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sexta-feira, 8 de março de 2013

"Ensinar língua, falar sobre a linguagem é muito mais do que denunciar desvios de norma, martelar usos ultrapassados e policiar neuroticamente o comportamento linguístico dos falantes nativos" (BAR)


                     

      Em presença dos outros – a construção da face


Introdução

A onipresença das palavras

Para onde quer que olhemos, lá estão elas. Não conseguimos escapar à sua onipresença. Estamos imersos nelas e elas estão em nós. Elas nos constituem. Elas nos moldam, nos ensinam, nos modificam. É porque são tão presentes e penetrantes em nosso cotidiano, que, muitas vezes, (ou quase sempre) não nos damos conta de sua importância, de sua função em nossas vidas. Eu me refiro a essas sequências de letras que grafo neste papel ou as sequências sonoras emitidas em sua voz. Essas sequências dotadas de significado. Sim, me refiro às palavras, abundantes! Elas são materiais simbólicos que pertencem à lingua. E novamente é da língua que se trata, de sua relevância, de sua presença constante em nosso cotidiano. Estar em face do outro, e não haver outro modo de definir-se e defini-lo senão no interior do espaço dialógico aberto pela linguagem. Nada mais comum, nada mais fascinante! O Eu que é puro símbolo, pura imagem, que se instaura e se constrói na relação com um Eu-outro, igualmente simbólico e reconstruído nos jogos de interação pela linguagem. Só há Eu e Outro pela/ na linguagem. Não há como ser de outro modo. Seres humanos, homo loquens.
A razão, deusa dos filósofos? De que vale sem a linguagem? A razão é razão discursiva, é razão estruturada em signos. O pensamento pré-verbal, se um dia existiu, foi tão-só para nos indicar o caminho.... Como pensar fora dos quadros da linguagem verbal? Como elaborar raciocínios sem um lingua, sem as palavras e as regras que governam suas construções? Não há pensamento conceitual sem linguagem. Não é possível ao homem ser e viver fora do espaço simbólico. A essência do homem é ser um ser linguístico. Nada mais justo. Nada mais trágico. Trágico porque aprisionado no sentido. E os homens, ah essas criaturas frágeis e até bem estúpidas!, não vivem sem forjar sentidos e vivem a persegui-los, a recriá-los. São eles caçadores de sentidos. Por isso, as ideologias, as religiões, a educação, a cultura, as artes, as literaturas, a política... Tudo que toca ao humano é revestido do simbólico, do sentido produzido no ventre do simbólico.
Deveríamos homenagear a linguagem. Homenageá-la compreendendo-a mais e mais. Deveríamos colocá-la para objeto de pensamento e não submetê-la e aos seus usuários a meros julgamentos de valor. Saber português? O que é saber português? Esta é a pergunta que deveríamos fazer. Todo falante nativo de português sabe falar português e, quando alfabetizado, sabe escrever em português. O que é saber uma língua? É esta a pergunta. Como a língua se relaciona com a cultura, com a percepção-cognição e com a realidade? Outra instigante pergunta. Falar uma língua estrangeira é deter outra visão de mundo? É, de certo modo, ver a realidade de modo diferente? É a mesma a realidade para um falante de inglês e um falante de chinês?
Já se deram conta de que, ao interagir com alguém, buscamos elaborar uma imagem positiva de nós mesmos? E, ao fazê-lo, desejamos que ela seja reconhecida e valorizada? E já se deram conta de que nos esforçamos por proteger esta nossa imagem socialmente construída e que pretendemos seja valorizada, admirada, prestigiada...? A essa imagem que construímos de nós mesmos em face dos outros, dá-se o nome de face. O leitor já se deu conta do impacto emocional negativo que tem uma ofensa ou uma troça? Nessas circunstâncias, sofremos o risco de perdermos a nossa face. No caso da ofensa, ela realmente se perde. E quando chegamos próximos a um estranho para lhe solicitar uma informação? Em geral, buscamos ser polidos, formulando algo como “Por favor, poderia me dizer onde fica a rua tal?”. Essa estratégia de polidez sinaliza que nós reconhecemos a face negativa do interlocutor, ou seja, o seu território pessoal, a sua intimidade, a qual ele, supomos, deseja seja preservada. Ele não quer ser importunado, “invadido” em seu território pessoal.
 Quem nunca viu pessoas em estádios de futebol, ou em seus bairros, diante de uma câmera de televisão (por exemplo, nas reportagens da Rede Globo, no RJ TV) ostentar cartazes com frases do tipo “Filma eu!”? Um professor tradicionalista poderá ter noites e noites de insônia perturbado com o uso inadequado do pronome “eu”, que figura na posição de complemento do verbo. E sua insatisfação não o permitirá reconhecer uma função interessante aí: se o falante escolhe por usar o pronome “eu”, ao invés de “me” nessa função, é porque quer colocar em evidência justamente o eu-cidadão que reivindica melhores condições sociais de existência (no caso de o cartaz aparecer numa reportagem que enfoque problemas enfrentados por moradores de um bairro, por exemplo). Por outro lado, esse  “eu” pode servir para, em outro contexto, pôr em evidência a pessoa mesma que ostenta o cartaz. A posição de complemento preenchida pelo “eu” serve bem ao propósito de alcançar visibilidade numa era em que existir é ser visto. O eu é índice de uma ideologia, de uma visão de mundo, e não meramente uma marca colocada inadequadamente, segundo um cânone gramatical, numa posição sintática.
 É uma pena que ainda haja professores por aí que insistem em reduzir as questões de língua/ linguagem a meras questões do tipo "certo" e "errado".


