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sábado, 24 de março de 2012

"A educação é uma coisa admirável, mas é bom recordar que nada do que vale a pena saber pode ser ensinado." (Oscar Wilde)

                             

                                           A educação medieval
           
                              Quando Deus se torna soberano


1. Primícias

A seriedade com que desempenho o papel de agente de uma escrita formativa leva-me a alguns cuidados sobremaneira indispensáveis ao êxito de meu trabalho. Os cuidados a que me refiro dizem respeito a uma detida perquirição dos pensamentos que me vão trafegando no espírito, à medida que vou escrevendo, e também à conformação da intenção ou do plano textual à sua realização. Essa meticulosidade é razão de muita ansiedade, por isso, sem mais delongas, enuncio, a seguir, meu intento, ao compor este texto.

2. Assentando o terreno

Eu espero, aqui, conseguir mostrar de que modo a ideologia religiosa influenciou decisivamente as diretrizes educacionais, durante o longo período recoberto pela designação de Idade Média (que durou mil anos, desde a queda do Império Romano, em 476, até a conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453). À medida que as civilizações se desenvolviam, essa ideologia tomou corpo na forma de dogmas e doutrinas, fortalecidas e disseminadas, no Ocidente, após a queda do Império Romano, por uma Igreja Cristã que administrava e centralizava o saber,
Essa delimitação é necessária, em função da natureza deste texto e dos objetivos, certamente, modestos a que se presta. Concepções e tradições religiosas também influenciaram a pedagogia de povos antigos, no Oriente, como na China, na Índia e na Mesopotâmia. A respeito da educação desenvolvida por esses povos, entre os quais devemos incluir também os hebreus, de quem provêm os valores e as tradições contidas no Antigo Testamento, que chegou até nós pela Bíblia, vale notar que, devido à orientação religiosa de suas práticas, a educação pouco favoreceu para provocar mudanças nas estruturas sociais. Tais civilizações tinham em comum a tendência à conservação do status quo, de tal sorte que a mudança, quando havia, era bastante lenta.
A importância desta revisão histórica das formas como a religião, especialmente a cristã, entre nós, imiscuiu-se nas esferas da política e da educação e de suas consequências se justifica pela observação, em nossa modernidade, da insinuação de medidas políticas de orientação religiosa, como as que propõem o ensino da Bíblia ou a prática da oração do Pai Nosso antes do início das aulas, em escolas municipais (como as de Ilhéus). Seria isso um sinal de ameaça à laicidade do Estado brasileiro? Essa pergunta só pode ser formulada na base do pressuposto de que o Estado brasileiro é verdadeiramente laico. Os mais céticos, entre os quais estão agnósticos e ateus, desconfiam disso; os mais radicais negam-no.
Antes, porém, de se argumentar no sentido ou não de uma ameaça à laicidade do Estado, convém precisar o que significa dizer que um Estado é laico. Isso é uma questão a ser discutida em outra oportunidade. 
A minha postura político-pedagógica está afinada com a tendência atual entre os educadores em insistir na necessidade de uma formação cultural permanente, continuada, autogerida, fundada no valor do desenvolvimento da consciência crítica. Portanto, de uma consciência capaz de ir na contramão do que Habermas chama razão instrumental, que, retirando dos seres humanos sua autonomia (crítica e reflexiva) está a serviço da dominação da natureza com fins práticos e lucrativos. A razão instrumental, ensinará Habermas, só nos diz o que fazer e como fazer, de modo a alcançar determinados fins, mas ela é insuficiente, no momento em que nos perguntamos sobre as consequências últimas do desenvolvimento da ciência e das tecnologias para a existência humana; quando nos perguntamos sobre seu valor na construção do sentido da vida humana. A ela subjaz a ideologia da competência, da eficácia, do sucesso, do progresso, que está na base da transformação do conhecimento em mercadoria.
O processo de mercadologização da Educação, em nosso país, a saber, a subsunção da Educação à Economia torna as relações entre educadores, educandos e conhecimento em relações entre prestadores de serviço, clientes e mercadoria, negociável em troca de outra mercadoria, chamada diploma ou certificado.
A tese da formação cultural permanente, que supõe, com Adorno, o estudo da filosofia, se contrapõe a um dos problemas que a modernidade coloca para o educador: o imperativo da especialização profissional. A necessidade sempre urgente de formação de especialistas é consequência do grande desenvolvimento alcançado pela ciência e a técnica (assumindo esta a forma de tecnologia) nos fins do século XX. Evidentemente, quanto mais complexas e rigorosas são as etapas desse desenvolvimento tanto mais profissionais competentes são necessários ao cumprimento de suas atividades. Há dois problemas evidentes ligados à especialização: o primeiro diz respeito ao surgimento da ideologia da competência, que supõe uma distinção entre os que detêm o saber especializado (o vulgo expert) e, portanto, o poder para dirigir, recomendar; e os incompetentes, privados do saber, que devem pela autoridade daqueles guiar-se. O segundo problema diz respeito à fragmentação do saber, já que o especialista só domina um setor do conhecimento humano, tendo dificuldades na tomada de decisões epistemológicas e éticas.
No tocante à formação cultural permanente, que pressupõe o estudo da filosofia, as palavras de Dalbosco, em Problemas da atualidade da teoria crítica? (2008), exprimem bem a postura político-pedagógica por mim assumida:

“Não se trata (...) de um estudo mecânico dos temas e das disciplinas que compõem o arcabouço do saber filosófico nem de repeti-lo, por meio de uma prova oral ou escrita, mas sim de sua apropriação viva e dinâmica, que leve o candidato a pensar sobre o seu próprio fazer profissional. A importância da filosofia e da formação cultural, em sentido amplo, na formação dos futuros professores justifica-se em provocar sua auto-reflexão, auxiliando na construção do espírito crítico sobre seu próprio fazer profissional, levando os estudantes a se “desprovincializar” de seu mundo, exigindo que imitem mecanicamente o que é considerado como culto ou erudito”.
(p. 198)



3. A Idade Média

3.1. No Oriente, o Império Bizantino

Bizantino refere-se à antiga cidade grega Bizâncio, formada no século VII a.C. O Império Bizantino é a forma do Império Romano do Oriente, que permaneceu relativamente bem estruturada, a despeito da fragmentação do Império no Ocidente. Ele abrangeu a Grécia, a Ásia Menor, o Oriente Médio, algumas regiões da Itália, o norte da África e o sul da Espanha.
Em relação ao Ocidente, a civilização bizantina manteve-se bem adiantada econômica e culturalmente, tendo preservado a forma de administração da tradição romana. Não é meu objetivo descer a pormenores históricos, mas apontar acontecimentos que tocam à influência da religião na educação dessa época. Evidentemente, precisamos compreender o modo de organização das sociedades que nesses tempos existiam.
Os imperadores bizantinos, com o tempo, investiram-se de maior poder, o que os levou a questionar o poder do papa de Roma. Tal foi o impacto dessa divergência, que, em 1054, criou-se a Igreja Cristã Ortodoxa Grega, acontecimento conhecido como Cisma do Oriente. Passaram a existir duas igrejas separadas: a de Roma, católico-apostólica e a ortodoxa grega.
O surgimento do Islã, no século VII, se deve à atuação do profeta Maomé, a quem coube unir as tribos que viviam em permanente conflito, na Península Árabe. O conflito não favorecia o comércio. Graças à pregação do profeta, a unificação das tribos se deu, sem que ele tenha abdicado da ação de guerra. Seu feito mais significativo talvez tenha sido a instauração de um governo teocrático, que se caracteriza pela não separação entre Estado e religião.
É importante levar em conta que a civilização islâmica conseguiu assimilar, a par dos elementos da própria cultura árabe, os elementos das culturas dos povos conquistados, já que, com a morte do profeta, o império continuou a expandir-se para o Oriente Médio, o norte da África e, finalmente, a Península Ibérica, na Europa. Assimilando as culturas locais, a civilização islâmica enriqueceu e se diversificou. Assim é que os árabes conheceram a filosofia, a ciência e a literatura dos gregos antigos e puderam traduzir diversas obras clássicas que viriam a ser conhecidas pelos romanos. Por exemplo, os cristãos da Escolástica (uma forma de expressão da filosofia cristã, que encontrou apogeu no século XIII) puderam ter contato com o pensamento de Aristóteles.
No tocante à educação bizantina, a despeito da ênfase religiosa e a preocupação com as heresias, o ensino prezou as tradições do humanismo antigo. Não havia nas escolas, de modo geral, o predomínio do ensino religioso; nelas também se estudavam as obras clássicas pagãs. Nesse aspecto, diferia da educação cristã ocorrida no Ocidente, profundamente marcada pelo princípio da autoridade, conforme veremos. Os estudos religiosos eram feitos exclusivamente nas escolas monásticas e eram orientados pelo interesse espiritual e pela vivência ascética, hostil, portanto, ao humanismo pagão. Na escola patriarcal, cujos professores eram eleitos pelo Patriarca, o ensino não se cingia à formação religiosa, a despeito de seu rigor. Havia interesse pela tradição clássica, sempre tendo em vista a elaboração de um humanismo cristão próprio.
A educação bizantina tinha duas metas, inspiradas no modelo de educação da Antiguidade Clássica: formação humanista e capacitação de funcionários para a administração do Estado.
Devemos aos árabes um renascimento cultural, particularmente o ocorrido no século VIII, em Bagdá, com a criação da “Casa da Sabedoria”, que abrigava uma biblioteca e um centro de ensino e estudos, bem como um corpo de tradutores competentes a quem coube a tradução de obras advindas da Índia, China, Alexandria e Grécia.


