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terça-feira, 12 de maio de 2020

"Existe apenas um bem, o saber, e apenas um mal, a ignorância." (Sócrates)



Sócrates e o consumo de carne como símbolo da injustiça e das ...




A medicina socrática da alma
Sócrates ou o mais sábio entre os homens


Neste texto, tenho a tenção de discorrer sobre o que é possível determinar, levando-se em conta os testemunhos que chegaram até nós, como sendo propriamente o pensamento socrático. Ao me debruçar sobre essa tarefa, venho preencher uma lacuna que até então não fora preenchida neste blog: disponibilizar ao público leitor um texto cuja tenção central seja Sócrates e o seu pensamento. Fixado, então, o objetivo basilar da presente exposição, passo a concatenar algumas considerações preliminares que, reunidas, compõem um preâmbulo à discussão propriamente dita do assunto a ser tratado.


1. O mundo do filósofo e o mundo do homem comum

Toda a discussão que será desenvolvida nas seções seguintes esteia-se sobre o pressuposto de que a filosofia antiga, consoante propõe Hadot (2010, 2014), é exercício espiritual, é um modo de vida, uma escolha de vida. Suas mais diversas manifestações em escolas de pensamento e em discursos realizam verdadeiros exercícios existenciais, porque carreiam um valor existencial que toca à nossa maneira de viver, ao nosso modo de ser no mundo. Tais exercícios espirituais (expressão adotada e preferida por Hadot) são parte integrante de uma orientação no mundo, uma orientação que opera uma transformação radical da personalidade, do modo de ser e de viver daquele que se engaja nesses exercícios. A filosofia socrática é, pois, um exemplo de exercício espiritual, de uma escolha de vida, de uma atividade concreta e prática que visa a cunhar modos de ser.
À medida que se ia refinando e se aprofundando minha cultura filosófica, foi-se tornando cristalino para mim o abismo que se interpõe entre o mundo da vida filosófica e o mundo da vida do homem comum. Faz algum tempo, comuniquei a um amigo da sabedoria o meu sentimento que consiste em interpretar ser o modo de vida filosófico análogo, em alguma medida, ao de um esquizofrênico, não porque sofra de delírios e alucinações, mas porque marcado por uma profunda e insolúvel cisão, separação (donde o termo grego “skhízô”, que significa ‘dividir’, ‘separar’). Refiro-me, para ser mais claro, à percepção que tenho de que o filósofo parece viver como que cindido entre dois mundos: o mundo da vida filosófica, que é o mundo da prática do cuidado de si e do cuidado da vida do espírito; e o mundo da vida cotidiana, onde “habita” o homem comum cujo modo de ser é, sobremaneira, condicionado por relações de ordem prática e interesses pragmáticos pelo mundo. Essa percepção ou sentimento confirmam-se numa página em que Hadot faz a seguinte consideração, da qual vale aqui o devido registro:


“O filósofo vive, assim, num estado intermediário: não é sábio, mas não é não sábio. Ele está, pois, constantemente cindido entre a vida não filosófica e a vida filosófica, entre o domínio do habitual e do cotidiano e o domínio da consciência e da lucidez. Na medida em que ela é prática de exercícios espirituais, a vida filosófica é um desraizamento da vida cotidiana, ela é uma conversão, uma mudança total da visão, de estilo de vida, de comportamento”. (Hadot, 2014, p. 58, grifos meus).


A cisão entre a vida não filosófica e a vida filosófica a que se refere Hadot não só repercute o meu sentimento à luz do qual tomei consciência do caráter ‘cindido’ ou ‘esquizo-frênico’ do modo de ser filosófico, mas também enseja e fornece apoio a minha visão de que a vida filosófica deve ser vivida como ‘destino’, ou seja, como uma necessidade existencialmente imperiosa e inescapável. Tendo compreendido que há uma cisão inegável entre o domínio do habitual e cotidiano, onde se enraíza a vida do homem comum, e o domínio da vida filosófica, onde o filósofo faz morada e exercita a vida do espírito, impõe-se a quem quer que, como eu, aceite a inevitabilidade dessa cisão, o problema que consiste em determinar se tais “mundos” são ou não comensuráveis entre si. Como nem todos os seres humanos são predispostos para o exercício da filosofia e para a vida filosófica, tendo a acreditar que o mundo do homem comum e o mundo do filósofo são incomensuráveis entre si; jamais se confundem e estão destinados a existir numa cisão tensionada. Disso não se segue, evidentemente, que o filósofo, talvez na maior parte das vezes, não frequente esse mundo comum, não tenha de partilhar interesses e ocupações típicas do homem comum. É sempre oportuno recordar, contra o preconceito há milênios em voga, que o filósofo não é um homem alienado do mundo, alienado da experiência cotidiana do mundo; todavia, é igualmente certo que seu “mundo próprio” é outro. Assim como um transeunte que, tendo frequentado os espaços públicos da vida cotidiana precisa retornar a casa para fruir o descanso e a proteção, assim também o filósofo, tendo frequentado o mundo da rua e, por vezes, o perturbado com suas indagações, precisa retornar à sua morada onde frui do convívio com os bens do espírito e a companhia vivificante da solidão da lucidez.
É preciso, por fim, estar bem atento à radicalidade do “desenraizamento da vida cotidiana” experienciado pelo filósofo. Como bem ensina Hadot, a medida exata desse desenraizamento só pode ser compreendida, se tivermos em conta o fato de que “a prática dos exercícios espirituais implicava uma inversão total dos valores recebidos”. (ibid.). Assim, a prática dos exercícios espirituais leva o filósofo a renunciar “aos falsos valores, às riquezas, às honras, aos prazeres para se voltar para os verdadeiros valores, a virtude, a contemplação, a simplicidade de vida, a simples felicidade de existir”. (ibid.).
Se o modo de vida filosófico se caracteriza fundamentalmente por um “desenraizamento da vida cotidiana”, é porque a filosofia, enquanto prática de exercícios espirituais, visa à transformação radical do modo de ser de quem filosofa.


2.  Sócrates: o filósofo e o seu tempo

Sócrates (470 ou 469 a.C. – 399 a.C) nasceu em Atenas e viveu a maior parte de sua vida no século V a.C. Foi nesse período que a pólis  ateniense alcançou seu apogeu econômico, político e cultural. Fundada graças às reformas de Clístenes, no final do século VI, a democracia ateniense se consolidou após a derrota dos persas no século V. Seu auge aconteceu quando Péricles tornou-se arconte (magistrado). As práticas democráticas carreavam a valorização da linguagem. Assim, os homens passaram a se valer das palavras em vez da violência para resolverem seus problemas e conflitos. O uso cada vez mais frequente das palavras fez surgir os grandes oradores, a retórica, os professores da técnica da palavra e a sofística. Homens como Protágoras, Górgias e Hípias, que se autoproclamavam sábios, percorriam as grandes cidades gregas prometendo ensinar, em troca de um valor monetário, a virtude da palavra.
Evidentemente, o diálogo, gênero em que Sócrates foi mestre, é inseparável da experiência democrática. A arte do diálogo e da dialética prende-se inextricavelmente ao movimento geral de valorização da palavra e do reconhecimento do outro. Decerto, a democracia ateniense, entre todas as grandes realizações do período, ocupava um lugar central. Todavia, a democracia ateniense foi a organização estatal que começou a desenvolver, de maneira ampla, a utilização do trabalho escravo. Nela e por meio dela, desenvolveram-se projetos de opressão imperial mesmo em relação às próprias cidades gregas vizinhas de Atenas. Foram esses projetos que motivaram a Guerra do Peloponeso, que, inicialmente, envolveu Atenas e Esparta, mas, depois, quase todas as cidades gregas. Esse conflito estendeu-se por cerca de 30 anos (431-404), levando, finalmente, Atenas à ruína.
Havia grandes diferenças sociais entre os próprios cidadãos na democracia ateniense. As mulheres sofriam opressão: não tinham direitos políticos e não participavam das decisões políticas. Desde muito cedo, grupos poderosos, sempre preocupados em defender seus interesses privados, contratavam profissionais de oratória (discípulos de sofistas), manipulavam a escolha de cargos e a assembleia popular. O povo, não obstante poder decidir e votar, era enganado, e seu voto era feito, não raro, contra seus próprios interesses reais. Sócrates, assim como seus discípulos, entre os quais Platão, atento a essas contradições da democracia ateniense sempre foi crítico desse regime. Sócrates sabia quão ilusória e formal era a liberdade ateniense; por isso, nem ele nem seus discípulos jamais defenderam esta forma de democracia, jamais a consideravam como a melhor forma de todos os governos. Ao contrário, como atestam Xenofonte e Platão, Sócrates e seus discípulos idealizaram outras formas de organização da pólis.

