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sábado, 30 de outubro de 2021

“Se deus queria que as pessoas acreditassem nele, por que então ele inventou a lógica?” ( David Feherty)

 



CONFISSÃO

 

 

Devo confessar que são duas as razões por que me tornei ateu: 1) a acuidade crescente de minha consciência do caráter cruel e doloroso da vida (consciência esta inconciliável com o modo de vida cristão, em cujo cerne repousa a crença num Deus criador infinitamente bom); e 2) minhas incursões cada vez mais frequentes, densas e extensas nos estudos sobre a constituição da Bíblia e sobre a história dos cristianismos primitivos. Tais estudos me tornaram cristalino e vigoroso o sentimento de que a minha fé perdera completamente os esteios que outrora a tornaram possível. Não me posso esquecer de mencionar, nesse processo de emancipação de minha consciência, a importância de meus encontros prematuros (há mais de quinze anos) com o pensamento de Schopenhauer e de Nietzsche (com quem tive os primeiros contatos lendo o seu Anticristo), que contribuíram sobremaneira para o abandono de meus hábitos de vida cristãos. Acho, honestamente, que as duas razões que me levaram a me libertar do peso asfixiante de décadas de doutrinação numa tradição religiosa são suficientemente fortes e consistentes para levar outras pessoas a abandonar também seus hábitos de vida religiosos. No entanto, uma grande maioria de pessoas no Ocidente ainda não ousou sequer considerá-las, não se dispõe sequer a cogitar delas, preferindo viver uma vida nutrida num embuste originário, ao qual o cristianismo deve sua existência: a ressurreição de Jesus. (talvez, porque, embora consistentes essas razões, raramente as pessoas abandonam suas convicções religiosas quando se lhes apresentam argumentos razoáveis). A lógica falha sistematicamente no cérebro de pessoas que foram expostas, desde tenra idade, a um sistema de doutrinação religiosa.

 Se a crença na ressurreição de Jesus nunca tivesse conseguido atrair seguidores, o cristianismo jamais teria existido. O cristianismo tradicional reza que a morte de Cristo trouxe a salvação à humanidade. Mas Cristo não poderia morrer verdadeiramente, se quisessem que alguém acreditasse que Deus trouxe a Salvação. Era preciso acreditar que Cristo ressuscitou dos mortos e que a sua crucificação não era um mal, mas um acontecimento planejado por Deus-Pai, cuja boa intenção (salvar os humanos) justificava o meio (permitir o martírio e a crucificação de seu filho). A ressurreição (este embuste de pouco mais de 2.000 anos) é o fundamento da religião cristã. Sem ela, Jesus não passaria de um profeta judeu apocalíptico (o que ele foi historicamente) que sofrera um fim trágico e imerecido. Mas, se Jesus nunca tivesse existido, ainda assim se teria desenvolvido alguma fé semelhante ao cristianismo? É provável que sim. No século I, época em que viveu Jesus de Nazaré, havia muitos outros candidatos a Messias, um dos quais era Apolônio de Tiana, que viajava com seus discípulos curando aleijados, expulsando demônios, recobrando a visão de cegos, etc. Muitos também acreditavam ser ele o filho de Deus. Apolônio pregava que as pessoas deveriam se preocupar com o destino de suas almas em vez de se preocupar com o conforto material. Ele também sofreu perseguição dos romanos, morreu e - para seus seguidores- ascendeu aos céus. A simetria com a vida de Jesus não é mera coincidência. Tanto quanto Jesus, Apolônio não sustentava uma doutrina de amor interétnico (ao contrário do que supõem os cristãos modernos, Jesus não pregava um amor universal). Na época em que viveu Apolônio, já tinham sido escritos os evangelhos cristãos. É possível que seus seguidores tenham construído suas narrativas da vida e do ministério de Apolônio a partir dos relatos sobre Jesus. Convergências desse tipo eram normais e frequentes. Os antigos catequizadores trabalhavam num ambiente competitivo, em que uma religião competia com outras a atenção das pessoas. Para que uma religião fosse bem-sucedida, era necessário que oferecesse, pelo menos, tantas vantagens quantas as que a concorrência oferecia. As religiões se desenvolviam acirrando a concorrência: os seguidores de Jesus odiavam os seguidores de Apolônio, e estes lhes retribuíam com a mesma moeda de ódio.

Este é apenas um dos muitos exemplos hauridos da investigação da história da formação do cristianismo que, uma vez conhecidos, tornam difícil legitimar a crença no Deus cristão como o único Deus verdadeiramente existente e em Cristo como o Messias que se identificou com a própria Verdade, levando Pilatos, tomado de perplexidade, a questionar: “Que é a verdade?” (João 18: 38).  

