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quinta-feira, 3 de maio de 2012

"Há tanta vida lá fora, aqui dentro sempre como uma onda no mar" (Lulu Santos




                                          

                                             As ondas da vida


Intento oferecer à leitura uma reflexão sobre dois textos: um dos quais é a canção Como uma onda, cantada por Lulu Santos – canção ouvida por muitas pessoas, mas, talvez, não muito bem compreendida. O outro texto sobre o qual me debruçarei é um poema-pílula de Paulo Leminski. 

Como uma onda

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo
Não adianta fugir
Nem mentir
Pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre

Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar

Antes de me ocupar na interpretação dessa canção, convém considerar, em linhas gerais, a contribuição filosófica de Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, a quem se atribuiu a alcunha de “Obscuro”, em virtude de ter escrito um livro de estilo difuso. Negou-se a participar da política, desprezava a plebe, poetas, filósofos e religião. Viveu entre 540 a.C. e 470 a.C. Era um homem muito orgulhoso e cheio de desprezo pelos outros.
Tornou-se um misantropo, passando a viver nas montanhas, onde se alimentava de plantas e ervas. Hipócrita, ridicularizava o conhecimento dos médicos e dos físicos. No tocante às circunstâncias de sua morte, Diógenes Laércio nos conta que Heráclito, depois que médicos lhe disseram, em resposta a uma questão que ele lhes fizera, que era impossível esvaziar-lhe o ventre e extrair a água, deitou-se ao sol e pediu aos seus criados que lhe revestissem todo o corpo com esterco; no dia seguinte, faleceu e, não podendo ser retirado de sob o esterco, já em putrefação, foi devorado pelos cães.
Consideremos, doravante, sua filosofia, que, decerto, é mais interessante. Heráclito sustentava a idéia de que tudo é movimento e que nada permanece estático. Dizia que tudo flui, tudo se move. Ilustrava esse princípio com o seguinte exemplo: não podemos entrar duas vezes num mesmo rio, porque, na segunda vez em que entramos, já não será mais o mesmo rio, tampouco seremos a mesma pessoa que entrou na primeira vez.
O princípio defendido por Heráclito se articula a uma doutrina que considera o devir a base da realidade (o mobilismo). O que sucede com todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam; coisas frias esquentam; coisas secas umedecem, etc. A realidade é a mudança; é a guerra dos opostos. A guerra, a que se referia o filósofo, não se confunde com uma prática de violência; é a condição mesma para a harmonia e a paz. Como pensasse a realidade de modo dialético, afirmava que a doença é que faz da saúde algo bom e agradável; se não existisse a doença, dizia, não haveria por que valorizar a saúde. Fique claro, portanto, a relação recíproca entre os contrários, de modo que a existência de um deles justifica a existência do outro.
O filósofo entendia que os opostos coincidiam como o meio e o fim, em um círculo. Assim é que, por exemplo, a descida e a subida coincidem num caminho, já que o mesmo caminho é para descida e para subida. O frio, assim, é o mesmo que o quente, pois o frio é o quente quando muda; e o quente, o frio depois de mudar. Logo, frio e quente são dois aspectos de uma mesma coisa.
Heráclito buscou estabelecer um princípio que gerava todas as coisas; considerou-o o fogo. Para ele, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas. O cosmos é um só e se origina do fogo, e pelo fogo é consumido, em determinados períodos, que se repetem pela eternidade.
Em seu livro Do céu, Aristóteles escreve:

“Concordam todos em que o mundo foi gerado; mas, uma vez gerado, alguns afirmam que é eterno e outros que é perecível, como qualquer outra coisa que por natureza se forma. Outros, ainda, que, destruindo-se, alternadamente é ora assim, ora de outro modo, como Empédocles e Heráclito de Éfeso. (...) Também Heráclito assevera que o universo ora se incendeia, ora de novo se compõe do fogo, segundo determinados períodos de tempo, na passagem em que diz – Acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.”

