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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Este texto estava entre os que compus há uns quatro anos. Na minha solidão, contemplava o mundo criticamente.


                                    

                                         Inconstância
                          A Liquidez de nosso tempo


Numa perspectiva fenomenológica, todo fato humano é significativo. Uma vez eliminada sua significação, esvaece-se sua natureza de fato humano. A emoção compreende a totalidade do Dasein (“o ser-aí”, “o ser-no-mundo”). Emoção é o todo da consciência. A emoção é a realidade humana assumindo-se a si mesma e projetando-se para o mundo. Ela não existe enquanto fenômeno corporal, pois o corpo é incapaz de conferir sentido. A emoção é significação da consciência.
 A realidade humana é o eu, que assume seu próprio ser, ao compreender a si mesmo. Essa compreensão não se dá, evidentemente, in absentia, mas na relação com o outro. O Dasein é o ser-no-mundo, ou seja, o modo como cada um de nós existe no mundo. O Dasein constrói sua própria significação existindo no mundo. Como realidade humana, o Dasein é “ser com”. Os homens são seres de “relação com”.
É inegável que a emoção desempenha um papel fundamental nas formas de relacionamento humano. Nossas relações com o Outro se estabelecem na base da emoção.  Do latim emovere (‘movimento’ ‘fora’), emoção é o movimento de nossa alma para o exterior. É o que nos move para o mundo, motivando-nos a nos relacionar uns com os outros. Como ensina Cury, a emoção é caracterizada por um conflito inerente: se, por um lado, ela é a grande responsável por nossa força vital, pela vontade de viver, tornando nossas experiências fonte de prazer e satisfação; por outro lado, também traz muitas complicações, acentua nossa suscetibilidade a decepções, a frustrações, etc. A vida humana não seria possível, no entanto, sem emoção.
Doravante, encaminharei meu discurso na direção adequada à satisfação dos objetivos a que viso. Paciente, leitor, pois iniciarei um novo tópico. Não lhe será custoso, entretanto, estabelecer a relação de sentido entre ele e a porção precedente. Como não tardará em notar, as considerações precedentes sobre o conceito de Dasein do existencialismo de Heidegger, bem como sobre a emoção, tal como pensada numa perspectiva fenomenológica, que remonta a Husserl, serão responsáveis por orientar a construção de representações que se assentam no pressuposto de que manter relação é o que define a essência do homem.  Há duas implicações nesse pressuposto:

1º) como ensinou Sartre, no homem “a existência precede a essência”. Primeiramente, o homem existe, para, então, ser;

2º) Como não haja uma essência pré-definida ou dada a priori, existir, que é ‘manter relação com’ (ao existir, levamos em conta o outro, essa é a condição do Dasein), passa a constituir uma propriedade fundamental da definição do humano.

Não tenho medo de morrer. A certeza da morte não me impede de viver com relativa serenidade (já que estamos constantemente vulneráveis a conturbações de espírito, a inconstâncias de humor).  Muita vez, a ideia da morte sorri-me; aguardo-a como quem espera para fazer uma viagem, sem, contudo, ansiar por ela.
Vivo, não apesar da inevitabilidade da morte, mas justamente por causa de seu caráter factual inevitável. Afinal, seria tedioso e inquietante viver eternamente. A ideia de eternidade só é atraente em dois sentidos: se acreditamos na indestrutibilidade da vida (ou seja, na sua perpetuidade na condição espiritual ou incorpórea); ou se nutrimos na alma a esperança de experienciar o Amor pleno, que se deseja sentir, quando duas almas muito afins se encontram. Em suma, a ideia de eternidade só me é atraente e compensadora, caso se confirme a crença na possibilidade da vida além-túmulo ou na perenidade do Amor que transcende, ou seja, que resiste ao desencarne.
Minha angústia – se é que posso chamar, assim, o sentimento que me inunda toda a alma, sempre que tomo consciência de minha impotência em face da fatalidade à qual está destinado meu coração – não decorre da consciência de minha finitude, mas do fato de ter de adiar, mais uma vez, a minha felicidade (a felicidade de amar). É curioso como a felicidade é um sentimento projetado para o futuro. A felicidade é um desejo de prazer inalcançável no presente. E se concordamos com a posição de Freud, deveremos reconhecer que nossa própria constituição psíquica impede-nos de experienciar o prazer permanentemente. A felicidade é o que buscamos, embora se nos escape.
Talvez, se esteja perguntando, leitor, se sou feliz, e eu lhe diria, sem hesitar, que sou feliz, muito feliz. Mas minha felicidade não impede minha tristeza; convive bem com ela. Minha tristeza, tão familiar e, não raro, tão inapreensível, nasceu comigo. Não estou na vida de passagem. Sinto-me convocado a me pronunciar, a me posicionar em face da minha realidade, que é o Dasein – a realidade humana. Sou um indivíduo que vive apreendendo-se a si mesmo; vivo na consciência de mim mesmo.
Definitivamente, sinto-me deslocado; viver em nosso tempo (controversamente, chamado de “pós-moderno”) me é desconfortante, pois que me movo contrariamente a tudo quanto é condicionante: ao imperativo dos padrões, dos modismos, do conformismo generalizado, dos lugares-comuns, das opiniões cristalizadas e inquestionáveis, do anestesiamento da consciência, do consumismo que afasta as pessoas de valores mais humanamente significativos e elevados, etc.; sou permanência numa vida líquida, consoante ensina Bauman: “uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Viver numa sociedade líquido-moderna é viver numa sociedade