“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. (João 8: 32)

Mas, nesse caso, já não perguntamos nós hoje o que é a verdade, mas como seus efeitos (discursivos) se produzem na história.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

"A meta de uma discussão ou debate não deveria ser a vitória, mas o progresso." (Joseph Joubert)

Aos colegas ateus:





"Estou de acordo. Sou ateu, mas isso não me obriga a concordar com todos os colegas em todas as questões. Um partido, uma congregação não se forma com indivíduos que estão sempre de acordo; há os dissidentes. Já critiquei o modo como muitos ateus adotam um discurso neocientificista auto-suficiente, um discurso com que supõem poder responder a todas as questões colocadas pela religião ou outras doutrinas metafísicas. Eu posso aceitar a teoria do Big Bang (é a teoria paradigmática que, embora atraia divergentes no tocante a um ou outro aspecto, continua aceitável até que possa vir a ser refutada). Concordo que a hipótese de Deus para explicar o surgimento do universo traz sérias complicações. Ainda que assumíssemos haver um projetista, um exame cuidadoso nos mostraria que ele não pode ser o deus cristão. Tratar-se-ia de um deus completamente desinteressado da sorte dos homens neste mundo, de um deus impotente, de um deus coagido pelas leis da física, pela constituição mesma do universo. Seria um deus fraco (nada comparável ao deus grandioso do cristianismo). Seria um deus que ao criar, perdeu o controle sobre os elementos primários da criação e que, embora tenha projetado uma natureza exuberante, NÃO O FEZ PERFEITA! (ao contrário do que supõe a maioria dos religiosos, aliás perfeição é impensável nos padrões humanos, é ideal). Claro não precisamos da hipótese de Deus para explicar a origem da vida. Mas a ciência silencia em face da morte. Cientistas lidam com a vida. Médicos estão comprometidos em salvar vidas, em restituir a saúde, em preservá-la. A morte é o fim, é onde cala a voz científica e onde se abre o vazio a ser preenchido pela voz do coração, da superstição (se quiserem assim chamar), do sentimento. Diante de um defunto, o médico diz: eis uma matéria inanimada, sem vida. Eis um corpo cujo cérebro deixou de funcionar; portanto eis um morto. Este corpo, que outrora sentia, pensava, estudava, falava, escrevia, trabalhava, amava, chorava, sofria, pulava de alegria, viajava, casava, divorciava-se, se apaixonava, planejava, compunha poesia, emocionava, criava ... este corpo que um dia existiu (se relacionava), é aproveitado para estudos de anatomia. Faço um apelo não à razão, mas à emoção. Nós, seres humanos, não somos só animais racionais, somos pessoas emocionalmente complexas. Somos seres de desejo, de emoção. Viver é emocionar-se, não é só pensar, não é só racionalizar. Não vamos conseguir êxito tentando convencer os religiosos ou os espíritas de que a morte é o fim de tudo, de que viemos do pó e retornaremos ao pó... essa visão niilista não logrará êxito. Enquanto os cientistas nos chamam atenção para a singularidade de nosso estágio na longa cadeia evolutiva, que nos torna uma espécie notável, sob vários aspectos, os religiosos ou espiritas vêem nisso um sinal de que há em nós um substrato que resiste à aniquilação orgânica quando da morte. A crença na possibilidade da inesgotabilidade da vida não me incomoda. Se a maioria apenas a desejasse, sem pretender universalizá-la, sem pretender transformá-la em doutrina, sem fazer dela uma religião, talvez não houvesse muito por que nos opormos. Ficaríamos com o desejo, mas continuaríamos sempre dispostos a dar voz a nossa única certeza: a de que morreremos. O que isso realmente significa é algo que nos está velado. Antes de bradar "todos vamos morrer aceitem isso", olhemos ao nosso redor, vejamos quantos desgraçados chegam ao mundo e que, por circunstâncias adversas pelas quais não foram responsáveis (ou vocês responsabilizariam uma criança que nasceu com um problema congênito, que nasceu em regiões pouco favoráveis à sua sobrevivência?). Uns nascem em berço de ouro, uns são acolhidos pelos pais; outros nascem em condições de pobreza e são, às vezes, abandonados. Uns morrem muito cedo, ainda crianças; outros vivem uma vida longa de privações, de sofrimento. O que é certo é que o sofrimento tece as malhas da existência humana. O budismo tem a nos ensinar muito a esse respeito (em parte, pode-se aproveitá-lo). É notável que cientistas como Richard Dawkins convoquem a todos nós a usufruir a vida, que é única e valiosa, mas tenham forçosamente de sufocar o sentimento, de ignorar que milhões de pessoas são privadas de gozar desse privilégio. Para muitos, a vida é dura, para muitos a vida é uma desgraça, para muitos a vida não passou de alguns dias. Serão estes infortunados recompensados de algum modo? Terá a passagem deles neste planeta se limitado ao infortúnio, à desgraça, à infelicidade? Não sabemos. Aqui a ciência sai de cena. E o mistério nos abraça, nos envolve a todos. Somos filhos desse mistério. Contentemo-nos com ele, sem nunca desistir da Vida!"

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"Por simples bom senso, não acredito em Deus. Em nenhum." (Charles Chaplin)

        

     O ateísmo ativista
  Repensando o projeto


A palavra ativismo é definida, na Enciclopédia e Dicionário Koogan- Houaiss, tanto como ‘atitude moral que privilegia as necessidades da vida e da ação, sobre os princípios teóricos’ como ‘propaganda ativa em favor de uma doutrina’. O ateísmo propalado por autores como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens tem sido compreendido como um ateísmo ativista justamente porque esses autores, ao publicar obras e participar de debates e conferências, em televisão e em universidades, atuam incisivamente contra a religião e a fé. Eles, realmente, partiram para o ataque. Cada qual do seu modo: Dawkins valendo-se de sua competência enquanto biólogo e expoente do darwinismo. Sua obra Deus: um delírio foi escrita sob a perspectiva baseada em sua formação. Ele considerará a fé um vírus, que contamina a consciência das pessoas, impedindo-as de pensar coerentemente sobre suas crenças religiosas e suas crenças sobre o modo como o mundo funciona.  Sam Harris, a seu turno, atacará de modo mordaz a fé religiosa e, particularmente, a fé islâmica. No Posfácio de seu livro A morte da Fé (2009), em resposta a uma das críticas que recebera de seus leitores (algumas por e-mail), o autor é claro:


