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terça-feira, 5 de abril de 2016

"O que é a verdade?" Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos" (Nietzsche)

   
                                    


             

              A crítica de Nietzsche à metafísica da verdade

 

 Estando claro, de início, que a expressão “Deus está morto” significa muito mais do que uma constatação do esvaziamento do sentido existencial vinculativo da crença no Deus judaico-cristão; estando claro que essa expressão aponta para o vínculo entre a metafísica e a constituição dos valores superiores e que sua significação consiste no reconhecimento da dissolução da normatividade dos conceitos metafísicos, passemos a considerar a crítica nietzschiana à Verdade como um valor superior do qual Deus é um significante. Na medida em que o signo Deus foi, ao longo da história do desenvolvimento da metafísica, identificado com a Verdade, e a Verdade tornou-se divina, ou seja, um valor superior, o acontecimento da morte de Deus descerra um horizonte que torna possível uma crítica radical da Verdade como valor superior.

A crítica de Nietzsche à Verdade como valor metafísico é um desdobramento de sua crítica à linguagem. No que diz respeito à crítica nietzschiana à linguagem, cingir-nos-emos a compor estes poucos encadeamentos verbais. A linguagem é, para Nietzsche, uma metáfora para as coisas; ela não espelha a realidade tal como é, mas serve tão-só para expressar as relações dos homens com essa realidade. O homem, pelo esquecimento de que é ele o produtor das metáforas (palavras), acredita ser capaz de atingir a verdade através da linguagem. A verdade é, portanto, fruto desse esquecimento. Por isso, para Nietzsche, a verdade é uma ilusão, embora necessária, porque serve à sobrevivência.

Não se reconhecendo como os verdadeiros produtores das metáforas, os homens passam a acreditar que há uma relação de causalidade entre a palavra e o objeto designado. Institui-se, assim, uma mentira social, necessária, no entanto, para a própria organização social e sobrevivência dos homens. O mentiroso é aquele que se usa das palavras, se vale de designações que contrariam as convenções estabelecidas. É somente em estado de rebanho, dirá Nietzsche, vivendo em sociedade, que os homens, por meio do engano, buscam a verdade. A linguagem lhes possibilita estabelecer normas de conduta dentro das comunidades.

A verdade em si é, portanto, inacessível ao intelecto humano, justamente porque ela não é outra coisa senão produto de operações metafóricas que entram na base da constituição de conceitos. Nietzsche nem por isso deixa de reconhecer a vontade de verdade; ele admite que os homens precisam buscar a verdade, porque disso depende a possibilidade mesma de viverem em estado de rebanho e de sobreviverem. Todavia, a vontade de verdade mascara uma face moral (e Nietzsche se especializou em pôr a nu justamente aquilo que está encoberto). Essa face moral que a verdade encoberta se sustenta na oposição metafísica entre verdade e aparência. Essa oposição está na raiz da afirmação de uma vida além-mundo e da negação da vida mesma vivida neste mundo. Em outras palavras, essa oposição leva a que se tome a vida verdadeira como a vida além-mundo e a única vida que conhecemos, a vida neste mundo, como um simulacro, uma imagem imperfeita da verdadeira vida que está além da experiência sensível. A verdade passa a ser considerada, desse modo, um valor superior, transcendente; e a ciência se torna a expressão mais alta da busca da verdade, tomada como absoluta e como algo que deve ser desvelado.

A crítica nietzschiana à verdade redundará também numa crítica à Ciência que se apresentará como mais um Ídolo (um ideal) que precisa ser demolido. A ciência concebe o mundo dotado de uma ordem mecânica, que funciona mediante leis que, se compreendidas, permitem o acesso à verdade. Mas Nietzsche não admite haver qualquer ordem no mundo; para ele, o mundo é um caos, a lógica que supomos encontrar no mundo não está no mundo, mas nos homens. São os homens que logicizam o mundo. São eles que projetam relações de causalidade entre os acontecimentos do mundo. A ciência está, portanto, fundada na crença na vontade de verdade, de tal sorte que a verdade ganha um valor superior. Sendo a verdade um valor superior, Nietzsche concluirá que a ciência não conseguiu liquidar Deus. O Deus da ciência se chama agora a Verdade. A ciência professa sua fé no valor metafísico da verdade. A vontade de verdade se expressa como crença na superioridade da verdade. É nessa crença que a ciência se baseia. A ciência não é possível sem o postulado, sem a hipótese de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade vale mais que a aparência ou a ilusão.