4. No Ocidente, A educação cristianizada

É particularmente interessante o contexto sócio-histórico da Europa Medieval, também chamada Europa cristã. Alguns historiadores distinguem, no ocidente europeu, dois períodos. Um deles é conhecido como Alta Idade Média, que se caracterizou pelas invasões bárbaras e pela formação dos primeiros reinos germânicos. Esse período foi marcado pelo despovoamento das cidades e pela crescente ruralização, que se estendeu até o século X. É na virada do ano mil, que surge a Baixa Idade Média, e com ela o repovoamento das cidades, acompanhado do renascimento do comércio, do ressurgimento das artes, das lutas sociais e religiosas.
Nesse período, as escolas desapareceram, o Direito Romano caiu em desuso, também o sistema escravista foi perdendo terreno para o trabalho dos servos que, embora gozassem de liberdade, estavam subordinados à autoridade dos senhores. Ia-se configurando, assim, a sociedade feudal, cujas formas de organização eram variadas e cujo desenvolvimento não se deu ao mesmo tempo em todos os lugares. Tratava-se de uma sociedade de base aristocrata, altamente hierarquizada. No alto da pirâmide, estavam a nobreza e o clero. O rei viu seu poder enfraquecer devido à divisão de territórios, à autonomia dos senhores feudais e, posteriormente, à supremacia do papa.
Nas sociedades feudais, a condição social era determinada pela relação que os indivíduos mantinham com a terra. Assim, somente os proprietários (nobreza e clero) tinham o poder e a liberdade. Embora para alguns estudiosos sejam mais antigas, as raízes do capitalismo já eram notáveis nas condições de vida feudal. No extremo, viviam os despossuídos, que deviam serviços ao seu senhor; eram os servos da gleba, que não tinham a possibilidade de abandonar as terras.
A conservação da herança cultural greco-latina, a despeito das condições sociais turbulentas desse período, foi possível graças à iniciativa de monges, os únicos letrados, uma vez que tanto os servos quanto os nobres não sabiam ler. Aqueles preservaram as obras da cultura greco-latina em mosteiros. Entendemos, agora, porque foi possível à Igreja exercer o controle sobre a educação, estabelecer os princípios morais, políticos e jurídicos da sociedade medieval.
Devemos à ascensão da burguesia, no século XI, a oposição ao poder dos senhores feudais e à ortodoxia religiosa. Claro é que a Igreja resistiu às formas de contestação de seu poder, criando a Inquisição ou Santo Ofício, no século XIII, com o objetivo de punir os hereges (e vale dizer que hereges, etimologicamente, caracterizam tão-só aqueles que escolhiam seguir uma dada corrente filosófica).
Um acontecimento importante na cristianização da educação nessa época é o surgimento das escolas cristãs, situadas ao lado dos mosteiros e catedrais. Isso levou a que os funcionários do Estado fossem substituídos por religiosos, únicos capazes de ler e escrever. Chamo atenção para a estreita relação entre poder e saber: cada vez mais o Estado dependia da atuação dos clérigos cultos nas atividades administrativas, mesmo que as pessoas, entre as quais padres, já demonstrassem desinteresse em aprender a ler e escrever, devido à regressão econômica. Esta, por sua vez, se deu pelas conquistas do Islã, de tal modo que os europeus não puderam mais ter acesso ao mar Mediterrâneo, principal via comercial.
Ao estudarmos essa história longa, marcada por períodos de ascensão e declínio nos mais diversos âmbitos (econômico, cultural, social e político), creio ser possível admitir uma constante: sempre que o comércio se revitaliza, as forças subversivas reaparecem. Em outras palavras, a melhoria das condições sócio-econômicas de um dado segmento (no caso, dos burgueses) acarretou a mobilização opositora ao poder dos senhores feudais e do clero. Claro é que o levante atendia aos interesses dos burgueses, não da população espoliada. O poder burguês passou, assim, a competir com o poder do nobre e do clero: o burguês na cidade; o nobre, no castelo; e o padre, no mosteiro.
