sexta-feira, 28 de setembro de 2018

"Na língua, só existem diferenças" (Saussure)


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O valor do signo linguístico
Revisitando Saussure


Este texto vem preencher uma lacuna quando da consideração que eu fiz, em outro momento, acerca da contribuição de Saussure para o estabelecimento da Linguística como a ciência que se ocupa da língua. Com vistas a preencher essa lacuna, impõe-se-me a necessidade de tratar do conceito de valor do signo linguístico no contexto de seu trabalho enquanto pensador que lançou os fundamentos da Linguística moderna.
Antes de me debruçar sobre a discussão sobre o conceito de valor na abordagem saussuriana da língua, procederei a uma contextualização teórica dessa abordagem. Nessa contextualização, delinearei o escopo epistemológico do estruturalismo em Linguística e esclarecerei a noção de relações sintagmáticas e relações paradigmáticas, cuja compreensão é indispensável para que a noção de valor linguístico seja compreendida em toda a sua importância epistêmica.


1. Estruturalismo: breves apontamentos

Gostaria de começar, pois, enfatizando que não devemos falar de um único conceito para o termo estruturalismo. Em diversas áreas do saber humano, tais como em antropologia, em sociologia, em psicologia, alguma teoria estruturalista orientou a abordagem dos problemas submetidos à investigação.
O uso do termo estruturalismo para caracterizar a abordagem saussuriana da língua esteia-se no pressuposto de que, a despeito de as diversas escolas linguísticas que podem ser reunidas sob o rótulo estruturalistas apresentarem diferenças em termos de método e conceitos, todas elas se orientaram pela tese de que a língua é uma estrutura, é um sistema. A tarefa do linguista, nesse sentido, consiste, pois, em analisar a organização e o funcionamento dos elementos constituintes desse sistema.
O desenvolvimento da linguística estruturalista representa, deveras, um acontecimento bastante significativo no pensamento científico do século XX. A própria compreensão dos incontáveis avanços no quadro das ciências humanas nesse século seria impossível, se não compreendêssemos a elaboração do conceito de estrutura desenvolvido a partir das investigações do fenômeno da linguagem. Toda uma geração de pensadores, entre os quais se acham Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Roland Barthes evidenciam, em suas obras, a contribuição pioneira de Ferdinand de Saussure, relacionada à organização estrutural da língua.
É no Curso de Linguística Geral, obra póstuma que, na verdade, resultou de uma reconstrução do pensamento de Saussure a partir de notas redigidas por alunos de três cursos que ele ministrou entre 1907 e 1911, na Universidade de Genebra, que se topam os fundamentos que tornariam possível o desenvolvimento de um modelo teórico-metodológico estruturalista. À luz desse modelo de análise linguística, a língua é considerada um sistema articulado de signos, uma estrutura, na qual, à semelhança do que sucede no jogo de xadrez (imagem abundantemente utilizada por Saussure), o valor de cada peça não é determinado por sua materialidade, não existe em si mesmo, mas é fixado no interior do jogo. Veremos ainda o que Saussure entende por valor de um signo linguístico, na seção destinada exclusivamente para o tratamento desse tema.
Ainda no que toca ao estruturalismo, é preciso notar que ele teve um impacto enorme nos estudos da linguagem, no Brasil, durante os anos de 1960. Nesse período, o estruturalismo já era a escola dominante. Foi nessa época que a Linguística foi reconhecida, em nosso país, como disciplina autônoma. Por volta de 1970, o estruturalismo já havia se estabelecido, no Brasil, como a orientação teórica mais importante no âmbito dos estudos da linguagem. O estruturalismo contribuiu bastante para criar um novo tipo de estudioso – o linguista. Não é que o linguista inexistisse antes da consolidação do estruturalismo no Brasil, mas sua existência até então tinha de ser afirmada em contraste com duas figuras mais antigas: a do gramático, cujo interesse repousa na sistematização dos conhecimentos que resultam do uso considerado socialmente “correto” da língua; e a do filólogo, cuja preocupação reside no estudo das fases antigas da língua e na análise dos textos representativos dessas fases. O linguista, por sua vez, é um cientista da linguagem, cuja preocupação reside em descrever e explicar a estrutura e o funcionamento da língua, sem fazer qualquer juízo de valor acerca do uso de suas variedades.
É certo que, atualmente, passados mais de 50 anos desde o impacto que exerceu estruturalismo nos estudos linguísticos desenvolvidos no Brasil, o linguista não precisa mais justificar sua própria existência em face de outros estudiosos da linguagem. A Linguística atual se caracteriza por uma grande diversidade de escolas, no entanto, malgrado o fato de haver orientações teóricas ainda muito prestigiadas (como o gerativismo, o “funcionalismo” e a análise do discurso), não existe uma orientação teórica hegemônica que coligaria os mais diferentes interesses dos linguistas.
O conhecimento intuitivo que o falante nativo tem de sua língua materna recobre não só o saber a respeito das peças (signos) disponíveis, mas também das suas possibilidades de organização, de articulação, de distribuição na cadeia sintagmática. O que regula o funcionamento das unidades que compõem o sistema linguístico são as regras e os princípios que internalizamos muito cedo na fase da aquisição da linguagem e que compõem uma gramática internalizada, cujo domínio intuitivo nos permite produzir e compreender um conjunto praticamente infinito de enunciados em nossa língua materna.
A abordagem estruturalista assume que a língua é forma, isto é, estrutura, e não substância (a matéria a partir da qual ela se manifesta). É claro que há o reconhecimento da necessidade da análise da substância para que seja possível formular hipóteses sobre o sistema; afinal, um sistema que não apresenta qualquer manifestação material, que não seja expresso por algum tipo de substância, não desperta qualquer interesse científico, porque não pode sequer ser investigado.
Uma vez que, para o estruturalismo, o que importa é investigar a estrutura da língua, esta deve ser estudada em si mesma e por si mesma. O estruturalismo renuncia a toda preocupação com fatores extralinguísticos, tais como as relações entre língua e sociedade, língua e cultura, língua e distribuição geográfica, entre outros. O linguista estruturalista está unicamente interessado na descrição das relações internas entre os signos do sistema linguístico. Portanto, o recorte teórico do estruturalismo cria um único objeto de estudo: a langue, um sistema de signos homogêneo e abstrato.