Nietzsche, como grande dessacralizador, desenvolveu sua crítica corrosiva aos ideias superiores com um objetivo bem definido: tornar o mundo mais humano, tornar o homem demasiado humano. Se a ciência fracassou na tentativa de humanizar mais o homem, que alternativa poderia restar a ele? Nietzsche lhe aponta um caminho: a arte. Para Nietzsche, a arte, não deixando de ser uma mentira, é uma mentira que confere, no entanto, profundidade à vida humana. A arte transforma a visão que temos da vida, preterindo, para tanto, da lógica. Ela causa um abalo na percepção que temos do presente. A arte leva em conta a ignorância natural do homem sobre si mesmo. Não tem ela a pretensão de atingir alguma essência do homem, mas tão somente “afetá-lo” em sua superfície. Mas é justamente ao fazê-lo, que ela aproxima o homem de si mesmo. A arte torna a vida mais suportável. O espírito dionisíaco se expressa na arte, e Nietzsche se vale dele para conduzir o homem a um retorno a si mesmo. Nietzsche se propôs naturalizar o homem, livrando-o das sombras de Deus e das ilusões da razão. O homem que se reconhece no engano e reconhece o engano em que sua vida estava imersa é, portanto, um homem livre de seus ídolos (Deus, a Verdade, a Ciência, a Razão, a Lógica...).

Em linhas gerais, portanto, o acontecimento da morte de Deus parece envolver, no horizonte hermenêutico que ele descerra,

 

a) o questionamento da verdade como valor metafísico;

b) a busca por superar a metafísica platônica;

c) a busca por suprimir o fundamento do sentido;

d) a afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;

e) a rejeição de uma vida além-mundo.

 

Morto Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo deixa de ter um coração, a saber, deixa de ser acolhedor. A morte de Deus permitirá superar a dicotomia entre a vida no mundo e a vida além-mundo.

Mas cabe questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, tendo sido reconhecido que “Deus está morto”. Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus na Modernidade.

Em Teologia e Pós-modernidade – novas perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de Sousa, intitulado de A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito do fato de o acontecimento da morte de Deus impossibilitar-nos o acesso ao “em si”:

 

   “Nós, que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em nome da ciência, em nome da filosofia, tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”. (p. 64).


 

O novo Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no espírito da modernidade com novas roupagens.

A pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao anunciar a morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a destruição do poderio da verdade. Que Nietzsche tenha ressumado em suas páginas um profundo sentimento antiplatônico é um fato do qual não é difícil dar testemunho; mas dessa constatação não se segue a conclusão de que Nietzsche não tivesse para com o pensamento de Platão uma grande dívida[1]. Vejamos um trecho, que se topa em Crepúsculo dos Ídolos, em que Nietzsche estende seu repúdio a Platão e ao cristianismo. O fragmento é parte de um texto em que Nietzsche nega ter aprendido alguma coisa com os gregos, após, num texto anterior, elogiar o estilo romano.

 

 

 

(...) Para achar graça no diálogo platônico, este tipo de dialética presunçosa e infantil, é preciso jamais ter lido os bons franceses – Fontenelle, por exemplo. Platão é entediante. – Minha desconfiança de Platão vai fundo: afinal, acho-o tão desviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao cristianismo – ele já adota o conceito “bom” como conceito supremo -, que eu utilizaria, para o fenômeno Platão, a dura expressão “embuste superior” ou, se soar melhor, idealismo, antes que qualquer outra palavra. Pagou-se caro pelo fato de esse ateniense ter frequentado a escola dos egípcios (- ou dos judeus no Egito?...). Na grande fatalidade que foi o cristianismo, Platão é aquela ambiguidade e fascinação chamada de “ideal”, que possibilitou às naturezas mais nobres da Antiguidade entenderem mal a si próprias e tomarem a ponte que levou à “cruz”...E quanto de Platão ainda se acha no conceito “Igreja”, na construção, no sistema, na prática da Igreja![2]