Insatisfeitos com a educação religiosa, acusada de muito formal, rigorosa e restrita aos interesses do clero, a burguesia emergente lutava pela instituição de escolas seculares, que oferecessem uma educação voltada para a vida prática. Até então, a educação era de caráter estritamente religioso, voltada para a instrução dos clérigos, seus privilegiados e, quando se destinava aos leigos, era limitada à instrução religiosa. Os mosteiros é que detinham o monopólio da ciência, tornando-se o centro fechado da cultura medieval. As obras da cultura greco-latina eram estudadas e reinterpretadas à luz do cristianismo.
A situação educacional das mulheres provenientes da burguesia começou a mudar com o surgimento das escolas seculares, antes disso não tinham acesso à educação formal. A mulher pobre trabalhava com o marido e permanecia, tal como ele, analfabeta. As meninas provindas da nobreza estudavam música, religião, trabalhos manuais femininos e alguns rudimentos de artes liberais nos limites do castelo. Quando incentivada a educação das meninas, ela servia apenas para submetê-las à condição doméstica e a preservá-las como depositárias dos valores do casamento e da maternidade.
A mesma limitação da educação da mulher também podia ser observada no tocante ao servo da gleba (feudo onde vivia o servo). Para melhor compreendê-la, cabe notar o seguinte:
      1. Na Idade Média, a sociedade conservava por longos períodos (séculos) suas estruturas e as mudanças eram lentas; além disso, era profundamente hierarquizada;

      2. Os homens da época foram convencidos de que cada indivíduo tinha sua posição social determinada por Deus, quer fosse ele religioso, quer fosse nobre, quer camponês.

Tendo em conta o exposto acima, cada segmento cumpria uma função que lhe estava predestinada por Deus. Por isso, não se cogitava de ensinar a ler e a escrever os camponeses; cria-se bastante a eles a formação cristã. A Igreja não poupou na ostentação dessa crença, erigindo catedrais góticas imponentes, que exaltavam a espiritualidade, e produzindo livros repletos de ilustrações para facilitar a compreensão dos analfabetos (que eram a maioria).
Eu não poderia deixar de notar um acontecimento revolucionário, do ponto de vista cultural e político, do qual foi protagonista o então imperador de um vasto território Carlos Magno. Estamos agora no final do século VIII e início do século IX. Seu mérito consistiu em reformar a vida eclesiástica e o sistema de ensino. Para tanto, trouxe para sua corte insignes intelectuais. Àquela época, destacou-se a escola palatina (assim denominada porque funcionava ao lado do palácio). Essa escola deu origem a um movimento de reestruturação das escolas monacais, das escolas catedrais (que se situavam ao lado das igrejas, nas cidades) e das escolas paroquianas. O conteúdo do ensino compreendia o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (geometria, aritmética, astronomia e música). Eram, pois, sete as artes liberais (porque destinadas ao indivíduo livre). Na realidade, essas disciplinas foram resgatadas do modelo de educação clássico. Claro é que a visão de ciência dessa época ainda era incipiente: por exemplo, a astronomia mesclava-se com a astrologia; a geometria entremeava discussões sobre as formas perfeitas. O rigor científico, baseado na observação e experimentação, só se faria notar com a revolução provocada por Galileu, no século XVII.