“em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, de formas de agir”.
(p. 7)

As pessoas buscam ludibriar a morte, em vão, é claro. Buscam obsessivamente conservar a juventude. Certas mulheres, especialmente, produtos da publicidade, escravas da vaidade fútil, por força da ditadura da beleza (de que nos fala Cury), querem retardar a deterioração do corpo, inevitável, submetendo-se a sessões de lipoaspiração, a cirurgias para colocação de próteses de silicone, tentando, assim, preencher seu vazio existencial pela supressão do que julga ser uma falha da natureza (por exemplo, a carência de seios volumosos ou de glúteos firmes e vistosos).
O culto ao corpo, a supervalorização das aparências, associados ao fenômeno de saturação das imagens, as quais esgotam a totalidade do real, sustentam a crença, entre alguns estudiosos, em que a vida na sociedade pós-moderna, também chamada “sociedade do espetáculo”, é semelhante à vida na Caverna de Platão, ou seja, uma vida imersa em simulacros numa grande caverna pós-moderna.
A supervalorização da beleza, da exterioridade físico-corpórea consubstancia a valorização do efêmero, do descartável. Nessas condições, tudo que dura é cansativo; a permanência não passa de delírio de uma idade primaveril e romântica da existência humana, delírio que deve ser substituído por possibilidades, aparentemente, mais substanciais de integração. Há uma necessidade insaciável e incessante de busca por experimentar prazeres cada vez mais intensos, tão intensos quanto fugazes. Fugacidade parece definir bem o nosso tempo: tempo prometedor de felicidade imediata, de caminhos sempre abertos a novas experiências sem substância, mas sempre passíveis de renovação. Tempo em que a memória é suprimida, em que o esquecimento leva ao conformismo. Tempo em que a violência e a injustiça não entram na conta da revolta; são aceitas e justificadas. Tempo em que a História, como diz Bueno (2002:27), “[é] uma coleção de imagens sem espessura e densidade”.
Atento à liquidez dos relacionamentos na pós-modernidade, Bauman nota a tendência a transformarem-se “relações”, “parcerias”, formas de existir que pressupõem certo engajamento, compromisso, em mera “rede” na qual as pessoas estão conectadas umas com as outras, como nos ciberespaços da internet. Ao contrário das relações reais, certamente mais pesadas e conflituosas, as relações virtuais ou conexões podem ser rompidas antes mesmo que se tornem fonte de insatisfação. Tais formas de relações surgem como resultantes das condições líquidas de existência no cenário da sociedade pós-moderna e atendem às necessidades de uma época caracterizada pela velocidade e pela identificação do presente a tudo que existe.
Diferentemente do que sucede com os relacionamentos convencionais ou “reais”, a facilidade com que entramos e saímos de “relacionamentos virtuais” é surpreendente. Os relacionamentos virtuais podem ser, sem muito custo, cindidos antes que suas raízes mergulhem no terreno denso das emoções.  Bauman (2004) cita uma declaração de um jovem de 28 anos da Universidade de Bath (Reino Unido), que nos dá uma idéia clara da fragilidade dos laços humanos na modernidade líquida. Transcrevo-a conforme se segue:

“Sempre se pode apertar a tecla de deletar.”
(p. 13)

 A opção pelas redes dá-se no momento em que as relações convencionais, as quais requerem dedicação, atenção, confiança e fidelidade, entre outras qualidades que garantam a sua sobrevivência,  tornam-se insustentáveis, por flutuarem na carência de sua solidez.
O que se assiste é a uma extensão do padrão das relações virtuais ou “conexões” às formas convencionais de relacionamentos, consoante nos patenteia Bauman:

“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.
(p. 13)


Cabe perguntar se há, realmente, ganho na escolha por experienciar relacionamentos descartáveis, esvaziados de envolvimento emocional, meramente casuais. O suposto ganho decorre do equívoco de entender ser mais vantajoso manter-se protegido contra as inevitáveis complicações, porquanto, afinal, relacionamentos assemelham-se a investimentos, cujo sucesso depende da consideração das probabilidades e das flutuações do mercado. Assim,


““Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.
(p. 29)