 

 

A crítica ferina que Nietzsche dispensará ao cristianismo se faz a reboque da crítica radical a que ele submete a metafísica platônica. Nietzsche, como se pode ler no excerto supracitado, vê em Platão um “cristão anterior ao cristianismo”, um tipo decadente, tal como o é o tipo crucificado, o qual Nietzsche opõe ao tipo dionisíaco. O tipo crucificado expressa a funcionalização religiosa da dor (a dor é funcional, porque “serve para”). Para o tipo crucificado, o lugar do “para quê” situa-se no além da vida. Para o tipo dionisíaco, a vida é santa demais para necessitar de uma instância outra, transcendente, que a justifique. Para o tipo dionisíaco, o sofrimento é fecundidade (a vida é fecunda na dor), é possibilidade de reinvenção da vida. Dionísio é um tipo afirmador; é um tipo forte que redime a finitude. O crucificado, ao contrário, é um tipo negador, um tipo cansado, que acusa a finitude. Se os cristãos veem na cruz um lugar de sacrifício de Deus (o Cristo), se para Jesus a cruz é lugar de amor, Nietzsche entenderá que a cruz crucifica a vida.

Toda a metafísica - entenderá Nietzsche - se desenvolveu como acusação da vida. Nietzsche contra Schopenhauer: a visão trágica contra a visão pessimista. Na perspectiva trágica de Nietzsche, a dor, que não deixa de ser uma evidência, é considerada uma parte essencial da tessitura da existência. A dor não deve nos desencorajar de viver, ela não deve ser razão suficiente para desaprovarmos o mundo. Nietzsche encontra no espírito dionisíaco sua fórmula afirmadora da vida. Toda a filosofia nietzschiana é uma filosofia afirmadora da existência, em que pese o reconhecimento do sofrimento como parte estrutural. O homem dionisíaco é um sábio trágico: ele diz sim a um modo específico de viver. Pois toda afirmação da vida é afirmação de modos de conformação da vida, os quais afirmam um modo específico de viver.  O tipo pagão é um tipo vital que se constituiu afirmativamente. O sofrimento é, para ele, promessa de mais vida. O tipo pagão (dionisíaco) afirma a vida no sofrimento.

Na visão pessimista de Schopenhauer, o espetáculo da dor e do mal moral é razão suficiente para desaprovar a existência. Seu pessimismo não tem outra razão de ser senão em face do horror provocado pela realidade da dor. A dor é um escândalo, uma perturbação que precisa ser eliminada. Para Schopenhauer, a pregnância da dor e do sofrimento no mundo é prova de que este mundo não merece ser aprovado.

Nietzsche contra Platão: há aspectos da metafísica de Platão que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão, Nietzsche ergue o seu “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica desenvolvida por Nietzsche à metafísica.

De início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em Platão; e o pensamento platônico fincou as raízes da formação do pensamento ocidental. Um papel fundamental nessa formação desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o mundo inteligível, ou o mundo das Ideias ou Formas perfeitas. A partir daí, o mundo suprassensível será o fundamento do mundo sensível. Platão opera, portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como o conhecemos por meio de nossa percepção sensorial; e de verdadeiro, o mundo acessível apenas à experiência racional, intelectiva. O dualismo platônico se expressa na admissão da existência de um mundo suprassensível como razão de ser do sensível. Está, então, estabelecida a base sobre a qual outros dualismos poderiam ser desenvolvidos, tais como ‘corpo-alma’, ‘essência-existência’, ‘matéria-forma’, ‘fenômeno-númeno’, ‘mundo como vontade-mundo como representação’, etc.

Na Idade Média, com a Patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo. Ou seja, Platão passa a ser conhecido pelos cristãos, muito graças aos esforços de Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.