2. Relações sintagmáticas e relações paradigmáticas[1]

Entre as dicotomias que nos legou Saussure como partes de seu projeto de fundamentação da nova ciência – a Linguística -, se topam as relações sintagmáticas e as relações paradigmáticas. Saussure sustentou que toda sincronia se relaciona a dois eixos em torno dos quais se realiza a língua: o eixo paradigmático ou das associações e o eixo sintagmático ou das relações entre termos coexistentes.
Urge esclarecer que por sintagma Saussure entende uma unidade maior que se compõe de duas ou mais unidades consecutivas.[2] Mattoso Câmara Jr., inspirado na definição saussuriana, definirá o sintagma como uma construção resultante da combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior. Assim, em consonância com Saussure, uma forma como reler, é um tipo de sintagma, pois que resulta da combinação dos elementos “re-“ (prefixo) e “ler” (radical). Portanto, para Saussure, tanto como para Mattoso Câmara, o sintagma pode identificar-se com o nível do vocábulo.
Tendo esclarecido a noção de sintagma, passo a considerar o que são as relações sintagmáticas. O eixo sintagmático baseia-se no caráter linear do signo linguístico, ou seja, no fato de ser impossível pronunciar dois signos ao mesmo tempo. É na cadeia sintagmática que um elemento linguístico passa a ter valor, em virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede, ou com ambos. O eixo sintagmático recobre o domínio das relações entre unidades linguísticas coexistentes; nesse eixo, os signos articulam-se entre si na cadeia linear de fala. Por outro lado, as relações paradigmáticas recobre o domínio das relações associativas e suas unidades estão numa relação de exclusividade: se uma unidade se realiza sintagmaticamente, a outra está, necessariamente, ausente. O paradigma, portanto, constitui uma espécie de “banco de reservas” da língua. O paradigma recobre o conjunto de unidades suscetíveis de aparecer num mesmo ambiente estrutural. Graficamente, os eixos sintagmático e paradigmático se cruzam e funcionam numa inter-relação necessária. Em outras palavras, a língua funciona mediante a inter-relação necessária entre os dois eixos.





Veja-se que as formas foi, era e ficou são passíveis de ocupar a posição da forma  “é” no eixo das relações sintagmáticas, e o mesmo vale para as formas sincero, dedicado e pobre, suscetíveis de preencher o lugar de “honesto”. A presença de “honesto” na oração “Pedro é honesto” resulta de uma seleção operada entre as unidades virtualmente disponíveis no eixo paradigmático. Portanto, as relações paradigmáticas supõem relações entre unidades alternativas.









As relações paradigmáticas supõem uma oposição entre elementos que formam “uma série mnemônica virtual”. De fato, as unidades linguísticas estão organizadas em classes de acordo com suas propriedades semântica, sintática e morfológica como partes do léxico mental dos falantes. Esse conjunto de unidades linguísticas virtualmente existentes e passíveis de ser comutadas com outras num mesmo ambiente sintático recobre o eixo das relações paradigmáticas; em uma palavra, constitui o paradigma.




