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sábado, 11 de agosto de 2018

"Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significação" (Orlandi).






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Fundamentos teóricos para a  formação do leitor à luz da Análise do Discurso



1. Análise do Discurso e suas rupturas


Em primeiro lugar, o que se pretende, na confecção deste texto, é lançar luzes sobre as condições indispensáveis à abertura de um horizonte problematizador da leitura que permita um contínuo exercício crítico da posição de todos nós, leitores e estudiosos de textos filosóficos, no momento mesmo em que nos debruçamos sobre esses textos com vistas  a alcançar a compreensão. De resto, uma enunciação sobre o acontecimento sócio-histórico de produção da leitura está plenamente justificado, quando levamos em conta que não é possível filosofar sem produção de discursos e que todo o trato com a filosofia é caracterizado pela produção e compreensão de textos. No que diz respeito ao contexto pedagógico em que a lida com textos filosóficos é fundamental para a formação do estudante de filosofia, temos notado que ainda persiste a crença famigerada entre professores (com algumas exceções) de que existe um único sentido para o texto, que é justamente aquele pretendido pelo filósofo que o produziu. De acordo com essa crença, durante a leitura, caberia ao aluno apreender esse sentido a fim de que alcance uma compreensão verdadeira do texto. Essa crença ilusória na existência de um único sentido para um texto tem como correlata a crença num sentido “correto” ou “verdadeiro” para o texto, o que, filosoficamente falando, é totalmente inconsistente com os postulados teóricos da Análise do Discurso. Não só não há um único sentido para um texto como também não cabe falar em “sentido verdadeiro” como aquele sentido pretendido pelo autor do texto,  quer porque todo dizer é atravessado por sentidos outros, que remetem a outros tantos dizeres dos quais o autor do texto em questão sequer está consciente, quer porque não há uma relação termo-a-termo entre linguagem, pensamento e mundo. Não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo; o discurso não diz o mundo tal como ele é em si mesmo; mas constrói interativamente uma versão pública (mundo textual) do mundo.
Em segundo lugar, todas as elaborações teóricas que darei a conhecer aqui são indispensáveis à formação do leitor em geral. Espero que este texto seja, especialmente, proveitoso para os professores de português que, ao se ocuparem do ensino da leitura, sentem-se incomodados com a persistência com que o trabalho de leitura em sala de aula fracassa quando o consideramos como o estágio mais importante para a formação de um leitor crítico. Nossa hipótese para explicar esse fracasso calca-se no reconhecimento de que toda uma sorte de noções equivocadas e preconceitos, na medida em que ainda persistem no imaginário dos atores sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, acabam por tornar turvo e nebuloso o caminho que os conduziriam à clareza no tocante ao que significa ser um leitor efetivamente competente.
As considerações que aqui se seguirão se inscrevem e encontram ressonância teórica no contexto do que se convencionou chamar Análise do Discurso – termo, aliás, que, embora correntemente usado no singular, não deve mascarar o fato de que existem diversas Análises de Discurso, as quais, por sua vez, só tenham talvez em comum não só o interesse pelos modos de funcionamento do discurso, mas também uma característica epistemológica importante, a saber, a de ruptura. A ruptura - marca essencial da constituição da Análise do Discurso - se faz, basicamente, como um corte epistemológico relativamente a uma teoria científica, filosófica ou linguística. Pode-se dizer, em suma, que a Análise do Discurso formula uma teoria da leitura que se institui em ruptura com a análise de conteúdo, com a filologia (e a hermenêutica), com os modelos formalistas em linguagem (estruturalismo e gerativismo), com as sociologias da linguagem, com a psicologia, sobretudo em sua versão cognitivista (que implica uma concepção de sujeito uno e consciente e que ignora a intervenção do inconsciente na atividade humana, mormente nas atividades linguísticas) e com a