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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

"Não sou nem ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo". (Sócrates)

                        

                                    Posicionar-se é preciso
                                                              Da necessidade de conhecer
A filosofia nasce do espanto ou da admiração. Ela nasce no momento em que  a validade das opiniões correntes é posta em questão; no momento mesmo em que essas opiniões não podem ser mais aceitas sem que passem pelo crivo da crítica. A Filosofia nasce quando começamos a nos indagar sobre os fundamentos de nossas crenças. Tem ela um compromisso com a ruptura com o senso-comum. São essenciais em todo fazer filosófico a atitude filosófica e a reflexão filosófica. Cabe salientar: fazer filosófico, porquanto filosofia é atividade, é ação pelo intelecto, pela razão, que visa à verdade.
A atitude filosófica é a atitude de indagação. Ela se ancora em questões tais, como “o que é?”, “como é?”, “por que é?”, “para que é?”. Quando perguntamos “o que é x?”, estamos interessados em saber sobre sua realidade mesma, sua essência ou significação (o que é  verdade?, o que é  justiça?, o que é  sociedade?). Quando perguntamos “como é x?”, estamos interessados em saber sobre a estrutura, o funcionamento de uma coisa ou realidade, ou seja, indagamos sobre as relações entre suas partes constitutivas (o que depende de um trabalho analítico, investigativo). Quando perguntamos “por que é?”, estamos interessados em saber as causas, a origem de uma realidade. Finalmente, quando perguntamos “para que é?”, buscamos responder a que serve uma coisa, qual é a finalidade de uma coisa, de um evento humano. A atitude filosófica é, portanto, uma atitude que visa a buscar o saber pelo questionamento, pela elaboração de perguntas, disso se segue que, em filosofia, as perguntas importam mais do que as respostas; e estas só podem ser alcançadas (não de forma peremptórias) quando adequadamente elaboradas. A filosofia é um mosaico de discursos sempre em aberto, sempre transbordante. Não há, nos seus domínios, espaço para dogmatismo, para ortodoxias rígidas. Estes, se manifestos, tenderão a ser atacados.
A reflexão filosófica, ensinará Marilena Chauí, está centrada nos seres humanos, pois que se ocupa do pensamento, da linguagem, da ação e do conhecimento, realidades estas inerentes à condição humana. Reflexão consiste na atividade pela qual nos valemos do pensamento para pensar o que foi elaborado pelo pensamento. É uma atividade, portanto, através da qual o pensamento volta-se sobre si mesmo. Lembro aqui a distinção, feita por Caio Prado Jr., entre “pensamento elaborador” e “pensamento reflexivo”. O primeiro elabora o conhecimento na base dos dados sensíveis, ou seja, nas informações que nos afetam os sentidos. O pensamento reflexivo pensa o produto do pensamento elaborador, pensa aquilo que é conhecido. O pensamento elaborador é responsável pela conceituação, ou seja, a representação na mente das ocorrências ou feições da realidade. Poder-se-ia dizer também a transformação das experiências de mundo do sujeito em dados de sua consciência ou em conceitos. O pensamento reflexivo, a seu turno, opera sobre conceitos ou se dirige para o encadeamento de conceitos. A rigor, ele se volta para a trama de significações resultante do encadeamento de unidades linguísticas (palavras, sintagmas, orações, frases), visto que não há conceito sem alguma forma de linguagem. Para o que me interessa aqui, vale lembrar que as palavras criam conceitos. Não há significação fora dos quadros da linguagem e, dada a flexibilidade, plasticidade, dinamicidade e recursividade inerentes às línguas, bem como a sua abrangência e importância como forma de mediação das relações dos homens entre si e com o mundo, a linguagem verbal é, por excelência, o locus dos conceitos.
Claro está aqui que a filosofia tem um compromisso com a crítica. Crítica recobre a capacidade para julgar, discernir e decidir; trata-se, pois, de um exame racional desinfetado de preconceitos, de prejulgamentos, pelo qual avaliamos, ponderamos um conceito, um pensamento, uma obra artística, um acontecimento, etc. Importa ver também que, sendo de caráter crítico, a filosofia rompe com o senso-comum, o supera, já que, em face de um problema, o senso-comum não procura pelos fundamentos do fato ou fenômeno. A atitude filosófica, ao contrário, se interessa por eles.
 O senso-comum desconhece em que princípios se baseiam suas crenças. Suas interpretações sobre o mundo tendem a ser rasas, parciais, subjetivas, supersticiosas. Sempre que nos guiamos pelo senso-comum, escolhemos agir da maneira como sempre agimos. O senso-comum inclui lugares-comuns, ditados, se constrói discursivamente e fornece reconstruções/ representação da realidade incompletas, parciais, quase sempre relativas a um sujeito abstrato. Disso não se segue subestimar sua importância, já que mesmos os cientistas, filósofos e intelectuais de um modo geral se orientam pelo senso-comum em seu cotidiano. Não podemos prescindir dele, evidentemente. Nossos conhecimentos mobilizados no dia-a-dia são os conhecimentos originários do senso-comum. Ademias, a ciência não prescinde do senso-comum, já que ele fornece as questões que ela buscará explicar.
Um conceito que interessa à filosofia e que constitui o seu ventre é o conceito de razão. Quando pensamos em razão, vem, de imediato, à nossa mente a figura de Sócrates, especialmente a de Descartes e Kant, estes últimos porque se preocuparam em refletir sobre o conhecimento racional. Kant, por exemplo, procurou determinar os limites da razão, sua estrutura e alcance, em síntese, as condições em que o conhecimento é possível.
 Usamos a palavra razão (e derivados), corriqueiramente, em nossos discursos; o provam dizeres como “Fulano tem razão, quando diz isso”, “Suas atitudes não são racionais”, “por que razão você chora”, etc. Note-se que, no primeiro caso, “razão” pressupõe ‘explicação’, ‘justificação’, ‘coerência’, ‘certeza’; no segundo, também evoca ‘coerência’, ‘norma’, ‘consistência’; e no último, também evoca ‘explicação’ ou ‘causa’.
Razão implica coerência, ordenamento, regras, sistematicidade. A razão é, pois, uma atividade ou uma forma de ação que se realiza nos seres humanos por meio de leis ou regras de estruturação do pensamento e de suas ações. A razão é consciência intelectual e moral. Como consciência moral, ela nos dá os princípios que orientarão nossa conduta, nossas ações na convivência uns com os outros.  