1. A linguagem em cena

É inegável que os estudos em Linguística, especialmente os desenvolvidos no âmbito da pragmática e da sociolinguística interacional são devedores da contribuição do sociólogo Erving Goffman, que se notabilizou estudando a interação social no cotidiano. Sua perspectiva teatral da atividade linguística consiste na ideia de que cada um de nós, ao interagir por meio da língua, se apresenta e se representa assumindo determinados papeis definidos pela situação em que nos encontramos a fim de alcançar os objetivos perseguidos. Ao participar dos eventos de interação social, cada indivíduo elabora uma representação de si, ou uma imagem de si, com vistas a obter a aprovação dos outros e a encaminhar a interação de tal modo que venha lograr sucesso. Em seu clássico artigo A Elaboração da face (1967), Goffman apresenta e define um conceito que se tornou fulcral nas discussões posteriores sobre as estratégias comunicativas de que lançam mão os interactantes de modo a alcançarem, com sucesso, seus objetivos, qual seja, o conceito de face (que, em inglês, além da acepção de ‘rosto’, também abriga as ideias de ‘dignidade’, ‘auto-respeito’ e ‘prestígio’).
O conceito de face desempenha papel fundamental na teoria de polidez e, posteriormente, foi desenvolvida por dois outros estudiosos da vertente pragmática – Brown e Levinson. Nos estudos desses autores, a noção de face foi expandida, desdobrando-se em dois tipos: face positiva e face negativa. Antes, contudo, de  considerar o conceito de polidez (não faremos incursão na teoria propriamente) e de definir esses dois tipos de face, bem como de compreender como esses conceitos são importantes para a compreensão das formas como as pessoas buscam alcançar sucesso em suas práticas discursivas, devemos nos deter um pouco mais na contribuição de Goffman, que, afinal, foi o precursor nesse terreno. Devemos também entender a concepção de linguagem no interior da pragmática, bem como as leis que governam toda prática discursiva. Voltemos, em primeiro lugar, a Goffman.
Em seu livro A Representação do Eu na vida cotidiana (2011), Goffman nos descreve a situação em que se acha um indivíduo em face dos outros, quando se investe da função de interactante. Um aspecto importante nesta situação é o fato de ele assumir um papel (um papel social, que está, necessariamente, ligado à situação em que se encontra e que envolve direitos e deveres). Todo papel social compreende tarefas que, decorrendo de um status, devem ser desempenhadas por uma pessoa ligada a um grupo nelas interessado. Leiamos com atenção a seguinte passagem:

“Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que apresenta possuir, que o papel que representa terá consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. Concordando com isso, há o ponto de vista popular de que o indivíduo faz sua representação e dá seu espetáculo “para benefício de outros”.