“Se existe algum livro que ataca mais duramente a religião, eu o desconheço. Isso não quer dizer que meu livro não tenha muitas falhas; mas com certeza ele não pode ser acusado de tentar apaziguar a fé religiosa”.
(p. 272)

O excelente livro deus não é grande (2007), de Hitchens, conta com relatos de suas experiências como jornalista enviado a regiões de conflitos, com ataques sem peias a personalidades porta-vozes da fé, como Madre Teresa de Calcutá. Conhecimento e experiência conciliados de modo lúcido e ácido no ataque ao fenômeno da religião – é o que encontramos, em suma, na obra deste grande e saudoso intelectual.
Comum aos autores aqui mencionados é a tese segundo a qual a fé deturpa a razão, se alimenta da irracionalidade, embota a consciência. Veja-se, a título de exemplo, o que escreve Sam Harris nesse tocante:

“A fé religiosa, embora seja a única espécie de ignorância humana que não admite sequer a possibilidade de correção, continua a ser protegida contra as críticas em todos os cantos da nossa cultura. Ignorando todas as fontes de informação válidas acerca deste mundo (tanto espirituais como mundanas), nossas religiões assumiram antigos tabus e fantasias pré-científicas como se estes encerrassem o mais profundo significado metafísico. (...) Na melhor das hipóteses, a fé religiosa torna as pessoas, mesmo as bem-intencionadas, incapazes de pensar racionalmente sobre muitas das suas preocupações mais profundas e; na pior das hipóteses, é uma fonte contínua de violência entre os seres humanos”.

(p. 259)


Hitchens, por sua vez, apontará o fato de a larga propagação de religiões estar ligada à inversão ideológica que declara os homens não mais como criadores de deuses, mas como criaturas destes. O ventre das religiões é justamente essa ideologia. Nela se ancoram as doutrinas, os rituais, a fé. A dimensão da cultura (criação humana), onde devemos situar as religiões e os seus deuses, é apagada nessa concepção invertida (ideológica). A ideologia aqui referida mascara a verdadeira realidade que envolve homens e deuses: aqueles como os verdadeiros criadores; estes como suas verdadeiras criaturas.
Comum aos autores referidos aqui é também a ideia de que a religião nasce da ignorância sobre como o mundo é e de que se alimenta dessa ignorância. O alicerce da religião é a ignorância. E a fé religiosa estorva a capacidade de as pessoas desenvolverem o pensamento reflexivo e crítico.
É interessante ver que Dawkins, particularmente, se preocupa muito com a educação das crianças; ou melhor, se preocupa com a incapacidade de as crianças fazerem determinadas escolhas, como escolher se vão seguir ou não a religião de seus pais. Para ele, uma criança não se define como católica ou islâmica; ela não é nem uma nem outra, não tem maturidade para avaliar as implicações de assumir este componente de sua identidade; na verdade, segundo o autor, a ela é imposta a religião dos pais. A preocupação de Dawkins se justifica pelo fato de que a forma como o adulto se relacionará com a sua fé, defenderá suas crenças religiosas e encarará a religião em sua própria vida dependerá do modo como a doutrina religiosa foi inculcada nele, quando criança, pelos pais. É claro que, aliada aos pais, está a Igreja e seus cursos de doutrinação (no caso da Igreja Católica, o catecismo e a crisma). O modo como a religião influenciará o comportamento desse adulto durante a vida dependerá de como se desenvolveu a atividade de adestramento psicológico dele, quando criança, promovida pela família e Igreja.
Convém, agora, sintetizar a preocupação fundamental dessa corrente de ateístas: combater a ignorância religiosa, fonte de erros, irracionalidade e, em casos extremos, de violência. Mas é preciso elucidar esse ponto e a pergunta que devemos fazer é: no que consiste essa ignorância? Vale perguntar ainda: como ela se manifesta?
Os estudos filosóficos ensinaram-me a buscar o rigor na definição de termos e no tratamento de questões sobre a qual me debruço. Preciso, pois, me deter na definição de dois conceitos operacionais: o pensamento e a ignorância. O conceito de pensamento que me interessa aqui é aquele que se estrutura simbolicamente, ou seja, pela linguagem verbal. É o que devemos chamar de pensamento conceitual. Não existe fora dos quadros da linguagem, donde se segue que pensar é, com Kant, “conhecer através de conceitos”. Assim é que a mente constrói conceitos e os organiza na forma de juízos. Para mim, linguista, na forma de proposições, textos, discurso. O pensamento é essencialmente linguístico ou discursivo. Para Kant, pensar é julgar, é calcular. Quando tomamos os conceitos ‘menino’, ‘caiu’ e ‘no chão’ (as palavras criam conceitos) e os organizamos numa oração, formamos uma proposição ou pensamento: “O menino caiu no chão”. Essa frase reconstrói um estado-de-coisas no mundo tornando-o dado de nossa consciência, ou seja, forma de conhecimento. Posso desenvolver esse pensamento, articulando-o a outro pensamento. Por exemplo, posso articular àquela oração uma causa: “O menino caiu no chão, porque estava correndo do cachorro”. Casos há em que a oração introduzida pela conjunção “porque” não veicula a causa, mas a explicação para o que se enuncia anteriormente: “Deve ter chovido, porque o chão está molhado”. Note-se que “porque o chão está molhado” é uma justificativa para o ato de fala “deve ter chovido”, produzido na base de uma inferência feita a partir da constatação do estado do chão. É como se disséssemos: “Eu afirmo [deve ter chovido], porque o chão está molhado”. Diremos que a relação causal opera sobre proposições, de tal modo que B é causa de A; mas a justificativa ou explicação opera sobre atos de fala, de tal sorte que o que se apresenta é uma explicação/ justificativa para o ter dito B, ou seja, para a enunciação de B (Deve ter chovido).
Esses exemplos mostram que as relações entre os pensamentos envolvem também pensamentos não anunciados, ou seja, envolvem pressupostos e operações linguístico-cognitivas como inferências. Aliás, a inferenciação é uma atividade fundamental e indispensável na compreensão de textos, seja orais, seja escritos. Ao usarmos a linguagem, em nosso dia-a-dia, estamos em todo momento fazendo inferências. Um caso de pressuposição é ilustrado em “O carro parou de trepidar”. Desse enunciado depreendemos o pressuposto “O carro trepidava”. A unidade que ativa o pressuposto, ou que o sinaliza, é “parou de”. É por meio desse elemento linguístico que inferimos “o carro trepidava”. O pressuposto está inscrito no enunciado e é recuperado na base desse enunciado.
Em O que é Filosofia (2008), Caio Prado Jr. distinguirá entre o pensamento elaborador, que operando sobre conceitos e os articulando na forma de enunciados, é responsável pela produção de conhecimento, e o pensamento reflexivo, a saber, aquele que se volta sobre o já pensado (o conhecimento produzido).  O pensamento reflexivo é o pensamento sobre o pensamento. Na verdade, a conceituação, ou seja, a representação que a mente faz das ocorrências do real já é uma etapa do pensamento elaborador. Prado nos ensina sobre a relação entre essas duas formas de pensamento:

“Desse primeiro momento ou nível da atividade cognitiva (isto é, a elaboração da conceituação representativa da Realidade), o instrumento dessa atividade,que é o pensamento elaborador do conhecimento, se volta sobre si próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou Conhecimento por ele elaborado”.
(p. 20)

O pensamento elaborador, responsável pela conceituação, se desenvolve a partir da experiência sensória do indivíduo. Ele se apóia nos dados acessíveis aos sentidos, conta com a experiência de mundo do indivíduo pensante. A transformação dos dados postos aos sentidos em dados de consciência, ou seja, em formas de conceitos, é no que consiste a conceituação.
Compreendida esta etapa, passo a considerar o conceito de ignorância. Não podemos deixar de referir o nome de Sócrates, considerado pelo Oráculo de Delfos, o homem mais sábio que já existiu, porque reconheceu sua ignorância, ao proferir a famigerada frase “só sei que nada sei”. Grosso modo, pensamos em ignorância como carência, insuficiência, falta ou ausência. Ignorar é desconhecer. Todos nós ignoramos em alguma medida. A ignorância reconhecida por Sócrates é o que eu chamaria de ignorância propulsora, a saber, aquela que nos impele ao conhecimento. Ela abre caminho para o conhecimento; uma vez reconhecida, o indivíduo se esforçará por saná-lo com o conhecimento. Ela é, assim, um vazio que deve ser preenchido com conhecimento(s).
A ignorância também pode ser pensada como um engano do indivíduo em relação à qualidade e correção de seus conhecimentos ou crenças. A ignorância faz com que ele tome por verdadeiro o que é falso, incorrendo em ilusão ou em erro. A ignorância mantém-no no nível das opiniões falsas ou da aparência, impedindo-o de alcançar a essência das coisas, a(s) verdade(s). Importa também entender, nessa discussão, o valor das evidências. Uma evidência é tudo aquilo que se impõe ao espírito de modo claro, distinto e para o qual se dispensa demonstração. A evidência racional importa às ciências. Descartes reconhecia a evidência intelectual como o único critério de objetividade. Consoante o filósofo, não podemos aceitar como verdade nada sem que antes se imponha ao espírito como evidente.
Entendemos por que Dawkins (e outros), ao ser indagado sobre o porquê de não acreditar na existência de Deus, responde de modo a fazer entender ao seu interlocutor que “faltam evidências”. Claro está que o conhecimento, para ter validade (incluindo-se, evidentemente, o conhecimento científico) precisa apoiar-se nas evidências. Elas constituem o conjunto de elementos necessários para corroborar ou negar uma dada teoria ou hipótese científica. É claro que as evidências não estão disponíveis de antemão; elas dependem de pesquisas desenvolvidas na base de um conjunto de pressupostos.
As evidências diferem dos indícios em termos de grau de confiabilidade ou certeza. As evidências são tomadas como provas de que uma crença ou ideia é verdadeira. Elas validam conhecimentos. Os indícios são sinais que apontam para a probabilidade de que algo tenha acontecido ou exista. No domínio da criminologia, da jurisprudência, do Direito, fala-se em indícios, sempre que na cena de um crime há pistas que podem ajudar para o conhecimento de quem foi o seu autor, bem como de como foi praticado.
A ignorância atacada pela corrente do ateísmo ativista representado nas figuras de Dawkins, Harris e Hitchens é uma espécie de ignorância que toma como verdades insuspeitas, inquestionáveis, inatacáveis determinadas crenças que carecem de evidências, de base empírica. Elas sequer contam com indícios. Mas também é uma ignorância que infertiliza o pensamento reflexivo. Ela o turva, obscurece-o e, não raro, o impede. A ignorância religiosa torna seu possuidor uma pessoa ingênua, incapaz, às vezes, de perceber as incoerências, contradições, disparates que vazam de seus pensamentos. Lembro que pensar é encadear proposições, frases, juízos; pensar implica um trabalho cuidadoso com a linguagem verbal, baseado em alguns princípios da lógica.
Vamos a um caso que constatei em uma postagem no facebook. Primeiramente, vale elencar algumas proposições vulgarmente produzidas sobre Deus, herança dos ensinamentos teológicos mediante a Igreja:

1. Deus é Pai;
2. Deus é amor;
3. Deus é bom;
4. Deus é todo-poderoso;
5. Deus é onipresente;
6. Deus é onisciente.

Na postagem, estampava-se a foto de um acidente de trânsito fatal. Quase toda uma família morta, exceto um menininho. A criança sobreviveu. A imagem incluía o dizer: “Quando Deus põe a mão”. Quer-se fazer crer que Deus, “pondo” suas mãos invisíveis, salvou a criança, evitando sua morte. Mas, inexplicavelmente, deixou seus familiares morrer. Devemos supor que Deus tenha um plano para aquela criança e outro “plano” para seus familiares? Mas o que dizer da criança que, além do trauma provocado pelo acidente e pela visão aterradora de ver seus familiares mortos, deverá levar uma vida na condição de órfã? Deus não foi bem sucedido. Um pai reconhece que uma criança necessita de seus pais; um pai que ama não deixaria seu filho abandonado; e o mais impressionante: se Deus é todo-poderoso, por que não salvou a todos, se não quis evitar o acidente (embora pudesse fazê-lo, já que seu poder de agir é absoluto)? Ele não parece tão plenamente presente assim, mas chegou a tempo de salvar a criança (devia estar ocupado naquele momento, mas se apressou em socorrê-la).
O que devemos reter, nesta ilustração, é o fato de que o que se diz de Deus entra em choque, em conflito com as ocorrências do real. A sobrevivência do menino surpreende, é claro; mas pode ser explicada pelas circunstâncias do acidente, por exemplo, a posição em que a criança se achava, seu tamanho, o ponto em que a força do impacto incidiu (provavelmente, no lado onde estava o motorista e as outras pessoas que morreram). Importa ver que não precisamos da hipótese de Deus para explicar o que parece ser um “milagre”, um acontecimento extraordinário e impressionante. Se lançamos mão dela, ficamos ainda sem explicação para o fato de Deus só ter salvado a criança e ter deixado morrer as demais pessoas no carro (seus familiares). Para os religiosos, em geral, crendo não ser a morte o fim da vida, não nos surpreendemos que possam dizer que a morte das outras pessoas que estavam no carro era plano de Deus, era a sua vontade. Essa crença absurda é para mim aterradora! Ter um ser todo-poderoso, senhor do universo, a decidir quem deve viver e quem deve morrer excede em horror qualquer história de terror já criada pelo gênio humano.
Lançar mão do dispositivo Deus para explicar os acontecimentos do mundo não só nos dá explicações errôneas sobre o modo como o mundo funciona, não só não nos fornece conhecimento nenhum, como também pode acarretar-nos mais inquietações do que serenidade. Talvez, essas inquietações não encontrem abrigo no coração dos fiéis, simplesmente porque eles não se ocupam em pensar seriamente sobre suas afirmações, sobre suas crenças a respeito da relação entre Deus e o mundo, a respeito do modo como Deus atuaria no mundo. Seria mais justo admitir que, se há um criador do Universo, esse criador se desinteressou de sua criação; ele não intervém em favor de suas criaturas, donde se conclui não evitar que terremotos matem milhares de pessoas, que um tsunami arrase uma cidade no Japão, que vulcões, epidemias causem choro e dor a muitos corações.
A ignorância a que se opõem ferrenhamente aqueles autores é também a ignorância da prepotência, da arrogância, da vaidade. As pessoas de fé não se permitem sequer pôr em xeque suas convicções. Raramente (ou nunca) se perguntam: “e se eu estiver errado?”. Essa pergunta honesta também poderia ser sugerida a nós, ateus, por eles, religiosos. Pode ser que estejamos errados; mas a falta de evidências a favor da existência de Deus tem corroborado até hoje a posição ateísta, a tem sustentado firmemente.
Quando o ateu nega a existência de Deus e se arvora na defesa de sua posição, ele, deve se esforçar por mostrar que muitos erros e crimes foram cometidos em favor da crença numa ideia ilusória. Devemos ter em conta que tudo que os homens fizeram até hoje (guerras, doutrinas, templos, vestimentas pomposas, sistemas hierárquicos, tratados de teologia, rituais, privações, etc.) em torno do nome de Deus fizeram-no em favor da consolidação e manutenção da crença em um ser que não pode ser experienciado sequer por microscópio ou outras técnicas avançadas (como as que são empregadas para estudar a complexidade de um átomo). Na escala existencial, Deus está abaixo de um micróbio, ou mesmo de um átomo (ou mesmo de um nêutron). A despeito de tantas crueldades, guerras, genocídios em seu nome, estranhamente, ele se mantém em profundos silêncio e omissão. Mas esse fato não incomoda as pessoas religiosas .
É verdade que não são todas as pessoas que chegam ao extremo de guerrear e cometer crimes em nome de Deus, mas muitas poderão, ao menos, romper relações ou evitá-las, caso descubram que um amigo ou colega nega-se a acreditar em Deus. Deus (a ideia de Deus) instaura uma cisão, uma discriminação, uma divisão no interior de uma sociedade ou comunidade. Sam Harris nos ensinou sobre o poder de uma crença, de uma ideia. A crença move as pessoas, leva-as a agir. Uma crença equivocada poderá (o faz) levar a ações equivocadas e, não raro, funestas.
Tem razão Gleiser ao nos chamar a atenção para o fato de que os ateístas da vertente ativista ignoram o que se passa nos corações dos fiéis, quando estes se entregam às suas orações, se envolvem em seus rituais e se relacionam com os imprevistos da vida. Por isso, o ataque ou a crítica não deve ser direcionado para o desejo ou o sentimento de que haja algo além da materialidade do mundo, da vida tal como a conhecemos. O problema dessa crença é a sua consequência. As pessoas que seguem tenazmente a doutrina da vida além-túmulo acabam por apregoar o desapego, o desinteresse pelas coisas desse mundo. Os mais extremistas, lançam aviões contra arranha-céus ou se suicidam com bombas presas ao corpo, levando consigo vários inocentes. Tudo porque acreditam que gozarão de felicidade eterna no paraíso reservado a eles por Deus (Alá).  É verdade que, entre nós, os cristãos católicos e evangélicos não alcançam esse grau de paixão envenenada; mas os últimos, especialmente, pregam um discurso apocalíptico e de conversão à causa de Cristo. Os católicos não fogem à regra. Também esperam pelo Juízo Final, com o retorno de Cristo. Há, como observou bem Onfray (2007), na doutrina cristã propagada por Paulo (embora nem todos os textos com seu nome tenham sido escritos por ele), obsessão pela morte, pelo fim absoluto.
O ataque deve ser dirigido, portanto, no sentido de evitar que a onda de ignorância alimentada pela religião em relação a questões éticas, políticas, sociais e culturais penetre as nossas instituições e sirva de parâmetro para estabelecer formas de convivência antidemocráticas e eivadas de preconceitos. Exemplos disso são a implementação por certas autoridades políticas da corrente evangélica do ensino da Bíblia nas escolas, a perseguição aos homossexuais, a disseminação da ideia absurda e repugnante de que a aids é um castigo de Deus aplicado aos homens, etc.
É claro que o debate aberto, a insistência em que a religião pode ser discutida sim devem constar da agenda ateísta. Se os religiosos participam, através de associações, pela mediação da igreja, social, cultural e politicamente, defendendo suas opiniões, seus valores, suas crenças, também nós, ateus, devemos lutar por maior participação nessas esferas. O conflito de percepções, de interpretações, de valores, de éticas é indispensável.
Devemos abandonar atitudes demasiado agressivas, as ofensas, as ridicularizações, sem deixar de sermos irônicos (quando necessário) e sagazes. A orientação de nosso discurso deve, não raro, situar-se no domínio em que as crenças religiosas são apresentadas e articuladas. É preciso atacar de dentro, e não de fora, o que significa apreender as conexões entre os dizeres. Se queremos pôr a nu a ignorância, devemos tateá-la nas entranhas de sua materialização verbal. Isso significa atentar para como os pensamentos são tramados e como reproduzem as gritantes incoerências da doutrina e das Escrituras.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Nós matamos o Deus, mas não matamos nossa angústia" (BAR)