As relações interpessoais, com o advento da internet e de seus ciberespaços de relacionamentos, ganharam nova dimensão - consequência dos processos de globalização-, caracterizada, especialmente, pela compressão do tempo-espaço.  É pertinente reiterar um pensamento meu que já permeou outros textos que escrevi e que caracteriza bem o efeito da internet sobre o mundo: a internet empacota o mundo. É inegável que se encurtou a grande distância que, antes, mantinham isolados povos, culturas, por um lado; e dificultava o relacionamento entre indivíduos, por outro. Há quem defenda vivermos numa grande “aldeia global” na qual se teria reduzido o planeta. A interpretação é controversa, especialmente se consideramos que o conceito de “aldeia”, que pressupõe um conjunto em que todos os indivíduos se conhecem, atuam cooperativamente e participam das decisões da vida de sua comunidade, não parece recobrir a ideia de sociedade moderna.
É com a mesma velocidade com que  surgem que deixam de existir tais formas de relacionamentos líquidos. A debilidade e a liquidez lhes são características intrínsecas. A impossibilidade de sua permanência inscreve-se na forma como são iniciados, ou seja, surgem tão repentinamente como podem vir a desfazer-se. Não há certeza em sua constância. Mantêm-se na esfera da fluidez, não abrangendo a esfera da solidez. 
A sensação de integração, de maior proximidade, em que os espaços virtuais de relacionamentos nos fazem crer não é senão uma ilusão. É sempre bom lembrar que estes espaços instauram oportunidades de relacionamentos cujos agentes não são indivíduos de carne e osso, mas imagens (fotos) digitais. Acrescente-se ainda que o encurtamento da distância, propiciado pelas novas condições de existência instauradas pela globalização, de que a internet é sua melhor expressão, não se alcança sem o aumento de uma sensação maior de insegurança, quer em termos morais e cívicos, quer em termos subjetivo-afetivos. Diante da possibilidade de mascarar a verdadeira identidade, cria-se uma atmosfera impregnada de medo, de receio, de desconfiança, que torna ainda mais inviável a possibilidade de experienciar relacionamentos mais autênticos, estáveis e seguros. 
Os relacionamentos virtuais têm a (des)vantagem de não enredar o indivíduo no universo de emoções típico dos relacionamentos convencionais, (des)vantagem esta garantida pela manutenção da distância real entre os interlocutores. Ademais, - e nisso me parece residir, certamente, uma desvantagem -, fica a sensação de se viver numa vacuidade experiencial, onde não há constância, estabilidade, segurança e confiança.
A fim de que tenhamos uma clara noção de quão ilusória é a crença numa maior integridade, em termos qualitativos e experienciais, basta ter em conta casos de interlocutores que mantêm em sua página de Orkut cerca de 300 a 900 fotos, ou imagens de “amigos”, dos quais, muita vez, dez ou pouco mais de vinte podem participar efetivamente de suas experiências “reais” de vida.
Chats como “msn” e sites de relacionamentos como “Orkut” patenteiam uma mudança radical das formas de ser das relações humanas e de experienciá-las. Imediatismo e superficialidade parecem ser os princípios que as governam. Há, pelo menos, 20 anos, o rompimento de relacionamentos exigia, no mínimo, uma meia dúzia de palavras, ainda que fossem ofensivas. A ruptura dos relacionamentos virtuais dispensa o esforço despendido na produção de palavras, realizando-se com um simples clique num botão de mouse, caso em que uma foto componente do álbum de imagens de seus amigos é excluída. No entanto, a exclusão da imagem é apenas o fenômeno, ou seja, o que é percebido imediatamente por nossa consciência; a essa exclusão subjaz a castração da fertilidade que poderia ser proporcionada pela experiência com o outro. Castra-se a vitalidade de experiências que poderiam ser frutíferas, mas que foram “deletadas” muito antes de aparecerem os primeiros ramos. Acontece que as experiências de vida do para-si, ou os relacionamentos do eu com o outro, não podem ser, simplesmente, “deletadas”, por mais singelos que tenham sido. “Deletar”, na situação de relacionamentos virtuais, passa a ser uma forma tão artificial de esquecer, de ignorar, que não deixa de representar o atestado de óbito da emoção, cada vez mais ameaçada por qualquer forma de perturbação. Ao deletar, reduzimos a complexidade do outro ao ‘nada’ de dados e informações de computador.
A contradição salta às vistas: por um lado, propomo-nos a negociar as esferas da vida privada e da vida pública, assumimos a responsabilidade pelas conseqüências da exposição maior de nossas vidas que, outrora, pertenciam apenas ao domínio familiar ou social mais restrito; por outro lado, conscientes dos riscos de quase irrestrita exposição, valemo-nos de recursos limitadores (haja vistas à possibilidade, propiciada no Orkut, de manter fotos ou recados de seus membros restritos ao acesso do conjunto de “amigos”).  A contradição a que me refiro decorre da incompatibilidade entre o desejo de liberdade, a cuja satisfação, cada vez mais premente, somos condicionados, e o reconhecimento de insegurança crescente. Na modernidade líquida, o desejo de liberdade, legitimado pela ideologia moderna, caminha junto com o medo decorrente do sentimento de insegurança.
Estou consciente de que, talvez, minhas reflexões sejam motivadas por um ideal incompatível com as condições em que se dão as interações virtuais.  Não pretendo argumentar em favor da necessidade que se instaurem relacionamentos que ganhem em qualidade e se pautem por uma busca por solidez emocional, necessária para nos manter mais confiantes nas relações com o Outro, tão fundamentais ao Dasein.
Não tenho intenção de propor qualquer alternativa; mas tão só de compartilhar com o leitor a compreensão de um aspecto inegável da chamada crise do homem pós-moderno (minha crise também) que, navegante num mundo cada vez mais interconectado, sente-se perdido pela falta de referenciais, de “âncoras”, que o mantenham num estado de segurança constante numa vida que se escorre num vácuo completo.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

desconectado


                