3. A noção de valor linguístico

Ainda que possamos apreender o alcance da noção de valor também no eixo das relações paradigmáticas, é no eixo das relações sintagmáticas que essa noção se esclarece de modo mais consistente com a concepção saussuriana de língua como sistema de signos. O termo sistema é sinônimo de estrutura, muito embora Saussure tenha preferido o uso do vocábulo sistema em vez de estrutura. Estrutura é o conjunto de relações que se estabelecem entre as partes de um todo, qualquer que seja esse todo.  Da mesma forma que da relação sistemática entre os ossos do corpo humano resulta o esqueleto, da relação sistemática entre os signos linguísticos resulta a estrutura.  Quando Saussure diz que a língua é forma e não substância, ele quer dizer que a língua é sistema, é estrutura; ele quer dizer que a linguística deve-se ocupar com a descrição das relações recíprocas e sistemáticas entre os signos linguísticos. A fim de que a língua sirva à interação social, é necessário que os enunciados que produzimos sejam dotados de uma estrutura (forma), de uma ordem. O significado das construções linguísticas depende da organização interna de suas unidades, de seus signos. Quando comparamos (1) com (2), a seguir, percebemos que (1) é uma frase em português, ao passo que (2) é uma reunião aleatória de palavras.

(1) Hoje, eu não vou sair.
(2) *chocolate gosto  eu de sorvete.

O exemplo (1) constitui uma construção bem formada em português, porque suas unidades constitutivas se dispõem numa ordem prevista pela gramática dessa língua. Por outro lado, (2) não é sequer uma construção em português, já que carece de ordem (estrutura). Trata-se de uma sequência de signos aleatória. Portanto, no exemplo (1), temos uma frase em português, temos uma construção linguística dotada de uma estrutura, de uma organização interna estabelecida segundo um dos padrões de estruturação sintática previstos pelo sistema de regras que constitui a gramática da língua portuguesa. Para que uma construção seja dotada de significado e sirva à função de comunicação, ela deve apresentar uma estrutura, ou seja, suas unidades constitutivas devem-se organizar segundo um padrão gramaticalmente adequado. Veja-se que o exemplo (1) encerra a estrutura SN-SV. O SV se constitui de uma locução verbal formada pela combinação do auxiliar “vou” com o infinitivo “sair” Outras muitas formas são passíveis de ocupar a posição de “vou”, conforme ilustra o gráfico abaixo:
 

   



Embora possamos combinar preciso, posso e quero com o infinitivo “sair”, uma combinação com “estar” é gramaticalmente inaceitável[3]. Portanto, uma sequência como “eu estou sair” não obedece a nenhum padrão estrutural previsto em português. Qualquer falante nativo de português sabe (ainda que esse saber não seja do tipo declarativo) que o verbo “estar” combina-se com verbos terminados em –ndo para formar o que tradicionalmente conhecemos como locução verbal (cf. está chovendo, estou cantando). Uma construção como “Eu estou saindo” é gramaticalmente aceitável. Isso significa dizer que ela segue um padrão estrutural previsto pela gramática do português.
Por gramática, portanto, deve-se entender aqui o sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. A gramática disponibiliza as regras e os princípios que nos permitem organizar as unidades linguísticas para a construção de enunciados em nossa língua materna.  Quando Saussure propõe que a língua seja estudada enquanto sistema de signos que se articulam reciprocamente, é sobre a gramática, tal como definida acima, que ele quer que recaia o interesse analítico do linguista. O linguista deve se preocupar em descrever como a língua se organiza estruturalmente a fim de tornar possível a produção do sentido.
A fim de que possamos adentrar na discussão sobre o que significa o conceito de valor linguístico em Saussure, necessário é insistir em que, para o mestre genebrino, a langue é um sistema de signos. Um sistema é um conjunto organizado de elementos, no qual um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um elemento se define em relação com os demais.  No antigo regime monárquico, o que faz um rei ser rei é o fato de ele não ser um de seus súditos. Analogamente, em língua, o singular só existe em função do plural.  Portanto, o valor das unidades do sistema linguístico se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que o signo casa está no singular, porque existe a contraparte com a marca –s indicadora de plural – casas. Só podemos falar em morfema-zero - a ausência de marca em casa -, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s no signo casas. Em outros termos, o singular é expresso justamente pela ausência de marca, de modo que a forma singular é a forma não marcada. Em língua, a ausência de marca significa, mas só significa em oposição a uma forma que correlativamente apresenta uma marca. Nos substantivos, o masculino é a forma não marcada, mas só o é porque o feminino, em português, é a forma marcada (cf. menino x menina, garoto x garota, doutor x doutora, professor x professora).
Para Saussure, portanto, considerar a língua como sistema significa dizer que tudo na língua são oposições. São justamente as oposições ou diferenças que nos permitem construir uma gama diversa de conteúdos análogos de pensamento. A língua é um sistema de signos e a gramática é o mecanismo através do qual esse sistema funciona, opera. Vejamos mais um exemplo disso. Considerem-se as frases abaixo:



(3) Reprovar o aluno não agrada ao professor.
(4) A reprovação do aluno não agrada ao professor.



