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terça-feira, 6 de julho de 2021

"O animal é tão ou mais sábio do que o homem: conhece a medida da sua necessidade, enquanto o homem a ignora. (Demócrito)

 




                                           O Bufão e o dançarino

 


      Liberto das vãs esperanças e das cobiças da multidão, Demócrito de Abdera ria-se das tolices do homem. Seu riso era expressão não só de sua potência de existir, de sua alegria de viver, mas também era um ato consciente do caráter ridículo da condição humana. Nisso ele foi o antípoda de Heráclito - um misantropo que lamentava as misérias da vida humana. Heráclito lamentava e chorava o fato de os seres humanos viverem a vida como se estivessem dormindo sem saber que estão dormindo. Não que Demócrito não concordasse com Heráclito nesse tocante, mas, ao contrário deste, não vivia a se lamentar pela insignificante condição humana impregnada de tolices e loucuras, mas a rir dela. Segundo Sêneca, para evitar “a noite do coração” e a “escuridão diante dos olhos”, é preferível seguir Demócrito:

“Devemos nos esforçar para conseguir uma postura de não achar os vícios do populacho repugnantes, e sim ridículos, e nos aproximar mais de Demócrito do que de Heráclito, pois este sempre chorava quando estava entre as pessoas enquanto aquele ria. Para Heráclito, todos os nossos atos pareciam lamentáveis; já para Demócrito, eram tolos. Portanto, aceitemos tudo com leveza e suportemos tudo com alegria. É mais humano rir da vida do que se lamentar”.



         Todas as tolices humanas não faziam Demócrito chorar, mas rir. Ele ria não apenas como forma de resistir ao desespero, como também, sobretudo, como forma de advertir seus conterrâneos sobre a ridícula loucura que é a vida deles. Se Demócrito escolheu o riso para denunciar a estultícia dos homens, Nietzsche escolheu a dança como signo de leveza contra o ressentimento que envenena a vida, contra a opressão dos valores supremos que a tiranizam. Um dançarino que ri, imbuído de júbilo divino, é a expressão máxima de um sim inquebrantável a uma existência que se perfaz como um jogo de máscaras tragicômicas e farsa. 

 


sexta-feira, 25 de setembro de 2020

"O homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva" (Charles Darwin)

  

                                        




 

O homem como animal não fixado

 

 

Supondo que qualquer discussão sobre a condição alienada do homem relativamente à sua natureza animal ganha muito em profundidade e relevância quando reconhecemos o papel decisivo que a linguagem verbal e a cultura desempenham nessa alienação, pretendemos aqui definir as bases teórico-metodológicas que acreditamos são as que podem nos guiar com mais consistência na abordagem do que cuidamos ser uma questão para a filosofia: em que medida a linguagem e a cultura contribuíram para tornar a animalidade uma condição estranha ao homem? A questão, tal como a formulamos, já suscita o problema de definir ou não a animalidade como uma condição do homem[1]. Ou não seria a própria condição do homem, a despeito de ele ter um corpo biológico, de compartilhar com os demais seres vivos uma mesma cepa de ancestralidade, de ser formado, como notou o astrofísico Carl Sagan, de “poeiras das estrelas”, uma condição de animal não fixado? Em outras palavras, seria a animalidade uma característica definidora de nosso modo de ser ( do modo de nos exteriorizarmos, de nos expressarmos como espécie no mundo) ou apenas uma característica constitucional de nossa natureza biológica? Cremos que é preciso definir o escopo semântico desse substantivo abstrato ‘animalidade’ antes mesmo de começarmos qualquer discussão filosoficamente consistente. Não resta dúvida de que, considerando tudo que sabemos sobre a evolução darwinista, aceitando as evidências de que compartilhamos cerca de 98,7% de nosso DNA com bonobos e chimpanzés, somos partes de um grande reino que abriga inumeráveis espécies de animais; e não resta dúvida de que, por termos um corpo biológico, somos partes integrantes de um gigantesco ecossistema;  e não resta dúvida de que nós, seres humanos, nos compomos com o universo (basta lembrar que tudo que existe, incluindo os seres humanos, é composto de átomos). A despeito disso tudo, donde vem esse estranhamento do homem em relação à sua natureza animal? Como foi possível que um ser natural como o homem tenha se tornado, até certo ponto, antinatural, periclitante, como diria Nietzsche; como veio a se tornar um ser, em suma, não fixado? Acreditamos que essas questões devem ser levadas a sério; acreditamos que se trata de questões bastante fecundas e que sua fecundidade deita raízes sobre como a linguagem nos constitui,  como constitui nossas experiências, como interage com a nossa percepção-cognição e a cultura moldando nossa relação com o mundo; acreditamos, em suma, que a tentativa de responder ou de oferecer respostas (pois não cremos que haja uma única resposta) a essa questão passa por uma reflexão séria e cuidadosa sobre nossa relação (metafísica) com a linguagem, sobre a influência que a linguagem e a cultura exercem sobre não só nosso comportamento como indivíduos em sociedade, mas, sobretudo, sobre quem somos enquanto um ser do mundo.

Não pretendemos aqui adentrar nessas questões. Conforme dissemos, nosso objetivo é mais modesto: queremos iluminar alguns caminhos, descerrar trilhas, propor um itinerário teórico-metodológico. A essa tarefa é que nos lançamos doravante.

