cristãos – o Deus transcendente, onipotente e onisciente, identificados pelos filósofos cristãos com o Ser mesmo – se desenvolveu a partir dos deuses de outras religiões com as quais os israelitas estavam em contato num mundo histórico profundamente politeísta.
Que forças sócio-históricas conduziram Israel ao monoteísmo será assunto para outro texto; mas cabem ainda algumas considerações sobre uma fase transitória entre o politeísmo e o monoteísmo – a monolatria. Na próxima e última seção deste estudo, buscarei destacar as condições sociopolíticas que conduziriam Israel a adesão à monolatria. Escusa dizer que não contemplarei todas as condições sociopolíticas e econômicas que ensejaram o desenvolvimento de uma visão teológica monolátrica. Minha análise estará limitada ao contexto sócio-histórico em que viveu e pregou o profeta Oseias.


3.4.2. A emergência da monolatria israelita

Vale lembrar que há duas perspectivas básicas à luz das quais se explicam as mudanças religiosas: 1) uma que enfatiza o poder das ideias e sua influência sobre as condições materiais da existência; 2) outra que enfatiza a influência das condições materiais na adoção e transformação das ideias.
A Bíblia afina-se com a perspectiva de número 1). Destarte, o texto bíblico sugere a interpretação segundo a qual Elias e seus seguidores, buscando defender a verdade divina, opuseram-se à adoração a Baal e, consequentemente, tornaram-se inimigos de todos aqueles que apoiassem a devoção a esse deus. Num sentido contrário, o ponto de vista por mim assumido, sendo consonante com o método da materialidade histórica da ideia de Deus, consiste em explicar as mudanças na concepção de Deus com base no exame das circunstâncias sociopolítico-econômicas. Uma vez que deuses são ideias historicamente constituídas, as representações que os homens fazem deles, as formas como eles são definidos, pensados, as maneiras como os homens se relacionam com eles são determinadas por condições sociais, políticas e econômicas concretas.
A primeira evidência de que o movimento em favor da fé exclusiva em Javé ganharia força e carrearia a adesão cada vez maior dos israelitas remete ao século VII AEC – tempo em que viveu e pregou o profeta Oseias. Os relatos da vida e da atividade profética de Oseias sofreram alterações posteriores, mas muitos estudiosos estão convencidos de que o essencial da mensagem do profeta se consolidou pouco tempo depois de sua morte.
O livro de Oseias expressa certa tendência teológica que reflete o pensamento israelita do final do século VII AEC. Oseias não era ainda um monoteísta, visto que nunca negou a existência dos outros deuses. Também não se opôs à adoração desses deuses pelos estrangeiros. Mas ele insistiu em que os israelitas deveriam ser fieis apenas a Javé. Pode-se dizer que Oseias foi a primeira figura influente de uma monolatria que despontava em Israel. Mas suas motivações refletem a relação, comum no mundo antigo em geral, entre teologia e geopolítica. Trata-se aqui de um aspecto importante em nossa argumentação: a pregação de Oseias em favor da necessidade de que os israelitas se voltassem exclusivamente para a adoração de Javé deixa entrever uma conexão muito comum entre teologia e geopolítica.
Oseias menciona, várias vezes, duas grandes potências político-econômicas – a Assíria e o Egito. Ele não se agrada da aliança com qualquer uma dessas potências. Para Oseias, Efraim, o reino do norte, onde ele vivia, não deveria fazer aliança com a Assíria, já que ela “não nos salvará”; tampouco deve manter negócios com os líderes egípcios, que se valem desses negócios para escarnecer do povo de Israel. Como Israel era um pequeno Estado situado entre duas grandes potências, fazer aliança significava admitir a submissão ao poder hegemônico que elas representavam. No entanto, esse não era o único problema para Oseias. Ele era hostil aos estrangeiros em geral. Não admitia que Efraim se misturasse com outros povos. Ao contrário do que pensavam Acab, Salomão e outros reis que adotaram uma política externa internacionalista, Oseias não acreditava que as alianças com estrangeiros tornariam Israel mais rico. Oseias via Israel cada vez mais pobre, e a pobreza de seu povo só se acentuava com a submissão de Israel às potências internacionais. Ora, para esse profeta feroz, se nenhuma nação se preocupa com os interesses de Israel, então nenhum deus de outras nações merece adoração ou respeito. Oseias expressa, portanto, um isolacionismo político e religioso que o identificava cada vez mais com uma visão de mundo monolátrica.
O tom anti-internacionalista dos livros proféticos não causa surpresa. Muitos estudiosos, há tempo, chamaram a atenção para essa característica marcante desses livros. Mas não se segue daí que todos os estudiosos concordem na admissão de que as forças políticas e econômicas é que determinam a visão teológica. Ora, por que não poderia ser o caso de a monolatria de Oseias constituir a causa de sua aversão ao internacionalismo? Wright pensa que talvez não importe muito determinar em que direção segue o processo; o que mais importa, segundo o autor, é entender por que a mensagem de Oseias se popularizou, por que ela alcançou tamanha ressonância. No que toca a saber se são as condições político-econômicas que determinam a monolatria de Oseias ou se é a sua visão teológica que leva à aversão ao internacionalismo, quiçá seja lícito admitir uma influência mútua entre a visão teológica e as condições político-econômicas. Assim, as duas formas de interpretação não precisam ser excludentes entre si, muito embora eu seja inclinado a acolher o ponto de vista segundo o qual não é possível compreender satisfatoriamente por que uma ideia ou visão teológica se desenvolveu e se consolidou sem considerar a influência das condições sociopolíticas e econômicas concretas. São essas condições que, ao menos, favorecem a disseminação do desprezo de Oseias pelo culto de deuses estrangeiros. Embora eu não assuma a visão marxista da determinação unidirecional da superestrutura pela infraestrutura, ou seja, embora eu não assuma a tese de que, em qualquer caso observado, são sempre as condições materiais de existência que determinam as produções espirituais, e nunca o contrário, o que eu defendo é que não se pode compreender como foi possível que a crença na existência do Deus pessoal  monoteísta tornasse hegemônica no Ocidente, sem lançarmos olhares sobre as condições sócio-históricas concretas nas quais a ideia desse Deus foi gestada e propagada até atingir o estágio de universalização com o cristianismo. O estudo das condições sócio-históricas que levaram à formação da ideia de Deus torna a própria fé uma atitude historicamente determinada, um acontecimento histórico, e não um dom (sobre) natural ou uma graça divina herdada pelo homem à semelhança de uma disposição ou vocação naturais.
Passo, então, antes de terminar, a examinar em que medida as condições político-econômicas; em uma palavra, as condições sócio-históricas, são decisivas na formação de uma visão teológica monolátrica na atividade profética de Oseias.
Devemos ter em conta o fato de que a carreira de Oseias se iniciou durante os anos derradeiros do reinado de Jeroboão II. Os anos finais de seu reinado foram os anos de um século marcado pela estabilidade e prosperidade econômicas e pelo renascimento político de Israel ao norte. Em pouco tempo, após a morte do rei Jeroboão II, em 747 AEC, as relações internacionais de Israel entraram em declínio. O período de declínio se estendeu por 25 anos. O que resultou daí foi a percepção de que Israel não se beneficiava mais com as relações com as nações estrangeiras.
Israel se viu forçada a pagar tributos a Assíria. Conquanto Israel tenha buscado apoio em alianças contra a Assíria, o poder assírio estendeu seu domínio por todo o território israelita, arrasando todas as suas grandes cidades. Somente a capital Samaria permaneceu sob o controle de Israel. Para não desaparecer completamente, Israel continuou a pagar tributos a Assíria, mas apenas pelo tempo suficiente para que alimentasse a esperança de contar com o apoio egípcio. A expectativa desse apoio levou Israel a suspender o pagamento dos tributos. Esperança frustrada, a Assíria ocupou a Samaria e subjugou a cidade em 722 AEC. Grande parte da população de Samaria foi deportada. E assim chegava ao fim o reino de Israel ao norte. Sobrara apenas o reino do sul como detentor do legado israelita. À época da destruição do reino do norte, a política externa isolacionista de Oseias, combinada com seu correlato teológico, a saber, com sua aversão aos deuses estrangeiros, encontrou eco suficiente para que suas ideias fossem levadas para Judá – provavelmente, por força da fuga de seus partidários em face do ataque assírio.
Com o ataque assírio ao reino do norte e a subsequente queda desse reino, não surpreende que as relações exteriores não tenham sido prósperas no reino do sul. Judá também teve de enfrentar a violência avassaladora dos assírios. Nas duas décadas seguintes, as tentativas de defesa em face da ferocidade assíria não lograram sucesso. Judá ainda chegou a rebelar-se contra a Assíria, mas a consequência imediata foi a queda do reino ao sul, cujo rei viu-se preso numa Jerusalém sitiada. Jerusalém teve de submeter-se ao poder assírio, cedendo seus ouros e tesouros.
Embora Judá tenha, nos anos seguintes, experimentado sucesso em suas alianças, a sua posição geopolítica de um pequeno Estado que tinha de lidar com uma agressiva superpotência mesopotâmica (primeiro a Assíria, depois o Império Caldeu, ou Neobabilônico) não se alterou. Judá permaneceu, por muito tempo, tendo não só de mobilizar esforços, infrutíferos porém, na contínua resistência à superpotência dominante, mas também de aceitar a humilhante submissão a ela. Não surpreende, portanto, que o principal fator que estimulava o respeito aos deuses estrangeiros, a saber, as relações internacionais proveitosas, não pudessem mais justificá-lo. Não havendo mais relações internacionais favoráveis, por que razão Israel se sentiria obrigada a respeitar os deuses estrangeiros? Tão importante quanto a política externa na emergência da monolatria foi a influência da política interna. Mas esse tema deverá ser objeto de reflexão noutra oportunidade.


