A Natureza Providente e o
Sentido da História em Kant
Uma proposta de leitura de Ideia
de uma história universal com um propósito cosmopolita
1. Introdução
Se cada um de nós tivesse “compreendido”, a história teria
há muito terminado. Mas somos essencialmente, somos biologicamente inaptos a
“compreender”. E ainda que todos compreendessem, excepto um, a história
perpetuar-se-ia por causa dele, por causa de sua cegueira, por causa de uma
única ilusão.
Cioran
Nesta exposição,
procuraremos empreender uma análise das cinco primeiras proposições que se
topam na obra Ideia de uma história
universal com um propósito cosmopolita com vistas a garantir a consistência
da seguinte tese, cuja forma damos a conhecer a seguir: Kant assume o caráter providencial da natureza no seu esforço de
determinar um sentido para a História. Apresentando tal forma, nossa tese
acena com a interpretação segundo a qual a Natureza assume o papel destinado a
Deus na ortodoxia cristã, a saber, o de ser Providente[1].
Kant crê ser possível identificar uma intenção
na natureza “no absurdo trajecto das coisas humanas” (p. 4). Kant nega ser
possível encontrar algum plano racional nos homens individualmente e nas
relações que estabelecem uns com os outros. Esse plano racional ele buscará
determinar na investigação do modo como a própria natureza produziu os homens.
Cumpre-nos dar a saber,
abaixo, os pressupostos à luz dos quais nossa análise se desenvolverá. Esses
pressupostos balizam a extensão de nossa investigação.
1pp. O plano da natureza
governa o devir histórico;
2pp. Kant crê no
progresso da humanidade e crê que a História é dotada de um sentido ou
finalidade;
3pp. O homem é um ser
terreno dotado de razão;
4pp. O homem é o espaço
de conflito entre sua inscrição na espécie e sua inscrição no meio social;
5pp. O plano da natureza
se realiza no nível da espécie e não do indivíduo.
2. O homem como um ser conflitual
Não há dúvida de que
Kant, como homem de seu tempo, acreditava no caráter emancipador da razão. A
razão, para Kant, cumpria o papel de liberar o homem do imperativo dos
instintos. Disso não se segue que ele não tenha reconhecido a influência dos
instintos no comportamento dos homens e que não tenha admitido que os homens
não agem exclusivamente segundo princípios racionais. O excerto que referimos a
seguir não só dá testemunho de que Kant sabia que os homens nem sempre agem
racionalmente segundo um plano estabelecido entre si, como também patenteia
que, para o filósofo de Königsberg, a azáfama humana parece desprovida de
qualquer sentido.
Os homens, nos seus esforços, não procedem de modo
puramente instintivo, como os animais, e também não como racionais cidadãos do
mundo em conformidade com um plano combinado; parece-lhes, pois, que também não
é possível construir uma história segundo um plano (como, por exemplo, acontece
entre as abelhas ou os castores). Não se pode conter uma certa indignação
quando se contempla a sua azáfama no grande palco do mundo; e não obstante a
esporádica manifestação da sabedoria em casos isolados, tudo, no conjunto, se encontra tecido de loucura, de vaidade infantil
e, com frequência, também de infantil maldade e ânsia destruidora: pelo que
não se sabe, no fim de contas, que conceito será preciso instituir para si
acerca da nossa espécie, tão convencida da sua superioridade (...). (ib.id.,
grifo nosso).
Vamo-nos deter um pouco
na consideração desse fragmento. Claro está, inicialmente, que Kant estabelece
uma separação entre os homens e os animais com base em duas características: o
alcance da influência dos instintos e a ausência de um equipamento biológico
inato e determinista. Assim, os instintos não chegam a determinar o
comportamento do homem (sucede diferente – Kant quer-nos fazer crer – com os
animais: nestes, os instintos são determinantes). Acresce-se a isso que falta
ao homem um programa biologicamente constituído que o habilite para todos os
atos de sua vida. Os homens precisam aprender as formas de comportamento em
consonância com os padrões correntes em sua sociedade.