Quando assistimos a um desses indivíduos, em geral adestradores de certos animais selvagens, como o crocodilo, enfiando a sua cabeça na boca desse réptil, julgamo-lo, embora admirados com o que vemos, um ‘louco’, ou seja, julgamos sua atitude irracional. Tal é o caso porque agir racionalmente é agir segundo cálculos. Esses cálculos são, muitas vezes, preditivos. Ou seja, calculamos os prováveis efeitos de nossas ações antes de executá-las. Agir racionalmente é agir segundo objetivos para cujo alcance nos valemos de meios adequados. Colocar a cabeça na boca de um jacaré é expor-se ao risco de perder a vida. Isso, em geral, nos parece contrário ao bom-senso (razão). A razão nos ensina que, nessa ação, há perigo, há risco de morrermos. Quem o faz rejeita a predizibilidade dos cálculos que nos permite fazer a razão.
Situada no domínio do pensamento, ou seja, pensada como atividade estruturante de pensamentos, de conceitos, do próprio conhecimento, a razão é indissociável da linguagem verbal. Daí podermos falar em razão discursiva. Linguistas não falarão em procedimentos racionais do discurso, já que razão é um conceito do domínio filosófico. Mas eles ensinarão sobre as operações discursivas, sobre as estratégias discursivas, ou seja, sobre os mecanismos pelos quais estruturamos nossos enunciados, nossos textos para produzir discursos, que são formas de ação social, que são acontecimentos sócio-históricos por meio da linguagem, que são eventos socio-interacionais de produção de sentidos.
Dedução, indução, intuição constituem modalidades da razão. Todos três constituem procedimentos pelos quais buscamos alcançar conhecimento. A razão opera também na base de princípios, tais como o princípio de identidade, o princípio do terceiro excluído, o princípio da não-contradição e o princípio da razão suficiente. Este último reza que para tudo que existe há uma causa. Todo acontecimento, todo comportamento têm uma causa. O princípio da não-contradição, a seu turno, diz-nos que uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo, e num mesmo contexto. Assim, “A é A e não pode ser “não-A”, ao mesmo tempo e no mesmo contexto”. Não se pode dizer, por exemplo, que “João é homem, mas não é ser humano”, já que o conceito de ‘homem’ e de ‘ser humano’ relacionam-se por implicação. Da mesma forma se digo “O Fusca é um carro, mas não é um veículo”, incorro em contradição, já que ‘carro’ é hipônimo de ‘veículo’, ou seja, o conceito de carro (específico) inclui o conceito de veículo (genérico). No entanto, vale lembrar que a linguagem tem seus “truques”, ela não é serva da lógica, ela não se confunde com a lógica. Em dado contexto, podemos dizer “O Fusca é um carro, mas não é um carro” ou “O Fusca não é um carro, é um meio de transporte”. Vale lembrar a lição de Bakhtin: toda palavra é signo ideológico. Claro está que, na primeira frase, ‘carro’ não tem o mesmo significado para o falante: na primeira ocorrência, significa, hoje para nós, ‘veículo de quatro rodas que trafega em ruas, rodovias e que serve para a locomoção de muitas pessoas nas grandes cidades’, mas, na segunda, ‘carro’ traz um ponto de vista, traz uma avaliação de um sujeito situado em determinado lugar valorativo (ou seja, sócio-histórico): ‘carro’ para ele é sinônimo de status, de poder sócio-econômico, de luxo. Carro, na segunda frase, é um bem que deve ser exibido, que deve atrair atenção, pela sua beleza, é um bem cuja posse indica a origem socioeconômica do proprietário. Compartilhamos do saber ser o Fusca um modelo ultrapassado, um carro antigo, pouco sofisticado; quem ainda o possui dá sinais de que não dispõem de muitos recursos. Na segunda frase, carro é o carro do ano, o carro dos tempos modernos, com sua sofisticação, com o seu luxo, seu designe que desperta em muitos o sentimento do belo, da admiração (ou da cobiça). Importa ainda ver que a era moderna se define também por ser a era do predomínio da tecnologia, do seu crescente e ininterrupto desenvolvimento; disso se segue que o Fusca está defasado  entre os carros que atualmente circulam nas ruas de nossa grandes cidades. Para o falante, em virtude de ele não mais poder estar entre os signos da (pós)-modernidade, não merece mais a denominação de ‘carro’; melhor chamá-lo “meio de transporte’, já que serve tão-só ao deslocamento de pessoas e, por outro lado, está associado aos meios pelos quais as pessoas, especialmente as menos favorecidas sócio-economicamente, se deslocam de um lugar para outro, ou seja, através de ônibus, vans, kombis, metrô. É claro que, no caso do metrô, muitas pessoas bem sucedidas economicamente se valem dele para ir ao trabalho, como sucede no Rio de Janeiro, como as que se dirigem para o centro ou zona sul da cidade; o que importa, na verdade, é perceber a crença de nosso falante segundo a qual o fusca não se define como um carro, já que, para ele, ‘carro’ é signo de poder, possuí-lo significa ser privilegiado sócio-economicamente; é, em suma, signo de status. Se não há razão para considerá-lo carro, o fusca passa à categoria de ‘meio de transporte’, não é mais signo de status (porque não é mais carro), servindo apenas ao deslocamento de pessoas. Qual não seria a surpresa se esse falante visse um amigo executivo de terno e gravata dirigindo seu fusquinha 86?
Estou ciente de que me afastei demais do tema de que vinha me ocupando. Mas esse afastamento foi proposital, já que planejava escrever sobre argumentação e compreensão textual. No entanto, não pude deixar de apresentar o que me parece essencial a estas atividades: a capacidade de pensar, de pensar reflexivamente, de elaborar a crítica. Uma argumentação bem-sucedida é aquela que convence a audiência ou o leitor da validade de uma tese; é aquela cujos argumentos estão encadeados de modo a compor um todo coerente, justificado; um todo cujas partes estão articuladas segundo princípios lógico-semânticos e discursivos.
Conquanto muitas pessoas não se dêem conta disso, estamos argumentado o tempo todo em nosso cotidiano: desde as conversas triviais, entabuladas entre pessoas num ônibus, a caminho do trabalho, até nas atividades daqueles que se dedicam a compor textos, tais como “artigos (“científicos” ou jornalísticos”), “teses”, “dissertações”, tratados filosóficos, livros, etc. A argumentatividade é uma qualidade inerente às práticas de linguagem. Argumentando, produzimos enunciados na forma de atos de fala e por meio deles agimos sobre o outro. A linguagem é, assim, uma ação intersubjetiva que se atualiza socialmente, a cada nova instância de comunicação, a cada novo jogo de linguagem (Wittgenstein).
A argumentação, quando incide sobre o domínio da razão, poderá, se bem conduzida, levar ao convencimento; quando, no entanto, recai sobre a emoção, o sentimento, as paixões do indivíduo, ela poderá persuadi-lo; ela é, aqui, pois, uma atividade de persuasão.