Conclusão

A perspectiva ateísta à luz da qual este texto foi escrito calca-se sobre o pressuposto de que quanto mais vasto e profundo for o conhecimento sobre as condições sócio-históricas da formação da ideia do Deus das três maiores religiões monoteístas do mundo tanto mais enfraquecida se torna a fé teísta e tanto mais insustentáveis são as alegações do monoteísmo. Creio que uma das frentes de análise da fé teísta que pode abrir caminho para a descrença é a que consiste em investigar como a ideia de Deus foi gestada e como se desenvolveu historicamente. Deuses têm uma história, e isso significa dizer que são construções sociocognitivas, culturais e humanas. Essa é a tese principal que este texto procurou sustentar.




Obras consultadas

CORETH, Emerich. Deus no pensamento filosófico. São Paulo: Loyola, 2009.

GILSON, Etienne; PHILOTHEUS, Boehner. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

KUNG, Hans. Freud e a questão da religião. Campinas, SP: Verus Editora, 2010.

WRIGHT, Robert. A evolução de Deus. Rio de Janeiro: Record, 2012.



[1] Em vários outros textos, considerei a importância das condições sócio-históricas para a formação e desenvolvimento da ideia de Deus. Este texto também é dedicado à consideração dessas condições na formação e desenvolvimento da ideia de Deus.