Destacou-se, em negrito, em cada uma das frases, o seu respectivo sujeito. Em (3), o sujeito é preenchido por uma oração de infinitivo – reprovar o aluno. Em (4), o sujeito é preenchido por um SN cujo núcleo é a forma nominalizada do verbo “reprovar” – “reprovação”. Note-se que, ao derivar reprovação de reprovar, ou seja, ao anexar o sufixo nominalizador “-ção” à base do verbo “reprovar”, a estrutura do sujeito se altera. Em (3), o sujeito oracional encerra um complemento desprovido de preposição – “o aluno”. Em (4), o que era complemento direto – o aluno – torna-se complemento nominal introduzido da preposição “de” – “a reprovação do aluno”. Em outras palavras, se a valência de “reprovar” prevê um actante 2 (à direita) sem preposição - X reprova Y -, a valência de “reprovação”, por outro lado, prevê um actante marcado formalmente com a preposição “de”: “a reprovação de Y”. Trata-se de um mecanismo bastante regular em português. Assim, dado um verbo ao qual se pode articular o sufixo “-ção”, a forma nominalizada resultante poderá combinar-se com um complemento introduzido pela preposição “de” (cf. a manutenção de, a atualização de, a informação de, a acusação de, etc.).  Assim, no sistema, a peça ‘N-ção’ (nome + -ção) se combina com um termo introduzido da preposição “de”. Qualquer que seja a alteração nessa forma de estruturação produzirá um resultado agramatical.


(4a) *A reprovação o aluno não agrada ao professor.


Uma vez que se verifique a desobediência das regras de organização das peças do sistema linguístico, haverá prejuízo no plano do conteúdo, tornando difícil a inteligibilidade do enunciado. Naturalmente, nenhum falante nativo de português produz (4a). É parte do conhecimento intuitivo do falante nativo de português saber construir enunciados com formas nominzalizadas terminadas em “-ção”.
Considerem-se, ainda, os exemplos abaixo:



(5) O menino é estudioso.
(5a) A menina é estudiosa.
(6) Os meninos são estudiosos.
(6a) As meninas são estudiosas.



No par (5)-(5a), ao comutar o substantivo de gênero masculino com a sua contraparte no gênero feminino, o adjetivo sofre modificação em sua forma para acomodar-se ao gênero do substantivo. No par (6)-(6a), ao comutar o substantivo masculino no plural com a sua forma feminina no plural correspondente, o adjetivo flexiona-se no feminino plural. Portanto, esse processo, que chamamos de concordância nominal, dá testemunho do funcionamento do sistema linguístico. As peças do sistema sofrem alterações em sua forma, isto é, suprimem ou recebem elementos para combinar-se com outras peças.  Há casos, conforme vimos com a nominalização em “-ção”, em que, para uma peça combinar-se com outra, é preciso que uma delas, a que governa o processo, selecione outra peça que será responsável pela combinação. É o que ocorre em (7) a seguir:


(7) Eu gosto de sorvete de chocolate.



O verbo gostar, para combinar-se com o seu complemento – “sorvete de chocolate”, seleciona necessariamente a preposição “de”, cuja função é justamente permitir a relação entre a forma “gostar” e seu complemento. Sem esse conectivo, o resultado é agramatical: * Eu gosto sorvete de chocolate.
O que Saussure entende por valor linguístico é justamente o conjunto de diferenças que constituem o sistema da língua. Um signo é o que os outros não são. O valor de um signo provém da situação recíproca dos signos na língua. Na língua, só existe a produção e a interpretação das diferenças. Por exemplo, se quisermos determinar o valor do fonema /b/, teremos de levar em conta as relações de oposição que ele estabelece com outros fonemas. Assim, se tomamos o par mínimo[4] ‘pote/ bote’, verificamos que os fonemas /b/ e /p/ se opõem com base nos traços [+ sonoridade] e [- sonoridade]. O som /b/ comporta o traço [+ sonoridade], enquanto o som /p/ é [- sonoro] (ou [+ surdo]).  Os fonemas /p/ e /b/ constituem um par mínimo, pois que há um contraste fenomênico entre eles, que é relevante para a distinção de significado entre palavras: presença x ausência de [sonoridade].
É, portanto, da relação que se estabelece entre dois signos que resulta o valor de cada um deles, bem como seu significado individual. Os elementos da língua só adquirem valor enquanto se opõem a outros, enquanto não se confundem com outros. Não é, portanto, sua qualidade positiva e própria que os caracteriza, mas sua qualidade negativa, opositiva, diferencial.
Falar em valor linguístico é, antes de mais nada, ressaltar a natureza opositiva do signo. O que fundamenta a especificidade de cada signo linguístico é a maneira como a língua põe esse signo em contraste com todos os demais. O valor linguístico, portanto, calca-se sobre a ideia de contraste entre um signo com outros signos na cadeia sintagmática. A noção de valor para Saussure caracteriza a língua como uma rede de pares opositivos. Segundo Saussure, “na língua, só existem diferenças”. (2003, p. 139). Quando atentamos para o paradigma flexional dos verbos e dos nomes, compreendemos bem essa afirmação saussuriana. A primeira conjugação e a segunda conjugação derivam seu valor pela oposição das marcas “-ar” (da primeira conjugação) e “-er” (da segunda conjugação): vendar x vender. O futuro do presente se opõe ao futuro do pretério através da diferença entre as desinências modo-temporais “-rá (-re)” e “-ria” (cf. Ele vende, eu venderei x ele/eu venderia). Já o presente se opõe ao pretérito imperfeito porque, no presente, a desinência modo-temporal está ausente (morfema-zero); mas, no pretérito imperfeito, essa desinência é –va: estudaØ x estudava. No substantivo, o masculino se opõe ao feminino pela ausência de marca de gênero masculino e presença de marca no gênero feminino: meninoØ x menina. Quando a oposição se expressa pela presença vs. ausência de marca, dizemos que a oposição é privativa ou binária. Quando a oposição se expressa através de marcas equivalentes, como em “saberei” e “saberemos” (caso em que “-i”, que expressa a primeira pessoa do singular, se opõe a “-mos”, que expressa a primeira pessoa do plural), dizemos que a oposição é equipolente ou polar. Há também a oposição gradual, caso em que uma forma se opõe a outra em função da gradação de um dado traço, como em “pode x pôde”.
O princípio das oposições funcionais constitui a própria base do axioma estruturalista, segundo o qual cada unidade linguística só adquire valor a partir da oposição (substituição) e contraste (combinação) com outras unidades pertencentes ao mesmo nível gramatical.  A noção de valor linguístico caracteriza o fato de que a língua é um sistema cujos termos são todos solidários entre si. O valor de um signo resulta tão somente da presença simultânea de outros. Quer na esfera do significado, quer na esfera do significante, o valor de um signo é constituído unicamente de relações e diferenças com outros signos da língua. Por isso, segundo Saussure,