Se o que se pretende é fazer uma crítica radical do homem como ser alienado de sua animalidade, como ser que se constituiu pela negação, em si, de sua animalidade, devemos, então, começar partindo do reconhecimento daquilo que torna o homem um animal tão extravagante no seio da natureza da qual ele se originou: o homem é um animal não fixado. O seguinte trecho de Nietzsche, em que o homem é considerado o animal doente por excelência, colhido de Genealogia da Moral,  foi referido e comentado por Giacoia, em seu Nietzsche: o humano como memória e promessa (2014). Daremos a saber, em primeiro lugar, o texto de Nietzsche; posteriormente, citaremos Giacoia, que dele nos oferece uma interpretação que captou o que está no cerne da questão que nos ocupa.

 

(...) o homem é o animal doente, mais incerto, mais mutável, mais inconsciente, é o animal doente por excelência: donde lhe veio isto? Certamente provocou o destino e inovou mais, foi mais teimoso, mais audaz do que os outros animais; o grande experimentador de si mesmo insatisfeito, o insaciável, o que luta para reinar sobre os animais, sobre a natureza e sobre os deuses; o indomável, o futuro eterno, o aguilhoado pela espora que o futuro introduz na carne do presente, o mais valente dos animais, o de sangue mais rico, como não havia de estar exposto a doenças mais largas e mais terríveis?. (Nietzsche, 2011, p. 17).

 

Giacoia propõe uma leitura desse trecho de Nietzsche à luz de uma chave hermenêutica antropológico-cultural. Sua leitura descerra dois horizontes de sentido em que o texto de Nietzsche se deixa compreender: O primeiro deles encontra formulação linguística no seguinte excerto:

 

(...) a tese de Nietzsche dá ensejo a ser interpretada como uma hipótese que tem a forma lógica da causalidade: o homem é o animal doente, o mais prolongada e profundamente doente entre todos os animais porque é também o animal não fixado, sendo assim o grande experimentador consigo mesmo. (ibid., p. 24, ênfase no original).

 

 

Essa autoexperimentação do homem, vista à luz do horizonte semântico do “não fixado”, acarreta “a instabilidade, a flexibilidade, a multiplicidade e insegurança” (ibid.). Tudo isso pressupõe, segundo Giacoia, “mal-estar, sofrimento, insatisfação, ânsia, insaciedade permanente, mas também repto lançado ao destino, disputa por domínio sobre animais, natureza e deuses (também sobretudo sobre si mesmo)”. (ibid.).

A insistência cruel com que o animal humano escraviza, maltrata e mata os outros animais humanos e não humanos é um sintoma de sua doença como animal não fixado, um sintoma da negação de sua condição de animal, de seu destino animal, de ser alimento para vermes, de ter um corpo animal deteriorável e perecível.

A segunda linha de interpretação de Giacoia pauta-se pela afirmação de que o texto nietzschiano autoriza a inferência segundo a qual a mutabilidade constante, a insaciabilidade irrefreável são a natureza dividida e paradoxal do homem. Consoante nota Giacoia,

 

Sendo assim, faz parte desse paradoxo um excedente de força pulsional que ultrapassa toda fixação instintiva e faz do homem esse desafio permanente à estabilidade pensada no conceito de natureza, esse repto à autoconservação; eterna insubsistência, que o torna, por natureza, o animal mais exposto, o mais periclitado, o mais ameaçado pelo “acaso”, pelo “destino”, pela “natureza”. (ibid., grifo nosso).

 

 

Portanto, consoante entende Giacoia, o mais enfermo dos animais, é também o mais problemático, “o que é mais digno de questão, o mais denso, profundo e pleno de futuro – um aguilhão na carne da natureza, de todo presente” (ibid., p. 25). O ser constituído de um excedente pulsional significa ser o homem um excesso, cujo reflexo é sua indigência crônica como corpo animal. Admitindo usar um vocábulo anacrônico em relação ao pensamento de Nietzsche, o autor acrescenta:

 

(...) diria que o homem é um animal doente porque não é um animal instintivo, mas pulsional e, mais ainda, provido de um excedente pulsional que o torna não fixado, instável, cuja estabilidade e fixação só pode ser realizada por sua própria obra, ou seja, por meio da história e da cultura, basicamente por meio das instituições. (ibid., grifo meu).

 

 

Uma vez que é o homem provido de um excedente pulsional, ele é um animal não especializado, desprovido dos recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência; ele é um animal exposto a uma tensão crônica de forças e tarefas internas e externas; é, em suma, atravessado por uma “indigência crônica”. Outrossim, afirmar ser o homem provido de um excedente pulsional é afirmar não ser possível reduzir sua vida a simples atos de satisfação de necessidades animais mínimas, como a fome e o instinto sexual. Somos desnaturados, diferentemente dos demais animais, cuja vida é regulada, com maior preponderância, pela gramática biológica; somos – repetimos – “infestados” pela linguagem, dominados por ela, estamos emaranhados nela. Foi para lidar com esse seu excedente pulsional e sua “indigência crônica” que o animal humano criou a cultura, esse mundo de práticas e significados que lhe é próprio. Essa é a visão de Freud e da psicanálise a partir dele, para quem o bebê precisa ser introduzido no reino da linguagem para poder tornar-se um integrante da cultura. Pensamos ser razoável a hipótese de que a condição constitucionalmente trágica do animal simbólico, que é o homem, decorre do conflito insuperável entre o campo pulsional e a cultura. Conquanto não possamos aqui, dados os objetivos e limites deste texto, nos alongar sobre a importância do conceito de pulsão na compreensão do homem como animal não fixado, será suficiente assinalar que a pulsão, a partir de Freud, sendo um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático, sendo sempre um representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e atingem a mente, vai constituir uma nova realidade corporal, irredutível ao natural, ao instintivo. As pulsões não são desvio do natural, mas diferença pura.