Não devemos perder de
vista certo pessimismo kantiano ao reconhecer que, no domínio da cotidianidade,
as atividades e/ou as relações humanas, quando contempladas em conjunto,
parecem “tecidas de loucura, de vaidade infantil e ânsia destruidora”. Como é
possível ao filósofo encontrar algum propósito racional a orientar as ações
históricas dos homens no cotidiano? Kant sugere um caminho: tentar descobrir se há uma intenção da
natureza que oriente o curso absurdo das coisas humanas.
O caráter conflitual do
homem, que se expressa na tensão entre sua inscrição na espécie e sua inscrição
na ordem social, é herança do trabalho da própria natureza. O homem é um ser
insociável que precisa tornar-se sociável para poder levar a efeito a
perfectibilidade de suas disposições naturais. Ocorre, contudo, que, ao se
tornarem sociáveis, os homens podem aniquilar-se uns aos outros.
Passaremos a examinar,
separadamente, as cinco proposições que, considerados os limites desse
trabalho, acreditamos contribuir para sustentação da tese aduzida por nós.
3. Análise das primeira, segunda, terceira, quarta e quinta
proposições kantianas
3.1. Primeira Proposição
“Todas as
disposições naturais de uma criatura estão determinadas a desenvolver-se alguma
vez de um modo completo e apropriado”.
Na primeira proposição,
Kant assume seu compromisso com a doutrina teleológica da natureza, à luz da
qual crê que a natureza não faz nada sem alguma finalidade. Ademais, a crença
no princípio teleológico implica a crença na regularidade da natureza. Segundo
Kant, renunciar a esse princípio implicaria não ser mais possível admitir uma
natureza regular. A regularidade da natureza, de que dá testemunho a observação,
quer externa, quer interna, dos animais, é dependente do princípio teleológico,
segundo o qual os produtos da natureza se destinam, necessariamente, a um fim.
Kant não veio a conhecer
a revolução darwiniana, razão por que não podemos responsabilizá-lo por
imperícia no exame da dinâmica da natureza. Kant acreditava numa natureza
parcimoniosa, ordenada, regular e finalisticamente constituída para produzir
seres cujas disposições atingiriam um estágio completo e apropriado. Darwin,
por sua vez, demoliu essa visão de mundo teleológica – herança aristotélica -,
ao cunhar o conceito de seleção natural. A seleção natural pode modificar
profundamente a conformação de um animal, mesmo que essa modificação só lhe
seja útil uma única vez na vida. O mecanismo de seleção natural, através do
qual se realiza a chamada evolução das
espécies, tem caráter esbanjador, desastroso e ineficiente. A seleção
natural envolve muitos desperdícios ao longo do processo, muito embora os
produtos exibam sinais de sofisticação e elegância.
Se fizemos alusão, de modo sucinto, à compreensão darwinista do mundo,
foi com o único propósito de esclarecer melhor em que horizonte hermenêutico se
movia Kant: o de uma cosmologia aristotélica. À luz desse modelo cosmológico, a
natureza constitui uma totalidade ordenada, regular e finalisticamente
orientada; em uma palavra, racional.
3.2. Segunda Proposição
“No homem (como única criatura racional sobre a terra), as
disposições naturais que visam o uso da sua razão devem desenvolver-se
integralmente só na espécie, e não no indivíduo”.