A língua (...) é comparável a uma folha de papel: o pensamento é o anverso e o som o verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro, assim tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento; ou o pensamento do som (...). (ibid., p. 15).



Apêndice


O estruturalismo norte-americano, cujo expoente foi Leonard Bloomfield, muito embora tenha se desenvolvido de maneira independente no momento em que o pensamento de Saussure começava a ser conhecido na Europa, encerra pontos em comum, malgrado as diferenças, com a proposta formulada por Saussure. O estruturalismo de Bloomfield, dominante, nos Estados Unidos, até aproximadamente  1950, se desenvolveu sob o rótulo de distribucionalismo ou Línguística distribucional.
Bloomfield estava interessado na elaboração de um sistema de conceitos destinados à descrição sincrônica de qualquer língua. Para tanto, ele assumiu os seguintes pressupostos teóricos:

a) cada língua apresenta uma estrutura específica;

b) essa estrutura se evidencia em três níveis – o fonológico, o morfológico e o sintático -, os quais se organizam hierarquicamente, com o fonológico na base e o sintático no topo;

c) cada nível é constituído de unidades de nível imediatamente inferior: a oração se constitui de sintagmas; os sintagmas, de palavras; as palavras, de morfemas; os morfemas, de fonemas;

d) a descrição de uma língua deve começar pela consideração das unidades mais simples, prosseguindo gradativamente à descrição das unidades mais complexas;

e) cada unidade linguística é definida em função de sua posição estrutural, de acordo com os elementos que a precedem  e que a seguem;
f) na descrição, é necessária absoluta objetividade, o que exclui o estudo da semântica do escopo da linguística;

Vou ilustrar como se deve proceder à descrição da língua, segundo os itens d) e e). Tomemos para exemplo o vocábulo casamento. Segundo o que propõe o estruturalismo em d), devemos começar por descrever as unidades mais simples da palavra “casamento”. Isso significa dizer que devemos decompor a palavra em seus fonemas constitutivos. O resultado é o seguinte: /k/ /a/ / z/ /a/ /m/ /e/ /n/ /t/ /o/. Em seguida, passamos à discriminação das unidades significativas que a constituem: cas-radical; -a vogal temática; -mento sufixo de nominalização. Prosseguimos observando a posição estrutural em que ela ocorre, é o que se postula em e). A palavra “casamento” pode ocorrer nas seguintes posições estruturais:



(8a) [O casamento do meu tio] foi um sucesso
(8b) Havia muitos convidados [no casamento do meu tio]
(8c) Foram muitas pessoas [ao casamento do meu tio]
(8d) Já começaram os preparativos [do casamento do meu tio]