(p. 25)


Prossigamos um pouco mais com Goffman, que nos ensina adiante:

“Num dos extremos, encontramos o ator que pode estar inteiramente compenetrado de seu próprio número. Pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade. Quando seu público está também convencido deste modo a respeito do espetáculo que o autor encena – e esta parece ser a regra geral – então, pelo menos no momento, somente o sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a “realidade” do que é apresentado”.
(ib.id.)


Chamo atenção, desde já, para o vocabulário empregado pelo autor, tomado ao domínio discursivo do teatro (ator, encenar, espetáculo, representar, etc.). Para Goffman, usar a linguagem é encenar; participar dos “jogos de linguagem” (para usar uma expressão bastante feliz de Wittgenstein) é interagir assumindo o papel de uma personagem. Essa personagem que se constrói interacionalmente busca causar uma boa impressão nos outros com quem interage. Para tanto, lançará mão de várias estratégias sociocomunicativas, entre as quais a elaboração da própria face.
Note-se que o interactante buscará construir uma realidade de cuja veracidade se convencerá e de cuja veracidade pretende também que os outros se convençam. Lembramos que ele quer causar boa impressão, quer que a imagem de si construída e a própria versão da realidade elaborada em seu discurso seja aceita ou se identifique com a realidade mesma (ou melhor, com aquilo que todos pensam ser a realidade mesma).
Creio suficientes essas considerações da perspectiva de Goffman, para os meus propósitos neste texto. Avancemos um pouco mais. De que trata a pragmática? A pragmática é um domínio dos estudos da linguística que se ocupa da língua em uso. Entram em seu escopo não só as regras linguisticas propriamente ditas, mas principalmente as regras ou convenções sociais que governam as relações entre indivíduos e que influenciam os usos da língua. A pragmática concebe a língua como um lugar de interação social ou como forma de ação intersubjetiva. Pelo uso da língua, os falantes agem uns sobre os outros, de modo a se influenciarem reciprocamente. Um dos capítulos mais ilustrativos da pragmática é o dos atos de fala. Assim, cada enunciado produzido é um ato de fala, é uma expressão verbal de uma ação, necessariamente, social.
O que é uma convenção social? Ela, necessariamente, pressupõe um acordo quanto ao modo de se comportar em uma dada situação social. Convenção social consiste num conjunto de normas, acordos ou padrões aceitos por uma dada comunidade para regular os modos de conduta de seus membros. Por exemplo, num enterro, em nossa cultura, espera-se que demonstremos nosso pesar, que manifestemos nossas condolências e não que contemos piadas. Espera-se que façamos escolhas linguísticas apropriadas à situação, produzindo algo como “Lamento a perda de seu marido”; mas, de modo algum, “já foi tarde este velho ranzinza” (ainda que dele tenha sido esta a imagem que ficou em nossa memória).
A pragmática, portanto, abrigará, em seu escopo, as convenções sociais, também as regras, os valores, os conhecimentos e crenças pressupostos como partilhados pelos interactantes, ao se ocupar dos usos da linguagem. Há também as leis do discurso, ou seja, certo conjunto de normas que devem ser seguidas pelos participantes da interação, tais como o “princípio de cooperação” (Grice, 1960), que Charaudeau denominará de “contrato de comunicação”.
Reza o princípio de cooperação ou contrato de comunicação que os interactantes se esforçarão por conduzir a interação de modo que os objetivos sejam alcançados. Quando me disponho a interagir, viso ao sucesso da interação, ou seja, esforço-me, juntamente com os demais participantes (eles também se esforçam, ou assim é esperado) para que a interação chegue a bom termo. O princípio de cooperação é o alicerce de outras leis do discurso, a saber: a lei da pertinência (a adequação ao contexto sociocomunicativo); a lei da sinceridade (o engajamento do interactante no ato comunicativo); a lei da informatividade (permitindo ao seu interlocutor a produção de inferências); a da exaustividade (o interactante deve fornecer as informações relevantes, de acordo com a situação, evitando lacunas que não podem ser satisfatoriamente preenchidas com base em inferências); a da modalidade (o interactante deve procurar a clareza e a brevidade tanto quanto possível); e a da preservação das faces (o interactante evitará atos de ameaça à face dos outros, ao mesmo tempo em que procurará defender sua própria face e proteger a dos outros). É dessa última lei que me ocuparei nesse artigo.