                                     

                                 Até onde pode ir o ateísmo

O dogmatismo, em filosofia, consiste numa atitude rígida em face da possibilidade de a razão humana alcançar certezas e verdades absolutas. Ser dogmático é admitir que podemos estar sempre seguros da verdade de nossas crenças. Se eu digo “tenho certeza de que Deus existe”, estou sendo dogmático. O dogmático não se preocupa em fazer a crítica, em avaliar,  em repensar suas posições.
Nós, ateus, temos de ter cuidado para não manifestarmos posições dogmáticas. Como bem pondera Marcelo Gleiser, em Criação Imperfeita (2010), ao mencionar o ateísmo ativista de personalidades como Richard Dawkins, Sam Harris, o filósofo Daniel Denett e o saudoso jornalista Christopher Hitchens:

“O grupo prega um ateísmo radical, usando uma retórica extremamente agressiva, tão inflamada e intolerante quanto a do fundamentalismo religioso que se propõe a combater”.

(p. 40)

Este texto se propõe repensar a postura intelectual ateísta. Sabe-se que o ateísmo, enquanto discurso, é entretecido pelos fios da razão e lógica científicas. Trata-se de um discurso calcado sobre os discursos das ciências (física, biologia, antropologia, sociologia, psicologia...). A sua retórica é a de exaltação à racionalidade científica, aos avanços da biologia, da física, bem como o da incorporação das explicações sociológicas, antropológicas e psicológicas (também neurocientistas) numa tentativa de fazer ver a natureza humana das religiões. O ateísmo não só nos convoca a colocar os pés no chão, mas também a enterrar as nossas almas com nossos corpos. Gleiser é, aliás, incisivo ao nos alertar para a proposta ateísta:

“O que o ateísmo oferece – mesmo com todo o seu apelo à razão e à lógica da ciência – não vai funcionar. Ao menos não como costuma ser apresentado, sem qualquer vestígio de espiritualidade”.
(pp. 41-42)