Retomando a interpretação de Giacoia, é importante, para os nossos propósitos, reter a função que teriam as instituições culturais na constituição da condição existencial desse animal não fixado que é o homem. Assim, segundo Giacoia,  as instituições culturalmente criadas teriam por função primária  a estabilização do homem. Em outras palavras, através da cultura, o homem teria assegurado os meios pelos quais executa as tarefas de sua estabilização, tornando-se capaz de proteger e conservar o resultado das experiência coletivas acumuladas, sempre ameaçado pelos efeitos corrosivos do decurso do tempo. Ainda consoante Giacoia, “decerto, não é por meio de doutrinas, de cultura, ou propaganda, mas somente por meio de instituições é que o ser humano estabiliza-se de modo duradouro”. (ibid., p. 27). Se aceitamos, portanto, o caráter não fixado do animal humano e se admitimos que é por meio das instituições, por meio da cultura que esse animal busca estabilizar-se, busca dar conta de sua indigência crônica, então uma crítica do homem como animal alienado de sua animalidade deve começar por oferecer um modelo de interpretação e explicação do papel que a linguagem e a cultura exercem nesse processo de estabilização do homem, sob pena de reduzir-se a uma denúncia panfletária. Usamos palavras como “cultura” e “linguagem” para designar conceitos cuja definição apenas pressupomos, mas que, já de início, precisa estar clara na abordagem crítica. Tanto o termo cultura quanto o termo linguagem/língua apresentam significados variados dependendo do teórico e das teorias a que estejam vinculados. Uma preocupação nossa aqui é justamente definir territórios comuns, linhas de abordagem, pressupostos teórico-metodológicos que nos ajudem a conduzir nossas reflexões sobre a questão do homem como um animal alienado de sua animalidade.

As pessoas, em geral, ao reproduzirem, por exemplo, a ideia de que o incêndio no Museu Nacional, ocorrido no dia 2 de setembro de 2018, representou a perda de um “patrimônio cultural”, pressupõem, em sua fala, o seguinte significado de “cultura”: conjunto de instituições como a arte, a literatura, a música, a dança, a ciência, a religião, etc. É  o que Bennett, em seu Intercultural Communication (1998), chama de “cultura objetiva”. A cultura objetiva – também chamada de “cultura material” – encerra tudo que é produzido pela atividade humana e que por ela é transformado. Essa dimensão da cultura é acessível à experiência sensível dos membros de uma sociedade. Quando as pessoas comuns falam, então, de “patrimônio cultural”, estão se referindo a essa herança cultural material que é comum a uma sociedade. Mas cultura também apresenta uma face subjetiva. Nesse caso, Bennett fala em “cultura subjetiva” como o conjunto de crenças, valores, conhecimentos, ideologias; enfim, símbolos que modelam e informam a vida das pessoas nas relações que estabelecem entre si em sociedade. Não pretendemos fazer um inventário das inúmeras propostas de conceituação da cultura. Queremos apenas frisar que a cultura recobre mais do que os produtos das atividades artísticas, literárias, científicas, políticas do homem; ela constitui um grande sistema de atitudes, valores, normas, que estruturam as experiências do homem. Ela compreende um sistema de símbolos e significados. É nesse domínio semântico do termo cultura que devemos reconhecer o papel da linguagem ou do símbolo. Uma definição de cultura que pode ser bastante profícua para uma discussão sobre a questão que se coloca no escopo deste texto pode ser colhida na pena de Gomes, que nos ensina nesse tocante o seguinte:


 

“Cultura é o modo próprio de ser do homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte inconscientemente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o Absoluto e, enfim, reproduzir-se”. (Gomes, 2011, p. p. 36).

 

 

Outro conceito operacionalmente válido de cultura nos é fornecido pelo antropólogo brasileiro Roberto DaMatta. Nele, o autor deixa entrever ser a dimensão simbólica o fundamento da cultura. O trecho citado encontra-se no artigo publicado em 1981, no Jornal da Embratel e acessível no endereço eletrônico que se topa em nota abaixo.[2]

 

Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante de certas situações. (DaMatta, 1981, p. 3).

 

A faculdade da linguagem, ou seja, a capacidade que os homens têm de usar uma língua constitui a condição de possibilidade do desenvolvimento da cultura. De fato, a linguagem humana é produto da cultura, mas, ao mesmo tempo, não existiria cultura se o homem não fosse capaz de usar a linguagem articulada. Decerto, a cultura é um processo cumulativo, resultante de toda uma experiência histórica das gerações anteriores (concepção que é subjacente ao conceito de “patrimônio cultural”). Mas esse processo cumulativo historicamente constituído não seria possível sem a linguagem. Todo comportamento humano se origina no uso dos símbolos. Foi graças à ordem simbólica que os nossos ancestrais antropoides se tornaram homens. Toda cultura depende, portanto, dos símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que criou a cultura e foi por meio do uso dos símbolos (palavras) que foi possível sua perpetuação.  Sem a linguagem verbal, não haveria cultura, e o homem seria incapaz de realizar as tarefas necessárias a sua estabilização.

De modo algum, pretendemos dar a entender que superestimamos o aspecto cultural da condição humana em detrimento de sua constituição animal[3]. Como todo animal, também o homem deve manter uma relação adaptativa com o meio ambiente, a fim de sobreviver. Mas, como seja um ser biológico destituído de instintos, o homem precisa adaptar-se ao meio ambiente adotando outro caminho. Esse caminho é o da produção da cultura.  Seguindo também Geertz, que sustenta que todos os homens são geneticamente aptos para receber um “programa”, o qual se chama culturaassumimos que a cultura  se desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico do homem e, por isso, deve ser compreendida como uma das características da espécie homo sapiens sapiens juntamente com o bipedismo e um adequado volume cerebral.