O Nietzsche de O Anticristo condena impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim, ao homem é negada a possibilidade de tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo resignado, fatigado, porque eleva sobre a única vida verdadeira uma outra vida a ser aguardada na fé e na esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa recompensa numa vida além-mundo.

Para a superação deste homem decadente, cansado, produzido pelo cristianismo, Nietzsche postula uma superação do próprio homem, se tornaria um criador de valores, “que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nascerá, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo”[3] – em uma palavra, o além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido. O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas raízes se acham no pensamento platônico.

Nietzsche convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a crença numa vida além-mundo é uma mentira. Como era um grande estudioso da Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele, considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação posterior. Uma vez que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, coube a São Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação distorcida da mensagem de Jesus.

Contrariamente à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do devir. Valor, em Nietzsche, deve, necessariamente, tornar esta vida, aqui e agora, mais forte –vida que precisa ser vivida com todas as suas contradições. Qualquer valor que negue esta vida, na verdade, é um valor decadente, é um valor que leva ao enfraquecimento, à degeneração da vontade de viver.

A filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do porvir, da superação da vontade de nada. Nesse sentido, é uma filosofia antiniilista. Nietzsche é, definitivamente, o contrário de um niilista.

O além-do-homem é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce, tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico. E o trágico, em Nietzsche, é experiência de aprovação dos modos de configuração da vida. É o homem que ama a vida, que experiencia o amor fati, isto é, amor ao modo como o mundo se destina.

A morte de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o verdadeiro mundo, ao contrário do que ensinou Platão.

O além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na imanência, no instante como lugar da eternidade.

 Dionísio transforma o devir, o sofrimento, o aniquilamento em promessa de vida, em ser mais. Na aniquilação, Dionísio faz que a vida seja mais.  O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa.

“Acima de tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche.

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRAGA, Antonio C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e do eterno retorno. São Paulo: Lafonte, 2011.

 

BRUCKNER, Pascal. A Euforia Perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Difel, 2010.

 

CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.

 

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.

 

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 129.

 

FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2009.

 

GAARDER, Jostein. et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Maro lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

                                                

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

________________ Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

________________ Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

 

________________ Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

________________ Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.

_________________ Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.

_________________ O Anticristo. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.

_________________ A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

________________ Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

_________________ Humano Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

 

PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

 

ROSSET, Clément. A Anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

 

 

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

 

SOUSA, Mauro A. A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Maraschin, Jaci; Pires, Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e Pós-modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 61-90.

 

VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

 

 

 

 



 

[1] Não se deve perder de vista que Nietzsche, ao eleger Platão como seu principal adversário, o fez de modo estratégico. Platão desenvolveu seu pensamento segundo o modelo do lógos. Nietzsche, ao contrário, desenvolveu um pensamento crítico ao modelo do lógos. Nietzsche vê em Sócrates e em Platão marcos do pensamento grego dos séculos V e IV a.C., momento em que surge o pensamento científico-racional.

[2] Crepúsculo dos Ídolos - O que devo aos antigos, § 2.

[3] Genealogia da Moral, Segunda Meditação, §24.


quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Viver acima de tudo é necessário"



A Morte de Deus
Ou o seu reaparecimento?