Lembro-me de que, nas aulas em que precisava ensinar meus alunos a escrever textos dissertativos - tipos que, por excelência, são destinados à função de argumentação – incomodava-me o ter de oferecer-lhes o esquema estrutural de um texto argumentativo, que consiste na sequência ‘tese-argumentos-conclusão’ e não poder esperara que compreendendo tão-só a estruturação de um texto dissertativo pudessem me apresentar bons textos . E, especialmente, na faculdade, quando podia eu supor que já dominassem tal esquema, e me preocupando, então, em trabalhar com eles os chamados operadores argumentativos (justamente os elementos responsáveis por estabelecer as relações lógico-semânticas e discursivas entre os enunciados e por indicar-lhes a força argumentativa), percebia, com frustração, que não eram bem-sucedidos, quando tentavam escrever textos em que tinham de apresentar sua posição em face de uma dada questão.
As dificuldades que os estudantes têm para desenvolver, na escrita, um texto argumentativo advém da pouca familiaridade com a leitura,  particularmente de textos do tipo dissertativo. É na leitura aturada de muitos textos desse tipo que eles conseguirão apreender as estratégias empregadas pelos autores para conseguir convencer seus leitores. O papel do professor nesse processo é imprescindível, pois que é ele quem orientará os alunos na compreensão das estratégias argumentativas, na apreensão dos recursos empregados para produzir sentidos, para orientar os enunciados no sentido de determinadas conclusões, com exclusão de outras. É o professor que sinalizará para o aluno a função discursivo-argumentativa de um operador, as relações de causa-consequência entre enunciados, em geral sinalizadas por um operador, bem como os pressupostos veiculados em partes do texto. Por exemplo, se digo a alguém que é também amigo de João algo como “Embora João seja honesto, ele não é um profissional competente”, estou apresentando uma tese. Agora, imaginemos um contexto em que os falantes são amigos de trabalho e que João, sendo amigo em comum, é também um funcionário da mesma empresa. João foi advertido de sua falha na execução de uma tarefa. Quem pronuncia “embora João seja honesto”, pressupõe “João é honesto”, ou seja, coloca o conteúdo “João é honesto” como algo já dado, como aceito pelos interactantes. Em outras palavras, ao introduzir o enunciado com “embora”, pre-suponho o conteúdo “João é honesto” como expressando uma verdade consensualmente aceita, indiscutível (no discurso de que participo com o meu interlocutor). O pressuposto é um conteúdo inscrito no enunciado, embora, por definição, não “revelado”, “não-explicito”, que é ‘posto’ à margem da argumentação, pois que apresentado como se não fosse passível de recusa. No entanto, isso não significa que não possamos argumentar sobre o pressuposto, que não possamos recusá-lo, contradizê-lo. Significa, pois, que ele é assumido como algo estabelecido por consenso. O que o falante parece pressupor é a aceitação, na verdade, do da proposição colocada. Uma aceitação que pressupõe ser em comum com o interlocutor.
Vejamos também que o conteúdo “João é honesto” é apresentado como um argumento em favor de João, possivelmente em favor da permanência dele no emprego (supondo que os falantes compartilhassem o conhecimento de que João poderia ser demitido). Assim, “João é honesto” encaminha a conclusão “João deve permanecer no trabalho”. Essa conclusão pode ser sustentada de várias maneiras. Podemos, por exemplo, apresentar uma justificativa razoável para ela: “João deve permanecer no trabalho, porque honestidade torna o profissional uma pessoa confiável para a empresa”.
Note-se que, apesar de encaminhar a referida conclusão, o enunciado ‘João é honesto’, porque é introduzido por ‘embora’, é apresentado como um argumento de menos peso. Se a intenção do falante é argumentar no sentido da demissão de João, o argumento de maior peso, ou seja, determinante da conclusão ‘João deve ser demitido’, é justamente o argumento subsequente ao enunciado com “embora”: é o enunciado ‘ele não é um profissional competente’. Esse argumento veicula a ideologia da ‘competência’, ou seja, só tem o poder de executar ações, de tomar decisões seguras quem dispõe do conhecimento/ competência necessário para tanto. O argumento veicula a crença de que empresas valorizam mais o conhecimento de que dispõem seus funcionários do que seu caráter. Claro é que um terceiro enunciador poderia discordar disso. Mas, afinal, a prática argumentativa instaura um conflito e se desenvolve em espaços de conflitos. Diria mais: o discurso é o palco de conflitos, nele entrecruzam opiniões, crenças, representações ideológicas, visões de mundo, concepções conflitantes.
Sumariamente, enquanto o enunciado “embora João seja honesto” implica a conclusão “João deve permanecer no emprego”, o enunciado “João não é um profissional competente” leva à conclusão “João não deve permanecer no emprego”. Não é difícil concluir que os dois enunciadores estão de acordo quanto ao fato de João ser honesto, mas discordam quanto ao fato de a honestidade ser uma qualidade fundamental quando se tem de decidir pelo futuro de João na empresa. Para um deles, a honestidade pode bastar para que ele permaneça na empresa; para o outro, ela não é suficiente, o que conta mais é a sua competência.
E assim entre honestidade e competência, deverá o professor comprometer-se com a formação de cidadãos capazes de se situar criticamente na sociedade em que vivem, para que possam usufruir de seu direito à liberdade, à sua atuação política, à sua participação nas esferas culturais marcadas pelo letramento; para que tomem parte do legado de conhecimentos, socialmente produzidos; para que, emancipados, não aceitem mais conformar-se à massificação produzida pela televisão, para que rejeitem as opiniões agastadas e ventiladas na mídia, nas redes sociais, nas colunas de revistas destinadas a públicos em geral estereotipados (como as destinadas às mulheres), as ideologias que tendem à homogeneização, a reduções, a ditar padrões, a inculcar valores insuspeitos e que passam ao largo do crivo da crítica, para que, em suma, sejam intelectualmente autônomos e, portanto, capazes de escolher seus valores, de decidir por uma ética em cujo programa de ação esteja o benefício comum, a defesa do pensamento que não se cansa de pensar a si mesmo, o homem e a complexidade do mundo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"O professor só pode ensinar quando está disposto a aprender" (Janoí Mamedes)