2.1. Sócrates e suas imagens

Todo ato de enunciação, toda prática discursiva implica a construção de imagens recíprocas. O locutor, ao usar a palavra, constrói uma imagem de si (ethos, para Aristóteles), ao passo que o interlocutor constrói uma imagem da imagem que o locutor faz de si. A imagem de si é a imagem do locutor como ser do discurso. Essa imagem de si é discursivamente construída. Para construir uma imagem de si, não é necessário que o locutor fale de si explicitamente, destacando suas qualidades. Para a construção da imagem de si, são suficientes as competências linguística e enciclopédia, as crenças implícitas e o estilo de linguagem do locutor. São esses elementos que permitem ao locutor fazer uma representação de sua pessoa. A imagem que o interlocutor constrói do locutor também se baseia nas manifestações discursivas deste. Deliberadamente ou não, o locutor faz, no discurso, uma apresentação de si. Essa apresentação de si não se restringe a uma técnica aprendida, mas se realiza, frequentemente, à revelia dos parceiros de comunicação, nas circunstâncias mais corriqueiras do uso da língua.
Assim, como Sócrates nada escreveu, o que sabemos sobre ele nos vem pela pena de outros que, tendo-o conhecido pessoalmente ou não, nos contam sobre ele. Isso significa dizer que o que sabemos a respeito de Sócrates são as imagens dele discursivamente construídas por outros enunciadores. Os três testemunhos realmente diretos sobre Sócrates são os de Aristófanes, Xenofonte e Platão. Cada um fornece-nos uma imagem discursiva de Sócrates. Antes de dar a conhecer o que disseram essas fontes diretas acerca de Sócrates, convém fazer uma breve apresentação biográfica de Sócrates.
Sócrates, nascido em 470 ou 469 a.C., foi filho de Sofronisco, um talhador de pedra, e de Fainarete, uma parteira. Sua obra confunde-se com sua vida. Nasceu pobre e permaneceu assim até a sua morte, em 399 a.C, quando contava 70 anos. Orgulhoso de seu trabalho, Sócrates sempre elogiou o esforço do trabalho e fez deste o modelo para a sua filosofia. Ele costumava andar pelas ruas de Atenas, no verão e no inverno, descalço e vestindo sempre o mesmo manto simples. Sócrates teve três filhos: Lamprocles, Menexeno e outro chamado Sofronisco, que tinha, como se vê, o mesmo nome de seu pai. Sócrates foi casado com Xantipa, mulher muito famosa por suas constantes reclamações. Sócrates dizia que de tanto discutir com ela aprendeu a arte de dominar a si mesmo. É provável que tenha tido outra esposa, chamada Mirto, já que a poligamia foi permitida e incentivada por decreto durante os últimos anos do século V para solucionar o decréscimo populacional ocorrido nas sucessivas guerras.
Sócrates foi cidadão exemplar no exercício dos deveres políticos e militares. Malgrado o fato de contestar filosoficamente a sabedoria das leis que regiam a cidade, nunca deixou de obedecer a elas. Destarte, devido à sua retidão moral e à sua busca permanente da verdadeira justiça, acabou por angariar muitos inimigos e terminou sendo condenado à morte.
Logo após seu julgamento, estando Socrátes na prisão à espera da execução da sentença, Críton, um discípulo fiel, lhe propôs um plano infalível de fuga: subornaria os carceireiros e o conduziria ao exílio na Tessália. Mas Sócrates recusou a proposta que lhe salvaria a vida, alegando, conforme nos conta Platão em seu diálogo Críton, que, mesmo morrendo vítima da injustiça dos atenienses, não desobedeceria às leis da cidade. Para Sócrates, aceitar fugir através do suborno seria cometer também uma injustiça; preferiu, por isso, resignar-se à morte. As façanhas socráticas e a resistência às dificuldades da guerra e da coragem provinham, tal como a sua filosofia, do esforço e do exercício permanentes. Sócrates  exercitava-se diariamente e exortava os seus discípulos a fazerem o mesmo.
Como já disse, Sócrates nada escreveu e não existe uma obra filosófica propriamente atribuída a ele. Dele sabemos a partir do acesso ao que sobre ele nos disseram outras personalidades. Os principais testemunhos, os únicos realmente diretos, são aqueles fornecidos por Aristófanes (o autor de comédias), de Xenofonte e de Platão (estes últimos foram seus discípulos). Todos três o conheceram pessoalmente. Mas há ainda fragmentos indiretos do pensamento socrático que sobreviveram graças a outros discípulos, como Antistenes, Diógenes, Euclides de Mégara e Aristipo. Diversos outros autores antigos, tais como Aristóteles, Diógenes Laércio, Aulo-Gélio e Cícero também reproduziram indiretamente tradições a respeito dos feitos de Sócrates e comentaram os seus supostos ensinamentos.
Durante muito tempo e até hoje, os historiadores da filosofia se perguntam qual seria o verdadeiro Sócrates ou, ao menos, qual seria aquela versão mais próxima do Sócrates histórico. Muitos o consideram um enigma insolúvel e sustentam que jamais o conheceremos. O problema da identidade de Sócrates é recente. Na Antiguidade, na Idade Média, da Renascença ao Romantismo, esse problema não existia, pois, ao longo desses períodos históricos, o Sócrates de Platão ou a imagem que Platão construiu de Sócrates era considerada o verdadeiro Sócrates. O problema começa quando Hegel, em sua História da filosofia, afirma que o Sócrates histórico corresponde à versão fornecida por Xenofonte e que o Sócrates de Platão, na verdade, é o próprio Platão. O fato é que, atualmente, os estudiosos não se ocupam mais da questão de determinar o Sócrates autêntico. Os estudiosos se contentam em falar de um Sócrates provável, com base na combinação dos diferentes testemunhos sobre ele. Assim, passados duzentos anos de pesquisa e produção de um número de livros suficientemente grande para preencher uma enorme biblioteca, renunciou-se ao problema do Sócrates histórico, ou melhor, aceitou-se a aporia. (Chauí, 2002).


2.1. 2. O Sócrates dos Cristãos

Os pensadores cristãos insistiram incansavelmente em comparar Sócrates com Jesus. De fato, ambos foram condenados por causa de seus ensinamentos, ambos compareceram aos tribunais e não se defenderam, ambos nada deixaram escrito, ambos criaram uma posteridade sem limites, e tudo quanto sabemos a respeito de ambos depende de fontes indiretas, de registros escritos produzidos depois de eles morrerem. A essas características que Sócrates tem em comum com Jesus, se deve acrescentar que Sócrates levava uma vida ascética, simples e pautada pela frugalidade, tal como era o modo de vida de Jesus, segundo os Evangelhos. Também Sócrates, por meio do seu daímon, considerava-se investido de uma missão divina.
Não obstante, diferentemente de Jesus, Sócrates não se apresentava como divino, nem como a encarnação da verdade (ou como o verbo de Deus). Outrossim, não tinha nenhuma verdade divina a revelar, tampouco dogma a impor. Tudo que sabemos que Sócrates dizia é o seu célebre “só sei que nada sei”.

2.1.3. As imagens de Sócrates como herói e como sábio

Houve quem fizesse de Sócrates um herói, imagem esta que se justificaria pelo seu comportamento na guerra e sua atitude perante a Assembleia nas três ocasiões em que diante dela esteve. Contudo, ocorre que um herói não discute e questiona os valores e as ideias de sua pátria. A imagem de Sócrates como herói, portanto, não lhe parece convir. Mas, se a Sócrates não convinha associar a imagem de herói, teria ele sido um sábio? Para responder adequadamente essa questão, é preciso saber, em primeiro lugar, quem é o sábio.
Desde o Banquete de Platão, os filósofos antigos consideravam a figura do sábio como um modelo inacessível que o filósofo (aquele que ama a sabedoria) se esforça por imitar, esforço este sempre renovado por um exercício praticado a cada instante. (Hadot, 2014). Recorde-se que o pressuposto com base no qual se desenvolve o presente estudo sobre o pensamento socrático é que a filosofia não é apenas um domínio discursivo; mas é, sobretudo, uma escolha de vida, um exercício vivido, “porque ela é desejo de sabedoria”. (Hadot, 2010, p. 313). E o que é sabedoria? A sabedoria é um modo de ser, consoante ensina Hadot (ibid.):


“A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um modo de ser, um estado no qual o homem é de maneira radicalmente diferente dos outros homens, no qual é uma espécie de super-homem. Se a filosofia é atividade pela qual o filósofo prepara-se para a sabedoria, esse exercício consistirá necessariamente não só em falar e em discorrer de certa maneira, mas em ser, agir e ver o mundo de certa maneira”.


Em cada escola filosófica, a figura do sábio é tomada como norma transcendente pela qual se pauta o modo de vida do filósofo. Portanto, nunca é demais lembrar que o filósofo não é o sábio, pois o sábio é um modelo ideal de vida a que aspira o filósofo e em relação ao qual o modo de vida filosófico se orienta. São características prototípicas do sábio ou do modo de vida do sábio: a igualdade de alma, a ausência de necessidade e a indiferença às coisas indiferentes. Essas qualidades do sábio tornam-no um tipo humano cuja vida repousa na ataraxia: o sábio frui a tranquilidade de alma e a ausência de perturbação.
Dado que o sábio mantém uma perfeita igualdade de alma, ele é feliz em qualquer que seja a circunstância. No Banquete de Platão, Sócrates conserva as mesmas disposições de alma, quer quando tem de suportara fome e o frio, quer quando se encontra na abundância. O sábio encontra sua felicidade em si mesmo. Assim é que o sábio estoico se caracteriza pela coerência consigo e a permanência de identidade, porquanto a sabedoria, aos olhos de um estoico, consiste em querer sempre e sempre não querer a mesma coisa. Como encontre sua felicidade em si mesmo, o sábio é independente das circunstâncias e das coisas exteriores, ou seja, o sábio possui a autarquia. Sócrates, conforme relata Xenofonte, bastava-se a si mesmo e não se deixava apegar-se a coisas supérfluas.
Segundo Aristóteles, no livro X da Ética a Nicômaco, o sábio vive uma vida contemplativa, porque não tem necessidade de coisas exteriores para nela se exercitar e porque, exercitando-se na contemplação, encontra a felicidade e a perfeita autossuficiência em si:


“(...) a atividade do intelecto (...) parece tanto ser superior em mérito quanto não visar a fim algum que transcenda a si mesma, além de dispor de um prazer que lhe é próprio (o que intensifica essa atividade), e apresenta autossuficiência, a presença do lazer ou ócio, e isenção de fadiga (na medida do que é humanamente possível) – e todos os outros atributos reservados ao indivíduo bem-aventurado [o sábio] são evidentemente aqueles vinculados a essa atividade -, conclui-se que essa será a felicidade completa humana, desde que seja concedida uma completa duração da existência, pois nada que diga respeito à felicidade pode ser incompleto. (Aristóteles, 2013, p. 308, 15-27).



Na medida em que o modo de vida do sábio é completamente diferente do modo de vida comum dos mortais, o sábio tende a habitar na vizinhança com os deuses ou Deus. Como pontuou Epicuro, o sábio vive como “um deus entre os homens”. Como os deuses, o sábio vive mergulhado numa perfeita serenidade e não está, de modo algum, ocupado com os negócios humanos. Para Epicuro, dado que a essência do divino consiste na serenidade e na ausência de perturbação no prazer e na alegria, de alguma maneira, os deuses são sábios imortais; o os sábios, são deuses mortais. Aristóteles, outrossim, entendida ser o divino o modelo do sábio. O sábio vive uma vida consagrada ao exercício do pensamento. Sua condição humana, no entanto, torna frágil e intermitente esse exercício espiritual, o qual está irremediavelmente disperso no tempo e sujeito ao erro e ao esquecimento. Somente Deus é um espírito cujo pensamento se exercitará perfeita e continuamente em um eterno presente. O pensamento divino pensará a si mesmo, em um ato eterno. Deus ou o Primeiro Motor Imóvel, causa do universo, para Aristóteles, conhece eternamente a felicidade e o prazer que o espírito humano só conhece em raros e breves momentos. O que o sábio vive de maneira intermitente Deus vive de modo contínuo. Mas, ao procurar imitar o modo de vida divino, o sábio vive uma vida que transcende a condição humana comum e que corresponde ao que há de essencial no homem: a vida do espírito.
Cuidando ter esclarecido a relação entre o filósofo e o sábio, faz-se mister atender na lição de Hadot acerca do que é, deveras, filosofar:

“Contemplar o mundo e contemplar a sabedoria é, finalmente, filosofar, é, com efeito, operar uma transformação interior, uma mutação da visão, que me permite reconhecer aos mesmo tempo duas coisas às quais raramente se presta atenção, o esplendor do mundo e o esplendor da norma que é o sábio: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”. (Hadot, 2010, p. 328,).