Em virtude da linguagem e da cultura, o homem pôde se desprender da ordem natural, tomar distância de si e do mundo para exercitar a reflexão sobre ela, sobre o mundo e sobre si mesmo. A ordem simbólica é que torna possível ao homem refletir sobre seu próprio lugar no universo. É claro que, desde que o homem se tornou cindido, “rachado” como consequência da emergência da palavra, ele se tornou um ser desnaturado e iludido sobre sua real condição no Universo. Ora, na medida em que a linguagem permitiu ao homem a construção de imensos edifícios de representação simbólica que se sobrepõem e parecem se elevar à ordem natural como gigantescas presenças de um outro mundo – o mundo do simbólico -, o homem pôde produzir os mais diversos sistemas de significados historicamente constituídos - entre os quais os mais importantes são a religião, a filosofia, a arte e a ciência -, a fim de que encontrasse amparo e sentido numa existência que,  se contemplada como um acontecimento puramente biológico e/ou natural, o levaria, muito provavelmente, à terrificante angústia e ao desespero total.

Cremos que é preciso levar em conta, portanto, a proposta de Geertz, que adotando uma visão semiótica da cultura, define-a como um sistema de símbolos e significados interpretáveis, e ensina-nos: “(...) o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”. (Geertz, 2012, p. 4). A essa observação de Geertz, pode-se acrescentar outras duas, que constituem lições de uma inestimável sabedoria que não devemos ignorar. A primeira dessas lições nos chega da pena de Nietzsche que, num aforismo de Humano Demasiado Humano, retoma o problema da linguagem, que havia sido desenvolvido em Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral.

 

 

A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas aeternae virates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo. O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência. Da crença na verdade encontrada fluíram, aqui também, as mais poderosas fontes de energia. Muito depois – somente agora – os homens começam a ver que, em sua crença na linguagem, propagaram um erro monstruoso. (Nietzsche, 2005, p. 20-21).

 

É justamente essa visão de que, através da linguagem, “o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado de outro” que reencontramos em Cassirer, que nos lembra, nesse tocante, o seguinte:


O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo. (Cassirer, 2012, p. 48).

 

Esse excerto de Cassirer nos fornece insights preciosos para a nossa proposta de abordagem, mas sublinharemos um aspecto em especial: desde que a linguagem se desenvolveu como uma etapa constitutiva da relação filogênica do homem (enquanto espécie) com o mundo, os animais humanos não podem mais ter acesso imediato à realidade. É claro que o acesso à realidade mesma é talvez uma impossibilidade constitucional dos seres vivos mais complexos, os quais se relacionam com o mundo pela mediação da cognição-percepção. Mas, no caso dos animais humanos, entre eles e o mundo interpõe-se uma complexa inter-relação entre percepção-cognição, linguagem e cultura. Foi para tratar dessa questão que Blikstein escreveu o seu Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. Nesse livro, Blikstein estuda o papel que desempenha a linguagem na construção da própria realidade que o homem experiencia. A tese dele pode ser formulada como se segue: a realidade que experienciamos é produto de uma interação contínua, na práxis social, entre linguagem, percepção-cognição e cultura. A visão de Blikstein está sintetizada no seguinte excerto, que se acha na contracapa de Kaspar Hauser  ou a fabricação da realidade (2003):

 

Para o senso comum, a realidade parece não constituir problema algum: real é todo o universo estável e tangível de sons, cores, formas, espaços e movimentos. Trata-se, no entanto, de uma ilusão: na verdade o que julgamos ser a realidade não passa de um produto da nossa percepção cultural. Percebemos os objetos que as nossas práticas culturais já definiram previamente, em outras palavras, a realidade já foi fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a percepção. Tais estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem.

 

 

A percepção, ensina Blikstein, depende de uma construção e de uma prática social. É na prática social ou na práxis que reside o mecanismo que gera o sistema perceptual que fabricará o referente. A fabricação do referente estrutura-se nas seguintes etapas, sugeridas pelo autor: 1) realidade/ estímulos; 2) prática social ou práxis; 3) percepção/cognição/ponto de vista; 4) referente.

O referente não deve, contudo, ser tomado como um objeto do mundo extralinguístico; mas como uma entidade discursiva. O mundo textualizado, o mundo reconstruído no discurso não é um espelho do mundo de nossa experiência imediata. Não falamos, no discurso, de objetos do mundo propriamente, mas de objetos do discurso. Não se está negando a existência do mundo tal como nos é acessível à experiência sensorial; o mundo “real” existe, conforme assinala Blikstein, como uma totalidade de sensações, de estímulos, movimentos, cores, formas, etc. O que se nega é que a língua reflita esse mundo, como um espelho que reflete nossa imagem. Quando articulamos a linguagem ao processo de fabricação da realidade, quando a pensamos na relação necessária com a práxis e o nosso aparelho perceptual-cognitivo, o referente que resulta dessa interação se converte em uma entidade do discurso. É no próprio processo discursivo que os referentes vão sendo fabricados, estendidos, transformados, etc.