                 FORA DO AR


Eu insistirei nisto, mesmo que se torne enfadonho: a vida dedicada ao exercício do pensamento reflexivo e à leitura cotidiana causa desgosto, insatisfação e desânimo, no tocante à sociabilidade. Por vezes, tenho vontade de fazer uma limpa nos vínculos virtuais de minha rede social on-line. Para que tantos “amigos”, se compartilho com muito poucos algumas palavras? Felizmente (ou não) é possível deletá-los. Não vê como é incrível isso! Na modernidade líquida, as formas de relacionamentos podem ser facilmente desfeitas e, se forem do tipo “virtuais”, aí podemos simplesmente deletá-los. Deletar é mais fácil do que romper com relacionamentos convencionais, que envolvem corpos, olhares, toques, feições. No caso desses, a ruptura pode, muita vez, nos causar certo desconforto ou aborrecimento. Mas, nos relacionamentos virtuais, o desligamento não nos acarreta qualquer enfado. Não raro, pessoas há que esquecem donde proveio a última pessoa que a adicionou. Há muitas pessoas em minha página com quem sequer troco meia palavra. Sinceramente, não vejo muito sentido em conservar imagens de fotos digitais ou impressões verbais, se eu não tenho qualquer relação substancial com as pessoas por trás desses registros. Tudo isso é consequência de uma doença coletiva, de fundo psíquico, que consiste no medo de conviver com a solidão. A ilusão de ter, digamos, 150 “amigos” em nossa página numa rede de relacionamentos virtuais, parece bastar para que fiquemos seguros de que não engrossamos a lista imensa dos solitários da sociedade individualista, que sustenta a ideologia do “egoísmo amoroso” (“ame a si mesmo em primeiro lugar”, expressão do rancor de pessoas profundamente carentes de vínculos sólidos, de amores sinceros, de pessoas que não se dão conta de que produzem os dizeres que reproduzem a liquidez dos vínculos humanos nessa fase líquida de nossa modernidade).

É certo que não posso esperar nada mais do que a mesmice nesses contextos virtuais de relacionamentos. Confesso que já pensei em me deletar. Gosto desta palavra. Ela facilita nossos embaraços sociais. Nas redes sociais de relacionamentos on-line, decerto quantidade não é qualidade. Continuo ainda buscando a minha "turma". Mas preciso encontrá-la aqui na vida real, onde há corpos e calor humano. Onde há contato entre olhares e gestos encarnados.

“Diferentemente dos “relacionamentos reais”, é fácil entrar e sair dos “relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear”

(BAUMAN, Amor Líquido, p. 13)


Felizmente, conheci pessoas por quem ainda vale a pena manter-me conectado e que, um dia, espero conhecer presencialmente. Mas não custa lembrar novamente as palavras de Bauman:


“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão, dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.


                                                           (p. 13)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

"O AMOR não basta num instante, porque aspira à eternidade" (BAR)


                          Das aparências       
                A infidelidade de nossos dias

Em Amor líquido (2004), Z. Bauman – nosso já conhecido sociólogo polonês – faz a seguinte observação no tocante à liquidez dos vínculos humanos:

“O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário”. Na melhor das hipóteses, os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas presença e participação ativa podem intensificar esses prazeres. (...) A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor”.
(p. 96)

O autor, como se vê, aponta-nos um caminho fértil para pensar os relacionamentos líquidos da modernidade líquida. Esse caminho é o caminho da tendência desenfreada ao consumo que se ancora na insaciabilidade dos consumidores. O consumo só é possível se os consumidores permanecerem sempre insaciados.
O comportamento consumista, caracterizado pela aquisição crescente de produtos e posterior descarte (já que para se consumir mais e mais é necessário que os produtos sejam cada vez mais descartáveis), se reflete, ou melhor, se estende às esferas dos relacionamentos afetivos. É a ideologia do consumo que rege o comportamento de homens e mulheres quando se relacionam.
Bauman lembra-nos também a tendência comum às sociedades modernas a reificar o homem, ou seja, a torná-lo objeto para o prazer imediato e interdito. Homens e mulheres são transformados, por força das condições consumistas, em objetos de consumo (bocas, nádegas, ancas, genitálias são consumidas sem despender qualquer energia anímica).
Esse consumo desenfreado de corpos deseroritiza os indivíduos. Essa deserotização (negação de Eros) consiste na tendência generalizada à vivência de relações frágeis e esvaziadas de sentimentos. O esvaziamento de alma parece estar no cerne dos relacionamentos epidérmicos.
Guido Mantega traz-nos, com bastante lucidez, uma contribuição que deve ser aqui referida. Em seu artigo Sexo e poder nas sociedades autoritárias: a face erótica da dominação, que consta do livro Sexo e Poder, o autor observa:

“Hoje, comparada com a da era puritana da Rainha Vitória, a liberdade sexual aumentou consideravelmente. Porém essa liberdade sexual deve ser entendida entre aspas, pois ela não representa a livre manifestação do princípio de prazer, mas sim uma sexualidade contaminada pelo princípio do desempenho econômico. Trata-se da “dessublimação repressiva”, onde, aparentemente, existe uma liberação do Eros, mas, na verdade, permitem-se as ações, mas não o sentimento. O indivíduo deserotizado, incapacitado de manifestar os seus sentimentos mais profundos, passa a intensificar seus “exercícios” sexuais. Para usar uma imagem pretensamente lírica, é um corpo amando sem alma
(p. 20)
(grifos meus)

Corpos amando sem alma, corpos esvaziados de sentimento, corpos deserotizados, incapazes de plenitude de ser – tudo isso representa a forma de uma sexualidade que é regida pelo “princípio do desempenho”. O princípio do desempenho torna a relação sexual uma relação entre um sujeito e um objeto, e não mais entre dois sujeitos. A suposta liberdade torna-se um condicionamento, não-consciente, a esse princípio regente. Segundo Mantega,

“[o ato sexual] tende a restringir-se a um ato individual, com pouca carga afetiva, e não consegue alcançar a qualidade de uma relação. O prazer mecanizado da sociedade de consumo (com bonecas de plástico, vibradores a pilha e outros engenhos) ilustra bem a solidão e alienação da sexualidade contemporânea”.
(p. 20)
A ideologia consumista está centrada no indivíduo e, portanto, liga-se ao individualismo. É interessante notar, nas palavras de Mantega, acima, que o esvaziamento emocional ou sentimental dos indivíduos torna seus envolvimentos seriamente empobrecidos, porque despojados de profundidade de alma.
È preciso agora compreender em que contexto sócio-cultural vivem esses homens e mulheres que se sentem atraídos por prazeres fugazes determinados pelo imperativo do desempenho.
Em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade, Tomás Melendo se ocupa da predominância do fazer sobre o ser. À página 32 de seu trabalho, escreve:

“[esse indivíduo moderno] no carro tem medo de ficar muito sozinho e, apressando-se, liga o rádio ou põe a mão no celular. E quanto mais veemente o vazio, maior a quantidade de ocupações nas que se refugia para não ter tempo de pensar”.