O sábio, portanto, é aquele que realiza as grandes e difíceis virtudes: o domínio de si (enkráteia), a moderação, equidade, probidade, desprezo pelos valores materiais, afastamento das coisas do mundo. Acontece que os relatos dos amigos e discípulos de Sócrates patenteiam que ele gostava da boa mesa, do bom vinho, bebia e comia à vontade nos banquetes de que participava. Ele gostava de sexo – do sexo viril dos gregos, em que um homem adulto tem amantes masculinos jovens e belos (e os jovens disputavam o amor de Sócrates). Sócrates perdia a paciência com facilidade sempre que seu interlocutor não parecia interessar-se pela discussão. Também costumava agredir verbalmente, zombar e fazer críticas virulentas aos adversários. A humanidade de Sócrates parece, portanto, proibir-nos de vê-lo como um exemplar de Sábio: ele apreciava dançar e tocar lira; entretinha-se com prostitutas e se deleitava em grandes bebedeiras.
Não resta dúvida, como se vê, de que o comportamento de Sócrates era excêntrico. Quando caminhava com um amigo, costumava parar atrás dele absorto numa meditação. Embora fosse um conviva refinado e educado, não tinha os bons modos de chegar na hora marcada. Chegava sempre no meio do banquete; vivia sempre como um maltrapilho, mas frequentava a alta sociedade. Conta-se que gostava apenas de meninos, mas adorava filosofar com as prostitutas. Dizem que ele carecia do dom da oratória, mas, quando falava, silenciava o adversário e fazia apaixonar-se um seguidor.
Malgrado todo o exposto, há uma sabedoria socrática e Sócrates é lembrado pela tradição como o mais sábio entre os sábios. É o que veremos mais adiante. Considerem-se, doravante, as imagens que Aristófanes, Xenofonte e Platão nos legaram de Sócrates.


2.1.4. O Sócrates de Aristófanes, Xenofonte e Platão

Aristófanes (450-385 a.C.), como não fosse filósofo, mas comediógrafo, constrói uma imagem de Sócrates como falso sábio. Sua comédia As nuvens, que data de 423 a.C., foi escrita com o único fito de criticá-lo e ridicularizá-lo. Nela, Sócrates se apresenta como corruptor da juventude e como um homem que destrói os valores tradicionais relacionados aos deuses.
 Importa-nos mais o testemunho de Xenofonte (? – 354 a.C.), que, embora não fosse filósofo, mas amante da vida austera, da arte da guerra e dos trabalhos agrícolas, recorda a retidão da vida de Sócrates e as regras morais que propunha aos seus seguidores. Não obstante o fato de não nos oferecer, com precisão, o desenvolvimento dos argumentos socráticos e de pouco nos falar sobre os problemas teóricos complexos de que se ocupava Sócrates, Xenofonte dá-nos uma versão imagística do filósofo que coincide, na maioria dos aspectos, com aquela fornecida por outros autores.
Nos testemunhos de Xenofonte, a despeito da simplicidade, Sócrates se apresenta como aquele que destrói as ideias dominantes. Seguindo o preceito délfico – “o conhece-te a ti mesmo” -, Sócrates começa, tanto na obra de Xenofonte quanto na de Platão, por examinar a si mesmo e por mostrar que a aparente pobreza de sua vida é a riqueza de sua liberdade. Sócrates é retratado como aquele que, ao contrário dos sofistas, não recebe dinheiro por seus ensinamentos e, por isso, é mais livre do que eles, porque não é obrigado a vender a palavra. Em Xenofonte, Sócrates é representado como aquele que faz perguntas sobre o “ser” das coisas: que é a virtude? Que é uma vida boa? Que é uma vida feliz? Tal como sucede nos diálogos de Platão, o Sócrates de Xenofonte combate os sofistas, aqueles que defendem e reproduzem as imagens dominantes, e diferencia-se deles por não aceitar dinheiro em troca de seus ensinamentos.
A Apologia de Sócrates é a obra mais importante que consta dos Memoráveis, que foi escrito, segundo Xenofonte, para provar que Sócrates foi um cidadão altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifícios aos deuses e era fiel aos amigos. Xenofonte afirma que a preocupação central de Sócrates recaía sobre a ética, ou seja, sobre a virtude que, conforme veremos, Sócrates identificava com o saber ou a ciência (só o ignorante é vicioso). Sócrates também se preocupava com a utilidade do bem (o bem é a justiça) e com o domínio de si.
A imagem de Sócrates discutindo na ágora e nas ruas, perguntando aos transeuntes o que é a virtude, o que é a justiça, o que é o bem, e deixando-os com raiva e desorientados à medida que refutava cada uma das respostas que lhe eram dadas, provando que são ignorantes e que sequer sabiam que não o são, é uma construção da escrita de Xenofonte.
A imagem de Sócrates fornecida por Platão é nossa última e mais respeitável. Platão, o discípulo amado de Sócrates, viu seu mestre como fundador da filosofia especulativa. Em Platão, Sócrates aparece como inimigo dos sofistas e avesso às ideias dos “socráticos menores”. Sócrates é, para Platão, o modelo de filósofo. Com base na imagem que construiu de Sócrates, Platão se nos desnuda as várias faces do filósofo como “amante da sabedoria”. No Fedro, o filósofo ou Sócrates é um homem-cigarra que, sem se preocupar com a sobrevivência, canta à luz um belo canto – sua filosofia – em homenagem às Musas, até morrer. No Teeteto, é aquele que se distrai em relação às coisas próximas (como Tales que cai num poço), porque justamente está muito atento às questões que investiga. No Fédon, é Sócrates que, à beira da morte e sem temê-la, desenvolve seu discurso e questiona até o fim o significado de viver e de morrer. Na República, o filósofo é aquele que se liberta da caverna das ilusões e eleva seus olhos progressivamente até o Sol que ilumina a realidade; é aquele que, por ter realizado a escalada do conhecimento até seu termo, deve encarregar-se das tarefas políticas e do governo da pólis.
Como vemos, é verdade que a imagem de Sócrates varia na obra de Platão. Os primeiros diálogos platônicos construíram uma imagem mais próxima do Sócrates histórico, enquanto, nos últimos diálogos, Sócrates é o nome de uma personagem que fala através de Platão. Nos diálogos da maturidade, que abordavam temas que constituem o núcleo da filosofia de Platão – Banquete, Fédon, Fedro, Crátilo, Teeteto, República, Sócrates representa um modo de vida, mas as teorias neles desenvolvidas são inteiramente de Platão. É certo que o Sócrates de que nos fala Platão era realmente um homem que se notabilizou como mestre da vida ética; mas não chegava a ser uma espécie de Buda iluminado. Parte da perfeição moral atribuída a Sócrates não foi mais do que resultado de um trabalho de construção imagística elaborado pelos seus discípulos que o admiravam sobremaneira. Platão, decerto, desenvolveu um pensamento completamente original. Assim, por exemplo, a Teoria das Ideias foi corretamente atribuída a Platão e não a Sócrates. Teorias como a utopia política descrita na República e nas Leis, e a do prazer no Filebo são de responsabilidade de Platão, e não de Sócrates. Não há dúvida de que a distinção entre o que pertence a Sócrates e o que é de responsabilidade de Platão encontra um limite, nem sempre facilmente determinável. Uma das tarefas deste texto é lançar alguma luz sobre o que, no limite, constitui aquilo que podemos chamar de filosofia socrática.


3. A filosofia de Sócrates

Principio por notar que a ciência do cosmo é, para Sócrates, inacessível ao homem. Quem quer que se dedique a ela tenta, em vão, conquistar um conhecimento que só um Deus pode possuir. Ademais, para Sócrates, aqueles que se detêm nessas pesquisas, permanecendo totalmente absortos nelas, se esquecem de si mesmos. Ora, o que mais importa, para Sócrates, é o homem e os problemas do homem. Daí a questão preeminentemente filosófica que deve ser examinada, na visão de Sócrates: o que é o homem?

3.1. A alma como a essência do homem

Para Sócrates, todas as contradições e todas as incertezas dos sofistas decorriam do fato de eles terem se ocupado dos problemas do homem sem que determinassem, de maneira correta, a essência do homem. À questão que é o homem?, Sócrates responde inequivocamente: o homem é a sua alma (psyché), visto que a alma é o que o distingue de todas as outras coisas. Ninguém antes de Sócrates entendeu por alma aquilo que ele entendeu. Para Sócrates, a alma é a nossa consciência pensante, a nossa razão; é a sede de nossa atividade de pensamento. A alma é o eu consciente, é a personalidade intelectual e moral do homem. Consoante ensina Reale (2009, p. 93), coube a Sócrates dar origem à tradição moral e intelectual da qual a Europa se tornou herdeira. Toda a filosofia socrática pode ser resumida nessas fórmulas convergentes: 1) conhecer a si mesmo e 2) cuidar de si mesmo. Conhecer a si mesmo não é conhecer o próprio nome nem o próprio corpo, mas examinar o interior de si mesmo e a própria alma. Cuidar de si mesmo não é cuidar do próprio corpo, mas cuidar da própria alma. Sócrates acreditava estar investido de uma tarefa por Deus: ensinar os homens a conhecer e cuidar de si mesmos.
Sócrates, no Protágoras de Platão, era apresentado como médico da alma. Ele ensinava o homem a cuidar não do corpo e das riquezas, mas antes e acima de tudo da alma, para que ela se torne virtuosíssima. É da virtude que advêm as maiores riquezas. Ora, a alma (psyché) é aquilo que em nós participa do Divino e é o que em nós tem o domínio. Platão compreendeu isso e insistiu no fato de que Sócrates, ao contrário dos sofistas, tendo compreendido que o homem se distingue de qualquer outra coisa pela sua alma, pôde determinar qual era a areté (excelência, virtude) humana. Ela é o que permite à alma ser boa, ser aquilo que pela sua natureza deve ser. Destarte, cultivar a areté ou virtude significa tornar boa a alma; significa realizar plenamente o eu espiritual, de sorte a alcançar o fim próprio do homem e também a felicidade.
A virtude, para Sócrates, é ciência (epistéme) ou conhecimento. O contrário da virtude é o vício. O vício é a privação da ciência ou do conhecimento, a saber, a ignorância. Se o homem é sua alma, e se a alma é o seu eu consciente e inteligente, então a virtude é aquilo que atualiza plenamente essa consciência e inteligência, isto é, a ciência ou o conhecimento. Eis, portanto, qual é o maior valor para o homem: o conhecimento. É o conhecimento que faz a alma ser aquilo que ele deve ser e que realiza o homem, cuja essência é a alma. Como pondera Reale (ibid., p. 101), “Sócrates revoluciona assim a tradicional tábua de valores à qual até então se atinha toda grecidade (...)”. Os valores fundamentais da tradição eram aqueles, sobretudo, vinculados ao corpo, quais sejam, a vida, a saúde, a beleza, o vigor físico, ou  os bens exteriores como a riqueza, o poder, a fama e congêneres. É clara a superioridade hierárquica da alma em relação ao corpo e a identificação da essência do homem e do verdadeiro homem com a alma e não mais com o corpo. Os valores da alma situam-se num plano ascendente e, em particular, os valores da ciência superam todos os valores ligados ao corpo. Entretanto, não devemos concluir daí que Sócrates tenha rejeitado totalmente os valores tradicionais. Apenas Platão o fará, ao distinguir entre alma e corpo e ao advogar que o corpo está hierarquicamente subordinado à alma. Na verdade, Platão contraporá o corpo à alma. É de Platão a imagem do corpo como cárcere da alma, ou prisão da alma. Sócrates, de fato, subordinou os “bens” tradicionais da grecidade ao seu bom uso, e manteve que o bom uso depende exclusivamente do conhecimento e da ciência. A ciência é um bem; a ignorância, um mal. Essa será a consequência da tese socrática que sustenta a sua teoria ética a virtude é ciência.
Cuido conveniente fazer aqui uma breve écbase a fim de esclarecer o que os antigos entendiam por “ciência” e, em particular, qual é o objeto da ciência-virtude no pensamento de Sócrates.
Os gregos chamavam “ciência” ou épisteme ao conhecimento teórico das coisas mediante raciocínios, provas e demonstrações. Épisteme é também conhecimento teórico por meio de conceitos necessários e universais. Épisteme é conhecer pelo pensamento, é ter um conhecimento por meio do raciocínio. Em Platão, a ciência ou épisteme tem como objeto o Mundo Inteligível, as Essências (eidos). Épisteme é aí conhecimento das Realidades verdadeiras, do que existe em si, do Ser ou também dos Seres. Para Platão, que opunha ciência a dóxa (opinião), a ciência visa o Ser absoluto, ao passo que a opinião tem por objeto o ser relativo, as aparências.
Retornando à questão socrática da identidade entre virtude e ciência, deve-se ter em mente que a tese socrática virtude é ciência implica, em primeiro lugar, a reunião das virtudes tradicionais, tais como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a fortaleza sob o domínio de uma única virtude, a saber, a da ciência ou do conhecimento. Ademais, a tese socrática virtude é ciência implica a redução do vício à ignorância, que é o contrário do conhecimento. Segue-se daí a conclusão de que quem faz o mal o faz por ignorância e não porque queira o mal sabendo que é mal. Assim também, não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. Para Sócrates, portanto, a virtude é conhecimento, é ciência, mas não qualquer conhecimento ou ciência. A virtude é a mais elevada e sublime ciência: a ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem.
Em suma, o verdadeiro eu do homem repousa na sua alma, no seu espírito, e a alma é a sede de todos os valores mais tipicamente humanos. Por conseguinte, os verdadeiros valores são os valores da alma, para Sócrates.