4.1. A educação pagã e  a educação cristã

Por um momento, quero calar o teor pedagógico desta exposição para dizer que receio que o leitor esteja já enfadado, em virtude da extensão e da natureza histórico-narrativa do texto. Ponderando melhor, seja como for, creio estar conseguindo, até então, satisfazer meu anseio pelo conhecimento, pela compreensão histórica, ainda que não exaustiva, da intricada relação entre práticas educacionais e religiosas no período designado Idade Média. Parece-me razoável afirmar que a consciência histórica levada a efeito na leitura deste texto pode contribuir para elucidar posições sobre haver ou não ameaça à laicidade do Estado brasileiro. É evidente que o modo de organização social, as estruturas jurídicas (embora para os especialistas em Direito nossa legislação esteja ultrapassada), a política e a cultura da Idade Média não são os mesmos do Brasil de hoje. Não suponho que se possa notar aqui, no tocante à influência de medidas de inspiração religiosa voltada para a Educação, algo parecido com o que ocorreu na Idade Média. Não corremos o risco de ver minada a secularização de nossa sociedade. Mas devemos compreender como era um Estado teocrático para melhor entender o sentido da laicidade. Creio que a laicização de um Estado está diretamente relacionada à conquista e, mormente, ao aperfeiçoamento da democracia. Nesse sentido, costuma-se suspeitar de uma democracia plena aqui no Brasil, em virtude das profundas desigualdades sociais que perduram e dificultam o exercício pleno da cidadania. A democracia, ao contrário, da tirania ou do totalitarismo, permite-nos trabalhar as contradições da sociedade e fazer avançá-la no sentido de produzir condições de maior igualdade e justiça sociais. A democracia é uma conquista preciosa, muito recentemente reconquistada no Brasil, depois de mais de vinte anos de regime ditatorial implementado pelos militares.
A laicidade de um Estado só é possível num regime político democrático. É no interior de uma democracia, a despeito de ser engendrada por um sistema econômico explorador, como o é o sistema capitalista, que a laicidade deve ser pensada e mantida. A história nos ensina que onde houve regime teocrático, evidentemente, não foi possível a democracia. Onde a voz de Deus foi soberana a voz do povo foi calada. Deus, nessas sociedades, não estava a favor do povo, estava a serviço dos interesses das classes dirigentes, basicamente autoridades religiosas. Atualmente, observamos regimes teocráticos apenas no Oriente Médio, especialmente nos países islâmicos. A democracia é peculiar ao Ocidente. No regime teocrático, política e religião ocupam a mesma esfera. Assim, a classe que detém o poder sobre o Estado determina os preceitos morais, educacionais, espirituais e culturais. São atualmente países declaradamente teocráticos o Irã, o Omã, a Arábia Saudita, o Sudão, o Iêmen e a Mauritânia. O Vaticano é um exemplo de um país do Ocidente teocrático católico. Costa Rica, Malta e Mônaco também reconhecem o catolicismo como sua religião de Estado.
Voltemos agora à revisão da história da educação na Idade Média. Recordem-se os acontecimentos que marcaram esse período, erroneamente denominado de Idade das Trevas por ideólogos do Renascimento. Contrariamente ao que julgavam, houve grande expressão cultural heterogênea e revitalizações econômicas e sociais.

1.      Renascimento do comércio;
2.     Florescimento das cidades;
3.      Surgimento da classe burguesa
4.      As Cruzadas;
5.     Consolidação da instituição da cavalaria.