Blikstein nos lembra que “sem práxis não há significação” (ibid., p. 54). Para ele, a língua atua sobre a práxis. Destarte, o homem, vivendo na dimensão da práxis, desenvolve, para existir e sobreviver, mecanismos não-verbais que lhe permitem diferenciar e identificar as feições do continuum do real. O homem move-se no tempo e no espaço de sua comunidade. Por isso, precisa estabelecer e articular traços de diferenciação e identificação que o auxiliam a discriminar, reconhecer, selecionar, dentre os estímulos do continuum do real, as cores, as formas, as funções, os espaços e tempos indispensáveis à sua sobrevivência. Tais traços adquirem, no contexto da práxis, um valor positivo que se relaciona por oposição a um valor negativo ou pejorativo. Assim, impregnados de valores positivos/negativos, eles convertem-se em traços ideológicos.

Os traços ideológicos desencadeiam a estruturação de “formas” ou “corredores” semânticos, por onde atravessam os fios básicos de significação, as chamadas isotopias da cultura de uma comunidade. Em nossa cultura, por exemplo, “em cima” é um traço de valor positivo, enquanto “abaixo” tem um valor negativo. Esses traços ideológicos constituem a base dos corredores semânticos ou isotópicos da verticalidade positiva em oposição à horizontalidade pejorativa. São os corredores semânticos ou isotópicos que vão delimitar a percepção/cognição, gerando padrões ou modelos de percepção, chamados de “óculos sociais”.

Os óculos sociais são os estereótipos de percepção. São com esses estereótipos que “vemos” a realidade e fabricamos o referente. A língua age sobre a práxis e sobre os corredores isotópicos e sobre os estereótipos perceptuais. Estabelece-se, assim, uma interação entre língua e práxis de tal modo que, à proporção que nos socializamos, mais difícil torna-se distinguir as fronteiras entre ambas. É na ação sobre a práxis que a língua modela o referente. Blikstein entende que a cognição está sujeita a uma atividade incessante de estereotipação, cuja consequência é que passamos a considerar como real e natural a totalidade do universo de referentes e realidades que são, na verdade, fabricados e/ou construídos.

Propomos, portanto, que um exame filosófica, antropológica e linguisticamente consistente da questão que consiste em indagar sobre como foi possível que o animal humano se tornasse alienado de sua animalidade deve romper com a visão clássica e metafísica da linguagem como sistema de representação do mundo. Em filosofia, sabemos que por “representação” entende-se o ato de reapresentar ao espírito alguma coisa; a representação é o ato de tornar a coisa presente na mente. Devemos à tradição socrático-platônico-aristotélica nosso hábito comum de compreender e de nos relacionar com a língua[4]. Para Sócrates, a língua tem por função nos informar sobre as coisas. Para Platão, a língua/linguagem tem por função representar não a realidade fenomênica, mas a realidade das Essências ou Formas Imutáveis. Para Aristóteles, as palavras representam as afecções da alma. Para ele, a linguagem opera uma dupla simbolização: ela simboliza o pensamento, o qual, por seu turno, simboliza o real. Subjacente ao tratamento aristotélico da linguagem, encontrar-se-ia uma espécie de mentalismo realista. Aristóteles reduz a linguagem a mero instrumento da representação do mundo operada pela razão. É a razão que representa o mundo, e à linguagem cabe expressar essa representação. Há uma relação especular entre a razão e o mundo, relação esta que a linguagem reflete. Em suma, em Aristóteles, a linguagem torna-se o instrumento, por excelência, da razão representativa. Tanto Platão quanto Aristóteles compartilham o pressuposto da existência de uma ordem objetiva subjacente ao dinamismo e à variabilidade das línguas humanas que precisa ser assegurada. Ambos rejeitam a perspectiva radicalmente pragmática da linguagem já presente, de forma embrionária, no pensamento dos sofistas.

Comentando uma passagem em que Górgias dá a entender que a língua apenas revela a própria língua, a linguista e semanticista Helena Martins, faz a seguinte observação:

 

A linguagem não diz o real, o qual, sabemos, para Górgias, não pode ser conhecido. Sob esse ângulo, os objetos que se manifestam a nós não pode então ser objetos que conhecemos em algum momento logicamente anterior ao uso da linguagem – a linguagem não representa o real autônomo que previamente se nos dá a conhecer. O que tomamos como “o real” pode aqui então ser visto como apenas aquilo que se manifesta para nós como tal no discurso. A passagem de Górgias permite-nos, pois, associar ao pensamento sofista um ponto de vista segundo o qual, em certo sentido, a existência humana é linguisticamente articulada – um modo de ver no qual a linguagem desempenha um papel crucial em nossa experiência de mundo. (Martins, 2005, p. 452).

 

 

Há uma visão pragmática de linguagem em forma embrionária no pensamento sofista. Em Linguística, a pragmática recobre os estudos que, na esteira das contribuições dos filósofos da Escola Analítica de Oxford, como Austin, Searle e Strawson, se alinham com o princípio de que “todo dizer é um fazer”. Ao usarmos enunciados, agimos sobre os outros. A questão da relação entre linguagem e realidade é, na pragmática, por assim dizer, deslocada para a relação entre os signos e os usuários desses signos.  Importa descrever e explicar o que fazemos quando usamos a língua. Ao produzir enunciados, produzimos atos de fala ou atos de linguagem; buscamos agir sobre o outro com vistas a modificar seu comportamento, a produzir nele alguma reação desejada/esperada, etc. A questão da referência será então pensada em termos de ajustes, de acordos (quase sempre tácitos, nem sempre explícitos), internacionalmente estabelecidos, entre os usuários da língua, acerca do que as expressões linguísticas utilizadas designam, significam, referem, com base num conjunto de conhecimentos e crenças a cerca do mundo pressuposto como partilhado entre eles.