                      

                    A formação do professor de português
                   Da antiga prática à crise que se arrasta

Para que os leitores que me acompanham, quer assiduamente, deixando o testemunho de seu interesse por meus textos, quer esporadicamente, dando aqui ou ali sinais de pouco interesse em minhas publicações (principalmente naquelas que se destinam à defesa do ateísmo, de que tenho me ocupado com mais afinco ultimamente) não concluam por minha predileção pelo referido tema (embora fosse equivocado assim pensar, dada a natureza diversa dos textos neste espaço propalados), tomarei para reflexão, nesta nova oportunidade em que, pela produção textual, me confronto com o mundo, a formação do professor de língua portuguesa. Este texto, quiçá, interesse aos meus ex-alunos do curso de Letras, muito embora (acredito eu) muitos deles passem ao largo de minhas publicações neste blog. Isso não me surpreende, desde que soube que é possível um aluno de Letras não gostar de ler e não exercitar a prática de escrita. Instaura-se uma crise!
Não pretendo alardear a crise (que olhada de perto explica a ineficácia do ensino de língua portuguesa em nossas escolas, isto é, explica como nossos alunos, após alfabetizados, tendo desde então percorrido onze anos de suas vidas em bancos escolares, podem chegar à universidade sem ser capazes de ler e escrever com eficiência), mas ela é um fato reconhecido e revisitado pelos profissionais que se dedicam a pensar sobre os problemas da Educação brasileira. Dentre estes profissionais, destacam-se muitos linguistas que, não se limitando a interesses meramente acadêmicos, voltaram suas preocupações para além dos corredores das universidades, concentrando-as no que se vem fazendo, nas escolas e nos cursos de formação de professores (graduação e pós-graduação lato sensu), com os conhecimentos que têm sido produzidos ao longo de mais de quarenta anos, desde a implementação da Linguística nos cursos de Letras, em 1963.
Este texto vem a propósito na ocasião em que me ocupei com o desenvolvimento de meu próximo artigo acadêmico, que será destinado à publicação em breve. Nesse trabalho, propus-me a pensar sobre a formação do professor de português, tendo em vista a dificuldade de superar o modelo de ensino tradicional baseado em atividades de metalinguagem e análise estrutural da língua.
Todos nós, que tivemos acesso à escolarização básica, sabemos que nas aulas de português que nos foram ministradas sempre predominaram atividades durante as quais éramos, enquanto alunos, levados a ‘classificar as palavras’, ‘identificar as vozes verbais’, ‘fazer análise sintática’, ‘classificar as orações subordinadas’, etc. Essas atividades podem ser entendidas como atividades de metalinguagem, porque nelas usamos a língua para refletir sobre a própria língua tomada em si mesma, ou seja, desvinculada de contextos de uso. Trata-se aqui de levar os alunos a compreenderem o mecanismo gramatical da sua língua materna, entre outras coisas, levá-los a compreender as regras subjacentes à formação das orações, frases, palavras, as propriedades semânticas, sintáticas e morfológicas das palavras (substantivo, adjetivo, artigo, verbo, etc.). A língua é, assim, entendida como um objeto a ser dissecado, suas partes discriminadas e classificadas e seu ‘sistema de regras’ (gramática) explicitado. É o que sucede quando tomamos a frase abaixo e a analisamos do ponto de vista sintático. Senão, vejamos:

(1) O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500.