A segunda proposição kantiana se esteia nas seguintes ideias: 1) o homem
é um ser terreno dotado de razão; 2) a razão leva o homem a transcender às
coerções instintivas; 3) o plano da natureza se realiza na espécie, e não nos
indivíduos. O papel da razão na emancipação do homem relativamente à sua
herança instintual é, sobremaneira, valorada por Kant. A razão, assinala Kant,
“é uma faculdade de ampliar as regras e intenções do uso de todas as suas
forças muito além do instinto natural” (p. 5). Ocorre, contudo, que o
desenvolvimento da razão é gradual e envolve aprendizagem, tentativas, trabalho
este que, se fosse de responsabilidade de cada homem, exigiria um tempo
muitíssimo longo para que culminasse com a perfeição de todas as disposições
naturais. Mas o indivíduo é apenas um episódio no desenvolvimento da
espécie. Por isso, a natureza “necessita
de uma série talvez incontável de gerações, das quais uma transmite à outra os
seus conhecimentos, para que finalmente o seu germe, ínsito na nossa espécie,
alcance o estádio de desenvolvimento que é de todo adequado à sua intenção” (p.
5-6).
Kant acredita que a natureza tem no homem o escopo de todos os seus
esforços. A natureza, tal como Deus, não joga dados. Kant chega a atribuir à
natureza uma sabedoria que serve “de princípio para julgar todas as restantes
coisas” (ib.id.). As disposições naturais de que são dotados os seres vivos,
especialmente os homens, devem, necessariamente, ter utilidade e finalidade.
3.3. Terceira Proposição
“A natureza quis que o homem tire totalmente de si tudo o que
ultrapassa o arranjo mecânico da sua existência animal, e que não compartilhe
nenhua outra felicidade ou perfeição excepto a que ele, liberto do instinto,
conseguiu para si mesmo, mediante a própria razão”.
Novamente, aqui, Kant revela sua crença no caráter emancipador da razão.
A razão permite ao homem libertar-se do imperativo dos instintos. Há que
salientar, no entanto, uma crença que nos parece mais consistente com nossa tese,
segundo a qual Kant acredita numa natureza providente. Já de início, lemos: “A
natureza nada faz em vão e não é perdulária no emprego dos meios para os seus
fins” (p. 6). E devemos acrescentar: “Que tenha dotado o homem de razão e da
liberdade da vontade, que nela se funda, já era um indício claro da sua
intenção no tocante ao seu equipamento”.
Tal como um ser providente, que tudo dispõe segundo sua intenção e
sabedoria, a natureza
“(...) mediu com tanta
concisão o seu equipamento animal e de modo tão ajustado à máxima necessidade
de uma existência incipiente como se quisesse que o homem, se alguma vez
houvesse de passar da maior rudez à máxima destreza, à perfeição interna do seu
pensar e assim (tanto quanto é possível na terra) à felicidade, fosse o único a
disso ter o mérito e apenas a si estar agradecido; como se ela se importasse
mais a sua auto-estima racional do
que qualquer bem-estar”. (ênfase no original, p. 6-7).
Ao lermos a concepção
kantiana da natureza à luz do conceito de Providência, não ignoramos o fato de
que essa Natureza Providente está menos interessada no bem viver do homem do
que no desenvolvimento pleno de suas disposições naturais, cujo fim é levá-lo a
uma condição de bem-estar. Ao contrário do Deus Providente do monoteísmo, a Natureza
de que nos fala Kant não se ocupa em determinar a ordem dos acontecimentos do
mundo para a felicidade de cada indivíduo. A Natureza está preocupada com a
sorte das gerações futuras. Ela atua de modo a favorecer o desenvolvimento
pleno das espécies.
No tocante ao homem, a
natureza o dotou de razão e de liberdade da vontade para que ele, por si mesmo,
desenvolvesse suas disposições até o estágio de maior perfeição. Mas essa
perfeição não pode ser jamais atingida no nível do indivíduo, já que esse vive
um tempo insuficiente para o alcance dessa meta; a perfeição só pode ser
atingida na espécie, pela sucessão de muitas gerações.
3.4. Quarta Proposição
“O meio de
que a natureza se serve para obter o desenvolvimento de todas as suas
disposições é o antagonismo destas na sociedade, na medida em que ele se torna,
finalmente, causa de uma ordem legal das mesmas disposições”.