Ao produzir enunciados, produzimos também efeitos de sentido. Não há sentidos fixos que se encontram nas palavras mesmas. Um mesmo dizer pode significar muitas coisas e o seu exato contrário, dependendo das condições de sua produção. O segundo Wittgenstein foi um expoente dessa concepção de linguagem como forma de ação conjunta com os outros. Wittgenstein foi um precursor da visão pragmática da linguagem, à luz da qual "dizer é fazer". Outros filósofos que, com ele e outros tantos linguistas, que pensariam a linguagem de uma perspectiva não representacional, estariam Quine, Davidson, Derrida, Habermas, Putman, entre outros.

Se pretendemos, portanto, desenvolver uma crítica radical da relação entre o homem e sua animalidade que vise a explicar como foi possível ao homem negá-la, devemos rejeitar uma visão representacional, essencialista da linguagem, à luz da qual as palavras seriam como “etiquetas” das coisas; e a língua, um instrumento para falarmos objetivamente sobre o mundo, com vistas a desvendar sua ordem universal imanente. É preciso, em primeiro lugar, levar a sério a alternativa sofista com seus desenvolvimentos ulteriores não só na Filosofia como também na Linguística. Nossa proposta se encaminha no sentido da adoção de uma visão sociointeracionista da linguagem, à luz da qual a língua não é um sistema de representação; mas uma práxis histórica; a língua é uma forma de ação interativa, social, cognitiva e situada. A língua é marcada por uma indeterminação constitutiva. À luz dos estudos em Análise do Discurso, o dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.

A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro. Segundo a perspectiva sociointeracionista, o sentido é produção da interação. O outro é necessário para que saibamos o que estamos a dizer, e para construirmos interativamente o sentido do que dizemos. É nas interações sociais por meio da língua, a qual é o “lugar” mesmo onde a interação acontece, que emergem as significações e que são negociados os significados atribuídos pelos interactantes às suas expressões linguísticas. A interação é, portanto, o espaço dialógico no qual os significados que estruturam as nossas experiências se constituem e se objetivam. É o espaço no qual os sujeitos se constituem e buscam responder pelos sentidos mobilizados nas suas trocas linguísticas. A visão sociointeracionista da linguagem mantém que a língua é ação intersubjetiva. A interação verbal é a realidade fundamental da linguagem. A língua não é simplesmente um intermediário entre nosso pensamento e o mundo, mas é, sobretudo, ação conjunta dos interactantes sobre o mundo; é atividade social por meio da qual eles agem uns sobre os outros com vistas a obter determinados resultados. A adoção de uma perspectiva sociointeracionista de linguagem é um dos ( e não o único possível!) dos caminhos que nos permitem não só romper com a perspectiva platônico-aristotélica que, dominante na história do pensamento ocidental, mantém hegemônica ainda hoje, no senso comum, a concepção essencialista da linguagem e do sentido, mas também comprometer-se filosoficamente com a crítica radical da linguagem, empreendida por Nietzsche, ainda no século XIX, antes mesmo do surgimento da Linguística como ciência. Nietzsche soube bem reconhecer que as coisas como identidades, como unidades somente existem na linguagem. A palavra não mantém uma relação de correspondência com a coisa que designa; a linguagem não é representação do objeto. Mesmo os objetos não existem senão em função da palavra que os nomeia, os identifica, os constrói. A impossibilidade de correspondência entre as palavras e as coisas não resulta, portanto, apenas do processo de redução e ficção que marca os signos. A questão fundamental, para Nietzsche, é que não existe sentido nas coisas a ser representado no objeto. Não há sentido fixo, mas perspectivas resultantes sempre de dinâmicas agonística de forças. O signo é apenas uma disposição, uma abertura, uma moldura vazada, capaz de configuração. Ele encerra uma diversidade de possibilidades, uma luta. Com Nietzsche, busca-se superar a crença na identidade subjacente ao que é dito: há sempre o caos do sentido que permanece nos silenciamentos que atravessam toda palavra. As teses de Nietzsche, mormente sobre a linguagem, tiveram desdobramentos em vários campos do saber, inclusive na Linguística. Portanto, depois de Nietzsche e com ele, é preciso admitir que as coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros. A maneira como dizemos aos outros as coisas decorre de nossas atividades intersubjetivas sobre o mundo e de nossa inserção sociocognitiva no mundo em que vivemos. O mundo textualizado, o mundo comunicado é sempre efeito de um agir intersubjetivo (não voluntarista) diante da realidade externa e não de uma identificação de realidades discretas. É preciso consentir na visão de Bakhtin da palavra como “uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória”. (Bakhtin, 2006, p. 67). As palavras são entretecidas por fios ideológicos e acumulam as entonações (valores) do diálogo vivo dos interlocutores. Assim, seguindo de perto Bakhtin, devemos assumir que a palavra como signo ideológico[5], é resultado do processo de interação e ela acumula os valores atribuídos aos interlocutores ao que é dito. Como signo ideológico, portanto, toda palavra recebe um ponto de vista; é um lugar valorativo. Também seguindo a perspectiva bakhtiniana, será preciso admitir que a consciência não é mero fenômeno psíquico, mas um fenômeno de base material; ela é produto socioideológico. Ela se constrói nas relações sociais por meio das trocas linguísticas. Sua realidade é o signo (Bakhtin). É, portanto, pelo uso da palavra, que se constitui a consciência; é por meio da palavra, que se dá o contato da consciência com o mundo exterior a ela. As palavras operam tanto nos processos internos de consciência, possibilitando a compreensão e interpretação do mundo pelo homem, quanto nos processos externos de sua circulação em todas as esferas sociais. Não há neutralidade na palavra. Toda palavra é pluriacentudada, ou seja, é entretecida por múltiplos acentos contraditórios, que se cruzam no seu interior; e o sentido se constitui nesse entrecruzamento. Hall, fazendo eco tácito a Bakhtin, observa:

 

As palavras são “multimoduladas”. Estas sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado. (...) O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós. Existem sempre significados suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis. (Hall, 2006, p. 41).