3.2. A dialética socrática

O diálogo é a medicina socrática da alma. A dialética socrática é o método dialógico de Sócrates que tem, fundamentalmente, finalidades de natureza ética e educativa. Somente, em segundo lugar, tem finalidades de natureza lógica e gnosiológica. A dialética socrática visa a exortar o homem à virtude, visa ao convencimento do homem de que a alma e o cuidado da alma são o sumo bem para o homem. A dialética socrática visa à purificação da alma por meio de perguntas e respostas que servem para libertá-la dos erros e torná-la inclinada à verdade.
Da alma, da alma individual só se cuida com o diá-logo, ou seja, com o lógos que, mediante perguntas e respostas, leva mestre e discípulo a uma experiência espiritual única de pesquisa em comum da verdade. Em face de um interlocutor, Sócrates buscava suscitar-lhe o desejo de saber – tal como o médico suscita no paciente o desejo de cura. A medicina socrática da alma afirma que a verdade existe e que podemos conhecê-la. O verdadeiro e o falso, bem como a mentira e a contradição, estão em nós, em nossa alma. A verdade provém de nossos juízos sobre as coisas. Se a maioria dos homens tem dificuldade de encontrá-la, é que eles vivem como autômatos que obedecem cegamente às regras e aos costumes de sua sociedade e acolhem passivamente os preconceitos socialmente estabelecidos.
O método socrático, expressando-se na forma de diálogo, consta de duas partes. Na primeira parte, chamada protréptico, que é exortação, Sócrates convida seu interlocutor a filosofar, a buscar a verdade. Na segunda parte, chamada élenkhos, isto é, indagação, Sócrates elabora perguntas e comenta as repostas, tornando a perguntar, num processo dialógico no qual orienta o interlocutor na busca da definição da coisa procurada.
O élenkhos é dividido em duas partes, as quais, reunidas, constituem o método socrático. Na primeira parte, tendo feito a pergunta, Sócrates comenta as várias respostas oferecidas, com vistas a mostrar que elas são sempre preconceitos recebidos, imagens sensoriais percebidas, ou opiniões subjetivas e nunca a definição buscada. Esta primeira parte é chamada ironia (eiróneia), isto é, a parte destinada à refutação. Pela ironia, Sócrates busca destruir a pretensa solidez dos preconceitos recebidos. Na segunda parte, Sócrates, ao perguntar, vai abrindo caminhos ao interlocutor até que ele chegue à definição procurada. Esta segunda parte chama-se maiêutica (maieutiké), que significa ‘a arte de realizar um parto’. No caso em questão, trata-se da arte de realizar o parto de uma ideia verdadeira.
A ciência ou épisteme socrática resulta de sua dialética. Consoante ensina Aristóteles, a ciência visa a encontrar as definições universais e necessárias das coisas, ou a essência universal das coisas, tornando-a uma ideia passível de ser alcançada pela razão apenas. Assim, a ideia, para Sócrates, manifesta racionalmente o que a coisa é em sua essência universal e necessária, porque apresenta a causa pela qual ela é o que é, por que e como ela é o que é. Ao contrário das definições universais e necessárias que nos dão a essência das coisas, as opiniões são definições parciais, subjetivas, confusas, contraditórias.

3.2.1. O não saber socrático: só sei que nada sei

Se a finalidade da dialética socrática foi revolucionária, igualmente revolucionário é seu ponto de partida. Sócrates assumia constantemente a afirmação de seu não saber, pondo-se em face de seu interlocutor como quem deseja tudo aprender. Contrariamente aos sofistas, em virtude de sua afirmação de não saber, Sócrates negou a pretensão de saber quase ilimitada. Ao assumir, de partida, nada saber, Sócrates denunciou a inconsistência quase total decorrente do fato de o saber próprio dos políticos, dos poetas e cultores de várias artes “patinar” na superfície dos problemas. Sócrates denunciou a presunção deles de saber tudo pelo simples fato de dominarem uma única arte. Mas, além de sua relação com o saber dos homens, o significado do não saber socrático se esclarece em relação com o saber de Deus. Deus é onisciente. Quando comparado à medida do saber divino, o saber humano se revela em toda a sua fragilidade e limitação.

3.2.2. A ironia socrática

Ironia significa dissimulação, e a ironia socrática é um jogo de múltiplos e variados disfarces e fingimentos que Sócrates realizava a fim de fazer com que seu interlocutor se dê conta de seu aparente saber. Pela ironia socrática, Sócrates dá a si, por meio de atos e palavras, uma imagem inconsistente, uma espécie de máscara discursiva, pela qual se mostra amigo do interlocutor, se representa como alguém que admira suas capacidades e méritos, pede-lhe conselho, etc. No entanto, ao mesmo tempo, seu fingimento é transparente e se combina com uma finalidade séria, pois que a ironia de Sócrates é o meio essencial de realização da dialética moral. Nas dissimulações, Sócrates finge adotar as ideias e opiniões do interlocutor (mormente se este é um homem culto), para caricaturá-las ou invertê-las, seguindo a mesma lógica que as tornou possíveis e expondo-lhes a contradição.
Entre as máscaras discursivas empregadas por Sócrates, a principal era a máscara do não saber e da ignorância. E era por meio dessa máscara que Sócrates suscitava a raiva dos adversários. A máscara da ignorância empregada por Sócrates servia-lhe como meio para demonstrar o aparente saber dos outros e de expor-lhes a radical ignorância deles. Por outro lado, era por meio dessa máscara que Sócrates ajudava aqueles que, com plena disponibilidade, entregavam-se ao magistério socrático e aceitavam reconhecer-se como possuidores de um aparente saber. A dialética socrática, enquanto tal, é ironia, ou “a ironia é a cifra da filosofia socrática”. (Reale, ibid., p. 144).


3.3.3. Confutação (élenkhos) e Maiêutica

Vimos que pela ironia Sócrates levava aquele com quem dialogava a reconhecer a própria presunção de saber, ou seja, a própria ignorância. Sócrates começava por exigir que seu interlocutor definisse o assunto que constituiria o escopo da pesquisa; depois aprofundava, de vários modos, a definição, explicitando as falhas, as contradições às quais a definição levava; em seguida, convidava o interlocutor a fazer uma nova definição e, com o mesmo método, confutava-a, até o momento em que o interlocutor se reconhecia ignorante.
Foi justamente o momento confutatório que acarretou a Sócrates as mais severas aversões e as mais duras inimizades, as quais lhe valeram a condenação à morte. E é claro que os medíocres reagiam negativamente a essa confutação; afinal, eram eles que se viam privados de suas ingênuas certeza e segurança de saber. Privados da segurança do saber, os medíocres experimentavam uma crise que se expressava tanto como ofuscamento e desorientação quanto como carência de novas certezas nas quais pudessem encontrar apoio. Tamanha era a soberba dos homens medíocres, que eles se recusavam a admitir que nada sabiam efetivamente, preferindo acusar Sócrates de confundir-lhes as ideias e de entorpecê-los. Disso se seguiu a acusação que recaiu sobre Sócrates de ser ele um semeador de dúvidas e um corruptor da juventude.
Inversamente diferente era, contudo, o efeito da confutação  sobre os homens mais bem predispostos. Neles, ela exercia a purificação ao extirpar as certezas que julgavam ter. Perdê-las não os perturbava, pois que compreendiam estar dispostos no caminho para alcançar a verdade. Ora, enquanto existem na alma falsas opiniões e falsas certezas, é impossível buscar a verdade. Todavia, uma vez que estejam eliminadas aquelas falsas opiniões e certezas, a alma fica purificada e apta para alcançar a verdade – se dela, é claro, estiver grávida. E daqui em diante devemos descer a alguns pormenores sobre a arte da maiêutica socrática.
A alma só pode alcançar a verdade se dela estiver grávida. Enuncia-se aqui, desde o início, a aporia da maiêutica socrática: só algumas almas são grávidas da verdade. Há almas não grávidas da verdade e, portanto, há almas que, por encontrarem-se nessa condição, não podem beneficiar-se da maiêutica, porque incapazes de dar à luz a verdade. Sócrates parece, então, sugerir que nem todas as almas, ou nem todos os homens, são predispostas para, ou estão aptas para a filosofia. A doutrina da maiêutica consiste na arte de fazer a alma dar à luz uma ideia verdadeira. Em trabalho conjunto com Sócrates, o interlocutor é levado a dar à luz ideias próprias e mais fundamentadas. Sócrates era, por isso, conhecido como “parteiro”, já que auxiliava o interlocutor a parir suas próprias ideias. Assim, graças a Sócrates, o interlocutor ia se apossando, progressivamente, da sua própria alma. Esse autoconhecimento é um caminho que implica a definição adequada do significado (ou conceito) das palavras que ele vinha usando de modo entorpecido, sem disso ter consciência clara.
De fato, Sócrates dizia-se ignorante e negava decididamente ser capaz de comunicar aos outros algum saber determinado. Mas, assim como a mulher que está grávida no corpo tem necessidade de obstetra para dar à luz, assim também o discípulo que tem a alma grávida da verdade tem necessidade de uma espécie de parteiro espiritual, que o ajude a dar à luz essa verdade. É esta a função que cumpre a maiêutica socrática: ela pretende parir a verdade de que está grávida a alma.
A maiêutica é a arte de obstetra dirigida à psyché. É a arte dominada por Sócrates que melhor representa o papel central da alma em sua dialética.