Ora, trata-se, como se vê, de indivíduos cuja vida se volta incessantemente para o exterior, é atraída pelos ruídos do exterior. São indivíduos incapazes, na maioria das vezes, de experienciar a si mesmos, de se confrontar com o seu próprio vazio. São indivíduos que simplesmente se “di-vertem”, se alienam de si em busca de prazeres fugazes provindos do exterior. Ora, o ser não está fora; está no interior. E é lá que devemos buscá-lo.
Esses indivíduos temem o sofrimento, as decepções, as frustrações e o tédio. Vivem à superfície dos envolvimentos a fim de evitá-los. Necessitam de agitações, de êxtase irrestrito para sentirem-se “plenos”, “livres”. Cuidam insuportável o vazio que os constitui, que aliás constitui o próprio humano em nós. A solidão é a experiência do vazio e esses indivíduos querem afastá-la.
À página 37, Melento faz-nos compreender como esses homens da modernidade líquida vivem imersos num universo de imagens, de simulacros, de aparências e como essa imersão afeta seu comportamento:

“Com efeito, num mundo em que os homens se vêem bombardeados por todo tipo de estímulos sensoriais, a atenção passa freneticamente de um a outro, sem que se saiba deter para tentar penetrar no sentido de algum deles. Assim, artigos ilustres de periódicos e revistas, imagens televisivas, peças publicitárias, efígies de Internet, tudo é “percorrido” por um olhar tanto mais ávido quanto menos capaz, no fundo, de acolher verdadeiramente a realidade. Deste modo, nasce o “equívoco”: “parece que se compreendeu perfeitamente tudo, que se agarrou e expressou, mas na realidade não é assim. Durante anos se vive numa concreta situação, com certas pessoas, seguros de que esse é o nosso lugar, de que as nossas amizades efetivamente o são, estando satisfeitos pelo que arrancamos à existência. Depois, talvez por causa de um incidente banal, esta ilusão “de uma vida verdadeiramente vivida” se esvaece a golpe, revelando-se na sua autêntica face – precisamente um “equívoco” – uma mentira na qual as pessoas se refugiam para livrarem-se da verdade”.


Um exemplo dessa situação são os matrimônios, cada vez mais fugazes. Imersão no mutável, no universo das aparências, a busca por prazeres imediatos e irrestritos, esvaziada de densidade sentimental são subterfúgios de que se socorrem os indivíduos da modernidade líquida para fugir ao encontro consigo mesmo.
Tais indivíduos vivem numa sociedade caracterizada pelo que Gilles Lipovetsky chama “império do efêmero”, ou seja, numa era cuja temporalidade tem curta duração. Nesse contexto, o presente é celebrado, o aqui-agora é a referência em torno da qual se situam as experiências; todo o prazer deve ser buscado nesse curto espaço de tempo. Nesse império do efêmero, predomina a lógica da moda: valorização do novo e do individual. Não há constância, não há permanência; nada se conserva, tudo muda, tudo deve passar (ou como se costuma dizer “a fila anda”).
Vale notar que as críticas de Bauman ao consumismo são orientadas no sentido de trazer à tona sua desvinculação com qualquer finalidade que transcenda a si mesmo. Ou seja, o consumo encontra finalidade em si mesmo; consome-se para consumir.
É nesse contexto sócio-cultural, governado pelo império do efêmero, no qual corpos amam sem alma, que devemos pensar a carência de fidelidade nas relações entre homens e mulheres – relações motivadas pelo imperativo do desempenho e estimuladas pelo imperativo da libido. Predomina-se o instinto fálico (símbolo do poder masculino) que se estende ao comportamento feminino.
A tão proclamada liberação sexual tornou, nas últimas décadas, homens e mulheres meros objetos de consumo sexual. Uma “igualdade” supostamente alcançada a expensas de sua objetificação.
Em outras oportunidades, insisti em que amor pressupõe fidelidade, compromisso, doação. Amar alguém é ser fiel a esse alguém, porque é ser fiel ao amor que se nutre por esse alguém. Na modernidade líquida, em que parece predominar o amor líquido (se é que possamos chamá-lo de “amor”; talvez, melhor dizer “desejo líquido”), fidelidade é incompatível com o padrão que estipula prazo de validade para as relações. Fidelidade requer permanência e, nesse contexto líquido, permanência dá lugar ao efêmero. Fidelidade requer compromisso; mas, num contexto em que predomina o aqui-agora, assumir compromisso é assumir uma grande quantidade de riscos.
Nesse tocante, Bauman tem muito a nos ensinar, quando considera a analogia entre investimentos econômicos e relacionamentos, à página 29:

“(...) Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e nos maus momentos, na riqueza e na pobreza, “até que a morte nos separe?” Nunca olhar para os lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?”.