2. O conceito de face e seu desenvolvimento

Em primeiro lugar, devemos ter em conta que o conceito de face se prende ao de self (eu). Os valores pessoais ligados ao self entram em jogo na interação verbal e serão determinantes das escolhas linguísticas que fará o interactante. Para Goffman entende-se por face “o valor social positivo que uma pessoa reclama para si” e a isso acresce que “toda pessoa tende a experimentar uma resposta emocional imediata à face que lhe é proporcionada num contato com os outros”.
A face não é apresentada de modo permanente  e estável; ela é um bem passível de ser alterado ao longo da interação. Por isso, ela pode ser ameaçada e deve ser protegida, recuperada, caso seja momentaneamente perdida, ou salva. A face é um constructo teórico de base sócio-interacional. Ela define o território do self que, necessariamente, se constrói nas relações sociais pelo uso da linguagem e que, portanto, está sujeita a toda sorte de ameaças em potencial. A ela estão associados sentimentos e regras sociais que variam de um grupo para outro. São essas regras que definirão quantos sentimentos ou valores a ela se associarão. A face envolve, portanto, emoções pessoais, donde se segue experimentarmos sentimentos de culpa, humilhação, inferioridade, quando nossa própria face é ameaçada ou perdida.
Pode-se compreender a face como uma auto-imagem que o interactante constrói na relação com os demais interactantes numa dada situação interacional. O interactante pretende que essa imagem de si seja aceita e aprovada pelos seus parceiros de comunicação. No referido artigo, Goffman, assim se expressa a esse respeito:

“Uma vez tendo assumida uma auto-imagem, que se expressa através de uma face, há expectativas e modos que a pessoa deve preencher. De diferentes modos, em diferentes sociedades, exigir-se-á que as pessoas mostrem auto-respeito, recusem certas ações por estarem estas acima ou abaixo de si mesmas, ao mesmo tempo em que se esforçam para desempenhar outras mesmo que isto lhes custe muito caro. Ao entrar em uma situação na qual lhe é dada uma face a manter, a pessoa toma a si a responsabilidade de patrulhar o fluxo de eventos que passa diante de si.”

(p. 81)