O meu empenho, na produção deste texto, será o de aproximar a filosofia da vida. Este texto deve ser visto como um ensaio, e não como um artigo filosófico. Meu esforço consistirá em reduzir a formalidade linguística tanto quanto possível. Se eu conseguir com que, ao final da leitura, o leitor veja este texto como expressão da fórmula dos antigos segundo a qual “filosofar é aprender a viver”, já me darei por satisfeito e contente. Não escrevo do lugar em que se situaria um filósofo profissional, mas de um filósofo-aprendiz e dedicado ao exercício do próprio filosofar. Escrevo como um aprendiz de filósofo. O aprendizado é a meta de minha escrita. Ao escrever, eu reelaboro o que aprendi e reaprendo, ou mesmo desaprendo para aprender. A norma é o prazer na aprendizagem. A meta – eu repito – é sempre aprender.
Então, neste texto, eu retorno a Nietzsche. Eu revisitarei sua filosofia, sem pretender recobri-la totalmente. Meu ponto de partida é o seu postulado segundo a qual “Deus está morto” (que aparece em A Gaia Ciência e em Assim falou Zaratustra). Tomo para ponto de ancoragem de minhas reflexões a morte de Deus enunciada, ou melhor, retomada e reelaborada por Nietzsche. Até onde pude entender, a ideia de que Deus está morto já estaria, tacitamente, presente no pensamento dos modernos anteriores a Nietzsche, pelo menos desde o século das Luzes (XVIII). Mas o que é novo em Nietzsche é a sua compreensão da extensão do significado da expressão “Deus está morto” – extensão e profundidade, eu diria. Nisso consiste o que entendo por reelaboração da questão da morte de Deus, empreendida por Nietzsche.
Mas, antes de atacá-la, preciso dizer também que ela se prende a outros conceitos nietzschianos, como o do “além-do-homem” (traduzido por alguns especialistas comumente como “super-homem”) e do Eterno Retorno. Mas não para por aí. A morte de Deus também leva-nos a fazer incursão no seu projeto de “transvaloração de todos os valores”. No fundo, a morte de Deus implica um olhar sobre os valores tradicionais que precisam ser superados e, mais ainda, sobre a gênese dos valores. O problema que ela suscita é também o problema da verdade. A verdade, assumida pelos antigos gregos como um valor metafísico, passará à categoria de ficção, de ilusão, de metáfora em Nietzsche. Se Deus era a verdade e se a razão sempre foi a condição para alcançar a verdade, uma vez morto Deus, a verdade carece de fundamento e a razão passa a atrair sobre si muita suspeita como um caminho para atingir alguma verdade. Mas não vou me apressar.
É preciso, antes de prosseguir, situar Nietzsche. É preciso considerá-lo relativamente a um tempo marcado por profundas mudanças em todos os setores da vida. É urgente, então, considerar o que significa pós-modernidade. Não pretendo dar conta da complexidade envolvida nessa questão. O que se costuma designar como pós-modernidade é uma realidade histórica bastante complexa e, para alguns especialistas, pouco clara. Serei forçado a fazer referência a alguns aspectos dessa condição da existência do homem contemporâneo, com vistas a acentuá-los em conformidade com os meus propósitos.
A condição pós-moderna é caracterizada por convergências e divergências históricas em várias esferas (arte, cultura, política, economia, saber, religião, ensino, etc.). Recobre um período, cujo início pode ser datado na década de 1950 e cuja extensão abarca os dias atuais, que se caracteriza por múltiplas posições e profundas inquietações. O período pós-moderno inaugura uma série de mudanças em nossa cosmovisão e nas diversas maneiras como a realidade se organiza. O homem pós-moderno é um sujeito extremamente inquieto em face de uma realidade que muda incessantemente. Em meio à profusão de mudanças, em um espaço de tempo muito curto, esse homem se vê desorientado ou perdido, porque se dá conta de que o universo de referências em que a vida de seus antepassados se baseava e de que é herdeiro, diluiu-se. O pós-moderno deve ser entendido como superação do moderno. Tempos de crises são estes, decerto. Crise da razão, crise dos valores que tradicionalmente guiaram a vida das pessoas. O pós-moderno decreta o esgotamento do poder da razão, que tanto seduziu os modernos, especialmente os que viveram sob os auspícios das Luzes. E o Iluminismo (séc. XVIII) – vale dizer – compreendeu uma corrente radical do pensamento intelectual que liberou a filosofia das amarras teológicas. Os filósofos do século XVIII aproveitaram as ideias que animavam os avanços científicos para questionar a maneira como o governo era pensado, o modo como a sociedade era compreendida. Seus esforços foram orientados para a superação da superstição, da tirania e da injustiça, para o que eles se serviam do poder da razão. A Razão Iluminista ocupa, pois, a posição que, durante séculos, fora ocupada por Deus. A bandeira iluminista era desfraldada sobre a necessidade de tolerância e justiça. Somos herdeiros do século das Luzes. E, a despeito da crítica avassaladora de Nietzsche, ainda resiste, em nossa era, pelo menos no senso comum, uma confiança na racionalidade científica. É claro, contudo, que, na pós-modernidade, a ciência não é mais vista como o único saber legítimo; e a ciência de hoje é uma ciência que se coloca sempre em questão, que não cessa de revisar seus postulados, de avaliar o alcance de seus resultados e a validade deles. Não se admite mais que ela silencie as demais formas de saber.
A pós-modernidade é uma era afeita ao relativismo; é infensa à ideia de uma verdade absoluta; reina nela uma suspeita sobre o imperativo da objetividade. É verdade que, nela, a razão está em crise, mas não é menos verdadeiro que a crise lhe tenha sido companheira em quase todas as épocas.
Também gostaria de lembrar, nessa rápida revisão da condição pós-moderna, que, nela, a ideia de progresso, herdada da Modernidade (mais precisamente do período da Renascença), e vinculada ao surgimento do método científico-tecnológico, perde seu significado dentro de um projeto político-filosófico de emancipação do gênero humano. O homem pós-moderno suspeita da ideia de progresso; vê nela uma mentira que não pode mais ser sustentada como uma preciosa verdade. Como, então, situar Nietzsche em face desse contexto sócio-histórico? Comecemos por entender quem foi Nietzsche, atentando para o seguinte trecho, tomado a Antonio C. Braga, em Nietzsche – o filósofo do Niilismo e do Eterno Retorno (2011):