Antes de começarmos a compreender em que bases filosóficas se desenvolveu a educação cristã e de compreender, em decorrência delas, como se iniciou a formação de uma doutrina que buscava conciliar fé com razão, muito embora esta última estivesse sempre a serviço da primeira (a razão estava subordinada à fé), precisamos considerar alguns fatos importantes. Em primeiro lugar, o cristianismo se tornou, com a queda do Império Romano e sua inevitável fragmentação, uma força unificadora de toda a Europa. Como fossem letrados, os clérigos se apropriaram do patrimônio cultural herdado da era greco-romana. Mas tinham eles outro interesse, diferente dos pensadores clássicos. A produção intelectual clássica era fundada no intelectualismo e naturalismo gregos, aos quais os clérigos opuseram o espiritualismo cristão. Urgia a necessidade de adaptar o legado da produção intelectual clássica aos propósitos da fé cristã. Elementos filosóficos, portanto, deveriam ser aproveitados, mas não sem antes passar pelo crivo da reinterpretação nos moldes de uma visão de mundo cristã. Foi o que sucedeu, conforme veremos.
Vale notar que os antigos filósofos refletiram sobre um Deus único, mas o fizeram no plano puramente intelectual, sem o propósito de construir uma doutrina da Criação e da Providência, que aliás não faziam sentido para eles, visto que, perspicazes, ao contemplar o mundo, concluíram que Deus só poderia ser um princípio ordenador impessoal desinteressado do destino humano. Trata-se do velho e insuperável problema da Teodicéia (ou o Problema do Mal), do qual já tratai muitas vezes em meus textos e ao qual não retorno, porquanto não é este meu propósito; mas vale tê-lo sempre em mente como um problema espinhoso para a fé.
Também em suas reflexões morais os gregos não exigiam culto rigoroso, tampouco se preocupavam com a ideia de vida eterna. Os cristãos, por sua vez, estavam preocupados com estes temas. Coube a eles subordinar a vida terrena aos valores celestiais,  aviltando-a. Eis outra inversão da ideologia cristã: a vida real provém dos Céus, não está na terra. Os valores supremos são os valores espirituais e os valores mundanos devem ser rejeitados. A fruição da vida após a morte depende da obediência aos preceitos de Deus e do acolhimento dos valores espirituais que provêm de Deus que habita os Céus (entenda-se o as Alturas). A estrutura ideológica do mundo medieval localizava o homem na região intermediária entre o céu e o inferno, e ele era entendido como ser constantemente em conflito, porque afligido pelas tentações mundanas, pelo temor ao inferno, caso sucumbisse a elas, e a necessidade de redenção pela obediência à Vontade de Deus, que lhes prescrevia a adoção rigorosa dos valores espirituais (provindos dos Céus).
Os monges precisavam adaptar o legado greco-romano à ideologia cristã, já que só assim poderiam alcançar a coesão e coerência necessárias à formação de uma doutrina poderosa. Alguns elementos da filosofia clássica poderiam estimular reflexões incongruentes com os seus interesses. Que fizeram os monges? Se reuniram, enriqueceram as bibliotecas e trabalharam paciente e cuidadosamente na tradução para o latim dos textos selecionados da literatura e filosofia gregas. Coube a bibliotecários, obedecendo a ordens superiores, determinar as leituras permitidas e proibidas, com vistas a garantir a preservação da fé cristã a qualquer custo.
O esforço da adaptação caminhava no sentido de fazer ver que a razão e a fé não se opunham e podiam ser conciliadas, embora, como disse, a fé se sobrepusesse à razão. O ajuste do pensamento grego (particularmente de Platão e Aristóteles) aos interesses de doutrinação se orientou pela ideia de verdade revelada por Deus, pela crença na autoridade inquestionável dos textos sagrados a que se deve submeter pela graça da fé. Era preciso que o pensamento grego se adaptasse ao novo modelo cristão de ser humano.
Assim é que a filosofia cristã, com o tempo, foi sistematizada em duas correntes ou escolas: a Patrística e a Escolástica. É forçoso considerá-las a seguir.