Urge salientar que, numa interação social, espera-se que um indivíduo não se preocupe em apenas proteger a sua própria face, mas também a dos outros, segundo reza o princípio geral da cooperação. Espera-se que ele tenha consideração pelos outros, sem a qual se verá em sérios problemas. Por exemplo, um indivíduo que não se demonstre desconfortável com a perda da face alheia (como a humilhação de outrem), será tachado de insensível. Goffman ensina que a manutenção da face é condição para que haja interação.
Goffman nos dá a saber dois grandes grupos de ações relacionadas à face: as práticas de defesa da face e as práticas de proteção da face. As primeiras servem como meio de o indivíduo defender a própria face; ao passo que as segundas servem para que ele proteja a face de um ou mais parceiros de comunicação. No primeiro caso, alguém pode ser motivado pelo orgulho próprio, pelo apego à sua auto-imagem, à honra ou ao poder e status em face dos outros; no segundo caso, pode estar emocionalmente ligado ao parceiro cuja face foi ameaçada, ou pode julgar que esse outro é merecedor de proteção moral, ou pode temer hostilidades, caso não tome partido em sua defesa, etc.
Vamos ver, doravante, como os teóricos Brown e Levinson desenvolveram a teoria de faces de Goffman, de modo a aperfeiçoá-la, lançando luzes sobre a compreensão das formas como os interactantes buscam lograr sucesso nos eventos de interação de que participam. Antes de considerar a distinção feita pelos autores entre face positiva e face negativa, é importante que se tenha em conta a importância da polidez para a vida social.
Muitas vezes, podemos pensar a polidez como uma espécie de “verniz social” que torna o indivíduo que dela se vale alvo de prestígio e admiração, muito embora ela não deva ser aplicada a todas as situações, sob pena de conferir ao trato artificialidade. Mas ela tem sua importância e por isso devemos ponderar nas seguintes palavras, colhidas do Dicionário de Análise do Discurso (2006):

“Ainda que nem tudo se reduza a questões de face, ainda que a polidez não se aplique em todas as situações, ainda que ela seja apenas a “virtude das aparências”, a polidez não se reduz a uma simples coleção de regras formais mais ou menos arbitrárias: ela desempenha um papel fundamental na regulação da vida em sociedade, permitindo conciliar os interesses geralmente desencontrados do Ego e do Alter, e manter um estado de equilíbrio relativo e sempre precário entre a proteção de si e a consideração de outrem. Ora, é sobre esse equilíbrio que repousa sobre o bom funcionamento da interação.”

(p. 384, grifo no original)


Tome-se a palavra chave “equilíbrio”, em negrito no texto citado. É desse equilíbrio relativo entre os interesses conflitantes do eu e do outro que depende o sucesso da interação. E uma das formas de alcançar esse equilíbrio é o recurso a estratégias de polidez. Na mesma página, mais abaixo, podemos ler ainda o que se segue:

“A polidez não é nada mais do que uma máquina para manter ou restaurar o equilíbrio ritual entre os interactantes, logo, para fabricar contentamento mútuo (ao passo que sua falta desencadeia reações de brutal descontentamento)”.

(ênfase no original)