“Considerado por muitos como o maior filósofo dos tempos modernos e por outros como destruidor impiedoso de todos os valores conquistados pelo homem em toda sua história, Nietzsche causou espécie por seus posicionamentos radicais e inovadores no mundo da filosofia, da moral, da religião, da arte e da história. Não resta dúvida de que foi um crítico feroz do passado e um dessacralizador dos valores tradicionais, mas foi também como que um profeta de um mundo renovado e inteiramente novo, de uma história futura depurada dos entulhos de séculos e milênios, de um homem dessacralizado e embriagado de vida plena isenta de moralismos, o super-homem (...)”.

(p. 10)


Vejamos, então, como este dessacralizador dos valores tradicionais, atacou radicalmente o valor supremo do homem ocidental: Deus. Preciso aqui enfatizar que, ao declarar a morte de Deus, Nietzsche está declarando a morte da Verdade como valor metafísico. O que está, portanto, implicado na proposição “Deus está morto”? Dito douto modo, qual é a extensão e profundidade de seu significado no interior do pensamento filosófico de Nietzsche? De início, acho importante salientar que Nietzsche não conflita apenas com o Deus cristão, ou seja, não declara apenas que ele não pode mais servir de fundamento da verdade ou da moral; ele vai mais além: também rejeita qualquer fundamento divino supraterrestre, o que inclui o Deus de Platão (Demiurgo) e o de Aristóteles (Primeiro Motor Imóvel).
Em linhas gerais, a morte de Deus parece envolver:

a) o questionamento da verdade como valor metafísico;
b) a busca por superar a metafísica platônica;
c) a busca por suprimir o fundamento do sentido;
d) a afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;
e) a rejeição como utopia de uma vida além-mundo.

Morto Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo deixa de ter um coração. A morte de Deus é a morte da oposição entre a vida no mundo e a vida além-mundo.
Mas cabe questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, estando Deus morto. Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus na Modernidade.
Em Teologia e Pós-modernidade – novas perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de Sousa, intitulado de A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito da morte de Deus:

“Nós, que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em nome da ciência, em nome da filosofia. Tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”.