Estamos diante de uma frase bem-formada em língua portuguesa. Isso significa dizer que ela foi construída de acordo com a gramática dessa língua, a saber, com o seu conjunto sistemático de regras. Em primeiro lugar, as palavras que a compõem se organizam em blocos de sentido, ou sintagmas. Formam elas blocos de palavras entre as quais há coesão. Assim, discriminamos “o Brasil”, “foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500”, num primeiro nível de análise. Dentro deste grupo maior, identificamos ainda “por Pedro Álvares Cabral” e “em 1500”. A análise poderia prosseguir discriminando níveis hierárquicos mais “baixos”. No entanto, não vou me aprofundar na complexidade das estruturações sintáticas. São, pois, sintagmas os seguintes grupos de palavras:

O Brasil  - sintagma 1
Foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500 – sintagma 2
Por Pedro Álvares Cabral – sintagma 3
Em 1500 – sintagma 4

Os grupos assim constituídos correspondem à nossa intuição enquanto falantes nativos, relativamente à conexão existente entre as palavras que os compõem. Assim, “sentimos” que “o Brasil” forma uma unidade sintático-semântica, mas não se pode dizer o mesmo de “Brasil foi” ou “Pedro Álvares Cabral em 1500”.
Existem, porém, dois expedientes, comumente aplicados, para assegurar a validade de nossa intuição. Ou seja, por eles prova-se que aqueles grupos constituem verdadeiros sintagmas. Partimos de dois princípios: a) todo sintagma é passível de substituição por outro sintagma funcionalmente correspondente, ou seja, por um sintagma que possa ocupar a mesma posição do sintagma que se trata de substituir; b) todo sintagma pode ser transposto para outras posições na cadeia sintagmática. O primeiro teste chama-se de “comutação”. Veja-se o que ocorre com a nossa frase aplicando os dois testes:

(1a) O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500.

        A América foi descoberta por Cristovão Colombo em 1492.

      O menino estudava matemática    todos os dias.

Importa ver que no lugar de “O Brasil” podemos introduzir os sintagmas “a América” ou “o menino” (o número de possibilidades é ilimitado). No lugar de “por Pedro Álvares Cabral”, podemos colocar “por Cristóvão Colombo” (ou por qualquer outra estrutura funcionalmente correspondente). O sintagma “foi descoberta por Cristóvão Colombo em 1500” pode ser substituído pelo sintagma “estudava matemática todos os dias”. Assim também o sintagma “todos os dias” pode comutar com “em 1492”.
Embora nem sempre usuais, podemos dar às frases aqui exemplificadas outras configurações, o que significa dizer que podemos deslocar os sintagmas para outras posições, organizando-os de modo diverso da versão original da oração.
(1b) Por Pedro Álvares Cabral foi descoberto o Brasil em 1500.
      Em 1500, foi descoberto o Brasil por Pedro Álvares Cabral
      O menino todos os dias estudava matemática.
       Estudava o menino matemática todos os dias
      Matemática estudava o menino todos os dias
      Todos os dias estudava o menino matemática
      Todos os dias estudava matemática o menino (?)

Claro parece que alguns constituintes, em virtude do grau de coesão que mantenham com outros não são facilmente deslocáveis. Por exemplo, a frequência com que sujeito pode se deslocar para depois do verbo (sendo sua posição canônica antes do verbo) depende de o verbo não exigir complemento. Casos frequentes são os que seguem:

(1c) Muitas coisas aconteceram aqui.
       Aconteceram muitas coisas aqui.
       Nasceu muita criança neste ano.
       Muita criança nasceu neste ano.
       João escondeu o bicho debaixo da cama.
       Escondeu João o bicho debaixo da cama.

 A posposição de “João” ao verbo “esconder”, que exige o complemento “o bicho” não é tão usual. Na fala corrente, tende a não se verificar.
Aspectos de concordância e regência são também evidenciados aos alunos durante as atividades de análise da língua fragmentada e descontextualizada. Por exemplo, o aluno aprende que o verbo, na variedade padrão da língua, assume o número e a pessoa do sujeito. Ao fazê-lo, ele modifica sua forma morfológica para adequar-se ao sujeito. Assim é que “O Brasil”, constituído por um núcleo substantivo no singular, determina a forma do verbo. Este assume a forma de 3a pessoa do singular (todo substantivo, por designar coisas, fatos, eventos dos quais falamos representa no discurso a terceira pessoa, ou a não-pessoa, em relação as duas pessoas do discurso, a 1a e a 2a).
Já há muito, os professores reconheceram que o estudo formalista da língua, ou seja, baseado na análise de sua estrutura, com discriminação das suas entidades, identificação dos tipos de relações entre elas, das regras subjacentes a essas relações, não contribuem para alcançar o objetivo fundamental do ensino de português a falantes nativos dessa língua. Em outras palavras, não levam os alunos a ler melhor, escrever e falar de acordo com a norma padrão. Não é ensinando gramática que levaremos nossos alunos a se tornarem mais proficientes no uso de sua língua materna.
Avultou-se à consciência a necessidade de dar às práticas de leitura e produção textual um espaço maior no tempo em que ocorrem as aulas de português. É somente quando consideramos a língua em uso, realizada em textos reais, compreendida nos processos discursivos, que estaremos efetivamente contribuindo para o desenvolvimento do que se tem chamado “competência comunicativa” dos falantes nativos.
A competência comunicativa (para os estudantes de Letras trata-se de uma lição fundamental e que não pode ser negligenciada) é a capacidade de o falante nativo não só produzir enunciados em sua língua de acordo com as regras da gramática internalizada, que está inscrita em sua mente/cérebro, mas também de usá-los adequadamente às diferentes situações comunicativas de que participa. A competência comunicativa é sensível não só às regras daquela gramática, sem as quais não é possível, mas também às regras ou normas sócio-culturais. Assim, um falante comunicativamente competente sabe como se comportar linguisticamente em situações sociais solenes, como enterros, celebrações religiosas,  ou em situações que demandam formalidade (mas não necessariamente solenidade),  como congressos, reuniões de trabalho, ou ainda quando precisam se dirigir a advogados, diplomatas, desembargadores, a seus professores, especialmente quando estão apresentando uma comunicação em congressos, etc.
Ter competência no uso de nossa língua é saber transitar nas diferentes esferas sociais de modo adequado às normas nelas vigentes. Essas normas são internalizadas por nós via cultura. É porque partilhamos de um mesmo código cultural e linguístico que somos capazes de reconhecer estas normas, estas convenções de nossa sociedade. O uso da língua perpassa todas as esferas institucionais de nossa sociedade, desde a família até as esferas jurídicas, passando por escola, universidade, associações por ideologia ou lazer, burocracia; em suma, compreende os espaços privado e público.
O que me motiva ao magistério, o que me motiva, mormente, no exercício de minha vocação como intelectual e professor de língua portuguesa é justamente o enfrentamento da crise, tão bem patenteada por Coimbra (2006), em A Formação do Professor de Português, quando escreve sobre o fato de a grande maioria dos professores de português atuantes nas redes escolares pública e privada não serem nem leitores nem escritores (em sentido lato):