A espiritualidade que alguns ateístas dizem ser possível experimentar é, evidentemente, de outra ordem. Mas demonstrar essa possibilidade é complicado. Vale dizer que espiritualidade não está necessariamente ligada à religião. Aliás, independe dela. Escusando-se essa questão, vou-me ater ao que me interessa fazer ver aqui.
Gleiser criticará a tendência de os “quatro cavaleiros do apocalipse”, como ficaram conhecidas aquelas personalidades, ridicularizar as pessoas que professam a crença em Deus. E nos mostrará que o ateísmo não satisfará as indagações mais profundas e comuns a todos nós, quer as anunciemos, quer não:

“A verdade é que provas empíricas não têm nada a ver com o poder da fé. Quanto mais misterioso o credo, mais ardente a crença. A grande maioria das pessoas acredita no sobrenatural por não aceitar que a morte possa ser o fim definitivo da vida. Não queremos ser esquecidos, reverter ao nada, perder nossos entes queridos. Quantas pessoas já não passaram por este mundo, ricas e pobres, reis e escravos, famosas e desconhecidas, belas e feias, pessoas que amaram e foram amadas, que sentiram alegria e dor, e que agora são apenas um punhado de pó? “Será que é só isso?” Será que vivemos, amamos e sofremos para sermos esquecidos após algumas gerações? Se temos apenas alguns anos de vida, nem sempre felizes, para que batalhar tanto? Qual o sentido da vida, se no final a morte e o esquecimento são inevitáveis?”

(p. 41)

A ciência não pode responder a essas indagações. Ela não pode satisfazer o sentimento, o desejo grandioso que jorra de corações aflitos, o desejo de que seja possível a inesgotabilidade da vida, de que o sofrimento que experimentamos neste mundo seja justificado ou compensado. Muitas experiências de mundo nos estarrecem! Há milhares de pessoas que nascem com alguma anomalia; problemas congênitos, retardamento mental, desenvolvem câncer, ficam paraplégicas, tetraplégicas, nascem cegas. Uns nascem em um meio familiar repleto de cuidados, amor e riqueza; outros, desamparados; outros ainda em regiões marcadas pela miséria, por sofrimentos inimagináveis. São coisas que acontecem, disse-me uma amiga atéia. Verdade, ou uma triste verdade – o vizinho ao lado não teve a mesma sorte! Mas não podemos ser indiferentes! Também não podemos viver os problemas dos outros, é claro; mas devemos ter em conta que somos filhos de uma mesma angústia: o medo (ou, se preferirem alguns, a lamentação, a desilusão...) , ainda que tácito, de que todos os nossos esforços, tudo pelo que lutamos, os amores por que choramos e que nos fizeram felizes, as pessoas que amamos e que nos amaram, as alegrias que experimentamos e as tristezas que tentamos em vão sufocar ou em que nos inundamos; todo o vivido, sentido, experimentado, retorne ao nada, ao pó.
Não defendo um retorno à crença no sobrenatural, tampouco dou à fé um valor merecido em face da consciência de que nem o ateísmo nem a ciência nos acalentarão, nos ampararão. O que me esforço por fazer ver é a necessidade de repensar o projeto ateísta. Diante da Vida, basta-nos a contemplação e a oportunidade que temos de pensá-la, de buscar compreendê-la. Não à resignação e à passividade; e sim à ação pelo intelecto e pelo coração!
No entanto, ecoará surdo o apelo de Richard Dawkins a que aproveitemos a Vida, a grandiosidade e os mistérios da Natureza, quando muitos dentre nós não podemos, por condições por que não fomos responsáveis, aproveitá-los. Que diremos às crianças que chegaram à vida sem poder compreendê-la, por uma deficiência neurológica? Que diremos de tantos que vivem em condições sociais e culturais desfavoráveis e que, portanto, não tiveram oportunidades de, freqüentando curso superior, experimentar o contentamento, a alegria das mais diversas formas de saber? Estes foram privados da beleza do conhecimento científico, do prestígio da cultura letrada... Eles nasceram naquelas condições e, por fatores sócio-culturais e econômicos que os excedem, viveram uma vida de privações.
Nem a ciência, nem a razão, nem Deus no centro. Apenas o Universo e a consciência de seu grandioso mistério. O ateus devem contentar-se com o Mistério. Os religiosos também. Reconhecer o absurdo constitutivo de nossa existência é o primeiro passo para conseguirmos lidar com ele.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

"Um debate é uma troca de conhecimentos. Uma discussão é uma troca de ignorâncias". (Robert Quillen)

                     




                                               Incomodações
                              Para a necessidade de um debate equilibrado
                                                      entre religiosos e ateus  
                                                      