pragmática, cujo principal problema é supor que o sentido é produto da atualização das intenções de um falante. Nesse tocante, ao contrário da Pragmática, a Análise do Discurso não se interessa pelo contexto enquanto cenários institucionalizados. Ela não está preocupada em dar realce às regras que governam as relações entre os participantes de uma atividade numa situação de interação verbal, nem se preocupa com os scripts a serem seguidos por eles a fim de que sejam bem-sucedidos interacionalmente. Sabe-se que a Pragmática mantém que os interlocutores conhecem e seguem regras convencionais que organizam as relações entre eles numa dada situação sócio-interacional. A Análise do Discurso, por outro lado, não se interessa por tais contextos, por tais regras que, supostamente, são conhecidas dos participantes de uma interação verbal. Ela está preocupada com aquilo que justamente escapa ao conhecimento dos sujeitos quando eles falam: o fato de que cada um enuncia a partir de posições que são historicamente constituídas (fala-se como deputado de um partido, de uma frente, de situação ou de oposição, e diz-se o que se deve e se pode dizer, nessa condição). Assim, para a Análise do Discurso, o que confere sentido ao que um enunciador diz não é o contexto imediato ou os implícitos de um enunciado, mas as posições ideológicas a que está submetido e as relações entre o que diz e o que já foi dito da mesma posição, considerando-se, em geral, que ela se opõe a uma que lhe seja contrária. O que é posto em destaque, portanto, é o que se repete, eventualmente durante décadas.
De fato, é a maneira como a Análise do Discurso conceberá e problematizará o sujeito que constitui o ponto fulcral da radicalidade da ruptura que ela estabelecerá com relação às disciplinas mencionadas.
A Análise do Discurso surge na França, pelos idos dos anos de 1960. Seu principal expoente e fundador é Michel Pêcheux. Como seja um campo de estudos transdisciplinar, a Análise do Discurso se constitui teoricamente em constante e produtivo diálogo com outros campos do saber, entre os quais se destacam a Linguística, a Filosofia, a História e a Psicanálise. Quando levamos em conta a constituição da Análise do Discurso como um domínio teórico polêmico, dialogicamente entrelaçado com o campo de estudos da linguagem, três macrocampos de saber se apresentam como partes formadoras do que podemos chamar de a “coluna vertebral” da Análise do Discurso: o materialismo histórico, entendido como teoria das formações e transformações sociais; a Linguística, tomada como a teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e a teoria do discurso, que se ocupa da determinação histórica da produção dos sentidos.  O materialismo histórico, que constitui o método de interpretação histórica do marxismo, afirma a não transparência da História. A Psicanálise afirma a não transparência do sujeito. Finalmente, a Linguística afirma a não transparência da língua. Assim, a Análise do Discurso trabalha com dois deslocamentos paralelos: o de sentido e da própria língua em sua relação com a História. A Análise do Discurso trabalha com três modos de opacidade: a do sujeito, a da língua e a da História. O sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo na articulação da língua com a História, na qual intervêm o imaginário e a ideologia.
Não cabe, no presente estudo, evidentemente, empreender um levantamento cuidadoso das consequências teórico-metológicas daquela série de rupturas que entram a fazer parte da dinâmica de formação da Análise do Discurso. O que pretendo é lançar alguma luz sobre o modo como a Análise do Discurso elabora uma teoria do discurso que problematiza tanto o lugar do autor quanto o lugar do leitor, ao mesmo tempo em que abre um novo campo de reflexões sobre a prática de leitura. Ao se instituir como campo de conhecimento em total ruptura com outras áreas epistêmicas que se ocupam da questão do texto e da leitura, a Análise do Discurso buscará definir os conceitos de texto, discurso, sujeito e autor, articulando-os a uma teoria da leitura/interpretação inegavelmente filiada ao trabalho da desconstrução.  Esses e outros conceitos serão discutidos ao longo desta minha exposição. Escusa dizer que o que se seguirá se alinha com a vertente francesa da Análise do Discurso.