Segundo Heráclito, uma vez condensado, o fogo se umidifica, transformando-se em água. Esta, por sua vez, solidificando-se, transforma-se em terra, e disso resultam todas as coisas do mundo. A água torna-se vapor, e este, rarefeito, transforma-se em fogo. Claro está, pois, o movimento ininterrupto que tece a realidade.
A filosofia de Heráclito não se resolve nestas rasas palavras, é claro. Para fins de reflexão sobre a canção supra-apresentada, bastam as considerações feitas. Gostaria, antes, de fazer ver ao leitor que a concepção de real de Heráclito como conflito entre os opostos pode ser contemplada também numa canção de Lulu Santos, chamada Certas coisas. Eis a primeira estrofe:

Não existiria som se não
Houvesse o silêncio
Não haveria luz se não
fosse a escuridão
A vida é mesmo assim
Dia e noite
Não e sim


A análise será feita de acordo com o princípio da transformação postulado pelo filósofo grego. Tendo-se em conta o conceito de movimento que rege todos os elementos do mundo, consideremos, de imediato, a reiteração da estrutura comparativa como uma onda no mar, que sugere o “ir e voltar” das ondas, o constante movimento de avanço e retração. Essa reiteração sugere a constância do movimento; de certo modo, o monótono, já que o eu-lírico compara seus estados de alma ao ir e tornar das ondas do mar.
As ondas são, num primeiro plano, símbolo do movimento. Dispensarei pormenores, sempre que o texto se nos apresentar auto-explicativo . Note-se que as idéias de Heráclito, especialmente a idéia fulcral, segundo a qual a realidade é transformação, mudança, encontram eco nos seguintes trechos da canção:

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo

Não há possibilidade, consoante o eu-lírico, de fugir ao movimento constante e ininterrupto da realidade. A estabilidade da alma contrasta com o eterno fluir do mundo, com o devir de todas as coisas. Cabe meditar um pouco sobre a oposição ‘interior e exterior’. O “lá fora” é o espaço de movimento, espaço onde a vida é encenada, onde flui como um rio, cuja água está sempre a encontrar a de outro rio, desembocando no mar, cujas ondas parecem representar o elemento estável, regulador do movimento. Assim, as ondas, ao retroceder, “devolvem” as águas, de modo a renovar o movimento.
No “aqui dentro”, que remete ao interior psíquico-emocional do eu-lírico, há uma constância, uma atonia, um movimento regular. Não há mudança, não há transformação nos estados emocionais do eu-lírico. A vida, a seu turno, é um eterno “vir a ser” regular: aos movimentos da vida subjaz um elemento estável que os engendra. E vale lembrar que Heráclito, embora enfatizasse o movimento, não negava a possibilidade de existir, uma realidade estável por detrás da mudança das coisas.

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo

Atentando para o excerto acima, valeria questionar se a diferença entre o que se viu num primeiro instante e o que se viu num instante posterior não é uma diferença de perspectiva. Então, se poderia dizer que as perspectivas também mudam, se movimentam. Ora, um mesmo objeto pode ser “visto”, percebido de modo diferente, segundo o “lugar” de onde o contemplamos, ou seja, segundo a perspectiva que adotamos. Duas ou mais pessoas não vão apresentar a mesma descrição de um objeto; suas descrições vão diferir num ou noutro aspecto, porquanto cada qual possui seu próprio acervo de conhecimentos e experiências de mundo. Portanto, vemos aquilo que nossa herança sócio-cultural, armazenada na memória em forma de conhecimento, nos permite enxergar. Não se conclua disso que as mudanças seriam “ilusões de ótica” ou variações impostas pela percepção. Claro é que existem movimentos verificáveis a olho nu, tais como o desenvolvimento de um ser humano, por exemplo. O crescimento é um tipo de movimento.  O que deve ficar claro, contudo, é que a percepção é uma função cerebral pela qual atribuímos significado a estímulos sensoriais e, desse modo, um indivíduo organiza e interpreta as impressões sensoriais, mediante a percepção. Ao observarmos um ônibus em movimento, podemos questionar se o que está em movimento é  somente o ônibus ou o ônibus e os passageiros, segundo a perspectiva adotada (veja-se o princípio de inércia).
Volvendo ao fragmento supramencionado, certo é que a tese segundo a qual a realidade é constitutiva da transformação de elementos contraditórios constitui a base sobre a qual se erige a arquitetura verbal de toda a canção. Pode-se dizer que a “voz” de Heráclito ressoa no texto (polifonia).
Não suponho que minha reflexão tenha dado conta da significação da canção; há sempre sentidos que escapam à leitura, porque há muitas leituras e cada qual delas deve contentar-se com a idéia de que o sentido pode ser outro. Agora, lanço olhares sobre o poema de Leminski, transcrito abaixo.