4.2. A Patrística

O nome Patrística se deve ao fato de ter sido uma filosofia desenvolvida por padres, ainda no período da Antiguidade ( do século II ao V). Sua importância se fez sentir na Idade Média, graças muito ao trabalho de Santo Agostinho. A intenção desses padres filósofos era apologética, ou seja, pretendiam defender a fé cristã e converter os não-cristãos. Para tanto, era necessário conciliar a fé com a razão, pois acreditavam que só assim podiam compreender a natureza de Deus e os valores da vida moral.
Essa filosofia inspirou-se no platonismo, assumindo a forma de um neoplatonismo e se ocupou com temas caros ao filósofo grego Platão, dois dos quais interessavam fundamentalmente: a oposição entre o mundo das aparências e o mundo das essências e a teoria da reminiscência. Para compreender essas duas doutrinas, é preciso revistar, de leve, o pensamento de Platão.
A alegoria da Caverna ilustra o pensamento de Platão ao propor a distinção entre um mundo das aparências, acessível pelos sentidos, mas enganoso; e um mundo das essências, das formas perfeitas, e verdadeiro, acessível tão-só pelo intelecto. Platão, como se sabe, deu ênfase à realidade suprassensível e propunha que o conhecimento verdadeiro só poderia ser alcançado pelo intelecto, pela superação do mundo das aparências. O conhecimento que provém dos sentidos é imperfeito, é mutável e leva a equívocos. Apenas o conhecimento das formas imutáveis e perfeitas, através do intelecto, é o conhecimento verdadeiro. Donde provém esse conhecimento? Responderá Platão: da alma. Para ele, e agora já consideramos a teoria da reminiscência, a alma humana, tendo antes contemplado as essências no mundo das formas perfeitas, ao encarnar neste mundo, conta com os sentidos para propiciar as lembranças. Não são eles fonte do conhecimento. Aprender, para Platão, é tornar consciente, claro ao espírito, o conhecimento que já se acha na alma, embora obscurecido pela matéria, por ocasião do contato dela com as essências. Que fez então Agostinho? Atribuiu a Deus o valor de fonte donde o homem recebe as verdades eternas. Mas disso não se segue desprezar o intelecto; segundo Agostinho, Deus ilumina a razão humana para que possa pensar correto. A posse da verdade vem do interior, já que “Cristo habita no interior do homem”. Na concepção de Agostinho, a educação só pode se dar pela iluminação divina.
Santo Agostinho presenciou a invasão dos vândalos que vieram a se estabelecer em Hipona (norte da África) onde atuou como bispo. Veio a adotar a doutrina maniqueísta (de maniqueus), segundo a qual há princípios opostos regendo o mundo: o bem e o mal, a luz e a escuridão, em conflito eterno. Na Idade Média, destacou-se a contribuição dos enciclopedistas que levaram adiante o trabalho de adequação da cultura grega às verdades teológicas. Coube a eles ler os clássicos gregos, conhecer o programa das sete artes liberais e consultar os manuais de estudo.