Mais adiante, acrescenta:

“A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção: os acionistas só detêm as ações, e é possível desfazer-se daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim também com outro tipo de ações, os relacionamentos. Só que nesse caso não existe um mercado em operação e ninguém fará por você o trabalho de ponderar as probabilidades e avaliar as chances (a menos que você contrate um especialista, da mesma forma que contrata um consultor financeiro ou um contador habilitado, embora no caso dos relacionamentos haja uma infinidade de programas de entrevistas e de “dramas da vida real” tentando ocupar esse espaço). (... ) “Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.

Ora, a fidelidade exige-nos um compromisso com a certeza, com a segurança. Nem o confronto com a certeza, nem a vulnerabilidade às incertezas, nem uma coisa nem outra interessará aos indivíduos ávidos de gozo egóico, de satisfação imediata, de prazeres efêmeros num incessante e renovado consumo desenfreado de corpos desejando sem alma.


domingo, 25 de julho de 2010

A caverna pós-moderna


Inconstância






         Numa perspectiva fenomenológica, todo fato humano é significativo. Uma vez eliminada sua significação, esvaece-se sua natureza de fato humano. A emoção compreende a totalidade do Dasein (“o ser-aí”, “o ser-no-mundo”). Emoção é o todo da consciência. A emoção é a realidade humana assumindo-se a si mesma e projetando-se para o mundo. Ela não existe enquanto fenômeno corporal, pois o corpo é incapaz de conferir sentido. A emoção é significação da consciência.


           A realidade humana é o eu, que assume seu próprio ser, ao compreender a si mesmo. Essa compreensão não se dá, evidentemente, in absentia, mas na relação com o outro. O Dasein é o ser-no-mundo, ou seja, o modo como cada um de nós existe no mundo. O Dasein constrói sua própria significação existindo no mundo. Como realidade humana, o Dasein é “ser com”. Os homens são seres de “relação com”.
É inegável que a emoção desempenha um papel fundamental nas formas de relacionamento humano. Nossas relações com o Outro se estabelecem na base da emoção. Do latim emovere (‘movimento’ ‘fora’), emoção é o movimento de nossa alma para o exterior. É o que nos move para o mundo, motivando-nos a nos relacionar uns com os outros. Como ensina Cury, a emoção é caracterizada por um conflito inerente: se, por um lado, ela é a grande responsável por nossa força vital, pela vontade de viver, tornando nossas experiências fonte de prazer e satisfação; por outro lado, também traz muitas complicações, acentua nossa suscetibilidade a decepções, a frustrações, etc. A vida humana não seria possível, no entanto, sem emoção.
         Doravante, encaminharei meu discurso na direção adequada à satisfação dos objetivos a que viso. Paciente, leitor, pois iniciarei um novo tópico. Não lhe será custoso, entretanto, estabelecer a relação de sentido entre ele e a porção precedente. Como não tardará em notar, as considerações precedentes sobre o conceito de Dasein do existencialismo de Heidegger, bem como sobre a emoção, tal como pensada numa perspectiva fenomenológica, que remonta a Husserl, serão responsáveis por orientar a construção de representações que se assentam no pressuposto de que manter relação é o que define a essência do homem. Há duas implicações nesse pressuposto:



1º) como ensinou Sartre, no homem “a existência precede a essência”. Primeiramente, o homem existe, para, então, ser;

2º) Como não haja uma essência pré-definida ou dada a priori, existir, que é ‘manter relação com’ (ao existir, levamos em conta o outro, essa é a condição do Dasein), passa a constituir uma propriedade fundamental da definição do humano.

            Não tenho medo de morrer. A certeza da morte não me impede de viver com relativa serenidade (já que estamos constantemente vulneráveis a conturbações de espírito, a inconstâncias de humor). Muita vez, a ideia da morte sorri-me; aguardo-a como quem espera para fazer uma viagem, sem, contudo, ansiar por ela.
Vivo, não apesar da inevitabilidade da morte, mas justamente por causa de seu caráter factual inevitável. Afinal, seria tedioso e inquietante viver eternamente. A ideia de eternidade só é atraente em dois sentidos: se acreditamos na indestrutibilidade da vida (ou seja, na sua perpetuidade na condição espiritual ou incorpórea); ou se nutrimos na alma a esperança de experienciar o Amor pleno, que se deseja sentir, quando duas almas muito afins se encontram. Em suma, a ideia de eternidade só me é atraente e compensadora, caso se confirme a crença na possibilidade da vida além-túmulo ou na perenidade do Amor que transcende, ou seja, que resiste ao desencarne.