 

 

Marcuschi, por seu turno, alinhando-se com a perspectiva sociointeracionista de linguagem, observa que nem o mundo nem a linguagem têm uma estabilidade a priori e prossegue:

 

(...) o mundo não é um grande supermercado com gôndolas universais divinamente mobiliadas, restando aos humanos nomearem esse mobiliário para uso coletivo. A construção histórica dos humanos para a configuração dessas gôndolas é imensa e não desprezível. Ao lado disso, a linguagem também não é um instrumento transparente, preciso e claro capaz de etiquetar de forma universalmente igual cada elemento desse suposto mobiliário. Portanto, não há uma relação direta entre linguagem e mundo e sim um trabalho social designando o mundo por um sistema simbólico cuja semântica vai se construindo situadamente. Repetindo: a língua é um sistema simbólico e não um sistema ontológico nem classificatório. (Marcuschi, 2005, p. 67, ênfase no original).

 

 

É Marcuschi também quem nos diz como a relação entre linguagem e mundo é interpretada e trabalhada numa visão sociointeracionista de linguagem. Segundo o autor, o que se privilegia são as relações sociais instauradas pelos interactantes mediante os recursos linguísticos.

 

(...) por eles pode-se elaborar versões públicas do mundo, em que a adequação será estabelecida praticamente em termos de negociação pública não voluntarista, ajustes, acordos e desacordos, etc. entre os interlocutores e o discurso não dependerá de uma presumida relação objetiva com um mundo exterior, mas será sempre construída. (ibid., p. 71, ênfase no original).

 

 

Depreende-se da visão de Marcuschi o fato de que é necessário observar o que os interactantes fazem e como agem para construir um mundo publicamente estabilizado em atividades de coprodução discursiva. Uma vez que se assuma que a relação entre discurso e mundo é construída, os referentes de que falamos são constituídos, elaborados, modificados, redefinidos como objetos-de-discurso. A referência é entendida como referenciação. E referenciação é uma atividade discursiva, à luz da qual a relação entre as palavras e as coisas dá lugar a uma relação intersubjetiva e social de construção de objetos-de-discurso, os quais se articulam em predicações para formar configurações significativas que constituirão versões de mundo publicamente elaboradas e avaliadas segundo sua adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos interactantes. Os objetos-de-discurso existem discursivamente, emergem de práticas linguísticas e intersubjetivas; não se confundem com os referentes extralinguísticos. Eles se enriquecem, são alimentados e construídos cooperativamente pelos interactantes.

Finalmente, gostaríamos de insistir em que uma análise crítica de como foi possível a negação pelo homem de sua animalidade não deve perder de vista a necessidade de restituir ao discurso o seu caráter de “acontecimento” (um acontecimento sócio-histórico) e de suspender, para falar como Foucault, a soberania do significante.

 

Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade. (Foucault, 2008a, p. 53).

 

 

Será preciso reconhecer, com Foucault, que os discursos são práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Assim é que

 

(...) as palavras não estão deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas; não há nem descrição de um vocabulário nem recurso à plenitude viva da experiência. Não se volta ao aquém do discurso – lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta; não se vai além para reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si; fica-se, tenta-se ficar no nível do próprio discurso. (...) os discursos. Tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras (...). (Foucault, 2008b, p. 54, grifo nosso).

 

 

Foucault pretendia analisar os discursos para determinar um conjunto de regras próprias da prática discursiva. Ao longo de sua análise, ele assegurava que veríamos romper-se os laços aparentemente fortes entre as palavras e as coisas. Mas isso é possível porque, para Foucault, o discurso supõe um campo de saberes articulados entre si, constituídos historicamente em meio a disputas de poder. Para Foucault, os signos existem para além de nomear ou representar a “realidade”. Entre a linguagem e o mundo interpõe-se uma “ordem do discurso”, de sorte que não se analisa um discurso para se chegar às coisas como se elas fossem um tesouro primitivo escondido atrás das palavras, como se as coisas estivessem lá e a elas pudéssemos chegar em sua inteireza e imutabilidade. É claro que a materialidade do discurso, uma materialidade que é histórica, pode constituir-se de vários elementos, tais como elaborações do senso comum, afirmações preconceituosas, imagens diversas e até mesmo representações sobre um determinado objeto. Mas essas representações são produções culturais e dizem respeito às práticas culturais de produção de significados, aos modos pelos quais determinados grupos aprendem a conferir significados a situações, pessoas e acontecimentos. Esses significados produzidos culturalmente operam na construção social de valores, na cristalização de conceitos e preconceitos, na formação do senso comum, na constituição de identidades – de gênero, étnicas, sexuais, políticas, etc. e na produção da subjetividade.