(p. 64)


O novo Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no espírito da modernidade com novas roupagens.
A pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao reconhecer a morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a morte do poderio da verdade.
Aprendemos com Nietzsche sobre quem estabeleceu a verdade como valor metafísico. Nossos antepassados, decerto. Eles erigiram a verdade como valor inquebrantável e inquestionável. Eles a impuseram a nós e, pressupondo-a como algo a ser desvelado, nos ensinaram o caminho para o seu desvelamento.
Costuma-se afirmar que Nietzsche é um antiplatônico, mas não convém depreender disso que ele não reconheça o valor da filosofia de Platão, que não veja em Platão o grande mestre da filosofia ocidental. Mas há aspectos da metafísica de Platão que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão, Nietzsche ergue o “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica desenvolvida por Nietzsche à metafísica e à verdade como valor metafísico.
De início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em Platão, e a mentalidade do homem ocidental se formou com base na filosofia platônica. Um papel fundamental nessa formação do pensamento ocidental desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o da experiência intelectiva, ou o mundo das Ideias perfeitas. Platão opera, portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como conhecemos por meio de nossa percepção sensorial e de verdadeiro o mundo acessível apenas à experiência racional, intelectiva. Está, então, estabelecida a base sobre a qual outros dualismos podem ser desenvolvidos, tais como “corpo” x “alma”. Aliás, a ideia de que o corpo é um cárcere da alma é uma ideia consagrada por Platão, na esteira de Pitágoras.
Na Idade Média, com a patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo, de tal modo que passa a ser uma espécie de platonismo para o povo. Ou seja, Platão passa a ser conhecido para os cristãos, muito graças aos esforços de Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.
O Nietzsche de O Anticristo condena impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim,  ao homem é negada a possibilidade de tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo resignado, porque eleva sobre esta uma outra vida a ser aguardada na fé e na esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa recompensa numa vida além-mundo.
Para a superação deste homem decadente e resignado produzido pelo cristianismo, Nietzsche postula uma transformação do próprio homem, que assumiria a forma de um além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido. O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas raízes se acham no pensamento platônico.
Nietzsche convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a crença numa vida além-mundo é uma farsa. Como era um grande estudioso da Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele, considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação posterior.
Nietzsche também reconheceu que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, numa clara alusão ao fato de que o cristianismo não foi fundado por Cristo e que coube a São Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação tendenciosa da mensagem de Jesus.
Contrariamente à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do devir. Valor, em Nietzsche, é necessariamente o que torna esta vida, aqui e agora, mais forte – uma vida que precisa ser vivida. Qualquer valor que negue esta vida, na verdade, não é sequer um valor.
A filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do porvir. Nesse sentido, ela se opõe também a qualquer sentimento niilista, a ela erroneamente associado, muitas vezes. Nietzsche é, definitivamente, o contrário de um niilista. Sua máxima é: é necessário viver e viver mais.
O além-do-homem é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce, tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico. E o trágico, em Nietzsche, é um caminho para a aprendizagem. É o homem que ama a vida, que experiencia o amor fati (amor ao destino).
A morte de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o verdadeiro, ao contrário do que ensinou Platão.
O além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na imanência. O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa (Sousa, 2008).
“Acima de tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche. E, anunciando-a aqui, quero, por fim, dizer algumas palavras sobre o seu conceito de Eterno Retorno que, como vimos, está intimamente ligado ao postulado segundo o qual “Deus está morto”.
O Eterno Retorno do mesmo recobre a ideia de Heráclito de devir, do vir a ser contínuo. Também envolve a ideia do além-do-homem, já que o além-do-homem, esse homem que superou o homem metafísico, vive como quem deseja reviver cada acontecimento infinitas vezes. Portanto, essa ideia supõe a infinitude do tempo e o retorno de vivências na infinitude do tempo.

O Eterno Retorno também se vincula à necessidade de dizer sim à vida infinitas vezes. É preciso viver sem arrependimentos e remorsos. O Eterno Retorno é um critério de avaliação, pelo qual o homem seleciona os acontecimentos que merecem ser revividos e que devem ser revividos (Ferry, 210, p. 118). É preciso dizer que esse reviver infinitas vezes os instantes de nossa vida inclui também os momentos de dor, os momentos de infelicidade, muita vez, incontáveis. É desejar reviver sem concessão. O que Nietzsche ensina aí é que devemos viver como quem tem necessidade de reviver, como quem deve desejar reviver. Devemos viver como alguém para quem desejar reviver se coloca como um dever.