3.4 A ética socrática: enkráteia, autarquia e eleuthería

Vimos que virtude, para Sócrates, é ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem. O indivíduo a quem falta a enkráteia (o autodomínio) está totalmente privado da virtude, já que, carecendo de autodomínio, é o corpo e os instintos que passam a governá-lo. A enkráteia, é, pois, domínio de si quando nos encontramos no estado de prazer e dor, nas fadigas e no movimento dos impulsos e das paixões. A enkráteia ou autodomínio constitui a base da virtude. Deve-se, assim, procurar ter na alma autodomínio, o que significa tornar a alma senhora do corpo, tornar a razão senhora dos impulsos e paixões. Sócrates, ademais, identificou a enkráteia com a ‘liberdade’ ou eleuthería. Destarte, com Sócrates, a liberdade passa a ter um significado moral mais do que exclusivamente político-jurídico.: a liberdade é domínio da razão sobre os impulsos, sobre as paixões do corpo. Liberdade é submeter ao domínio da razão aquela parte de animalidade que há em nós.
Ligado aos conceitos de enkráteia e liberdade (eleuthería), coube a Sócrates cunhar o conceito de autarquia, que designa a autonomia da virtude e do homem virtuoso. São dois os traços semânticos do conceito de autarquia: 1) autonomia em relação às necessidades e aos impulsos corporais, alcançada pelo controle exercido pela razão sobre eles; 2) a suficiência da razão ou da alma para alcançar a felicidade.
Segundo Sócrates, aquele que se deixa arrastar pela satisfação dos desejos e dos impulsos torna-se escravo das coisas, dos homens e da sociedade. Submetido pelas forças que não são controláveis e necessitado de tudo quanto é dificílimo de alcançar, o homem perde a liberdade, a tranquilidade e a felicidade. A autarquia é, portanto, a qualidade, por excelência, do sábio. Dado o fato de que o modo de vida do sábio calca-se sobre o modelo de vida divino, a autarquia do sábio supõe o desdobramento das seguintes teses: 1) é divino de nada necessitar; 2) o divino é a própria perfeição, já que de nada carece; 3) quem está mais próximo do divino está mais próximo da perfeição. Para habitar na vizinhança ou na proximidade com o divino, logo com a perfeição, o homem deve limitar e dominar seus desejos, seus impulsos e tendências instintivas pelo poder da razão.
Recapitulando o que se expôs acerca dos conceitos de enkráteia, liberdade e autarquia, deve-se reter, resumidamente, que enkráteia é domínio da razão e do conhecimento sobre os desejos e impulsos sensíveis; liberdade é a capacidade que tem a razão de impor seu poder e domínio sobe as tendências instintivas de nossa animalidade; e autarquia é independência das necessidades instintivas, é a autossuficiência da razão (lógos) humana. Como observa Reale (ibid., p. 113), “(...) esses conceitos nascem da mesma matriz da qual nasce a doutrina da virtude-ciência e da onipotência da ciência, e carrega a mesma marca”.


4. Considerações finais: a sabedoria socrática

Se, quando consideramos certas tendências do comportamento socrático, o vemos como distando do modelo de vida do sábio, não há dúvida de que o pensamento socrático é um verdadeiro exercício de preparação para a sabedoria. E mais ainda: não deve haver dúvida de que há uma sabedoria socrática, de que a vida de Sócrates foi inteiramente devotada ao exercício da filosofia como modo de ser, como atividade radicalmente transformadora do modo de ser do homem no mundo. Sócrates foi, decerto, o primeiro filósofo a mostrar que a filosofia devia antes levar os homens a perguntar, a colocar questões, mais do que encontrar respostas certas e definitivas.
A sabedoria socrática esteia-se justamente no reconhecimento de que ele nada sabia. Ao afirmar “sei que nada sei”, Sócrates se faz sábio, o mais sábio entre os sábios. Ele foi filósofo, por excelência, o “maior de todos”, diria mais tarde seu discípulo Platão, porquanto exercia a filosofia no sentido pleno da palavra (philo-shopia, amor à sabedoria): mais que um sábio que tudo sabe, ele foi antes o amigo que ama a sabedoria. Por isso, ele a buscou sempre, perguntando mais que respondendo, e levando os outros a perguntarem, mais que lhes oferecendo respostas prontas.
O sábio, então, pelo menos da perspectiva socrática, é aquele que assume sua ignorância e sai em busca do conhecimento, mas não de qualquer conhecimento. Segundo Platão, Sócrates foi profundamente afetado pela frase “conhece-te a ti mesmo”, inscrita no Templo do Apolo em Delfos. A admissão da própria ignorância (“sei que nada sei”) e a busca do autoconhecimento são, portanto, as duas características fundamentais da sabedoria socrática.
O que quer que seja a sabedoria, aquele que a possui é “favorecido pelos deuses”, ou seja, é feliz. Se Sócrates não chegou a dar uma definição de sabedoria, ele estabeleceu sua íntima ligação com a felicidade. Somos tanto mais felizes quanto mais sábios – e não quanto mais jovens, ricos e ilustres. Quando o conhecimento que uma pessoa tem lhe permite conduzir-se bem na vida, essa pessoa pode ser considerada um sábio; afinal, sua sabedoria permite-lhe agir bem e ser virtuosa. A virtude conduz à felicidade, porque leva à prática do bem a si mesmo e ao bem da cidade. O bem da cidade clássica era o respeito às leis, e a contribuição para a elaboração das boas leis era a atitude cidadã por excelência. O sábio é, portanto, feliz porque faz bem a si mesmo (virtude humana, sabedoria) e aos outros (virtude cívica, cidadania).
A condição do agir bem e da moderação é o conhecimento, conforme nos ensina Sócrates. Logo, o conhecimento leva à sabedoria; a sabedoria leva à virtude; e a virtude, por fim, realiza a verdadeira vida feliz.
Por fim, gostaria de acrescentar que o tempo despendido na meditação sobre o pensamento socrático permitiu-me sorver o frescor, o hálito de uma sabedoria que os tempos atuais, em que vigem como critérios do bem viver a utilidade, a produtividade e o consumismo, desconhecem. Se é certo, conforme creio, que nem todo indivíduo é predisposto para a filosofia, é de lamentar que a maioria dos homens e mulheres de nossas sociedades pós-modernas viva alheia a uma sabedoria como a de Sócrates. É oportuno aqui referir o que nos ensina Hadot acerca da (in)utilidade da filosofia. Segundo o autor, “é precisamente o papel da filosofia revelar aos homens a utilidade do inútil ou, caso se prefira, de lhes ensinar a distinguir entre dois sentidos da palavra inútil”.(Hadot, 2014, p. 328). A filosofia é útil ao homem enquanto ele é um ser pensante, mas será um luxo, ou seja, supérflua, “caso se considere como útil apenas o que serve a fins particulares e materiais”. (ibid.).  Hoje, particularmente no Brasil, encontramo-nos num estágio de nossa vida político-cultural em que a filosofia é cada vez mais estranha, mais inaudível nos espaços públicos onde pululam, com cada vez mais força e vigor, o obscurantismo, a intolerância e a violência em todas as suas formas. Nosso país é presidido e governado por autoridades que, na grande maioria, são obtusas e avessas à norma básica da constituição do discurso filosófico, nomeadamente do discurso socrático: o diálogo, cujo fim último é levar as consciências a reconhecer que não sabem o que pensavam saber. O falatório generalizado das mídias sociais, a predominância das opiniões falsas que circulam entre as manadas de homens desprovidos de qualquer senso crítico, a crescente onda das chamadas fake news que entorpecem e asfixiam o bom senso são sinais da decadência intelectual e do empobrecimento ético do modo de ser e de viver de nossos governantes e governados. Mas, com o mesmo vigor resistente do samba, a filosofia agoniza mas não morre e por muito tempo ousará proclamar aos homens de negócio a necessidade dignificante do ócio. Deixo aqui resplendecer, nas palavras de Hadot, a glória da filosofia:



“A glória da filosofia, responderão alguns filósofos, é precisamente ser um luxo e um discurso inútil. Primeiramente, se não houvesse senão o útil no mundo, o mundo seria irrespirável. A poesia, a música, a pintura, elas também são inúteis. Elas não melhoram a produtividade. Mas são, todavia, indispensáveis à vida. Elas nos libertam da urgência utilitária. É, igualmente, o caso da filosofia. Sócrates, nos diálogos de Platão, ressalta a seus interlocutores que eles têm todo o tempo deles para discutir, que nada os apressa. E é bem verdadeiro que, para isso, é preciso ócio, como é preciso ócio para pintar, para compor música e poesia. (ibid.).


É preciso, por fim, dizer aos modernos de hoje que o discurso filosófico, tal como se constituiu na filosofia antiga, não é um fim em si, mas está a serviço da vida filosófica. Como lembra Hadot (ibid., p. 330), “toda a Antiguidade reconheceu que Sócrates foi filósofo, mais por sua vida e por sua morte que por seus discursos. E a filosofia antiga permaneceu sempre socrática na medida em que ela sempre apresentou a si mesma como um modo de vida, mais que como um discurso teórico”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: Realizações, 2014.
REALE, Giovanni. Sofistas, Sócrates e Sócrates menores. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

domingo, 3 de maio de 2020

"A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro" (Epicuro)


007 – Filosofia como modo de vida, com Eduardo Ferraz Franco ...



A morte não é nada para nós
Meditações sobre a morte a partir de Epicuro



1. Primeiras palavras

“A morte – escreveu Schopenhauer – é o gênio inspirador, a musa da filosofia...  Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado”[1]. Mas Schopenhauer não faz senão ecoar uma máxima enunciada pela voz de Sócrates há cerca de 2.500 anos, ao ensinar que a filosofia é um exercício de preparação para a morte. Para os gregos, portanto, aprender a morrer é aprender a viver. Ao contrário de seu discípulo Platão, Sócrates, no âmbito da razão, não dispunha dos meios necessários para demonstrar a imortalidade da alma, porque carecia das categorias metafísicas indispensáveis para tanto. Mas, mesmo em face da morte, mesmo estando o homem na ignorância acerca de sua sorte depois da morte, Sócrates ensinou ser possível a ele a felicidade e a total autonomia da vida virtuosa. Ao homem virtuoso mal algum pode lhe suceder, uma vez que a virtude –que, para Sócrates, é ciência, conhecimento – é a radical defesa contra todo mal. Assumindo que a psykhé (lat. anima), a alma, é a essência do homem, Sócrates advogou que o bem viver consiste no domínio de si nos estados de prazer e dor. A isso Sócrates chamou enkráteia. Caberia a alma (psykhé) tornar-se senhora dos instintos, das necessidades da animalidade em nós. Enkráteia é, assim, liberdade (eleuthería), ou seja, domínio da razão sobre os instintos animais em nós. Juntamente com a enkráteia, a vida virtuosa depende do exercício da autarquia, a saber, a independência das necessidades animais, instintivas. A autarquia é a autonomia da virtude e do homem virtuoso, a autossuficiência do lógos (a razão) humano. Em suma, virtude, para Sócrates, é ciência: não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não só é condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Portanto, para Sócrates, na impossibilidade de determinar racionalmente o que é a morte, deve a filosofia ser “a arte de viver”, ou seja, uma sabedoria prática destinada a tornar o homem virtuoso e feliz, a despeito do fato de ser a morte seu destino último inevitável.
Pretendo, neste texto, discutir a tentativa epicurista de liberar o homem do terror da morte, partindo do seguinte alvitre que Reale faz acerca do problema da morte como problema eminentemente filosófico. Pondera Reale o seguinte:

“(...) é justo reconhecer que nenhuma filosofia, e não só a epicurista, jamais soube responder, no nível do puro lógos, aos problemas da morte e do mal, porque morte e mal são o irracional, que a razão – sozinha – pode, no máximo, esconder, calar ou negar, mas não penetrar e explicar”. (Reale, 2011, p. 255).