O conceito basilar desta
proposição é o de sociabilidade
insociável dos homens, que Kant define como “a sua tendência [a dos homens]
para entrar na sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência
universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade”. (p. 7). Para
Kant, “esta disposição reside manifestamente na natureza humana”. (ib.id.). A
sociabilidade insociável é expressão do caráter conflitual do próprio ser
humano. Em outras palavras, a sociabilidade insociável inscreve no homem sua
mais manifesta contradição: a de ser naturalmente propenso a viver em sociedade
(tem necessidade de conviver para sobreviver) e, ao mesmo tempo, ser propenso a
viver em estado de discórdia, de rivalidade, de conflito, que ameaça romper com
a ordem social.
O homem não é homem fora
do domínio social. A sociabilidade confere ao homem sua humanidade. No entanto
– nota Kant – o homem é naturalmente egoísta e quer “dispor de tudo a seu gosto
e, por conseguinte, espera resistência de todos os lados, tal como sabe por si
mesmo que, de sua parte, sente inclinação para exercer a resistência contra os
outros” (p. 8). Graças à razão, os homens buscam superar-se uns aos outros pela
expressão de seus talentos. A insociabilidade sociável própria do homem é uma
espécie de disposição, de que a natureza o dotou, que o leva a superar o estado
de indolência a que ele está naturalmente propenso, para, movido pelo desejo de
poder, de honras, fundar o espaço simbólico onde sua vida acontece: a cultura. É no domínio da cultura -
“valor social do homem” - que se desenvolvem gradativamente os talentos de toda
a espécie humana. O desenvolvimento desses talentos não seria possível, segundo
Kant, sem a tendência natural humana à insociabilidade. Atentemos para o
excerto em que Kant descreve o que sucederia à vida humana, se os homens fossem
carecidos dessa tendência à insociabilidade:
Sem as propriedades, em si decerto não dignas de
apreço, da insociabilidade, de que promana a resistência com que cada qual deve
deparar nas suas pretensões egoístas, todos os talentos ficariam para sempre
ocultos no seu germe, numa arcádica vida de pastores, em perfeita harmonia,
satisfação e amor recíproco: e os homens, tão bons como as ovelhas que eles
apresentam, dificilmente proporcionariam a esta sua existência um valor maior
do que o que tem este animal doméstico; não cumulariam o vazio da criação em
vista do seu fim, como seres de natureza racional. Graças, pois, à Natureza
pela incompatibilidade, pela vaidade invejosamente emuladora, pela ânsia
insaciável de posses ou também do mandar! Sem elas, todas as excelentes
disposições naturais da humanidade dormitariam eternamente, sem desabrochar
(...). (p. 8).
Nesse trecho, deve-se
reter a convicção kantiana de que a insociabilidade natural humana – com as
consequências que ela produz, a saber, a discórdia, o conflito, as rivalidades
– é condição necessária para que os homens se tornem capazes de desenvolver
suas disposições naturais. A Natureza, assim, visa sempre a aperfeiçoar as
disposições humanas, mesmo que, para tanto, tenha de servir-se das tendências
agressivas e moralmente censuráveis que existem nos homens. A Natureza, ao
contrário de Deus, não julga; não existem para ela o bem e o mal. Os males que
nascem das fontes de insociabilidade humana impelem os homens a desenvolver
seus talentos. O caráter providencial da Natureza pode ser depreendido sem
dificuldades do seguinte trecho em que Kant compara a Natureza a um “sábio
Criador”.
Os motivos naturais, as fontes da insociabilidade e da
resistência geral, de que brotam tantos males, mas que repetidamente impelem
também, todavia, a novas tensões das forças, portanto a novos desenvolvimentos
das disposições naturais, revelam de
igual modo o ordenamento de um sábio Criador; e não, por exemplo, a mão de
um espírito mau que, por inveja, tenha estragado ou danificado a sua obra
magnificente. (grifo nosso, p. 9).