4.3. A Escolástica

Não há dúvida de que a Escolástica exerceu maior influência filosófica e teológica na formação da doutrinação cristã, no período medieval. Desenvolveu-se a partir do século IX, tendo alcançado apogeu no século XIII e início do século XIV; posteriormente, conheceu a queda com o advento do Renascimento. Seu nome se deve ao fato de ter sido uma filosofia ensinada nas escolas. O professor, que inicialmente ensinava as artes liberais, passou a lecionar filosofia e teologia, e foram chamados de magister. A filosofia tornou-se obrigatória na agenda do teólogo, mas devia ser estudada à luz da visão de mundo cristã. Era necessário impor-lhe limites. Uma vez que a razão estava a serviço da fé, a filosofia devia servir à teologia (ancilla teologiae).
Entre os escolásticos, Aristóteles foi a voz responsável por dar ao trabalho de formação doutrinária o colorido filosófico. O embasamento argumentativo se valia da lógica aristotélica, formalizada no silogismo, que, por sua vez, se estrutura em torno do raciocínio dedutivo. Instrumentalizados com a filosofia aristotélica, vários comentadores da Bíblia e dos escritos dos primeiros Padres da Igreja forjaram o método escolástico, que se organizava na sequência: leitura-comentário das questões-discussão. Nem sempre as discussões eram proveitosas, já que tinham de confirmar a crença nas verdades reveladas e não podiam ultrapassar a ortodoxia religiosa.
Além de sua lógica, a filosofia aristotélica foi interessante aos escolástico ao propor a questão dos universais. Universais são termos que abrangem uma totalidade, compreendendo-a sem discriminar suas partes Para Aristóteles, o universal é aquilo cuja natureza pode ser afirmada para diferentes sujeitos. Assim o homem é um universal, ao passo que Sócrates é um indivíduo, um singular.
Entre os escolásticos, os universais remetiam ao problema das espécies (cão, gato) e dos gêneros (animal). Assim, perguntava-se sobre ter ou não o universal uma realidade objetiva. Ou seja, os universais são uma realidade? Existe a entidade ‘animal’ ou se trata apenas de um conceito? Se o universal (animal, humano...) é apenas uma ideia, então só tem realidade mental.  Essas questões levaram ao surgimentos de tendências discordantes. Os realistas defendiam que os universais eram reais. Os conceitualistas, ao contrário, julgavam que os universais não são reais, mas simples ideias cuja existência é mental.
Os realistas representavam os ortodoxos, os quais defendiam a tradição, a autoridade e a verdade absoluta da fé. A lógica aí é que, como não importassem os individuais, era necessário desenvolver uma pedagogia perene, assentada em valores eternos, imutáveis. Por outro lado, os conceitualistas, defendendo o individual como real, propunham que a verdade não é a fé, mas a razão humana. Aqui já se insinuava o racionalismo burguês, que viria a fortalecer-se com o Renascimento e que é a marca fundamental da Idade Moderna.
Vale ainda referir a posição dos nominalistas, dentre os quais se destacou Guilherme de Ockham (séc.XIV). Os nominalistas julgavam que os universais eram tão-só nomes, portanto, formas destituídas tanto de realidade objetiva quanto de realidade mental.
O apogeu da Escolástica se deveu muito ao trabalho de Tomás de Aquino (1225-1274), santificado pela Igreja. Inspirando no pensamento aristotélico, São Tomás defendia que a educação é o processo pelo qual aquilo que é potencial deve tornar-se real. A educação, assim, faria desenvolver as potencialidades latentes na criança. Essa concepção de educação assenta na teoria aristotélica da matéria e da forma. Conquanto fosse importante a vontade humana no processo educacional, o ensino depende das Sagradas Escrituras e da graça da Providência divina, visto que temos uma natureza corrompida pelo pecado.
A metafísica de São Tomás de Aquino redundará na ética, na medida em que ensina o indivíduo, que detém a inteligência pela graça de Deus, a fazer uso correto dela, discernindo, entre os bens diversos, o Bem supremo. Assim, segundo o teólogo, “O bem objetivo, único capaz de proporcionar à natureza humana a felicidade perfeita, é Deus. A razão, secundada pela revelação, mostra o caminho que se deve seguir para alcançá-lo”.
O problema foi que a teoria desenvolvida por São Tomás distanciou-se muito do vivido e o uso indiscriminado da lógica acarretou uma verborragia vazia e um excessivo formalismo. Também constituiu um problema a supervalorização da dedução em detrimento da indução, graças à qual o conhecimento pode avançar. No final da Idade Média, a aceitação inconteste do princípio de autoridade, de que Tomás de Aquino foi expressão, abrandou o espírito crítico e impediu a autonomia de pensamento. Isso dificultou o desenvolvimento das ciências (veja-se Galileu que teve de enfrentar o processo da Inquisição no século XVII).
O século XIV, no entanto, produzia forças que alimentavam a visão crítica, possibilitando a revisão do mundo cristão-medieval. Lançavam-se as primícias de um humanismo baseado em valores laicos, mundanos, centrados mais no indivíduo e na política. A educação que, até então era gerida numa visão teocêntrica, pôde se desenvolver, posteriormente, com o Renascimento (XV-XVI), numa visão antropocêntrica e humanista, centrada no valor da racionalidade.