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terça-feira, 19 de abril de 2011

O absoluto está aí; olhe para ele.

                                     Aceitação


Agora estou só, nesta manhã nebulosa de abril. Mais uma manhã comum de menos um dia de vida. Estou presente a mim mesmo; posso experienciar-me por inteiro, pois que estou inteiramente presente nas palavras cuja distinção minha alma é capaz de gerar. Há pouco, lia o capítulo em que Sponville trata do que chamou de aceitação, em seu instigante livro O Espírito do Ateísmo. O autor nos propõe a aceitação do real, sem mais nem menos. Também nos recomenda suspender qualquer juízo de valor.


“O real basta: por que submetê-lo a outra coisa? Tudo é perfeito: não há mais necessidade de consolo, nem de esperança, nem de juízo final (não se trata mais de julgar, mas de compreender, e menos de compreender que de ver). O real é para pegar ou largar, ou antes, nessa experiência que evoco, ele é aquilo mesmo que não temos  como não pegar: porque ele é sua própria pega, que nos despega de todo o resto”.
(pp. 166-67)


Mais adiante, escreverá:


“O real comanda, pois não há nada além dele. O pensamento? É o próprio real (a verdade) ou não passa de uma ilusão (que faz parte do real: ela é verdadeiramente ilusória)”
(p. 172)


Dirá ainda do absoluto,


“Por que o absoluto está em outro lugar? Ao contrário: porque ele está aí, sempre já aí, antes de qualquer obra, antes de qualquer juízo, antes de qualquer compromisso, porque precede e acompanha todos eles, carrega-os e leva-os embora”.
(p. 170)


E o que é o absoluto? É o que é em si e por si e que independe de nada, ilimitado, indeterminado.  A experiência do absoluto é a experiência de sua imanência e não de sua transcendência. O absoluto, nessa perspectiva, é tudo que está aí; é imanente. O absoluto é o Ser (de Parmênides), o devir (de Heráclito), a natureza (de Espinosa), o Tao (de Lao-tsé), etc.  Não importa o nome que lhe demos; ele é a vida pulsante em nossas veias; vida que se desliza para o abismo da morte.
Estar no absoluto é estar completamente imerso no silêncio da vida; é experienciar o silêncio de nossa existência absurda. Confesso que experiencio o absoluto quando estou imerso no AMOR. A experiência do AMOR correspondido é a experiência do absoluto, pois que sentimos não precisarmos de mais nada, pois o AMOR não depende de nada mais; ele basta a si mesmo.
Também o absoluto pode ser sentido na contemplação da natureza: do grandioso mar adiante, do vôo bailarino das gaivotas, do canto matinal dos passarinhos, no suave adejar das borboletas; também pode ser experimentado no pensamento. Não raro, quando escrevo, quando me ocupo com meus pensamentos, quando me doo à prática laboriosa da escrita experimento o absoluto encerrado em cada palavra. A linguagem para mim encerra o absoluto; nasci destinado a ela.
É certo que, nela, em suas malhas de significado, meu espírito se me desnuda; sou eu mesmo inteiramente imerso nas palavras. Apreciem ou não o que escrevo; censurem ou acolham, ainda assim minha exposição à linguagem é irrepreensível; não pode ser de outro modo, uma vez que as palavras não me são dadas; são constitutivas do que sou: meu ser mesmo é tecido de palavras.
Há muitos anos, tenho vivido da mesma forma e pretendo assim viver até o dia de minha morte: uma vida disciplinada e pautada na comunhão com o verbo. Nada em mim escapa à expressão verbal; o indefinível em mim se submete aos caprichos da linguagem, às suas figuras que subvertem o significado. Toda minha alma está espelhada nas palavras que faço derramar sobre o papel. Olhem do ângulo que desejarem e verão a mim mesmo refletido, submerso.
Outrora, estar só fazia-me ausente de mim mesmo; desde que o AMOR, todavia, pousou em minha vida, estar sozinho é estar inteiramente presente em mim e a mim mesmo. Eu estou aqui e comigo estão os meus pensamentos e a linguagem, evidentemente, sem a qual eles não são socializados.
Não há nada além do mundo, dirá Sponville. Tudo está aí e nada falta. Só o presente é real, é o ser; o futuro é o não-ser, a ausência. Lembro-me bem de que escrevi “não vivo amalgamado com o mundo”, mas isso não significa que eu não reconheça meu pertencimento ao mundo. Sou um átomo desse Todo. O mundo é uma totalidade que me abrange. Nada nele me será estranho, muito embora, como nossa experiência do Todo seja, inevitavelmente, relativa, nem tudo do mundo me será aceitável. O homem não experiencia o real em si, o mundo não entra em sua consciência em estado bruto. Ao contrário, nossa experiência do mundo é sempre mediada. Entre o homem (e seu espírito) e o mundo, há a interpretação. O mundo, o real, para o homem, é mundo, é real interpretado.
Os seres humanos não se contentam em ver uma árvore, mas se perguntam por que ela está ali, que relação tem ela com o meio natural, que função desempenha, que significado tem ela para a vida, o que é essa entidade natural, etc. E as questões não cessam. Por isso o mundo é um problema, a vida é um mistério e o absoluto inapreensível. É condição do homem conhecer, suscitar questões, interpretar. Nossas experiências existenciais são, necessariamente, experiências de sentido, com o sentido. É também condição de nosso ser de linguagem. É porque somos homo loquens que, parafraseando Sartre, estamos condenados a produzir sentidos.
É somente quando me encontro com as palavras, quando lhes desvelo a intimidade, quando gozo delas, que ponho a descoberto o fundo da minha alma. No dia-a-dia, não costumo ser tão hermético, compenetrado, distante; ao contrário, sou simples, comum e sempre acessível aos que me querem bem. No entanto, a vida diária não propicia o desvelar da profundidade de minha alma. As conversas triviais que atendem a propósitos comunicacionais imediatos  são sempre ineficientes para alcançar as suas regiões mais densas.
O absoluto não está no cotidiano, cada vez mais comprimido pelas nossas incumbências; ele está aí onde se dá o encontro de si consigo mesmo; quando olhamos  nossa interioridade com um olhar espiritual que vem de dentro. É a solidão existencial de que tratei. Cada experiência com o absoluto é única, porque a relação individual com a vida é singular e distinta. Para mim a força da vida reside na beleza do AMOR e na resistência do Pensamento. A força da vida repousa na força do AMOR e na intensidade, na verdade do pensamento, que deve ser expressão de liberdade amparado na responsabilidade.
O absoluto pode ser pensado? Creio que sim, mas só apenas quando a vida mesma é colocada diante de nós, ou, o que dá no mesmo, nós nos colocamos diante da vida. Acontece que muitos apenas se limitam a vivê-la, mas raramente se preocupam em olhar para ela. Já olhou para a vida? Já se confrontou com ela? Há quem prefira evitar esse confronto; sei que sempre a confrontei, em que pese à experiência de desespero em que me vi, muitas vezes, mergulhado. Hoje, posso confrontá-la e aceitá-la sem esperar por nada mais; quero ser lembrado no coração daqueles que amo e que me amam.
Viver para ser lembrado, para ser recordado, avivado no coração daqueles que amamos. Ao final de tudo, restar-nos-ão as lembranças; elas darão testemunho de nossa existência e reafirmarão a presença inconteste do absoluto: aí diante de nossos olhos e no íntimo abissal de nosso coração.




(BAR)