Assumindo, com Reale, que nenhuma filosofia conseguiu responder de modo satisfatório ao problema da morte, isto é, nenhuma filosofia conseguiu libertar totalmente o homem dos terrores da morte, procurarei examinar a resposta epicurista, dando a conhecer os pontos que restam insolúveis.



2. Helenismo: contexto sócio-histórico


A helenização cultural de Roma ocorreu entre 167 e 146 a.C., período em que Roma destrói Catargo e domina a Grécia, com a tomada de Corinto. O domínio de Roma durou 23 séculos. O helenismo recobre o período que se estende do império helenístico de Alexandre a Roma republicana e imperial, contra a qual se formaram continuamente ligas de cidades gregas fiéis à Macedônia que lutavam sem cessar. Desde o início da dominação, em 167 a.C., até a derrota final, entre 90 e 82 a.C., vicejaram as escolas do epicurismo, ceticismo e estoicismo.
Consoante ensina Reale (2011, p. 11), “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético, são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Pode-se, assim, discriminar os seguintes temas recorrentes no pensamento grego a partir de Sócrates até o helenismo greco-romano:
1) a ideia de que a felicidade se encontra na alma; portanto, no exercício do pensamento;
2) a relação entre corpo e alma;
3) a noção de que do conhecimento e da sabedoria deriva a virtude;
4) a ideia de que a felicidade nasce da virtude, entendida como moderação das paixões;
5) a afirmação do caráter cívico da felicidade, pois ela é inseparável da noção de justiça, que, por sua vez, é produto da virtude e da sabedoria.



2.1 Epicurismo


A primeira das grandes escolas helenísticas surgiu em Atenas nos fins do século IV a.C. O epicurismo recebe esse nome de seu fundador Epicuro. Muito embora a primeira escola já existisse, em sua forma embrionária, há alguns anos antes, visto que Epicuro ensinou em Colofônia, em Mitilene e em Lâmpsaco, a transferência da escola para Atenas (que ainda era a capital da cultura Hélade) marcou o seu ingresso efetivo na vida espiritual da grecidade.
Nascido em Samos ou em Atenas, durante a primeira Olimpíada 109, ou seja, em 341 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) já se aproximara da filosofia antes de vir a Atenas, quando contava 18 anos. Foi graças ao seu encontro com Nausífanes, um filósofo atomista, que Epicuro tomou contato com o pensamento do também atomista Demócrito. Epicuro era um homem culto, conhecia os desdobramentos históricos do pensamento grego. Sua filosofia estribou-se sobre o atomismo de Leucipo e Demócrito; mas só chegou a desenvolver o materialismo atomista, depois que este tinha sido alvo das críticas dos idealistas clássicos. Epicuro se viu, por isso, obrigado a revisar as posições dos atomistas que o precederam à luz de tais críticas e em consonância com as mudanças que aconteceram na vida grega durante a sua carreira.
A concepção da phýsis proposta por Epicuro coincide com um materialismo baseado na negação clara e explícita do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial. Epicuro é, de certo modo, o primeiro materialista da história do pensamento ocidental a formular de modo teoricamente consciente o próprio materialismo. O materialismo, para ser considerado como tal, deve negar abertamente a existência de outra realidade além da matéria.
Antes de dar a saber os elementos fundamentais do materialismo epicurista, convém salientar que a filosofia ética de Epicuro inspira-se na ética socrática. Na verdade, uma das características da filosofia da era helenística é o retorno a Sócrates e ao socratismo (Reale, 2011.). Em Epicuro, isso é bastante evidente não só na primazia dada por ele aos problemas éticos em geral, mas também na própria concepção da filosofia como uma terapêutica da alma. É certo que a ética epicurista é uma terapêutica, já que se baseia no cálculo dos prazeres mediante o raciocínio vigilante, que visa a afastar os impulsos instintivos e determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista esteia-se no uso regrado dos prazeres, o qual visa a colocar a natureza humana em harmonia com a Natureza, ou seja, com a totalidade ordenada do Cosmos (a Razão Universal). A concepção de filosofia como “arte de viver”, ou seja, como sabedoria prática (phrónesis), é uma herança socrática no pensamento de Epicuro. Epicuro inspirou-se, todavia, mais na letra do que no espírito de Sócrates, ao definir a filosofia como uma ‘terapêutica espiritual’ que cura os males da alma e ao declarar todo o mais como verborragia inútil. Há, de fato, uma diferença clara e fundamental entre a ética epicurista e a ética socrática. A fim de esclarecê-la, devemos começar por reconhecer que a filosofia ética, a partir de Sócrates, fixou definitivamente o objetivo da ética. A ética tem de estabelecer a essência do homem, a sua areté específica e deve exercitá-lo em seu modo de viver para que alcance esse bem que o torna feliz. De Sócrates a Aristóteles, passando por Platão, há pleno acordo quanto a qual é o bem moral do homem, a saber, a atualização da sua essência, a realização plena do que ele é. Sócrates, Platão e Aristóteles concordam em que a felicidade se alcança sempre e somente por meio da completa realização da essência do homem, qual seja, a alma ou psykhé. Epicuro comungava formalmente dessa concepção ética, mas distanciava-se desses seus predecessores no tocante à determinação da essência do homem, ou seja, na determinação do próprio fundamento da ética. Sócrates, Platão e Aristóteles identificaram a essência do homem com a alma. A alma, do latim “anima” – sopro vital -, por oposição ao corpo, é um dos dois princípios do composto humano. A alma é o princípio da sensibilidade e do pensamento, é o que faz o corpo vivo uma coisa distinta da matéria inerte. Ela é o princípio da vida que anima todo o corpo e move cada uma das partes dele. Aristóteles considerava-a o “ato primeiro de um corpo natural”. Socrátes, por seu turno,  identificava a alma com a razão, com a consciência pensante, com o eu pensante, com a personalidade intelectual e moral; em suma, para Sócrates, o homem é essencialmente a sua alma, que o distingue de todos os demais seres; a alma é a marca do divino em nós. Platão discriminava três partes ou funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais. Finalmente, a parte racional (noûs, o intelecto) da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. É esta parte da alma que é imortal e que faz o homem habitar na proximidade com o divino.
Identificando a essência do homem com a alma, Sócrates, Platão e Aristóteles advogaram ser o bem supremo do homem os bens da alma racional ou do espírito. Todos três rejeitaram o prazer do corpo como um bem. Para Epicuro, ao contrário, o prazer é o valor, o bem e o fim. Diz Epicuro “o prazer é princípio e o fim da vida feliz” ( Epicuro, 1988, p. 17). Ora, a assunção do prazer, um bem material, como início e fim da vida feliz é coerente com a visão epicurista da alma ou da essência humana como algo material.
Epicuro também se afasta de Sócrates, Platão e Aristóteles no modo como eles hierarquizaram as partes da filosofia. Sócrates e os socráticos, na verdade, rejeitaram a ontologia e a cosmologia e reduziram a filosofia unicamente à ética, à doutrina da sabedoria. Já Platão e Aristóteles elegeram a ontologia (que se torna metafísica) como um domínio teórico essencial da filosofia, sobre o qual a ética deve ser fundada. Platão mantém a superioridade da ontologia ou da doutrina das primeiras causas ou princípios da realidade sobre a ética. Em Aristóteles, essa superioridade se faz em nível temático. Epicuro, por sua vez, afirmando a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte a hierarquia platônico-aristotélica  e afirma ser a ética superior à física (ontologia). Em Epicuro, a phrónesis, ou sabedoria prática, tem primazia sobre a ciência e a sophia.  
O helenismo descobre o indivíduo. Epicuro propõe uma virtude do homem privado. O novo éthos, contrariamente ao tradicional enraizado na pólis, esteia-se sobre o indivíduo; é o éthos do indivíduo. Sócrates, Platão e Aristóteles ensinavam, contrariamente a Epicuro, a virtude política: o homem coincide com o cidadão. Sócrates ensinou nas praças públicas e nos ginásios; Epicuro, por sua vez, escolheu um edifício com um Jardim. No Jardim, gozava-se do contato com a natureza e vivia-se longe do tumulto da vida política, que, para Epicuro, é “inútil afã”.
Em suma, é inegável que o epicurismo propõe, antes de tudo, uma terapêutica (a filosofia se apresenta como uma terapêutica), de modo que o fim da filosofia é curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer. O filósofo não é quem sabe apenas pensar e constituir sistemas; é, sobretudo, quem sabe viver e morrer de acordo com seu pensamento. Epicuro é, nesse tocante, bastante socrático. No epicurismo, tanto quanto no estoicismo, a física, a ética e a lógica estão intimamente ligadas e afinadas com o interesse de determinar a vida boa ou a maneira de viver mais elevada, a melhor. Tanto para os epicuristas quanto para os estoicos, a física é estudada em função da ética, muito embora as soluções físicas adotadas pelos estoicos são, na maioria dos casos, exatamente opostas às dos epicuristas.



2.2. O materialismo epicurista

Partindo da aceitação das posições fundamentais do materialismo, Epicuro as codifica em doze princípios elementares:

1) a matéria não é criada, mas eterna;
2) a matéria é indestrutível;
3) O universo ou o a totalidade cósmica consiste de corpos sólidos e vazio;
4) Os corpos sólidos são simples ou compostos;
5) O número de átomos é infinito;
6) A extensão do vazio é infinita;
7) Os átomos estão sempre em movimento;
8) A velocidade do movimento dos átomos é uniforme;
9) O movimento é linear no espaço, vibratório nos compostos;
10) Os átomos são capazes de se desviar levemente em qualquer ponto do tempo e do espaço;
11) Três qualidades caracterizam os átomos: o peso, a forma e o tamanho;
12) A quantidade de formas distintas não é infinita, mas apenas inumerável.



2.2.2. Os corpos e o vazio

O Todo, ou a totalidade da realidade, é constituído apenas dos corpos e o vazio. A existência dos corpos é garantida pelos sentidos, ao passo que a existência do vazio se infere da existência do movimento, porque, para que haja movimento, é necessário que exista o espaço vazio ao longo do qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é o absoluto não-ser; mas sim um “espaço”, uma “natureza impalpável” (ibid., p. 15). A realidade, tal como a concebe Epicuro, é infinita. É infinita como totalidade, mas também é infinita a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio. Eis a tese fulcral do ontologia epicurista:

“(...) nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação”. (ibid.).