2. A leitura na visão da Análise do Discurso

A Análise do Discurso toma o texto como unidade constitutiva da materialidade do discurso. O texto é enfocado em sua discursividade, isto é, enfocado tendo em vista o modo como ele, em seu funcionamento, produz sentido. A análise do discurso preocupa-se em compreender como o texto se constitui em discurso e como o discurso se produz em função das formações discursivas, as quais, por seu turno, se constituem em função da formação ideológica que as determina. Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas que as governam. A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
 O texto interessa à Análise do Discurso somente em função de ser uma parte de um arquivo (corpus). É sumamente importante ter em conta o seguinte: o texto não se confunde com o discurso. Enquanto o discurso é um acontecimento sócio-histórico, é um processo em aberto, o texto constitui uma superfície discursiva, uma manifestação aqui e agora de um processo discursivo específico. O texto é uma peça de linguagem, “uma peça que representa uma unidade significativa”. (Orlandi, 2007, p. 52). O texto é, para a Análise do Discurso, um objeto histórico, ou melhor, um objeto linguístico-histórico, de modo que todo texto é caracterizado por sua historicidade. Embora ele possa ser, para efeito de análise, considerado como um objeto com começo, meio e fim, não se pode perder de vista o fato de que todo texto tem relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários, com suas condições de produção, com sua exterioridade constitutiva (interdiscurso ou memória discursiva). O texto, portanto, não é o objeto final da explicação da Análise do Discurso; é tão só a unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. A ordem do discurso se materializa no texto. Segundo Orlandi (ibid., p. 60-61),



O texto é, para o analista do discurso, o lugar da relação com a representação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é também espaço significante.


Em suma, como peça de linguagem, como objeto simbólico, o texto é objeto de interpretação. Mas ele é um momento do processo de discursividade. Nem é o ponto de partida, nem é o ponto de chegada da análise. O discurso, por seu turno, não tem origem e não tem unidade definitiva. É sobre o discurso de que o analista se ocupará: ele estará interessado em examinar o processo discursivo, que é o que faz o texto significar. Um texto é uma peça de linguagem e, como tal, é uma peça de um processo discursivo muito mais abrangente; por isso, quando se chega ao processo discursivo, o texto particular analisado deixa de ser uma referência específica para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual o texto em análise e outros tantos desconhecidos são partes.
Mas o que é leitura à luz da Análise do Discurso? Resumidamente, podemos dizer que ela é um trabalho sócio-histórico que tem de levar em conta a incompletude da linguagem. Da noção de incompletude deduz-se duas outras: o implícito e a intertextualidade. Destarte, ler não é apenas levar em conta o que é dito, mas também, principalmente, o que está implícito, o que não está dito, mas está significando.
O leitor, assim, precisa compreender que o que não está dito pode estar sustentando o que está sendo dito; ele precisa ser capaz de apreender o suposto para entender o que está dito; ele precisa reconhecer aquilo a que o dito se opõe. Destarte, há relações de sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas relações de sentido evidenciam a intertextualidade.
Saber ler envolve a capacidade de perceber que os sentidos em um texto não estão necessariamente nele, mas resultam da relação desse texto com outros textos. Segundo Orlandi (2012, p. 13), “saber ler é saber o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente”. A leitura deve evidenciar o modo como um objeto simbólico produz sentidos. Isso implica a compreensão de que o sentido sempre pode ser outro. Portanto, ler não é atribuir sentido, muito embora o sujeito, em face de um objeto simbólico, seja sempre instado a interpretar, a “dar” sentido. Sucede, contudo, que, ao falar ou escrever, o sujeito atribui sentido às suas próprias palavras em condições sócio-históricas específicas. Um dos efeitos da ideologia é assegurar a crença de que o sentido já está dado nas palavras – e não na inscrição das palavras em formações discursivas. É a própria historicidade dos sentidos e as condições de sua produção que se apagam, fazendo desaparecer a exterioridade que os constitui.
O sentido é produzido na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O termo gesto de interpretação constitui um termo técnico cunhado pela linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi para designar o fato de que toda interpretação é um ato simbólico caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica, que delimita uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer. Acrescente-se que ideologia, nesse contexto teórico, não é ocultamento do real, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia é responsável pelo efeito de evidência do sentido. Por isso “(...) a evidência, em linguagem, é construção da ideologia. É a ideologia que passa por evidente aquilo que é objeto de interpretação: ou seja, só é assim, para aquele sujeito, naquela situação, com aquela memória, tomado pelos efeitos do imaginário que o convoca”. (ibid., p. 150).