         Minha angústia – se é que posso chamar, assim, o sentimento que me inunda toda a alma, sempre que tomo consciência de minha impotência em face da fatalidade à qual está destinado meu coração – não decorre da consciência de minha finitude, mas do fato de ter de adiar, mais uma vez, a minha felicidade (a felicidade de amar). É curioso como a felicidade é um sentimento projetado para o futuro. A felicidade é um desejo de prazer inalcançável no presente. E se concordamos com a posição de Freud, deveremos reconhecer que nossa própria constituição psíquica impede-nos de experienciar o prazer permanentemente. A felicidade é o que buscamos, embora se nos escape.
Talvez, se esteja perguntando, leitor, se sou feliz, e eu lhe diria, sem hesitar, que sou feliz, muito feliz. Mas minha felicidade não impede minha tristeza; convive bem com ela. Minha tristeza, tão familiar e, não raro, tão inapreensível, nasceu comigo. Não estou na vida de passagem. Sinto-me convocado a me pronunciar, a me posicionar em face da minha realidade, que é o Dasein – a realidade humana. Sou um indivíduo que vive apreendendo-se a si mesmo; vivo na consciência de mim mesmo.
      Definitivamente, sinto-me deslocado; viver em nosso tempo (controversamente, chamado de “pós-moderno”) me é desconfortante, pois que me movo contrariamente a tudo quanto é condicionante: ao imperativo dos padrões, dos modismos, do conformismo generalizado, dos lugares-comuns, das opiniões cristalizadas e inquestionáveis, do anestesiamento da consciência, do consumismo que afasta as pessoas de valores mais humanamente significativos e elevados, etc.; sou permanência numa vida líquida, consoante ensina Bauman: “uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Viver numa sociedade líquido-moderna é viver numa sociedade

em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, de formas de agir”.
(p. 7)



         As pessoas buscam ludibriar a morte, em vão, é claro. Buscam obsessivamente conservar a juventude. Certas mulheres, especialmente, produtos da publicidade, escravas da vaidade fútil, por força da ditadura da beleza (de que nos fala Cury), querem retardar a deterioração do corpo, inevitável, submetendo-se a sessões de lipoaspiração, a cirurgias para colocação de próteses de silicone, tentando, assim, preencher seu vazio existencial pela supressão do que julga ser uma falha da natureza (por exemplo, a carência de seios volumosos ou de glúteos firmes e vistosos).


       O culto ao corpo, a supervalorização das aparências, associados ao fenômeno de saturação das imagens, as quais esgotam a totalidade do real, sustentam a crença, entre alguns estudiosos, em que a vida na sociedade pós-moderna, também chamada “sociedade do espetáculo”, é semelhante à vida na Caverna de Platão, ou seja, uma vida imersa em simulacros numa grande caverna pós-moderna.
     A supervalorização da beleza, da exterioridade físico-corpórea consubstancia a valorização do efêmero, do descartável. Nessas condições, tudo que dura é cansativo; a permanência não passa de delírio de uma idade primaveril e romântica da existência humana, delírio que deve ser substituído por possibilidades, aparentemente, mais substanciais de integração. Há uma necessidade insaciável e incessante de busca por experimentar prazeres cada vez mais intensos, tão intensos quanto fugazes. Fugacidade parece definir bem o nosso tempo: tempo prometedor de felicidade imediata, de caminhos sempre abertos a novas experiências sem substância, mas sempre passíveis de renovação. Tempo em que a memória é suprimida, em que o esquecimento leva ao conformismo. Tempo em que a violência e a injustiça não entram na conta da revolta; são aceitas e justificadas. Tempo em que a História, como diz Bueno (2002:27), “[é] uma coleção de imagens sem espessura e densidade”.


     Atento à liquidez dos relacionamentos na pós-modernidade, Bauman nota a tendência a transformarem-se “relações”, “parcerias”, formas de existir que pressupõem certo engajamento, compromisso, em mera “rede” na qual as pessoas estão conectadas umas com as outras, como nos ciberespaços da internet. Ao contrário das relações reais, certamente mais pesadas e conflituosas, as relações virtuais ou conexões podem ser rompidas antes mesmo que se tornem fonte de insatisfação. Tais formas de relações surgem como resultantes das condições líquidas de existência no cenário da sociedade pós-moderna e atendem às necessidades de uma época caracterizada pela velocidade e pela identificação do presente a tudo que existe.
Diferentemente do que sucede com os relacionamentos convencionais ou “reais”, a facilidade com que entramos e saímos de “relacionamentos virtuais” é surpreendente. Os relacionamentos virtuais podem ser, sem muito custo, cindidos antes que suas raízes mergulhem no terreno denso das emoções. Bauman (2004) cita uma declaração de um jovem de 28 anos da Universidade de Bath (Reino Unido), que nos dá uma idéia clara da fragilidade dos laços humanos na modernidade líquida. Transcrevo-a conforme se segue:

“Sempre se pode apertar a tecla de deletar.”
(p. 13)

     A opção pelas redes dá-se no momento em que as relações convencionais, as quais requerem dedicação, atenção, confiança e fidelidade, entre outras qualidades que garantam a sua sobrevivência, tornam-se insustentáveis, por flutuarem na carência de sua solidez.
O que se assiste é a uma extensão do padrão das relações virtuais ou “conexões” às formas convencionais de relacionamentos, consoante nos patenteia Bauman:



“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.
(p. 13)

      Cabe perguntar se há, realmente, ganho na escolha por experienciar relacionamentos descartáveis, esvaziados de envolvimento emocional, meramente casuais. O suposto ganho decorre do equívoco de entender ser mais vantajoso manter-se protegido contra as inevitáveis complicações, porquanto, afinal, relacionamentos assemelham-se a investimentos, cujo sucesso depende da consideração das probabilidades e das flutuações do mercado. Assim,

““Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.
(p. 29)