Segundo Epicuro, todo o universo é corpo e vazio (espaço). Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, simples e absolutamente indivisíveis. Esses corpos absolutamente simples e indivisíveis são os átomos. Somente os átomos são os elementos originais. A fim de explicar como os átomos podem encontrar-se e se juntar para a constituição dos corpos compostos, Epicuro cunha o conceito de clínamen ou declinação. O clínamen é o desvio da direção dos átomos. Os átomos podem, desviando uma distância mínima da linha reta (já que Epicuro entendia o movimento dos átomos como o de uma queda no espaço infinito devido ao peso deles), em algum ponto do tempo e do espaço, chocar-se uns com os outros.
 A admissão da existência dos corpos indivisíveis ou átomos torna-se necessária, porquanto, assim, evita-se a admissão de uma divisibilidade ao infinito dos corpos, o que levaria à dissolução das coisas no “não-ser, o que, para Epicuro, é absurdo. Portanto, como bem ratifica o epicurista Lucrécio (sobre quem direi algumas palavras mais adiante), “a matéria é eterna”. (ibid., p. 34). É também Lucrécio quem retoma a tese central da ontologia epicurista: “Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”. (Ibid.).
O fundamento da admissão da existência dos átomos é, pois, o princípio eleático (e precisamente, zenoniano) da impossibilidade da divisão ao infinito, o que dissolveria o ser no nada. Mas – deve-se frisar – claro é que o princípio segundo o qual nada nasce e nada perece só vale para os átomos (bem como para o cosmos como um todo). A geração e a corrupção atingem os corpos compostos, mas sob o modo como entendiam os filósofos eleatas: a geração é a união das coisas que são; e a corrupção é a dissolução ou separação nas coisas que são. Em outras palavras, não há gênese (criação ex nihilo) nem destruição total do que é.
Consoante Epicuro, “a alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal” (ibid., p. 16). A alma, portanto, para Epicuro, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Esse agregado é formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e sutis, os quais constituem a parte irracional e alógica da alma. Epicuro também divide a alma em partes: uma irracional e a outra racional. A parte racional da alma é constituída de átomos “diferentes” dos outros. Tais átomos não são nomeados por Epicuro. A alma, portanto, não é eterna, mas mortal. Conclusão esta que se segue necessariamente de sua natureza material, bem como da premissa básica do materialismo epicurista, segundo a qual tudo que existe são corpos e o vazio. Ora, o conceito de imortalidade só faz sentido se supusermos existir uma instância suprassensível, imaterial, incorpórea. Mas Epicuro, que não é nem platônico nem aristotélico, sequer pode compreender o que significa o conceito de “incorpóreo”. No entanto, na medida em que o filósofo do Jardim distingue entre uma parte irracional e uma parte racional na alma, termina por permitir que penetre de modo sub-repitício o esquema da psicologia de Platão e Aristóteles. De qualquer forma, para Epicuro, a alma é um corpo sutil, de modo que, morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se, e a sensibilidade, o sentimento, o pensamento e a consciência desaparecem. Por isso, a morte é definida por Epicuro como “privação da sensibilidade”. (Ibid., p. 13).
Tendo em vista a definição de aporia como ‘dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja numa doutrina’, a psicologia epicurista encerra uma dificuldade lógica intransponível. Senão, vejamos. Por um lado, apesar de afirmar que só existem corpos e de assumir que a alma é material, Epicuro diz que os átomos que constituem a alma diferem daqueles que constituem o corpo: os átomos da alma são mais sutis e aeroformes. Por outro lado, Epicuro não consegue explicar como é possível a unidade da alma, que é a unidade de consciência, ou o “eu”, “a pessoa”, já que essa unidade não resulta da agregação e da soma das partes da alma, porque é original e não composta. Com a fisicidade e o mecanicismo, Epicuro não dá conta da espiritualidade, da individualidade real, porque a imaterialidade do seu ser, do seu agir não se deixa reduzir à simples manifestação mecânica da matéria.



3. A ética epicurista

Acerca da filosofia, escreve Epicuro a seu interlocutor: “Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”. (Ibid.,). Qual é a verdadeira liberdade para Epicuro? A resposta salta evidente: a autárkeia, ou autossuficiência, domínio de si. É livre quem encontra em si mesmo o princípio (arkhé) de sua existência e de sua ação, e possui por si mesmo o poder para agir e julgar. A virtude é conformidade com a Natureza (a totalidade ordenada do Cosmos ou Razão Universal), é autárkeia, ataraxia ou tranquilidade. A virtude é a técnica de viver prazerosamente. A ética epicurista é, pois, uma terapêutica. Como terapêutica, a ética de Epicuro baseia-se no cálculo dos prazeres por meio do raciocínio vigilante, que visa a dominar os impulsos instintivos e a determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista é um hedonismo ético, que elege a temperança (sobriedade, virtude da moderação, do comedimento) como critério de limite dos prazeres para que possamos viver em conformidade com a Natureza (a ordem do Cosmos, a Razão Universal).
O prazer é um bem; a dor, um mal. O princípio e o fim da vida feliz é o prazer, mas o sumo bem é o prazer da ataraxia, ou seja, da ausência de dor e perturbação da alma e do corpo. Phrónesis é a sabedoria prática, a prudência ética, inteligência razoável. É a qualidade ética mais alta própria do sábio. É a phrónesis que servirá de critério, do grego Kriterion, ou seja, de padrão que permite efetuar o cálculo dos prazeres. Com base na phrónesis (virtude suprema), deve-se distinguir entre tipos de desejos e prazeres:

a) prazeres naturais e necessários:

Ex: comer quando se tem fome; beber quando se tem sede (tais prazeres visam à conservação da vida).

b) prazeres naturais, mas não necessários:

Ex: prazer ou desejo do amor/ desejo sexual; beber bebida refinada, vestir-se de modo elegante; comer comidas refinadas.

c) prazeres não naturais e não necessários:

Ex: prazeres ligados às opiniões dos homens, prazeres vãos como desejo de riqueza, de poder, honra, fama, etc.

O sábio, portanto, contentando-se com os prazeres reunidos em a), escolhe sempre os prazeres catastemáticos ou estáveis, que levam à ausência de dor e perturbação da alma e do corpo (ataraxia). Nas palavras de Epicuro, “os filósofos afirmam que nada é tão necessário quanto o saber reconhecer bem o que não é necessário, e considero que a maior riqueza entre todas as riquezas é a autarquia, e que nada é tão nobre quanto o não ter necessidade de nada”.
Não obstante, Epicuro reconhece que há três coisas que ameaçam o prazer como bem supremo: 1) o fluxo do tempo que devora o prazer; 2) a ameaça da dor que pode sempre chegar; 3) a emboscada da morte.



4. A morte não é nada para nós


“A morte é a privação da sensibilidade”, afirma Epicuro.
Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C, conheceu a doutrina de Epicuro e sentiu-se maravilhado com seus ensinamentos, os quais lhe pareciam fornecer a chave para desvelar os segredos do universo e para descerrar o acesso para o homem à vida feliz. Acolhendo o ensinamento de Epicuro, Lucrécio dedicou-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia com mais força do que outrora oprimia os gregos.
Seu poema Da natureza das coisas tem uma inestimável importância literária. Com ele, Lucrécio se notabilizou como um dos maiores poetas da língua latina. Se o filósofo usa a linguagem do lógos, o poeta acresce ao lógos as tonalidades persuasivas dos afetos, do sentimento, tingindo o lógos de imagens e intuição fantástica. É a magia da arte que transfigura a filosofia, fazendo-a aninhada no coração. Através da poesia, Lucrécio possibilita ao leitor a experiência da espessura dramática da mentira heroica, quando canta o inesquecível desejo humano de eternidade. O canto poético de Lucrécio é uma espécie de confissão de que não há modo de dar sentido a uma vida que seja apenas uma breve estação feita para o nada. Nesse sentido, Lucrécio torna a mensagem epicurista mais emocionante e mais verdadeira.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, confeccionado nos intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado para publicação por um irmão de Cícero, chamado Quinto, segundo testemunham certas fontes. Outras fontes, no entanto, asseguram que aquela tarefa coube ao próprio Cícero, que nutria profunda admiração ao poeta do materialismo. Lucrécio, seguindo as pegadas de Epicuro, também oferecerá sua resposta ao problema da inexorabilidade da morte. Todavia, considerar-se-á, em primeiro lugar, a lição de Epicuro. Atente-se para o que ensina Epicuro, num trecho famoso de Carta a Meneceu:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui”. (Epicuro,  2002, p. 27-29).



A primeira parte do argumento baseia-se na asserção do experiencialismo, segundo a qual todo mal e todo bem residem na sensação, ou seja, na experiência de prazer (o bem) e na de sofrimento (o mal). Como a morte é a privação das sensações, ela não pode ser nem um bem nem um mal, porque bem e mal residem na sensação. Prossegue o filósofo assegurando-nos de que, se aceitarmos o fato de que não podemos experienciar a própria morte, de que, por isso mesmo, não há nada de terrível nela, poderemos fruir serenamente a vida efêmera, sem desejar que ela se estenda indefinidamente e sem desejar a imortalidade. Epicuro também nega que o tempo em que nos angustiamos com a possibilidade de nossa morte futura possa nos afligir, porque se a morte no momento em que nos chega não pode ser um mal, tampouco poderia nos atormentar enquanto a esperamos. Por fim, a etapa fundamental do argumento consiste em estabelecer uma relação disjuntiva (ou...ou) entre o indivíduo e a morte, ou seja, enquanto o indivíduo está vivo, a morte está ausente; quando a morte o atingir, é ele que estará ausente.
Portanto, a morte é um mal somente para aquele que nutre opiniões falsas sobre ela. Dado que o homem é um composto de alma e um composto de corpo, a morte não é mais que a dissolução desses compostos. E, nessa dissolução, os átomos dissipam-se por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente, e assim, sobram do homem apenas os restos que se dissolvem. Para Epicuro, a morte, em si, não deve nos amedrontar porque, quando ela nos chega não sentimos nada, já que, no “depois” da morte, nada resta de nós, visto que nosso corpo e nossa alma dissolvem-se totalmente.
Epicuro, adotando o mesmo esquema eleático de raciocínio, nega que possa haver algo de intermediário entre o viver e o morrer, entre o ter consciência e o não ter consciência, e pensa, portanto, a morte não como processo, duração, mas como o estado de morte, o instante no qual a vida cessa para dar lugar à morte. Mas não seria justamente a passagem (o intermediário) que Epicuro nega que aterroriza o homem?
Volverei a considerar a resposta de Epicuro, a fim de lhe desnudar problemas mais  sérios. Antes, porém, é oportuno ponderar sobre a resposta oferecida por Lucrécio:

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras  e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, porque busca aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo”. (Lucrécio, 1988, p. 75).