2.1. Leitura e interpretação

Para a Análise do Discurso, interpretar não é atribuir sentido, mas expor-se, na lida com o texto, à opacidade da linguagem e do texto, ou melhor, é “explicitar o modo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido sempre pode ser outro” (Orlandi, 2007, p. 64). Ler é, portanto, saber que o sentido sempre pode ser outro. Não há sentido sem interpretação. E o sujeito é sempre sujeito da interpretação e sujeito (estar assujeitado) à interpretação.
Orlandi distingue, entretanto, entre leitura e interpretação. Para a autora, a interpretação é uma noção mais ampla. A leitura, por sua vez, é função da interpretação. Os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção do sujeito falante, já que, quando fala, o sujeito também interpreta. Para dizer, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a um saber discursivo (memória discursiva). Em vista do exposto, o objetivo do analista é determinar que gestos de interpretação estão constituindo os sentidos e os sujeitos em suas posições.




2.2. O sentido, a historicidade do texto e a exterioridade constitutiva

Os sentidos são produzidos na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O sentido de uma palavra ou expressão equivalente é efeito da substituibilidade das expressões cujo conjunto produz ou pode produzir um efeito de referência, isto é, pode produzir a identificação de objetos do mundo a partir de uma perspectiva que, no entanto, jamais é objetiva. O efeito de sentido nunca é o significado de uma palavra; mas o sentido de uma família de palavras que se relacionam entre si metaforicamente. O sentido é, portanto, função de uma dupla de significante/palavra em relação mútua de substituibilidade, mas apenas em cada discurso historicamente dado. Quando considerado no nível do enunciado, o sentido obedece ao mesmo princípio de substituibilidade: o sentido de um enunciado decorre de sua substituibilidade por enunciados equivalentes na mesma formação discursiva. As palavras não tem sentido em si mesmas; seus sentidos derivam das formações discursivas em que elas figuram. A produção de sentido está intimamente ligada à relação parafrástica entre sequências tais, que a família parafrástica dessas sequências constitui uma matriz do sentido. Assim, dado um enunciado como O Brasil precisa voltar a crescer, seu sentido está ligado à relação parafrástica que esse enunciado estabelece com outros equivalentes como O Brasil precisa voltar a gerar renda, O Brasil precisa voltar a gerar empregos, etc.
Creio estar suficientemente claro que, na Análise do Discurso, o discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Aqueles efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.


2.3. A história de leituras do leitor e a história de leituras do texto

Segundo Orlandi (2008, p. 42), “em geral, (...) há vários fenômenos de variação que podem estar contidos na afirmação de que a leitura tem uma história”. Ainda segundo a autora, “(...) há leituras previstas para um texto, embora essa previsão não seja absoluta, uma vez que sempre são possíveis novas leituras dele”. (ibid.). Orlandi refere-se a dois entre os elementos que podem determinar a previsibilidade das leituras de um texto:

1) Os sentidos têm a sua história, isto é, há sedimentação de sentidos, segundo as condições de produção da linguagem;

2) um texto tem relação com outros textos.