Em todos os casos, o vocábulo “casamento” preenche o núcleo de um SN, do qual faz parte o artigo como pré-determinante. É justamente por admitir a combinação com artigo que o vocábulo “casamento” pertence à classe do substantivo. Assim, todo substantivo se caracteriza por admitir a combinação com um artigo (ou outro determinante equivalente). Essa é uma propriedade estrutural do substantivo. A classificação de uma palavra como “substantivo” depende, portanto, do ambiente sintático em que ela sistematicamente figura. O aspecto semântico, tão privilegiado na gramática tradicional, não entra a fazer parte da definição do substantivo (ou de qualquer outra classe gramatical), segundo a perspectiva distribucional. O que importa é considerar seu comportamento sintático, o entorno estrutural em que a palavra se encontra.  O distribucionalismo visa a determinar como as unidades linguísticas se distribuem, se organizam, se estruturam na cadeia sintagmática. Há, evidentemente, diferença na distribuição do substantivo “casamento” nos casos acima mencionados, quando consideramos o sintagma de que ele é o núcleo. Em (8a), o vocábulo “casamento” é o núcleo de um SN que preenche a posição de sujeito da oração. Já em (8b), “casamento” é o núcleo de um SN encaixado num SP (em__SN), na função de adjunto adverbial. Em (8c), o mesmo vocábulo constitui o núcleo de um SN encaixado no SP, o qual, por sua vez, preenche a posição de complemento circunstancial de “ir” (cf. foram ao casamento...). Finalmente, em (8d), “casamento” é núcleo de um SN encaixado no SP que funciona como modificador do substantivo “preparativos”.  Em suma, “casamento” é distribucionalmente um substantivo, porque pode ocupar a posição de núcleo de um SN; e esse sintagma nominal pode ou não ser parte de um SP.  O SN cujo núcleo é preenchido sempre por uma palavra funcionalmente correspondente a um substantivo pode exercer as seguintes funções sintáticas, ou seja, pode ocupar as seguintes posições na estrutura oracional: 1) a de sujeito, caso em que, via de regra, precede o verbo; 2) a de complemento direto, caso em que se pospõe ao verbo; 3) a de predicativo do sujeito ou do objeto direto (cf. Pedro é um grande amigo / Eu considero Pedro um grande amigo).
Para Bloomfield, o processo de combinação das unidades da língua para formar construções de nível imediatamente superior é governado por regras e princípios próprios de cada sistema linguístico. Assim, algumas construções serão autorizadas pelo sistema de regras da língua (a gramática), enquanto outras construções serão totalmente desautorizadas.
É inegável a contribuição do estruturalismo para a consolidação da Linguística enquanto ciência autônoma, em consonância com os postulados saussurianos. Essa contribuição é patente quando reconhecemos que a linguística distribucional propõe que o estudo da língua seja levado a efeito com base na:

a) constituição de um corpus representativo de enunciados efetivamente realizados por usuários de uma determinada língua, numa dada época;

b) a elaboração de um inventário, a partir desse corpus, que permita determinar as unidades elementares em cada nível de análise, assim como as classes a que essas unidades pertencem;

c) a verificação das regras de combinação de elementos de diferentes classes.

Talvez a maior contribuição do estruturalismo de Bloomfield para a Linguística é seu método de análise em constituintes imediatos. Os proponentes do estruturalismo advogam que as peças de uma língua não se organizam arbitrariamente, mas, ao contrário, distribuem-se em certas posições particulares fixadas pelo sistema de regras da língua. A análise em constituintes imediatos evidencia o fato de que as frases de uma língua são formadas pela combinação de construções – os seus sintagmas – e não de uma simples sequência de elementos discretos. De acordo com esse método, uma frase resulta de diversas camadas de constituintes.  Assim, a frase “o casamento do meu tio agradou aos convidados” é analisada como produto da combinação de dois constituintes imediatos: um SN “o casamento do meu tio” e um SV “agradou aos convidados”. Cada um desses constituintes imediatos é formado por outras unidades constitutivas. Por exemplo, o SN “o casamento do meu tio”, encerra o SP “do meu tio”, que, por sua vez, inclui o SN “o meu tio”. O SN “o meu tio” resulta da combinação do núcleo “tio” com os determinantes “o” (pré-determinante) e o “meu”. Graficamente, podemos analisar o SN “o casamento do meu irmão”, isolando entre colchetes os termos marginais em cada etapa de análise:



                 [o] casamento do meu tio
                                        [do meu tio]
                                        [de] meu tio
                                       [o]  meu tio
                                       [meu] tio


Veja-se que o substantivo núcleo “casamento” do SN nunca é isolado entre colchetes. Todos as unidades do sintagma são partes constitutivas dessa teia urdida a partir de um centro, de um núcleo.

É particularmente importante pontuar que essa análise por meio de colchetes permite resolver casos de ambiguidade, como em (9):

(9) Pedro viu Maria com um binóculo.

Essa frase é ambígua: tanto pode significar ‘Pedro utilizou um binóculo para ver Maria’ quanto ‘Pedro viu Maria enquanto ela portava um binóculo’. A ambiguidade de sentido resulta de duas possibilidades de apreensão da estruturação da frase. Para o primeiro significado, temos a estrutura:

(9a) Pedro viu Maria [com um binóculo]

Nesse caso, isola-se o constituinte menos aderente, que preenche a função adverbial, qual seja, a de instrumento pelo qual Pedro vê Maria.

(9b) Pedro viu [Maria com um binóculo]

Nesse caso, isola-se o constituinte que corresponde a um SN, a cujo núcleo “Maria” se prende o modificador “com um binóculo”. Agora, a leitura é: Pedro viu Maria enquanto ela trazia um binóculo.