Uma vez que estejamos interessados em compreender como a cultura pode amarrar o homem na teia de significados que ele mesmo construiu, é oportuno considerar o que nos ensina Castoriadis sobre a produção institucional da alienação. Segundo Castoriadis, “a instituição é uma rede simbólica socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e em relações variáveis, um componente funcional e um componente imaginário”. (Castoriadis, 1982, p. 159). Assim, a alienação é, para ele, a automização e a dominância do momento imaginário na instituição que enseja a autonomização e a dominância da instituição relativamente à sociedade. A automização da instituição encarna-se na materialidade da vida social, mas supõe sempre também que os indivíduos coletivamente em sociedade vivem suas relações com as instituições sob o regime do imaginário, isto é, não reconhecem no imaginário das instituições seu próprio produto. Assim, é preciso atender nas seguintes palavras desse filósofo francês de origem grega:



Cada sociedade define e elabora uma imagem do mundo natural, do universo onde vive, tentando cada vez fazer um conjunto significante, no qual certamente devem encontrar lugar os objetos e seres naturais que importam para a vida da coletividade, mas também esta própria coletividade e finalmente uma certa “ordem do mundo”. (Castoriadis, 1982, p. 179).

 

 

Esta imagem, que constitui uma visão mais ou menos estruturada do conjunto da experiência humana disponível, embora se valha “das nervuras racionais do dado, as dispõe segundo as significações e as subordina a significações que como tais não dependem do racional (nem aliás de um racional positivo), mas sim do imaginário”. (ibid., p. 179).

É o imaginário, segundo Castoriadis, que confere à funcionalidade de cada instituição sua orientação específica; também é o imaginário, esse estruturante originário, que sobredetermina as escolhas e as conexões das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver, ver e de fazer sua própria existência. Destarte, “tudo o que se nos apresenta no mundo social-histórico está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele”. (ibid., p. 142). Portanto, as ações reais dos indivíduos e dos grupos, o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade, bem como os inumeráveis produtos materiais sem os quais é impossível a subsistência de uma sociedade, não são nem sempre símbolos, mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica. Ainda segundo Castoriadis, as sociedades constituem seu simbolismo, mas não o fazem com liberdade total. A ordem simbólica se crava no natural e se crava no histórico (ao que já estava lá); participa, finalmente, do racional: “tudo isso faz com que surjam encadeamentos de significantes e significados, conexões e consequências, que não eram nem visadas nem previstas”. (ibid., p. 152).

Acreditamos que o caminho teórico-metodológico descortinado por nós (não sendo, de modo algum, o único caminho possível) pode oferecer uma grande contribuição para responder à questão que consiste em saber como o animal humano, ao construir a teia de significados que constitui a cultura, passou a viver sob o poder de duas formas de autoengano: a) passou a crer que essa teia de significados esgota a totalidade do real; b) passou a acreditar, como consequência da primeira crença, que goza de um privilégio ontológico relativamente às demais espécies de animais.

 

 

 

5. Referências bibliográficas

 

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[1] Entendendo-se por “condição” aí tudo aquilo que estabelece relação com a existência humana (veja-se nota 10 adiante).

[3] Novamente, a questão da ‘animalidade’ como uma qualidade que descreve, no homem, a sua constituição morfológica, como ser vivo, ou a sua condição existencial reaparece aqui. O fato inegável é que os processos de hominização do animal humano tendem sempre a conter, a reprimir, a expulsar (mas não totalmente) a ‘animalidade’ do homem, ou a reduzi-la a certas necessidades básicas de sobrevivência, de algumas das quais o homem, inclusive, deve sentir vergonha. E é fato inegável que, a despeito dos esforços empreendidos, os processos formativos, educativos de inserção do homem na cultura jamais expulsam a animalidade inerente ao corpo humano; ela subsiste, ainda que residualmente em seu ser, na forma de tensão, de insistências, de impulsos. Por isso, é preciso reconhecer que a condição existencial do animal humano é uma condição tensionada entre a sua animalidade e o simbólico que o constitui.

[4] Por influência do inglês language, que tanto significa ‘língua’ quanto ‘linguagem’, muitos linguistas e estudiosos da linguagem usam o termo “linguagem” tanto para significar o que nós, falantes de português, entenderíamos por “língua” quanto para significar “linguagem” como uma faculdade que torna possível o uso de uma língua. Em contraste com a linguagem, tomada nessa acepção, a língua seria a utilização social da faculdade da linguagem. Mas essa é uma das muitas maneiras de definir a língua e também a linguagem. Em alguns contextos, a distinção entre linguagem e língua se impõe; mas, em outros, a prática corrente é usar o termo linguagem no lugar de língua, ou não distinguir entre ambos os termos. Por exemplo, fala-se em ensino de língua materna, de língua estrangeira, de segunda língua, para designar a aprendizagem de um “sistema de signos convencionais organizado segundo as regras e princípios de uma gramática”. Mas fala-se em “aquisição da linguagem” ou como um processo de maturação/ aquisição de uma disposição inata para o uso de uma língua (visão dos gerativistas), ou como um processo de aprendizagem que se desenvolve nas atividades comunicativas de que participa a criança (visão funcionalista). A linguagem aí seria ou uma espécie de faculdade natural inata desenvolvida a partir da ativação de regras ou princípios/parâmetros ativados com base numa Gramática Universal inscrita na mente/cérebro do falante (visão sustentada pelos os gerativistas que seguem Chomsky) ou uma habilidade para o exercício da interação social, decorrente da exposição da criança, com base num input altamente estruturado de dados linguísticos, a práticas linguísticas reais em contextos sociais em que a língua, entendida como instrumento de interação social, é usada (como defendem os funcionalistas, por exemplo).

[5] O Círculo de Bakhtin parece ter rejeitado uma concepção bastante estrita de ideologia como “falsa consciência”, que se consagrou a partir de certas leituras marxistas de Marx. Para Bakhtin, ideologia pode ser entendido como “uma tomada de posição determinada”. Ela compreende sempre interpretações e reflexos da realidade social e natural que seriam acolhidas pelos indivíduos em sociedade.