A consequência mais importante que se pode depreender de 1) é que as leituras já feitas de um texto “dirigem, isto é, podem alargar ou restringir a compreensão de texto de um dado leitor”. (ibid., p. 43). A previsibilidade da história da leitura é recoberta pelas leituras historicamente produzidas para um texto e repertório de leituras de sujeito-leitor sócio-historicamente situado.
Mas é também a história ou o contexto sócio-histórico que, se, por um lado, responde pela previsibilidade de sentidos, por outro lado, constitui o próprio horizonte de pluralidade de leituras possível. O histórico é marcado, portanto, por essa ambiguidade: “porque é histórico, muda, porque é histórico, permanece. (ibid., p. 46). Se há uma relação dinâmica entre as leituras previstas para um texto – domínio de relativa coerção sobre o leitor - e as novas leituras possíveis, como fixar o limite, inegavelmente difícil, entre “aquilo que o leitor não chegou a compreender, o mínimo que se espera que seja compreendido (limite mínimo) e aquilo que ele atribui indevidamente ao texto, ou seja, aquilo que já ultrapassa o que se pode compreender (limite máximo)”? (ibid.).
O que está em questão aqui é a determinação do limite entre uma leitura parafrástica, a saber, aquela que se caracteriza pela reprodução do sentido dado pelo autor e uma leitura polissêmica, a qual se define como produção de múltiplos sentidos para o texto. O critério adotado por Orlandi consiste “na observação da história” (ibid., p. 44), ou seja, na observação da relação da leitura com as suas histórias: a história de leituras do leitor e a história de leituras sedimentadas de um texto. Assim, “uma leitura não é possível e/ou razoável em si mas em relação as suas histórias”.(ibid.). A consequência teórica que se segue daí é, segundo Orlandi (ibid., p.45), a polissemia, “ou seja, [o fato] de ser próprio da natureza da linguagem a possibilidade da multiplicidade de sentidos”. 


2.4. O Sujeito em Análise do Discurso


Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito  constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da História. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Portanto, não há falante, nem locutor, nem emissor para a Análise do Discurso. Há sujeito, mas o sujeito é clivado, isto é, não é uno; o sujeito é assujeitado, isto é, não é livre e não está na origem do seu discurso. O sujeito são sujeitos na história. Não há sujeitos da história. Não há Sujeito Transcendental, não há Ego Cogito. Segundo Althusser, não há sujeito que seja livre e constituinte da história. Pêcheux dirá que os sujeitos acreditam que utilizam os discursos, quando, na verdade, são seus “servos”, assujeitados, seus “suportes”.
A Análise do Discurso – serei enfático – rompe com a concepção de sujeito uno, livre, caracterizado pela consciência, ou seja, sem inconsciente, sem ideologia. O sujeito não é a origem do que diz.
O assujeitamento do sujeito não é quantificável. Ele diz respeito à natureza da subjetividade, à qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva com o simbólico – se é sujeito pelo assujeitamento à língua, na história. Não se pode dizer senão na condição de ser afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Não há nem sentido nem sujeito, se não houver assujeitamento à língua. Para dizer, o sujeito submete-se à língua. Sem esse assujeitamento, ele não pode subjetivar-se. Portanto, com Althusser, devemos dizer que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Na interpelação do sujeito pela ideologia, critica-se a constituição do sujeito e do sentido. Não há sujeito como origem ou causa de si e o sentido literal é uma ilusão (a ilusão da literalidade).
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser). O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1oesquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
A linguagem é lugar do equívoco, isto é, o equívoco é a falha da linguagem na história. A possibilidade de falha é constitutiva da ordem simbólica. O equívoco é o fato de discurso, pois que o discurso é que articula entre si sujeito, língua e História. A ordem do discurso é resultado da articulação entre a ordem da língua, a ordem da história e seu funcionamento.
O que se chama de “equívoco”, em Análise do Discurso, não é um acontecimento da ordem do formulável, da ordem da relação entre as palavras e as coisas, mas equívoco enquanto constitutivo da relação entre o sujeito e o simbólico, ou seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente. Nesse sentido, o equívoco é que faz com que alguém que fale acredite separar aquilo que é sujeito à interpretação daquilo que não o é. Na verdade, há sempre interpretação. Reitero, pois: há sempre interpretação e faz parte da ilusão imaginária do sujeito crer-se como a origem do sentido, projetando-se sobre a literalidade e imaginando que só alguns sentidos são sujeitos à interpretação, enquanto outros seriam evidentes, literais.  Todo gesto de interpretação é um ato simbólico de intervenção no mundo (Orlandi, ibid., p. 84). É uma prática discursiva, linguística-histórica e ideológica.  Todos os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção de um sujeito falante. Sempre que fala, o sujeito também interpreta. Sempre que diz, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a uma memória discursiva. Em suma, a interpretação é o espaço do possível, da falha, do equívoco, do efeito metafórico, do trabalho da história, do significante, enfim, é trabalho do sujeito.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso: “o discurso não é um conjunto de textos, é uma prática. Para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de sua produção” (Orlandi, 2008, p. 55).
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.