Abaixo, segue a análise exaustiva da frase “o casamento do meu irmão agradou aos convidados” em seus constituintes, os quais estão organizados em níveis gramaticais hierárquicos diferentes: a frase constitui o nível hierárquico mais alto, enquanto o fonema é o nível mais básico.  Entre os níveis intermediários, o morfema é hierarquicamente inferior ao nível da palavra, o qual, por sua vez, é inferior ao nível do sintagma:


FRASE  ______________ o casamento do meu tio agradou aos convidados
SINTAGMAS __________  o casamento do meu tio  / agradou os convidados
PALAVRAS  _____________ /o / casamento/ /de/ /o/ /meu/ /tio/ /agradou/ /os/ /convidados/.
MORFEMAS ___________ /o/ /cas-/ /a/ /-mento/ /de/ /o/ meu/ tio/ / agrad-/ /ou/ /o/ /s/ /convid-/ /-ado/ /s/

FONEMAS __________
/o/ /k/ /a/ /z/ /a/ /m/ /e/ /N/ /t/ /o/ /d/ /o/ /m/ /e/ /u/  / t/ /i/ /o/ / a/ /g/ /r/ /a/ /d/ /o/ /u/ /a/ /o/ /s/ /c/ /o/ /n/ /v/  /i/ /d/ /a/ /d/ /o/ /s/.


Consoante se vê, a análise distribucional, cunhada no modelo estruturalista, apresenta uma perspectiva demasiadamente formal acerca do fenômeno da linguagem, de modo que a tarefa do linguista é tão só, na descrição da língua, decompor suas unidades constitutivas, identificar as regras por meio das quais elas podem se combinar em unidades de nível cada vez mais alto e classificá-las com base num corpus representativo de enunciados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2003.












[1]  Vale dizer que Saussure não usa o termo “relações paradigmáticas”, preferindo o termo “relações associativas” (CLG, 2003, p. 142).
[2]  Essa concepção alargada de “sintagma” autoriza-nos a chamar de sintagma até mesmo as sílabas, muito embora a concepção mais restrita de sintagma suponha a combinação, a articulação de unidades menores, dotadas de significado, numa unidade hierarquicamente superior. Assim, o que entendemos hoje por sintagma impede que se considerem sintagmas as sílabas, já que estas são desprovidas de significado.

[3] Para que possamos combinar “estar” com infinitivo, é necessária a presença da preposição “a”. A construção resultante é semanticamente equivalente à construção de ‘estar + gerúndio”: ‘estou a cantar’. No entanto, a construção ‘estar a + infinitivo’ não é usada no português brasileiro.
[4] O par mínimo é um procedimento fonológico que permite determinar que sons pertencem à mesma classe. O par mínimo recobre duas palavras que diferem em significado quando apenas um dos fonemas é alterado. Por exemplo, “lata e “mata” formam um par mínimo, já que, comutando /l/ com /m/, temos duas palavras com significado diverso. Outros exemplos de pares mínimos são: ‘mar x par’, ‘luva x lava’, ‘dedo x cedo’. Note-se que, no par mínimo, a estrutura fonológica permanece praticamente a mesma, exceto pelo fato de um único fonema mudar: dedo x cedo. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

"O destino conduz o que consente e arrasta o que resiste". (Sêneca)


                       
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                                 O mundo estoico