Esta vida é uma viagem
Pena eu estar
 Só de passaporte.
(Melhores Poemas, 1996:201)

As palavras “viagem” e “passaporte” remetem ambas à transitoriedade, à efemeridade, ao movimento da vida. Se a vida é uma viagem, conforme afirma o poeta, então valeria perguntar acerca do destino dessa viagem. A que lugar nos leva a vida? Qual é o seu destino? Em outras palavras, qual é o lugar final do movimento? Creio que o leitor se apressará em dizer que é a morte, que se define por ausência de movimento. De fato, a vida é um fluir em direção à morte. Ou não será a morte o ponto inicial e a vida uma viagem de retorno a uma essência que nos é encoberta?
O passaporte, a que se refere o poeta, é a própria condição do existir: uma vez que se nasce, ganha-se um passaporte. No entanto, quando se faz uma viagem, é necessário muito mais do que um passaporte, para que nossa viagem não seja uma experiência desagradável: precisamos de malas, onde colocamos roupas variadas, recursos de higiene (pastas de dente, sabonete, hidratante, etc.), entre outras coisas.
O que significa, pois, viver apenas com o passaporte? É não dispor de recursos que garantam nosso prazer, nossa tranqüilidade, nossa estabilidade, enfim, nossa própria sobrevivência. Não há receitas que nos prescrevam como é viver; não há subsídios para que saibamos experenciar os mais diversos movimentos da vida. Há movimentos incessantes entre duas pessoas que formam um casal; não obstante, desejam quase sempre buscar uma síntese, uma unidade na relação. Não há, contudo, regras que nos orientem nessa eterna busca, que nos ensinem a fruir o prazer das relações. O passaporte também evoca a ideia de 'passagem', 'transitoriedade'. Todos, nesta vida, estamos de passagem; nossa existência é transitória, tem começo e fim; vivemos o tempo que a vida nos permite viver. E ela joga dados com o acaso.
A Vida (com maiúscula, para referir-se à condição de existir que nos transcende, porque não escolhemos) é uma nau sem capitão, apenas tripulantes. Ao nascermos, embarcamos nessa nau, que se lança desnorteada ao mar da existência, balanceando segundo os movimentos de suas águas. Como não haja comandante no plano físico, apelamos a forças sobrenaturais, às quais delegamos a responsabilidade pelo rumo da nau. A nau, então, não mais singra ao acaso; impõe-se-lhe um fado, sobre o qual não temos domínio. Mas, note-se: isso é uma das formas de entender os movimentos da vida e de experienciá-los.
Na medida em que o poeta afirma só ter passaporte, diz-nos também, implicitamente, não ser o senhor de sua existência, não ter domínio sobre os seus movimentos. E, novamente, aqui, vale perguntar se a Vida é um movimento de retorno a uma condição elementar, original, a uma essência que nos é inatingível, senão pela suspensão dos movimentos, a saber, pela morte? Há que se entender, segundo a interpretação que proponho, duas formas de vida: a Vida, com maiúscula, que nos habita, que pulsa em nossas veias, derrama movimento a todos os órgãos do nosso corpo; a Vida que anima o mundo e todos os seres que dela participam; mas há também a vida, com minúscula, que constitui o microuniverso em que cada um de nós transita, no interior do qual gozamos de relativa liberdade; daí falarmos em "minha vida", "a vida dele", "a nossa vida". A vida de cada um de nós é um micromundo. Antes de viver a realidade do mundo, dela participarmos em maior ou menor medida, vivemos em nosso micromundo.
Uma filosofia que procura atrair adeptos, que se pretende séria deve suscitar questões, promover a reflexão, abrir perspectivas, incitar o debate, e não tão-só buscar explicações, respostas, verdades. Nesse sentido, a filosofia é a ginástica do pensamento.