2.4.1. As representações imaginárias

Quem enuncia A, tem de responder a perguntas implícitas como “quem sou eu para lhe falar assim?”, “quem é ele para eu lhe falar assim?”. Ao enunciar A, o enunciador constrói uma imagem de seu enunciatário, e este, por sua vez, constrói uma imagem do enunciador, e ambos constroem uma imagem daquilo sobre o qual falam. O quadro, no entanto, é mais complexo, porquanto o enunciador faz uma imagem da imagem que o enunciatário faz do próprio enunciador, e o enunciatário faz uma imagem da imagem que o enunciador faz do enunciatário. Essas imagens, para Pêcheux, devem ser tomadas como representações imaginárias, ou seja, os lugares do enunciador e do enunciatário tais como são representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. Se um professor, por exemplo, se dirige a seus alunos, não se deve considerá-los como indivíduos concretos, pessoas, mas como posições historicamente constituídas em sociedades em que essas funções se circunscrevem a certas regras e às quais se chega através de um conjunto de procedimentos. As representações imaginárias resultam de um processo social, ideológico, e não são simplesmente imagens que um locutor faz do outro.


2.5. As formas do silêncio, a incompletude e a opacidade da linguagem

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:

a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.
incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi



“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).


“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença. O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.

2.6. Ideologia

Desde já, deve-se frisar que a ideologia, no contexto teórico da Análise do Discurso, não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).
A ideologia funciona pelo equívoco e se estrutura sob o modo da contradição. Quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso a sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída. É que o sujeito é descentrado, disperso; o sujeito é uma posição-sujeito; muitos dizeres o atravessam, sem que ele tenha consciência disso. Quanto mais certezas acredita ter, menos possibilidade de falhas. A ideologia não afeta o sujeito no conteúdo; ela o afeta na estrutura pela qual o sujeito e o sentido funcionam. Isso significa dizer que a ideologia não é X, mas reside no mecanismo imaginário de produção de X, sendo X um objeto simbólico. Isso decorre do fato de que não há sentido se a língua não se inscrever na História. A ideologia não é, portanto, ocultação; ela é produção de evidências.
Pêcheux propõe uma teoria materialista dos processos discursivos, na qual se articulam três noções:

a) a de discursividade;
b) a de subjetividade;
c) a da descontinuidade ciência/ideologia.

Destarte, ele propõe: a) uma teoria do discurso como teoria da determinação histórica dos processos de significação; b) uma teoria não subjetivista da subjetividade/ c) uma teoria da prática política como prática de produção de conhecimento que reflita sobre as diferentes formas pelas quais a necessidade cega se torna necessidade pensada e modelada como necessidade.
Pela ideologia, afetado pelo simbólico, o indivíduo é interpelado em sujeito. É assim que podemos dizer que o sujeito é ao mesmo tempo despossuído e mestre do que diz. Uma teoria da materialidade do sentido deve mostrar que o sujeito se constitui afetado pelo simbólico na história. Essa constituição do sujeito pelo simbólico na história se dá sob o modo da ilusão que tem o sujeito de ser senhor de si e de seu dizer, de ser fonte de seu dizer. A relação do sujeito com a língua é parte de sua relação com o mundo. Essa relação é social e política. Por conseguinte, é o Estado com suas instituições e relações materializadas na formação social que lhe corresponde, que individualiza a forma-sujeito histórica e produz diferentes efeitos nos processos de individuação do sujeito na produção dos sentidos. É assim que o sujeito não é a unidade de origem, mas o resultado de um processo, um constructo, que tem no Estado sua instância produtora. Consoante ensina Orlandi (2012, p. 107),

Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, em um processo simbólico, o indivíduo, agora enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individualizada concreta: no caso do capitalismo, que é o caso presente, a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito jurídico (sujeito de direitos e deveres), frente ao Estado e aos outros homens. Nesse passo, resta pouco visível sua constituição pelo simbólico, pela ideologia. Temos o sujeito individualizado, caracterizado pelo percurso bio-psico-social. O que fica de fora quando se pensa só o sujeito, já individualizado, é justamente o simbólico, o histórico, o ideológico que torna possível a interpelação do indivíduo em sujeito.



A discursividade deve ser, pois, compreendida como efeito material da língua na história – língua, ipso facto, sujeita ao equívoco. A conversão do discurso em texto representa a correlação do sujeito com a função-autor.

2.7 A função-autor

Está claro que o que interessa à Análise do Discurso é compreender como as posições-sujeito se constituem e constituem sentidos na sua relação necessária com o simbólico e a História. O autor é apenas uma função assumida pela sujeito sob o modo da ilusão de ser a origem do que diz. Segundo Foucault (2008, p. 26, grifos meus): “o autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Para Orlandi (ibid., p. 69), “ o autor já é uma função da noção de sujeito”. O autor é uma função-autor que se realiza toda vez que o sujeito se representa na origem do que diz, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Em suma,



“o que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido” (Orlandi, 2007, p. 97).



2.8. Interdiscurso (memória discursiva)

interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O pré-construído supõe uma oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação (sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior e o exterior de uma formação discursiva.
O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. O interdiscurso, em suma, é o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determina o que dizemos. Para que nossos enunciados tenham sentido, é necessário que já tenham sentido (em outros lugares, em outras formações discursivas).
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, levo a termo este texto, referindo as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:



O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentávelEle é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia. (grifos meus).






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008.


ORLANDI, E. P. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2007.
________________. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Análise do discurso. (org) Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2011.











quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada" (Rosset)

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             O trágico como anticonceito filosófico
            Prelúdios de uma sabedoria trágica


Explicar, do latim explicare (‘tornar inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo, prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o curso criativo das conversações filosóficas.  É imprescindível dizer que este meu texto não pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que, portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio, estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável, mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor, ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção, terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa, necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita, enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente, por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida. Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida. Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente, a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão (talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas; mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista.
No esforço por reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento, jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso, contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição, atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo. Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência senão estorvar os próprios participantes.

1. As formas do silêncio

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.

A incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).

“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.
Tendo em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado  tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso e articulado.

2. O filósofo trágico não é um pessimista

Filósofos como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche, migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma questão de suplicio e aflição.
Na visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico, ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso, nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão oculta (lógos), nenhuma estrutura secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as “verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:

“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política, militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos, algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e simples. A morte em si mesma não é a priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).


Esse trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de interpretá-lo.
Considere-se a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista.  É necessário reconhecer duas diferenças básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do absurdo.
Sabe-se que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente. Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O pensamento trágico, por sua vez, mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser contingente.
Cumpre ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio. Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o espanto do filósofo trágico: seu maravilhamento na alegria e na dor.
Não se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico, afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação entre a festa e o trágico.
Em certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em função de uma busca do pior.  Ademais, essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico, a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que, sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma “natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis; ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa. Ensinamento trágico: teoria do kairós (o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do júbilo.
O pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo o modo de configuração vital.