Perdoem-me se os primeiros enunciados deste texto destilarão doses ácidas de altivez; se com eles pretendo eu olhar de meu mirante espiritual as rasas pegadas deixadas pelo espírito de pessoas que trafegam virtualmente nas redes de relacionamentos on-line, como Orkut e Twitter, e que são incapazes de sustentar um debate circunscrito às exigências da razão, desferindo mutuamente uma série de acusações, ofensas e despautérios. Perdoem-me, pois que aqueles que me acompanham há muito e me conhecem sabem que não sou presunçoso. E, por mais desinteressantes sejam, para mim, muitas das comunidades nos espaços de relacionamentos virtuais, participo de algumas delas (decerto, das que me atraem pela temática que propõem). No entanto, apesar de parecerem-me, a princípio, interessantes, não deixam de me frustrar pela quantidade de postagens repletas de lugares-comuns, visões rasas e pouco fundamentadas e, principalmente, repletas de ataques pessoais.      
Em outro texto, tratei da falta de reconhecimento de uma ética discursiva, que deve reger debates que se propõem ao tratamento de questões de alguma relevância social, política e cultural. Alguns participantes, simplesmente, ignoram-na. Receio que esteja eu sendo demasiado acurado no modo como desenvolvo aqui meus pensamentos; dou passos lentos como quem deseja atacar de surpresa. Busco certa discrição verbal na consideração dessa empobrecida realidade intelectual dos ciberespaços. Uma amiga querida minha, contudo, abandonou finezas, ao dizer-me, com razão, que a maioria dos que se envolvem naqueles debates são muito ignorantes. Talvez, nem sejam tanto, mas são, em alguma medida, “despreocupados”.
Tenho, pois, participado (na verdade, voltei a participar) de comunidades ateístas no Orkut e no Facebook. Neste, as comunidades me agradam mais. Não percebi, entre os participantes, ataques pessoais, ainda que, vez por outra, se topem mais comentários de indignação ou de defesa da causa ateísta do que comentários que abram caminhos para alguma reflexão válida. Sucede diferente nas comunidades ateístas das quais participo  no orkut (pelo menos a minha foto está entre as dos participantes, já que, a rigor, dou pouca contribuição). Nelas, observa-se um festival de acusações (especialmente, na comunidade Debates de Religião x Ateísmo, cuja denominação já nos permite entrever as condições favoráveis ao teor relativamente agressivo dos discursos). Excogitei de apresentar alguns trechos aqui, mas conclui que me demandaria muito tempo. Fica o convite para quem quiser atestar por si mesmo.
É bom ponderar que nem todos os comentários têm aquele teor; alguns incluem alusões filosóficas, trazem à cena algumas sombras de perspectivas teóricas interessantes. Mas outros tantos passam ao largo do tema proposto; outros, ainda, chegam a tangenciá-lo, mas tão logo dele se afastam. Veja-se um exemplo disso:

 A diz: ou guris de 14 anos, que estão começando a carreira de ateus de modinha.

B diz: ateu de modinha,senhora,saiba que vivo numa comunidade catolica muito conservadora,e que sofro muito preconceito.Seguir uma modinha não seria sensato na minha posição.

O tema do fórum é expresso com a denominação criativa “Religião=ignorância?.  Mas notem que A foge ao tema, ao sugerir que o ateísmo é uma moda crescente na sociedade pós-moderna. E B imediatamente replica, se defendendo. Parece que, agora, estamos diante de um outro tema “ateísmo é modismo?”. Não raro, dentro do macro-debate, estimulado pelo tópico principal, há outros debates que se particularizam em torno de temas com os quais se comprometem dois ou mais enunciadores. Em geral, observa-se não haver uma continuidade de raciocínios, talvez porque os participantes não se dêem ao trabalho de ler as contribuições uns dos outros, a menos que tenham interesse em completá-las ou refutá-las.
Note-se abaixo um claro exemplo de agressão verbal, que não serve senão para infertilizar qualquer debate:


A diz: mesmo teístas terem feito mais pela ciencia,apenas os ateus compreendem a existencia claramente."
Ta explicado. Que merda cara, no meu tempo, nós só falavamos sobre "ateismo", na universidade e mesmo assim, eram discussões tratando de filosofia. Não tinha nenhum poser idiota metido a etendido de ciência, pagando de "sagaz" no círculo... só marxistas... (Hahaha).


B: vi que voce é o que chamamos de "porca capitalista" (quem critica o marxismo por influencia do capitalismo selvagem)
poser idiota é voce que vem aqui só pra me xingar


As partes em negrito foram por mim grifadas com o objetivo, evidentemente, de salientar a incapacidade de os participantes levarem adiante um debate equilibrado e apenas alimentado por argumentos válidos, ou seja, orientado para a manifestação de posicionamentos claros e coerentes e não impregnados de sentimento agressivo. Salvo este caso particular, em que um dos enunciadores é uma jovem adolescente, não me surpreenderia se, em casos análogos, os enunciadores, equiparando-se em gênero e idade, pudessem, estando face-a-face, desferir, um no outro, pontapés e socos. Vale lembrar a lição de Freud sobre a grande dose de agressividade que carrega a natureza humana. E, quando a causa está impregnada de um sentido visceral, como, por exemplo, a de religiosos que se esforçam por defender suas crenças e a de ateus não menos dedicados a defender seus argumentos contrários, dá para se ter uma noção da suscetibilidade humana à agressão.
Tenho insistindo em dizer que religião se discute sim e que o desejável, numa sociedade que se acredita democrática, é favorecer oportunidades de discussão séria neste terreno. Não obstante, não posso aceitar o fato de encontrarmos aqui e ali uma forte disposição para ataques pessoais de ambas as partes – teístas e ateus. Os partidários dos dois grupos tendem a se comportar linguisticamente de modo agressivo, desferindo mutuamente ofensas e acusações.
Sou tentado a sugerir que só a ignorância de ambas as partes pode explicar isso. É possível que haja muitos que buscam em livros conhecimentos suficientes para validar seus argumentos; mas outros tantos ou não são leitores assíduos ou verdadeiramente interessados em aperfeiçoar sua argumentação, ou, se lêem, o fazem ignorando as vantagens dessa atividade, ou seja, lêem, mas se limitam a vomitar conhecimentos fragmentados ou cristalizados e a encarar o debate como uma arena em que pessoas devem duelar e afirmar-se continuamente como portadoras de verdades incontestes.