Sabemos que a polidez expressa moderação no trato, expressa fineza educacional, ou seja, ela revela quanto nós somos educados e conhecemos os bons modos de comportamento aceitos pela sociedade ou pela comunidade a que pertencemos, e a língua põe à nossa disposição recursos habilitados para a sua expressão, tais como “por favor”, “por gentileza”, “poderia”, etc. Um enunciado como “A senhora, poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?” encerra duas expressões que denotam polidez: uma delas é “a senhora”, que além de marcar polidez, marca distanciamento social e respeito; a segunda é a forma do futuro do pretérito do verbo “pedir”, cuja formalidade linguística mostra que damos ao interlocutor um status de importância (nós supomos que ele é merecedor de um tratamento linguístico mais formal). Podemos entrever aqui a relação da polidez com a preservação das faces. Não nos apressemos, contudo. Quero fazer ver que, se nossas escolhas linguísticas tivessem sido outras, ou seja, se outro fosse o enunciado, provavelmente, nosso interlocutor (supondo se tratasse de um estranho que encontramos na rua), não estaria disposto a nos dar a informação desejada. Imagine se disséssemos algo como “Diz aí, coroa, onde fica a rua....?” É muito provável que essa senhora nos passasse uma reprimenda e se negasse a nos ajudar. Trata-se de uma escolha infeliz e até extrema, mas o resultado não seria menos infeliz, se tivéssemos escolhido “tia” ou se nos limitássemos a tocar-lhe no ombro e lhe perguntássemos, sem qualquer forma de tratamento, simplesmente “onde fica a rua...?”.
Em Brown e Levinson, o conceito de face está intimamente ligado ao de polidez. Além disso, face incorpora, nos estudos desses autores, a noção de território. O território do eu seria a região ou a zona que compreende o corpo, o espaço de situação, de tempo, os bens materiais e simbólicos de que dispõe. Esse território é a sua face negativa.
A face positiva compreende o conjunto de imagens de si mesmos que os interactantes constroem e valorizam e que esperam sejam reconhecidas e valorizadas por outrem. Portanto, a auto-imagem construída socialmente é composta de duas faces: uma negativa, que diz respeito ao desejo de não imposição ou à preservação do território pessoal (à nossa intimidade); e uma positiva, que diz respeito a imagem de si valorizada pelo interactante e que ele espera seja também valorizada e aprovada pelos parceiros de comunicação.
Como vimos, a face, por ser uma realidade simbólica construída interacionalmente, está sujeita a ameaças, de tal modo que os interactantes mobilizarão estratégias que visam a preservar à própria face e a proteger a face dos parceiros. É nesse momento que surgirão os procedimentos de facework (figuração), mediante os quais buscarão neutralizar os atos de ameaça à face, influenciando as decisões dos interactantes.
Segundo Brown & Levinson, há, portanto, quatro faces em cena: as faces positiva e negativa do locutor; e as faces positiva e negativa do interlocutor. São atos de ameaça à face negativa do locutor: fazer promessas, já que elas comprometem o locutor em realizar o que foi prometido, avaliar competências alheias, fazer julgamentos, agradecer, aceitar favores, etc. São atos de ameaça à face positiva do locutor: atos de auto-humilhação, por exemplo, quando o locutor reconhece sua própria fraqueza, de incompetência, de limitações pessoais (que lhe exige pedido de desculpas e admissão de um erro), etc.
São atos de ameaça à face negativa do interlocutor: atos que restringem a liberdade de ação do interlocutor, perguntas diretas sem demonstrar polidez (cortesia), perguntas indiscretas, conselhos que não foram solicitados, ordens, cobrança de um favor que lhe fizemos, etc. São atos de ameaça à face positiva do interlocutor: receber crítica, insulto, desaprovação, ser escarnecido, ser refutado.
Se voltarmos ao nosso exemplo, claro está que, em se tratando de uma pessoa estranha, é desejável, caso queiramos obter sucesso na interação estabelecida com ela e, portanto, caso queiramos ser informados sobre a localização da rua, que evitemos atos de ameaça à sua face negativa (o seu território, à sua intimidade). Ao nos dirigirmos a essa pessoa, estamos, de certo modo, “invadindo” essa zona pessoal que lhe cabe, colocando-a na condição de “alguém que precisa dar uma informação solicitada”. Pedir uma informação é um ato de ameaça potencial à face negativa do outro, por isso, para evitar que se realize a ameaça procuramos lançar mão de recursos linguísticos apropriados a esse fim. Ao fazê-lo, também protegemos nossa face positiva, já que transmitimos uma boa impressão (Goffman nos ensinou sobre a importância das impressões que nossas imagens pessoais causam), ou seja, a impressão de pessoas bem educadas que reconhecem qual deve ser o comportamento linguístico apropriado àquela situação. Por exemplo, sabemos, tacitamente, que aquela pessoa a quem nos dirigimos é uma estranha, que, por isso, não nos dá a liberdade de falar de qualquer jeito, que não deseja ser importunada, que não tem a obrigação de dar a informação que desejamos (afinal, deveríamos saber localizar a rua por conta própria), etc. Esses conhecimentos tácitos estão, pois, inscritos tacitamente no ato de linguagem no momento mesmo em que produzimo-lo adequadamente àquela situação. Em outras palavras, quando me dirijo a essa senhora proferindo “Por favor, a senhora poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?”, os saberes tais como: a) eu não a conheço; b) ela não quer ser importunada; c) ela não é obrigada a me informar o que eu quero que me informe; d) ela não concordaria em me transmitir a informação se eu formulasse meu enunciado de qualquer jeito; e) ela pode não saber onde fica a rua, etc. estão nele pressupostos.
Com vistas a levar a bom termo esta exposição, consideremos este pequeno diálogo do seriado A Grande Família, em cuja cena encontram-se Tuco (filho de Nenê e Lineu), Paulão (mecânico e amigo) e Floriano (filho de Bebel e Agostinho), e observemos como se estruturam os atos de ameaça às faces dos interlocutores.
Contexto: os três personagens assistem a um programa do Tuco na televisão.