A leitura atenta desse
excerto permite-nos pontuar o seguinte: 1) a Natureza tem motivos; 2) seus
motivos a levam a operar em favor do aperfeiçoamento das condições existenciais
do homem; 3) seu trabalho revela um ordenamento que parece ter sido obra de um
sábio Criador.
Resta ainda considerar
uma passagem que nos parece controversa, se considerarmos o reconhecimento
kantiano de que os homens são naturalmente propensos à insociabilidade.
Citemo-la: “O homem quer a concórdia; mas a natureza sabe melhor o que é bom
para a sua espécie, e quer a discórdia”. (p. 8). O que se segue a esse
fragmento não será objeto de nosso questionamento, já que Kant reitera algumas
ideias já contempladas neste estudo: o homem quer viver na satisfação
permanente e na preguiça, mas a natureza quer que ele “mergulhe no trabalho e
nas contrariedades” (p. 9). Ao afirmar que “o homem quer a concórdia”, Kant
assume que a vontade humana pode determinar o objeto de seu querer, sem
qualquer influência dos instintos, das paixões. Como pode o homem ter uma
propensão natural à insociabilidade, à disputa, ao conflito e, ao mesmo tempo,
querer a concórdia? O estado natural do homem é o da discórdia. Se o homem
busca estabelecer relações mais ou menos harmoniosas, amistosas com seus
semelhantes, o faz por necessidade de subsistência ou sobrevivência. A
concórdia, estado para cuja manutenção se dirigem os esforços humanos, é um
meio para a realização de fins, em última instância, egoístas. Acreditamos,
seguindo rigorosamente o pressuposto kantiano do caráter conflitual da natureza
humana – que a concórdia não resulta (pelo menos, nem sempre) do exercício de
uma atividade pessoal e consciente que visa a um propósito determinado –
exercício ao qual damos o nome de vontade. Cada homem, considerado
individualmente, quer satisfazer suas necessidades egoístas, quer realizar seus
desejos, quer obter a qualquer custo gratificação (quer poder, honra,
prestígio). A razão, no entanto, adverte cada indivíduo de que seu anseio
desmesurado por satisfação conflitua com o anseio por satisfação pelo qual os
demais indivíduos também são movidos. Como cada um quer dispor de tudo que lhe
acarrete satisfação, segue-se naturalmente daí o estado de discórdia
permanente. Viver em concórdia pode significar reduzir drasticamente o grau de satisfação
pretendido, mas é preferível a um estado permanente de conflito em que o risco
de sofrimento e morte é constante e incompatível com os anseios egoístas, para
cuja satisfação os homens concordam em suportar a proximidade uns dos outros.
Nós não temos a
capacidade de decidir sobre o que é melhor para a nossa espécie. Essa é uma
lição que devemos colher da leitura de Kant no texto sobre o qual vimos nos
debruçando neste trabalho. Mas a fé de Kant no caráter emancipador da razão, no
poder que tem ela de determinar os meios adequados para a obtenção dos fins
consonantes com um plano naturalmente fixado parece tê-lo impedido de ver que é
da natureza da razão ser irrazoável.
3.5. Quinta Proposição
“O maior
problema do gênero humano, a cuja solução a Natureza o força, é a consecução de
uma sociedade civil que administre o direito em geral”.
Nessa proposição, Kant
reitera a intenção da natureza, qual seja, que o homem desenvolva todas as suas
disposições. Mas é só na sociedade que essa intenção pode ser completamente
realizada, já que é na vida social que os homens podem vir a expressar a máxima
liberdade e coexistir sob o modo de um antagonismo universal; é também em
sociedade que se encontram os limites da liberdade individual, sem os quais não
seria possível a convivência com os outros. A Natureza, portanto, se serve da
sociedade para a realização plena de sua intenção. Segundo Kant, a Natureza só
pode cumprir plenamente sua tarefa, se a sociedade favorece a liberdade nos
limites das leis, se nela essa liberdade se acha unida a “uma constituição
civil perfeitamente justa” (p. 9).