Para Lucrécio, quem soube viver bem e não tem o que lamentar pode, quando chegar a hora da morte, partir como o hóspede que se saciou no banquete. Por outro lado, quem não soube viver bem, é inútil que continue a viver, porque continuaria a viver mal. Em ambos os casos, a morte não é um mal. Evidentemente, poderíamos perguntar por que o conviva deve, inexoravelmente, ausentar-se do banquete, sem qualquer apelo, quando lhe é imposto, e considerar-se hóspede saciado, mesmo quando o banquete está apenas no início, ou ainda não terminou. 
Tanto Epicuro quanto Lucrécio não sabem explicar por que a morte, considerada uma lei inexorável, não é absurda.  Tanto em Epicuro quanto em Lucrécio o mal é velado e a morte é negada. Ao sustentar que, enquanto existimos, a morte está ausente, e que, quando estiver presente a morte, nós é que não existiremos mais, Epicuro nega justamente o momento trágico da morte, que não é o nada do não ser mais, mas o momento da vida que cessa. É justamente em face do momento em que o ser é tragado pelo não ser, é justamente diante desse aniquilamento do ser que a razão permanece tragicamente em silêncio.
Considerem-se, na próxima seção, alguns outros problemas com a tese epicurista “a morte não é nada para nós”.



4.1. Outros problemas na abordagem epicurista da morte


Em princípio, malgrado as insuficiências da abordagem epicurista do problema da morte – que tratarei de evidenciar nesta última seção deste estudo – para o espírito grego e, e de modo especial, para os filósofos helenistas, o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante. É desse modo que se justifica a meditação sobre a morte. É, em essência, o que significa o apotegma “aprender a morrer é aprender a viver”. Aos antigos, e de modo especial, aos epicuristas e estoicos, não lhes escapava à consciência a compreensão de que tudo que existe está destinado à dissolução. Assim, sou levado a meditar sobre a morte, sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal.  O filósofo, portanto, está, sem cessar, perfeitamente consciente, não só do que faz, mas também do que pensa (lógica vivida), e do que é, de seu lugar no cosmo (física vivida).
Vimos que o argumento apresentado por Epicuro com vistas a nos libertar dos terrores da morte baseia-se no seu experiencialismo. A primeira asserção do experiencialismo é que todo mal e todo bem residem na sensação. Como a morte é a privação da sensação, a morte não pode ser um mal (tampouco um bem). Ora, para que um estado-de-coisas possa ser considerado como um bem ou como um mal para um indivíduo, é necessário que este indivíduo possa experienciá-lo, o que não é o caso da morte. O experiencialismo exige também a existência de um sujeito da experiência. Assim, a morte de uma pessoa não pode lhe ser um mal, porquanto ela já não existirá no momento em que a morte lhe chegar.  Epicuro concebe a morte em termos de estado de morte. O indivíduo que se encontra na condição de morto não experiencia a própria morte. Novamente, quando a morte está presente, eu mesmo é que estarei ausente. A morte é privação de toda sensação.
Mas, então, mesmo que aceitemos o argumento de Epicuro, mesmo que admitamos que não podemos ter a experiência de nossa própria morte, será que a morte não pode ser considerada um mal? Será que Epicuro consegue nos aliviar da angústia que nos assalta fazendo-nos estremecer de temor e perplexidade em face do absurdo da morte, ou seja, em face desse destino último inevitável, inelutável, inexorável? Consideremos, pois, o primeiro contraexemplo que parece demonstrar que a privação da experiência é um mal. Tomemos o caso de uma pessoa que, repentinamente, entra em coma. Ainda que ela não possa ter experiências ruins, tendemos a considerar seu estado um mal (porque, estando em coma, ela está privada da companhia das pessoas amadas, está privada de realizar seus projetos, suas possibilidades). Consideremos, agora, o caso de uma pessoa que sofreu um grave acidente num lugar e tempo (L1) dados. Devido a graves lesões, ela perdeu irreversivelmente as funções cerebrais superiores e não se lembra nem do acidente nem da vida anterior ao acidente.  Seu estado pós-traumático, ou seja, seu estado atual e irrecuperável a condena a viver numa condição semelhante à de uma criança pequena. Mesmo que essa pessoa não esteja consciente das perdas de suas funções cerebrais superiores, tendemos a concordar que um mal lhe aconteceu. O estado atual em que se encontra essa pessoa é um mal relativamente ao estado anterior ao acidente, e as consequências do acidente são males relativamente à possibilidade de o acidente nunca ter acontecido. Nesses dois exemplos, há um mal que não decorre da experiência de uma dor ou sofrimento, mas da privação dos bens, das possibilidades, das experiências que essa pessoa ainda poderia ter. Por analogia, o mal da morte para uma pessoa reside na privação dos bens, dos possíveis, das alegrias que ela poderia ter ou realizar se houvesse continuado a viver. A morte, ao contrário do que supunha Epicuro, pode ser considerada um mal porque ela nos priva de nossos desejos, interesses, projetos. Em outras palavras, a morte impede-nos de realizar os objetivos que estabelecemos para a nossa vida. A morte interrompe os nossos projetos. Se, como ensina Heidegger, o homem, é poder-ser, é projeto, a morte é um mal porque nos deixa insatisfeitos e irremediavelmente inacabados.  Como acertadamente observou Schopenhauer ( 2013, p. 70), “em regra, apenas o fim total, o fim de todos os fins, é o que desejamos que nos ocorra o mais tarde possível”,
Que sentido podemos dar à vida por meio da busca do prazer, se a morte nos deixa sempre com aspirações não realizadas? A morte é um mal porque é aniquilamento sempre possível de minhas possibilidades. A morte priva o indivíduo de todas as suas possibilidades e mais particularmente da própria possibilidade de ser um “eu”. Eis o que me parece ser o momento decisivo do argumento contra Epicuro, e que Schopenhauer soube intuir, ao dizer “após a morte, serás o que foste antes de nascer” (ibid., p. 31). É Schopenhauer também quem reconhece que “certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro sentido da vida” (Schopenhauer, 2014, p. 63) – intuição esta a dos antigos também: tudo que existe está destinado irremediavelmente à dissolução! Schopenhauer aqui nos põe face a face com o âmago do absurdo: “o estado em que a morte nos coloca se nos apresenta como um nada absoluto; porém isso significa apenas que ela é algo sobre o qual nosso intelecto – esse instrumento surgido apenas para servir à vontade – é totalmente incapaz de pensar”. (ibid., p. 62). Cada indivíduo é um destino único e uma biografia; é uma individualidade insubstituível. É isso que será destruído pela morte. Assim, a morte é, para o próprio indivíduo, antes de tudo, uma privação de sua existência, condição necessária e fundamental para a realização de suas possibilidades, seus projetos, interesses e desejos. A morte é um mal porque implica a percepção de que tudo estará definitivamente acabado para nós. É claro, pode-se argumentar, que nem sempre a morte é vista como um mal. Para uma pessoa que sofre uma doença dolorosa e que se encontra em estado terminal, a morte lhe será até um bem, já que a livrará de uma condição insuportável. Mas isso não torna a morte menos absurda, já que estar jogado no mundo para necessariamente morrer é absurdo. É o que parece dar razão à revolta de Pessoa: “Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo  e o mistério de ambos”.
Ainda contra Epicuro, podemos dizer que a morte é um mal e absurda, porquanto, considerando-se seu caráter de destino inexorável e sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte torna o indivíduo consciente de sua finitude, o faz mergulhar num sentimento de desespero no instante em que intui ser sua vida fútil e absurda, porque todos os seus esforços, projetos, desejos e realizações pessoais se lhe afiguram como insignificantes e vãos. Dada a sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte pode privar o indivíduo das suas possibilidades de modo prematuro. A morte, como bem notou Sartre, é um mal, porque priva o indivíduo, de forma irreversível, da possibilidade de atribuir um sentido as suas experiências passadas e a sua vida. Ela cristaliza o indivíduo eternamente no momento em que se achava quando ele morreu e o coisifica eternamente desde o momento em que se torna um cadáver. O mal e o absurdo da morte, na opinião de Sartre, residem na redução do para-si morto a um em-si, condição esta em que o sentido de suas realizações passadas fica irreversivelmente entregue à liberdade e ao bem querer daqueles que sobreviveram e que desfrutam uma vitória sobre o para-si morto.
Ora, se uma vez estejamos mortos, tudo está definitivamente acabado para nós, resta absurdo e é um mal que, na condição de morto, ou seja, privados de qualquer sensação, consciência e memória, privados do acesso a nossos estados mentais passados e futuros, as nossas vivências e experiências anteriores à nossa morte nunca tenham acontecido. Deveras, para o morto, ele mesmo nunca existiu, o que me leva a concordar com a impressão de Schopenhauer, ao comparar a vida a um sonho:

“(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha, e não a que está em vigília; eis por que a morte se apresenta como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, apenas o retorno ao estado que nos é próprio desde a origem e do qual a vida foi somente um breve episódio”. (Schopenhauer, 2013, p. 34).


Note-se que a analogia entre a vida e o sonho, proposta por Schopenhauer, proíbe que depreendamos do “despertar pela morte” o significado “acordar num novo estado de vida”. Ele é claro em dizer que “a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha”. A vida consciente é viver, experimentar-se como quem vive um sonho que acabará definitivamente com o retorno ao estado inorgânico ou ao nada, que é o aniquilamento a que o indivíduo é reduzido com a morte. Seguindo, então, a intepretação de Schopenhauer, e admitindo que a morte é a negação pura e simples do ser, o puro e simples não-ser do ser, e que ela implica necessariamente o desaparecimento de um eu consciente de si mesmo pleno de desejos de autoexpressão, ela é um mal e, sobretudo, absurda, porque condena irreversivelmente à nulidade e à insignificância tudo o que o indivíduo experimentou (suas vivências de alegrias, dissabores, sua labuta diária, as exigências que cumpriu, os aborrecimentos diários, etc.) no tempo transcorrido até a sua chegada. O morto, enquanto morto, encerrado na mais completa e definitiva indiferença em relação a tudo o que acontece no mundo e aos sobreviventes em cuja companhia deixou de encontrar-se, e privado do acesso às suas vivências passadas, não sabe e não pode saber de sua existência; portanto, quando consideramos o morto entregue a esse estado de completa e definitiva ignorância com relação a sua vida antes que a morte o privasse dela, devemos concluir que o seu estado atual de ‘não existência’ é semelhante ao estado de ‘não existência’ anterior ao nascimento. Novamente, devemos ouvir Schopenhauer e assentir em sua intuição: “após a morte, serás o que foste antes de nascer”. É justamente em face dessa intuição que a razão recua e que o absurdo a dilacera. É porque a morte nos reduz ao estado do nada anterior ao nascimento, da não existência prévia ao nascimento, que a vida – esse breve episódio perturbador do silêncio do nada- sendo como um fenda, uma “rachadura” que, dividindo o nada, se parecendo a um sonho breve entre dois “nadas”, resiste às nossas pretensões de a explicar racionalmente e insiste em esmagar nossas tentativas de lhe dar um sentido humanamente razoável e satisfatório. O absurdo da morte, que espelha o absurdo da vida, parece residir no fato de que ele é vivido subjetivamente como precariedade e insuficiência da vida, que não parece ser mais do que uma imagem onírica do nada ou – se preferirmos – da pregnância e predomínio do inorgânico que, pela morte, reivindica a restauração definitiva do silêncio do nada, que avança inexorável e “se quer” eternamente imperturbável.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).  São Paulo: Editora UNESP, 2002.
_________. Antologia de Textos de Epicuro. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

LUCRÉCIO. DA NATUREZA DAS COISAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

__________. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 85.