     As relações interpessoais, com o advento da internet e de seus ciberespaços de relacionamentos, ganharam nova dimensão - consequência dos processos de globalização-, caracterizada, especialmente, pela compressão do tempo-espaço. É pertinente reiterar um pensamento meu que já permeou outros textos que escrevi e que caracteriza bem o efeito da internet sobre o mundo: a internet empacota o mundo. É inegável que se encurtou a grande distância que, antes, mantinham isolados povos, culturas, por um lado; e dificultava o relacionamento entre indivíduos, por outro. Há quem defenda vivermos numa grande “aldeia global” na qual se teria reduzido o planeta. A interpretação é controversa, especialmente se consideramos que o conceito de “aldeia”, que pressupõe um conjunto em que todos os indivíduos se conhecem, atuam cooperativamente e participam das decisões da vida de sua comunidade, não parece recobrir a ideia de sociedade moderna.
      É com a mesma velocidade com que surgem que deixam de existir tais formas de relacionamentos líquidos. A debilidade e a liquidez lhes são características intrínsecas. A impossibilidade de sua permanência inscreve-se na forma como são iniciados, ou seja, surgem tão repentinamente como podem vir a desfazer-se. Não há certeza em sua constância. Mantêm-se na esfera da fluidez, não abrangendo a esfera da solidez.
     A sensação de integração, de maior proximidade, em que os espaços virtuais de relacionamentos nos fazem crer não é senão uma ilusão. É sempre bom lembrar que estes espaços instauram oportunidades de relacionamentos cujos agentes não são indivíduos de carne e osso, mas imagens (fotos) digitais. Acrescente-se ainda que o encurtamento da distância, propiciado pelas novas condições de existência instauradas pela globalização, de que a internet é sua melhor expressão, não se alcança sem o aumento de uma sensação maior de insegurança, quer em termos morais e cívicos, quer em termos subjetivo-afetivos. 


     Diante da possibilidade de mascarar a verdadeira identidade, cria-se uma atmosfera impregnada de medo, de receio, de desconfiança, que torna ainda mais inviável a possibilidade de experienciar relacionamentos mais autênticos, estáveis e seguros.
Os relacionamentos virtuais têm a (des)vantagem de não enredar o indivíduo no universo de emoções típico dos relacionamentos convencionais, (des)vantagem esta garantida pela manutenção da distância real entre os interlocutores. Ademais, - e nisso me parece residir, certamente, uma desvantagem -, fica a sensação de se viver numa vacuidade experiencial, onde não há constância, estabilidade, segurança e confiança.
A fim de que tenhamos uma clara noção de quão ilusória é a crença numa maior integridade, em termos qualitativos e experienciais, basta ter em conta casos de interlocutores que mantêm em sua página de Orkut cerca de 300 a 900 fotos, ou imagens de “amigos”, dos quais, muita vez, dez ou pouco mais de vinte podem participar efetivamente de suas experiências “reais” de vida.


       Chats como “msn” e sites de relacionamentos como “Orkut” patenteiam uma mudança radical das formas de ser das relações humanas e de experienciá-las. Imediatismo e superficialidade parecem ser os princípios que as governam. Há, pelo menos, 20 anos, o rompimento de relacionamentos exigia, no mínimo, meia dúzia de palavras, ainda que fossem ofensivas. A ruptura dos relacionamentos virtuais dispensa o esforço despendido na produção de palavras, realizando-se com um simples clique num botão de mouse, caso em que uma foto componente do álbum de imagens de seus amigos é excluída. No entanto, a exclusão da imagem é apenas o fenômeno, ou seja, o que é percebido imediatamente por nossa consciência; a essa exclusão subjaz a castração da fertilidade que poderia ser proporcionada pela experiência com o outro. Castra-se a vitalidade de experiências que poderiam ser frutíferas, mas que foram “deletadas” muito antes de aparecerem os primeiros ramos. Acontece que as experiências de vida do para-si, ou os relacionamentos do eu com o outro, não podem ser, simplesmente, “deletadas”, por mais singelos que tenham sido. “Deletar”, na situação de relacionamentos virtuais, passa a ser uma forma tão artificial de esquecer, de ignorar, que não deixa de representar o atestado de óbito da emoção, cada vez mais ameaçada por qualquer forma de perturbação. Ao deletar, reduzimos a complexidade do outro ao ‘nada’ de dados e informações de computador.



         A contradição salta aos olhos: por um lado, propomo-nos a negociar as esferas da vida privada e da vida pública, assumimos a responsabilidade pelas conseqüências da exposição maior de nossas vidas que, outrora, pertenciam apenas ao domínio familiar ou social mais restrito; por outro lado, conscientes dos riscos de quase irrestrita exposição, valemo-nos de recursos limitadores (haja vistas à possibilidade, propiciada no Orkut, de manter fotos ou recados de seus membros restritos ao acesso do conjunto de “amigos”). A contradição a que me refiro decorre da incompatibilidade entre o desejo de liberdade, a cuja satisfação, cada vez mais premente, somos condicionados, e o reconhecimento de insegurança crescente. Na modernidade líquida, o desejo de liberdade, legitimado pela ideologia moderna, caminha junto com o medo decorrente do sentimento de insegurança.
Estou consciente de que, talvez, minhas reflexões sejam motivadas por um ideal incompatível com as condições em que se dão as interações virtuais. Não pretendo argumentar em favor da necessidade que se instaurem relacionamentos que ganhem em qualidade e se pautem por uma busca por solidez emocional, necessária para nos manter mais confiantes nas relações com o Outro, tão fundamentais ao Dasein.
Não tenho intenção de propor qualquer alternativa; mas tão só de compartilhar com o leitor a compreensão de um aspecto inegável da chamada crise do homem pós-moderno (minha crise também) que, navegante num mundo cada vez mais interconectado, sente-se perdido pela falta de referenciais, de “âncoras”, que o mantenham num estado de segurança constante numa vida que se escorre num vácuo completo.