O estoicismo chama mundo de Natureza ou deus: a natureza é divinizada; e o divino, naturalizado. O divino (theion) é, a rigor, a ordem, a estrutura do universo, o cosmos. A física estoica afirma a total imanência do divino à natureza (natura sive deus). Cosmologia e teologia são, portanto, indissociáveis. É por isso que a felicidade dos homens depende do ajuste de sua vida a esta ordem divina em relação à qual a própria vida humana se ordena e ganha sentido. Os estoicos nos convidam a contemplar ( théion orao ou “eu contemplo o divino”) essa ordem divina do mundo, a conhecê-la como condição necessária para a adesão a esta ordem. Quando bem ajustados estão os homens ao cosmos divino, podem eles desempenhar a função que nele lhes é atribuída, encontrando nele seu lugar próprio para cultivar os talentos que lhes são próprios. Portanto, a vida boa, para um estoico, consiste em adequar-se à ordem divina do mundo, em ficar em harmonia com a harmonia do universo.
É importante dizer que o divino dos estoicos não é transcendente, não se situa num além, não é um deus para quem destinamos preces, orações, mas se confunde com a própria ordem do mundo, ou melhor, é essa ordem, harmoniosa e perfeita, radicalmente superior e exterior aos homens, os quais a descobrem, pelo menos enquanto filósofos, maravilhados. O cosmos se diz divino em virtude dessa sua superioridade radical em relação aos seres que dele fazem parte, mas deus é imanente ao cosmos, ao mundo, à natureza.
O mundo, no estoicismo, se organiza segundo dois princípios indestrutíveis: um princípio passivo (tó páskon), a matéria ou substância sem qualidades; e um princípio ativo (tó poioun), a razão ou o logos, que age sobre a matéria, que é a essência (ousia) ou substância eterna, que só se manifesta na medida em que é informada pelo lógos. Mesmo o princípio jamais aparece desvinculado da matéria, mas só por meio dela. O mundo é composto de indivíduos totalmente diferentes; nele não encontramos jamais dois seres rigorosamente semelhantes. Cada ser é um indivíduo. E todo indivíduo é um corpo, que possui uma tensão interna (tónos), uma maneira de ser. Essa maneira de ser se expressa como estrutura ou coesão (héxis) no mineral; como natureza (phýsis) no vegetal; como alma (psyché) no animal; como espírito (nôus) no homem. Todo ser é uma héxis, uma phýsis, um psyché e o homem ainda se caracteriza por uma quarta maneira de ser que lhe é própria, o nôus.
Para o estoicismo, portanto, no mundo, só há corpos: a alma e o espírito são corpos; o dia e a noite são corpos; deus é um corpo, etc. Os corpos são indivíduos, que se inter-relacionam, que se interprenetram, que se comunicam uns com os outros em relações de simpatia ou antipatia. Mas há também os incorporais, que são quase-seres, que não existem propriamente, mas subsistem como efeitos das relações entre os corpos. Os incorporais têm um mínimo de existência. São incorporais o exprimível, o vazio, o lugar e o tempo.
O logos é um princípio imanente e divino, é inteligência e razão, que tudo ordena. Tudo é rigorosa e profundamente racional. Consoante ensina Reale, “tudo é como a razão quer que seja e como não pode não querer que seja, e o conjunto de todas as coisas é perfeito”[1]. Destarte, os estoicos pensavam a ordem do mundo, em última instância, segundo um finalismo universal. A Providência estoica, que nada tem que ver com a providência de um deus pessoal, é ela mesma esse finalismo universal: trata-se da convicção de que todas as coisas foram feitas pelo logos, segundo uma necessidade e em conformidade com o que é bom. Essa Providência não é transcendente, mas imanente, coincidindo com a alma do mundo, com o próprio mundo. Sob outro ponto de vista, essa Providência imanente e física é pensada como destino (heimarméne), “como necessidade inelutável”.[2]
Para os estoicos, o Destino é a própria natureza, ou “(...) a série irresistível de causas, a ordem natural e necessária de todas as coisas, o indissolúvel nó que liga todos os seres, o lógos segundo o qual as coisas passadas aconteceram, as presentes acontecem e as futuras acontecerão”[3]. Os estoicos concebem o Destino, portanto, como uma realidade natural, inscrita na ordem do mundo ou da vida que anima a totalidade do universo. O destino não é uma força transcendente que governa a vida humana à revelia dos indivíduos. O destino é a ordem e a conexão naturais de todas as coisas, o nexo causal necessário ou, segundo Deleuze, “a unidade das causas entre si (...) na extensão do presente cósmico”[4]. Não há, para um estoico, acaso ou contingência no universo. Tudo é necessário, porquanto o destino é também uma força cósmica e divina, o lógos vital, sopro divino, tensão que organiza e contém o todo. Por isso, o começo da sabedoria humana supõe a tomada de consciência do destino ou da necessidade universal e se desenvolve até realizar-se plenamente na submissão humana ao destino, isto é, no assentimento voluntário à necessidade, à vida que une todos os seres. Eis o que significa viver em conformidade com a natureza.
Sem pretender descer a pormenores sobre a aporia que resulta da admissão conjunta da rígida determinação de todo acontecimento e da admissão da liberdade humana, gostaríamos de dar a saber, em linhas gerais, como os estoicos explicaram a liberdade do sábio. Segundo os estoicos, a liberdade dos sábios consiste em conformar-se com o Destino, mas isso não significa resignação (Deleuze, aliás, nos advertirá disso ao pensar o homem livre como aquele que quer o acontecimento). O viver estoico em conformidade com o Destino ou com a Natureza não é a resignação do homem sofredor que aceita lamentoso seu padecimento. O sábio estoico quer juntamente com o Destino aquilo que o Destino quer. Liberdade aqui é “racional aceitação do destino”[5]. Como o Destino é lógos, uma vez queiramos aquilo que quer o Destino, queremos o que quer o lógos, de modo que “liberdade (...) é levar a vida em total sintonia com o lógos[6] . Sêneca, em Da tranquilidade da alma, diz-nos o que significa o desprendimento do sábio:

Aquele que temer a morte não fará jamais obra de homem, mas aquele que disser a si mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida, governará sua vida em conformidade com esta decisão e por prêmio terá a vantagem, graças a este mesmo rigor de alma, de jamais se deixar surpreender por qualquer acontecimento que surja.[7]





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COLEÇÃO Os pensadores. Antologia de textos: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca. Trad. Agostinho da Silva et.al. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015.


REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.




[1] Reale, 2011, p. 57.
[2] Ibid., p. 60.
[3] Ibid.
[4] Deleuze, op.cit., p. 5
[5] Reale, op.cit., p. 63.
[6] Ibid.
[7] Sêneca, 1988, p. 207.