 “(...) o reconhecimento de suas próprias deficiências levá-los-ia a entender as dificuldades dos alunos e a modular sua relação com as deficiências deles. Ou seja, esses professores ainda não se tinham dado conta das dificuldades inerentes ao escrever e de suas deficiências pessoais. Tinham passado iludidos pela escola e pelo curso de letras: ou nunca tinham escrito na vida ou nunca tinham tido problematizada a sua escrita e nunca se tinham perguntado se sabiam ler e escrever suficientemente bem para querem-se professores de português”
(p.28)

       Do fragmento citado, chegamos à conclusão irrecusável de que a condição prévia para se ensinar a ler e a escrever com eficiência é saber ler e escrever com eficiência. Daí que o ensino de leitura e de escrita deve ser feito por leitores/ escritores a leitores/escritores. Se os professores não têm o hábito de ler, se não praticam o exercício da escrita e reescrita contínuo, como podem eles pretender ensinar aquilo com que sequer estão familiarizados?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

"A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida". (Sêneca)


                                            Educação em foco
                           Considerações sobre ser professor

Costumo dizer que sou um apaixonado do exercício do magistério; sou um professor comprometido com uma Educação libertária. E sorri-me a crença em que, talvez, tenha eu nascido para a prática pedagógica. Se é verdade que certas aptidões e talentos possam já estar previstos em nossa constituição genética, é muito provável que a minha aptidão para o magistério estivesse em mim latente. É o que sinto, sinceramente, e o confesso aqui.
O que me estimula a escrever este texto é mais do que a necessidade de dar um testemunho de minha paixão pelo magistério, é também a vontade de trazer à consciência de meus leitores a inegável importância da Educação na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Sou romântico, sim, também neste domínio. Claro é, porém, que evito deslumbrar-me com idealizações, com utopias. E experimento frustrações, frequentemente. Não escapamos a elas, como professores, sempre que nos comprometemos a ir além; sempre que não nos conformamos às condições educacionais muito pouco favoráveis a um ensino crítico e libertário. Só não se frustram aqueles que nada desejam, que nada pretendem, além de receber, ao final do mês, seu ganha-pão.
A Educação é lugar de conflitos; é o espaço onde as desigualdades sociais, as diferenças de classe, as ideologias, as crenças e visões de mundo diversas repercutem. Mas é também o espaço onde tudo isso deve ser trabalhado; digo, discutido e questionado. A Educação é (ou deve ser), numa sociedade democrática, um espaço de resistência. Formar para a resistência, desenvolver a consciência crítica, promover a reflexão, o questionamento – são todas atividades que competem aos profissionais da Educação.
A que resistência me refiro? Resistência ao status quo, resistência ao senso-comum, aos lugares-comuns, às ideologias prestigiosas e que, supostamente, prescrevem “verdades”, aos preconceitos de toda sorte (inclusive ao preconceito linguístico, completamente ignorado, quer pelos membros das classes dominadas, quer pelos membros das classes dominantes, quer também por grande parte de nossas autoridades políticas).
Enquanto me ocupava da leitura do livro Nada na língua é por Acaso – por uma pedagogia da variação linguística (2007), do renomado (socio)linguista Marcos Bagno – um livro que, por sinal, muito bem escrito e de fácil compreensão – chamou-me a atenção o seguinte trecho, que é a expressão de uma das etapas que, segundo o autor, configuram o trabalho de reeducação sociolinguística que cabe ao professor de português desenvolver na escola (e eu acrescentaria também na universidade):

“Conscientizar o alunado de que a língua é usada como elemento de promoção social e também de repressão e discriminação – comparar o preconceito linguístico com as outras formas de preconceito que vigoram na sociedade; desconstruir o preconceito linguístico com argumentos bem fundados e alertar alunos e alunas contra suas próprias práticas de discriminação por meio da linguagem”
(p. 84)
(grifo no original)

