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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

"As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo." (Ludwig Wittgenstein)


                       

                               Para além da gramática
                A estruturação do mundo pela linguagem


O objetivo das aulas de língua portuguesa na escola é desenvolver as habilidades de leitura e produção textual dos estudantes. Há espaço para atividades de reflexão sobre a gramática? Desde que compreendida como um mecanismo estrutural emergente do texto. Desde que seja pensada como um sistema de regras que ativamos para a produção de textos com vistas a produzir sentidos. Desde que não seja considerada como algo à parte dos processos comunicativos que tomam forma em textos.
Não me surpreende, contudo, que os exames de concursos públicos ainda sejam elaborados com questões que exploram fatos de gramática em frases amputadas, em fragmentos de texto desprovidos de funcionalidade. O que se oferece são cadáveres linguísticos para análise e taxionomia gramaticais.
Recentemente,  me pediram para eu explicar o que é um predicado nominal. A pessoa interessada na explicação está estudando para o concurso do Banco do Brasil. Silenciei e, rapidamente, comecei a lhe explicar do modo mais simples possível. Me apoiei sobre o aspecto formal e lhe disse que o predicado nominal se forma por um dos verbos de ligação (ser, estar, permanecer, ficar, parecer, tornar-se, continuar, andar) e por um adjetivo, ou substantivo, ou numeral, o ou pronome, que se dispõe à direita. Isso, contudo, não explica o que significa  o conceito de predicado nominal. Afinal, não explica a diferença entre predicado verbal e predicado nominal. Tanto num quanto noutro há um verbo.
Imagine-se que o professor dissesse que o predicado nominal se forma pela combinação de um dos verbos de ligação referidos acima e um predicativo. Bem, nesse caso, ele teria de explicar o que é um predicativo (na GT, predicativo do sujeito). E se ele recorrer às gramáticas normativas mais representativas pode ou não encontrar uma resposta satisfatória, ou, pode não encontrar resposta alguma. Predicativo cujo conceito, nas teorias de base funcionalista, é recoberto pelo termo predicador, é o elemento da oração responsável pela predicação. E predicação é um conceito que não é explicitado na tradição gramatical. Nas três principais gramáticas de nossa língua, não se nota uma definição de predicação. Seus autores parecem partir do pressuposto de que seus leitores já sabem o que é predicar. Mas predicar é uma noção que tem uma longa história no pensamento linguístico, remontando às reflexões de Aristóteles sobre lógica. Predicar é, grosso modo, emitir um juízo sobre um sujeito. Na frase “Felipe é meu amigo”, há uma predicação, já que se informa algo sobre “Felipe”. O conceito aristotélico de predicação é mais abrangente, todavia. Não vou me estender sobre pormenores.
Atualmente, ao contrário do que sugeria a lógica proposta por Aristóteles, toda predicação inclui necessariamente um verbo, embora nem sempre seja desempenhada por um verbo. No caso de frases como “Felipe é meu amigo”, o predicativo (ou predicador) é “meu amigo”, e não o verbo “ser”.
Mas por que não é o verbo “ser”? É que a noção de predicação consiste no estabelecimento de relações entre termos e na aplicação de propriedades a esses termos. O predicador desempenha os seguintes papéis:

a) é ele que seleciona seus argumentos;
b) é ele que estabelece a relação entre esses argumentos;
c) é ele que faz restrição de seleção quanto à classe semântica desses argumentos.

Há, portanto, duas dimensões, intrinsecamente ligadas, no fenômeno da predicação: uma semântica, que diz respeito ao fato de o predicador fazer restrição quanto à classe semântica dos seus argumentos e de lhes fixar determinados papéis semânticos (agente, paciente, etc); a outra, sintática, que diz respeito ao fato de o predicador estabelecer uma estrutura relacional constituída de um certo número de lugares vazios a serem preenchidos por seus argumentos. É o predicador que determina os argumentos que devem ocupar os espaços a eles destinados na oração.

Assim, por exemplo, tome-se o verbo “rasgar”. O verbo “rasgar” instaura uma estrutura de relação em que um ou dois argumentos podem estar implicados. Vou representar os argumentos pelas letras X (sujeito), Y (complemento 1), Z (complemento 2):

a) X rasgou.
b) X rasgou Y

(1) A camisa rasgou.
(2) Pedro rasgou a camisa.