Paulão – Sabia que essas letra do seu Fofolho mexe comigo assim por dentro?
Floriano – Não sei quem é mais bobo, tio farofa ou o Serginho.
Tuco – Ó moleque, mais respeito comigo, que eu sou seu tio, hein!


http://www.youtube.com/watch?v=l52Z-XrWZzU


Bastam esses três enunciados para que deles colhamos questões interessantíssimas sobre os usos da linguagem. Para os meus propósitos aqui, interessa fazer ver que o Paulão, ao produzir seu enunciado, busca construir uma imagem de si, caracterizada pela sensibilidade. Em outras palavras, ele quer causar a impressão de ser um homem sensível. Ele expõe sua face positiva, que pretende seja reconhecida e valorizada pelos interactantes (Tuco e Floriano). No entanto, ignorando a tentativa de Paulão, Floriano avalia negativamente as duas personagens representadas pelo tio Tuco (o tio farofa e o Serginho), considerando-as “bobas”. A depreciação das personagens é um ato de ameaça à face positiva de Tuco em face do sobrinho. A fim de restaurar sua face, ele produz um ato de fala de comando, ordem, advertência, de modo a exigir dele mais respeito. Ele está autorizado a exercer este ato na condição de seu tio (vê-se aqui a importância do status social como fonte legitimadora da produção do ato de ordenar). Tuco exige do sobrinho respeito e, ao fazê-lo, demarca o grau de hierarquia que fora, momentaneamente, ignorado, defende sua face e, ao mesmo tempo, põe a perder as faces positiva e negativa de Floriano, já que, por um lado, lembra ao menino que ele deveria reivindicar para si uma imagem de alguém que respeita os mais velhos, especialmente quando eles são membros de sua família (face positiva – alguém respeitador, educado); por outro lado, limita seu espaço de ação, já que o adverte de que não pode se comportar daquela maneira, criticando seu próprio tio (face negativa).
Posteriormente, Agostinho, entrando em cena, adverte a todos, lembrando-os de que têm de se ocupar com outras atividades, em vez de ficarem assistindo televisão; no caso de Tuco e Paulão, para Agostinho, eles deveriam estar trabalhando. Nesse momento, Agostinho põe a perder as faces de todos eles, já que os avalia negativamente como ociosos e preguiçosos. Tuco tentará restaurar, recuperar sua face positiva (enquanto artista e trabalhador), justificando o tempo livre.
De tudo que foi exposto, cumpre notar que, ao entrarmos nos jogos de interação, ao aceitarmos jogar segundo as regras desses jogos, estamos constantemente negociando significados, não só os associados aos nossos enunciados, mas também os associados às imagens que fazemos deles, da situação em que nos encontramos e de nós mesmos.
Longe de serem permanentemente harmoniosos, os eventos comunicativos não deixam de exibir tensões, conflitos, que devem, é claro, ser atenuados e, tanto melhor resolvidos, a fim de que a interação seja proveitosa para todos os participantes. É claro que os interactantes buscam sustentar a harmonia durante a interação, mas a arena da qual os discursos são uma representação deixa entrever que a harmonia desejada deve ser sempre negociada e nunca é algo garantido de antemão.