Em seus livros (que prezam sempre pela clareza e pela fundamentação teórica, sem deixarem de ser didáticos e acessíveis à leitura), Bagno insiste incansavelmente na necessidade de combate ao preconceito linguístico, ignorado em nossa sociedade. Ele existe! Mas passa ao largo dos debates sobre temas sociais e políticos na mídia e escapa à consciência da grande maioria dos indivíduos de nossa sociedade. É claro que isso não é um fato específico da sociedade brasileira; o preconceito em relação aos usos da língua é comum  senão a todas, certamente à maioria das sociedades civilizadas.
E como esse preconceito se manifesta? Se manifesta nas ocasiões em que discriminamos a fala dos outros, a censuramos, a ridicularizamos, a rotulamos de “errada”, de “estropiada”, etc.. E mais – e isso sequer é percebido: a discriminação do modo de falar do outro é também discriminação do próprio indivíduo. Ora, quando usamos a língua trazemos à tona também nossa origem sócio-cultural, ou seja, à classe social a que pertencemos, nosso grau de escolarização e de participação na cultura letrada. O que falamos revela muito sobre de onde viemos, onde fomos educados, sobre nossos valores, nossa identidade; em suma, sobre quem somos. Disso se segue que, ao censurar uma forma como probrema (que, aliás, é muito estigmatizada; talvez, o leitor tenha-se rido ao lê-la) produzida por uma empregada doméstica, estamos demarcando-lhe as fronteiras sócio-culturais que dela nos separam. Estamos dizendo, tacitamente: “vejo logo que você vem de uma classe social menos favorecida à qual eu não pertenço (e rejeito)”. Os usos da língua, é preciso dizer, revelam a estratificação social. Numa sociedade como a brasileira, fortemente estratificada, usar a língua é, muitas vezes, uma forma de reforçar essa estratificação social. E fazemos isso frequentemente, sem que, muitas vezes, percebamos.
Não vou, contudo, me alongar neste assunto. Volto ao que me interessa propriamente aqui: a Educação. Evidentemente, falar em Educação é falar de um espaço de múltiplos discursos, portanto, de um espaço onde as práticas institucionais (e não poderia ser diferente) são práticas de linguagem. Discursos são arenas de conflitos; é o lugar privilegiado da ideologia. São práticas sociais ou modos de ação social e formas de representação; nesse tocante, devemos entendê-los tanto como espaços sociointeracionais moldados pelas estruturais sociais, quanto espaços constitutivos dessas estruturas. Assim também o discurso serve para a reprodução e  para a mudança dessas estruturas.
A Educação não é imune aos jogos de poder fundamentados nos discursos e por eles viabilizados ; ela não está salva das ideologias dominantes, das desigualdades de classe, realidades estas que repercutem em seus espaços institucionais (veja-se a escola). E o professor, como agente social, pedagógico e político, precisa atuar no sentido de mediar a relação entre as diferentes formas de representação social e de conhecimento. Ele não escapa ao senso-comum, evidentemente; mas não pode limitar-se a reproduzi-lo, deve ultrapassá-lo, deve estimular seus alunos a questioná-lo. Daí sempre a necessidade do debate, da leitura reflexiva, orientada, mas também das releituras (que não consistem em ler de novo, mais em ler sob outras perspectivas, à luz de novos conhecimentos alcançados). Questionar as leituras institucionalizadas, consagradas por uma tradição intelectual elitizada; afinal, os textos ( incluindo as obras literárias) são abertos a muitas interpretações (não a todas, certamente, mas a muitas) – constitui tarefa de todo professor (não só do de português e Literatura).
Uma Educação para a resistência começa num trabalho orientado pelo princípio de que a linguagem é um instrumento não só de expressão, mas também de reprodução e consolidação do poder. Não obstante, é também um espaço em que os poderes podem e devem ser questionados.
Não só fala quem manda; mas também fala quem ousa resistir e questionar! E você, ousa falar?