Note-se que, quando usado sem complemento, o verbo rasgar exige um substantivo [- animado] e [+ rasgável] para preencher a posição de sujeito. As propriedades (semânticas) - animado e + rasgável são importantes por que restringem o uso dos substantivos que podem ocupar a referida posição. O sujeito aí cumpre o papel semântico de paciente (sofre a ação). Os traços explicam por que uma frase como “A madeira rasgou” é semântica e cognitivamente inaceitável. O substantivo “madeira” não comporta a propriedade + rasgável. Por outro lado, a inaceitabilidade da frase “Pedro rasgou”, decorre do fato de que o substantivo Pedro comporta o traço semântico + animado. É o verbo “rasgar”, enquanto predicador, que prevê o uso de substantivos dotados de determinados traços, nas duas estruturas que estabelece. Em (2), temos uma estrutura sintática em que se acham articulados dois elementos: um, na posição de sujeito; e outro, na posição de complemento. Nesse caso, o termo que ocupa a posição de sujeito pode ser o agente, ou seja, pode representar a entidade animada que age intencionalmente (pode porque nem sempre o interpretamos como agente; dependendo do contexto, interpretamos “Pedro rasgou a camisa” como “a camisa do Pedro rasgou”, sem que Pedro tenha intencionalmente rasgado sua própria camisa); enquanto a posição de complemento será ocupada por um substantivo na função de objeto que comporta a propriedade [+rasgável]. Uma frase como “Pedro rasgou a pedra” é inaceitável, porque, embora satisfaça a condição adequada para o preenchimento do sujeito nesse caso (sujeito agente), não satisfaz a condição de preenchimento do complemento, posição que deveria ser ocupada por um substantivo que comporta o traço [- rasgável].

Esquematicamente, concluímos o seguinte sobre o verbo “rasgar”:

(1)   X   rasgar
Paciente
      [- animado] [+ rasgável]



(2) X        rasgar       Y
     Agente                Objeto
   [+ animado]          [- animado]
   [+ intencional]      [+ rasgável]


Para além de uma exercitação gramatical, no nível semântico-sintático, a análise da predicação patenteia o modo como nós experienciamos o mundo por meio da linguagem. Ela nos mostra como, valendo-nos da linguagem, organizamos nossas experiências de mundo numa estrutura dotada de sentido. Mostra-nos como o mundo é (re)construído, organizado estruturalmente mediante as categorias da linguagem. Assim, quando usamos um verbo como “rasgar” (uma categoria) para construir um estado-de-coisas do mundo, uma “cena” experienciada da realidade, sempre reconstruída a partir de uma dada perspectiva, temos, para que tenhamos sucesso comunicativo. quando da codificação de nossas experiências de mundo. construir nossos enunciados na base do modelo semântico-cognitivo e estrutural previsto por esse verbo.
Insisto neste ponto. O verbo “rasgar” descreve uma ação em que estão envolvidas entidades que desempenham, nessa parcela de mundo por ele descrita, determinados papéis. Cada qual comporta certo número de traços que dizem respeito às interpretações que fazemos das relações entre as coisas do mundo. Por exemplo, categorizamos um ser como agente se ele é capaz de executar intencionalmente uma ação. Categorizamos uma entidade como ‘paciente’ se ela sofre uma ação. E assim por diante.

Vejamos a frase abaixo:

(3) Eu guardei meus livros na estante.

Claro parece que o “eu” é o agente; “meus livros”, o objeto; e “na estante”, o lugar. Não tendemos a considerar “meus livros” como paciente, porque não sofre, a rigor, a ação, embora esteja implicado na ação.
Se quiséssemos determinar a predicação do verbo “guardar”, devemos ainda considerar sua estrutura relacional, a qual encerra três termos representados pelas variáveis X, Y e Z:

(3) X  guardar  Y em Z.

A preposição é exigida pelo verbo “guardar”. Através dela, conecta-se o constituinte “Z” ao verbo “guardar”.
Se nós invertêssemos a relação entre os termos, o resultado seria uma estrutura semanticamente inaceitável. Vejamos:

(3a) * O livro me (=eu) guardou na estante.

É que o verbo “guardar” exige que, na posição de sujeito, ocorra um substantivo [+ humano], na função de agente; e que, na posição de complemento, figure um substantivo [- animado] na função de objeto. Note-se que, nesse caso, o traço [+ humano] é mais restritivo que o traço [+ animado], o qual também pode se aplicar a animais. Um animal não pode guardar um livro na estante.

Voltemos ao exemplo “Felipe é meu amigo”. O predicador (ou predicativo, na GT) é “ meu amigo”. Seu núcleo “amigo” é que seleciona tanto o verbo “ser” (que expressa uma relação atributiva, ou seja, 'amigo' é uma qualidade que atribuo a Felipe) como o sujeito. Comunico, assim, que “Felipe” está incluído na classe de amigos que tenho. Em relação ao sujeito, “amigo” determina que essa função  seja preenchida por um substantivo [+ animado] (em geral, [+ humano]). Isso é importante, porque permite que expliquemos a inaceitabilidade de uma frase como “*O chapéu é meu amigo”.