segunda-feira, 16 de maio de 2011

                                       Desafios docentes

Acho que peso muito sobre a vida; minha alma é densa demais, é repleta demais para que a vida a abrigue. Sua fragilidade é tão evidente, mas muitos de nós fingem não notá-la. Ignoram-na. O nascimento de um ser humano é um acontecimento de resistência à morte; é a vitória da vida sobre ela. No entanto, poucos se apercebem disso.
Ainda me agarro a ideais; fico grudado neles e custa-me desapegar-me. Eles, às vezes, dificultam o vagaroso e consistente percurso dos projetos, certamente mais sólidos e tangíveis. De resto, os ideais são frágeis e dissolúveis; podem evaporar-se nas calorosas emoções.
A palavra paixão foi definida diferentemente na tradição filosófica. Aristóteles chamava paixão a toda ação que se sofre; daí se deduz a ideia de passividade; para Descartes, paixão recobre os estados afetivos impressos na alma,  ou melhor,  no cérebro.
Modernamente, paixão tanto pode designar uma tendência que anula a vontade e a razão, como uma tendência que as reforça, que as potencializa. A paixão em meu espírito cumpre esse último papel: é potencializadora.
Minhas palavras ficaram mergulhadas num silêncio repressor por longo tempo, simplesmente porque se me calou no espírito a paixão. Fui acometido de um resfriamento espiritual que me tornou ausente de mim mesmo. Faço-me presente em mim quando escrevo; as palavras promovem o reencontro de mim comigo mesmo, na medida em que me motivam a externar meus pensamentos e os sentimentos que se vão acumulando ao longo do tempo em que me mantive silenciado.
Acredito em que a vida torna-se insossa e pesada, porque nos fadiga, nos atrofia e nos cerceia a vontade de potência, sempre que nos vemos privados de paixão. É movido pela paixão que exerço a docência e é com paixão, afinada com a razão, harmonizada com o bom-senso, com o espírito crítico, que combato toda forma de preconceito, discriminação e superstição.
Se a existência dos homens se expressa senão através de projetos; se os homens são um projeto, que se reinventam no decorrer de suas inúmeras experiências de vida; se nos resta senão a liberdade de escolhas, considerando-se sempre as condições socioculturais, econômicas e ideológicas em que tais escolhas se tornam mais ou menos possíveis, então sou forçado a admitir que meu projeto intelectual é promover sempre uma tensão, um desequilíbrio, uma desestabilização de nossas crenças mais arraigadas, de nossos padrões de pensamento, de nossas ideias engessadas, enferrujadas e enraizadas.
Como professor-pesquisador, estudioso e leitor tenaz, filósofo das horas vagas, inconformado num mundo de conformados, imponho-me dois desafios: o ensino da leitura crítico-emancipatória (e de sua contra-face escrita desafiadora); e o combate ao preconceito linguístico. Desenraizá-lo da consciência social dos brasileiros não constitui tarefa fácil; e, talvez, pretender que uma sociedade dividida em classes como a nossa se livre do preconceito linguístico seja uma utopia. Não obstante, tal reconhecimento não deve frustrar o admirável trabalho, que consiste na formação de professores de português suficientemente instrumentalizados teórica e metodologicamente para que, atuando no ensino escolar, do nível fundamental ao médio, possa: a)  trabalhar a variação linguística como um fato inegável na heterogênea sociedade brasileira; b) discutir (com os alunos) a adequação/ inadequação de uso de uma ou outra variedade linguística; c) sensibilizá-los para o fato de que não existe uma norma culta; ou melhor, que sua existência é meramente ideológica, já que ela é um ideal de correção linguística; d) ensinar-lhes que não há, de um ponto de vista estritamente linguístico, erro ao usar a língua, mas que as noções de certo e errado resultam de julgamentos socioculturais (em geral, preconceituosos) que as camadas mais favorecidas da sociedade (que detém o poder econômico e político-ideológico) fazem dos usos linguísticos das camadas menos favorecidas; e) mostrar-lhes que também entre os membros das classes mais favorecidas há censura mútua relativamente ao seu comportamento verbal, na base de um ideal de correção linguística, etc. As lições podem ser multiplicadas, é claro.
Ontem, assisti a uma reportagem, divulgada no Jornal do Sbt  apresentado por Carlos Nascimento, sobre a apresentação, em um livro didático destinado ao ensino de português no nível escolar, de variantes linguísticas como “nós vai no cinema”. A autora do livro, que na entrevista, exibia uma formação adequada em Linguística, salientou a importância de discutir essas variantes em termos de adequação de uso. No próprio livro, se achavam observações sobre a possibilidade de uso dessas variantes.  Mas o apresentador Carlos Nascimento ironizou dizendo que agora ele deveria usar “nós vai apresentar” e os telespectadores “vai assistir”. A ignorância quanto às contribuições da sociolinguística no tocante à descrição da heterogeneidade linguística do Brasil e ao combate do preconceito linguístico é um fato geral em nossa sociedade, infelizmente reforçado por aqueles que podem ser incluídos na classe dos intelectuais, como os jornalistas.
Recomendo ao leitor interessado a leitura de alguns livros do professor e pesquisador Marcos Bagno – um dos mais renomados especialistas de Sociolinguística no Brasil -, entre os quais estão O Preconceito Linguístico e Nada na Língua é Por Acaso.
A par do combate ao preconceito linguístico, reside em meu espírito a força sempre renovável para o ensino da leitura, ou seja, da atividade de produção de sentidos para um  texto.  O primeiro problema com que o professor se vê à volta é fazer com que o aluno se desapegue da superficialidade linguística do texto. Com efeito, o esforço docente se destina a levar o aluno a transcender o nível da materialidade linguística do texto, para atingir o nível dos implícitos, dos silenciamentos.
Numa aula com alunos do curso de pedagogia, na faculdade onde trabalho, a fim de ensinar que o leitor experiente é agente de sua leitura, pois que capaz de produzir sentidos para o texto e não “captar” ou “pinçar” sentidos previamente existentes, propus uma frase simples como:

(1) Maria chegou.

Como nenhuma atividade linguística se dá fora de contextos sociais, disse-lhes que reconhecessem (1) como um enunciado, de modo que tivessem de recuperar, pelo menos, as duas instâncias: a) o produtor e b) o receptor.
Posteriormente, solicitei que produzissem uma interpretação dos seguintes pares, tendo em conta uma continuação cognitivo-conceitual entre as duas partes:

(a) – Maria chegou.
      - Podemos ir.

(b) – Maria chegou.
       - É melhor se esconder.

(c) – Maria chegou.
       - Estou salva.

(d) – Maria chegou.
       - Agora, estou perdida!

Para (a), alguns alunos sugeriram que Maria era aguardada para que todos pudessem sair juntos; outros disseram que Maria ficaria encarregada de cuidar das crianças, enquanto os pais estavam fora. Para (b), Maria representava alguma ameaça para alguém e, por isso, essa pessoa devia se esconder. Alunos houve que sugeriram que Maria seria surpreendida com uma festa. Para (c), alguns alunos disseram que Maria iria ajudar numa situação complicada. Para (d), o interlocutor espera que Maria o repreenderá por alguma coisa que ele fez de errado.
Suponhamos que sabemos ser Maria a irmã mais velha do interlocutor. Então, munidos dessa informação contextual, poderíamos dizer que em (a) Maria ficaria encarregada de cuidar de seu irmão mais novo. Em (b), poderíamos dizer que a irmã de Maria fez alguma coisa de errado e que, para evitar a bronca, deveria se esconder. Em (c), Maria ajudará a irmã a solucionar um problema (um exercício de matemática complicado). Em (d), ao contrário, ela representa um problema, uma ameaça (a irmã manchou involuntariamente o vestido de Maria).
O que o exercício revela é que, para que possamos atribuir sentido a uma dada sequência linguística, precisamos reconstruir contextos. Tais contextos são de ordem sociocognitiva. Portanto, dizem-se contextos sociocognitivos. Precisamos saber a respeito dos papéis sociais desempenhados pelos interactantes, as imagens recíprocas que fazem de si mesmos e uns dos outros, que conhecimentos partilham entre si, que expectativas também são partilhadas, etc. Cada qual deles possui uma informação pragmática que será negociada e modificada na interação verbal. Essa informação diz respeito ao conjunto de conhecimentos de que dispõem referentes à situação comunicativa (papeis sociais dos interlocutores, grau de intimidade entre eles, saberes compartihados, etc.). Dada a escassez de informações necessárias à interpretação dos pares de enunciados, cabe ao leitor reconstruir um contexto sociocognitivo que lhe permita produzir um sentido. Por isso, interpretar, isto é, produzir sentido é ir além do material linguístico, sem, contudo, dispensá-lo.