A ideia basilar dessa
proposição é que a cultura e a ordem social são produtos da insociabilidade
humana. É necessário compreender esse ponto, já que é querer tirar da insociabilidade
a possibilidade mesma de coexistência em sociedade parece ser paradoxal. A
palavra-chave para a compreensão desse paradoxo é necessidade. Kant reconhece que os homens apreciam a liberdade
irrestrita. O estado de discórdia decorrente da propensão humana à
insociabilidade produz no homem a necessidade de sobrevivência. É essa
necessidade que coage os homens suportar a convivência uns com os outros. É
essa necessidade que os leva a abandonar sua “liberdade selvagem”. A liberdade
absoluta só se poderia expressar em um estado de absoluto isolamento, mas isso
tornaria a sobrevivência de cada indivíduo praticamente impossível. É somente
na constituição civil que os homens podem conservar algum grau de liberdade ao
mesmo tempo em que dispor das condições necessárias a sua subsistência. Na vida
social, a propensão natural humana à insociabilidade é “forçada a
disciplinar-se” (p. 10). Somente com a disciplina da insociabilidade própria do
homem pode a Natureza continuar a realizar seu plano, cujo fim é a perfectibilidade
das disposições que ela mesma inscreveu na constituição dos indivíduos de uma
mesma espécie. No entanto, esse fim só pode ser alcançado na escala da espécie,
pela sucessão de inúmeras gerações, mas nunca no indivíduo, cujo tempo de
sobrevida é infinitamente inferior ao tempo necessário à realização daquele
propósito.
4. Considerações finais
Na nona proposição, que
não pôde ser aqui objeto de nossa apreciação, dados os limites de nosso
trabalho, Kant afirma: “Um ensaio filosófico que procure elaborar toda a
história mundial segundo um plano da Natureza, em vista da perfeita associação
civil no gênero humano, deve considerar-se não só como possível, mas também
como fomentando esse propósito da Natureza” (p. 17). A Natureza tem um
propósito supremo - dirá Kant -, qual seja, a instituição de um estado de
cidadania mundial no qual “se desenvolverão todas as disposições originárias do
gênero humano”. Disso se segue que a Natureza não procede sem um plano ou uma
meta final. O sentido da História consiste na realização plena dessa meta. Ao
procurar determinar o sentido de da História a partir de um modelo teleológico
em cujo cerne está uma Natureza dotada de um plano e de um modus operandi providencial, Kant evita os problemas empíricos que
surgem da postulação de uma Providência que se encarna na pessoa de um
Deus metafísico, que é a instância
normatizadora do comportamento humano e fundamento da totalidade dos entes. Ao
assumir o caráter providencial da Natureza, Kant alija do conceito de
Providência todo compromisso com a constituição de uma totalidade ordenada
passível de ser julgada moralmente. O que Kant realizou foi a depuração
teológica do conceito de Providência, ao assumir, mesmo que no nível dos
implícitos da textualização, o caráter providencial da Natureza. Essa depuração
teológica do conceito de Providência consistiu, especialmente, em que o
trabalho realizado pela Natureza não produz uma totalidade ordenada que seja
ela mesma expressão de um modelo para o comportamento moral dos homens. O Deus
Providente da tradição cristã é fonte legitimadora dos comportamentos humanos;
é ele que garante à existência humana seu sentido. A Criação, de que esse Deus
é o agente, deve ser necessariamente boa, porque seu agente é necessariamente
bom. Ao atribuir caráter providencial à Natureza, Kant evita os problemas que
se seguem da postulação de uma Providência divina quando nos dispomos a
refletir sobre a constituição da ordem natural. O plano da Natureza é
estritamente imanente, ao contrário do plano metafísico de Deus que se expressa
na promessa de um “além”, que constitui o centro de gravidade da vida, a
instância a partir da qual o sentido da vida se justifica.
A estrutura profunda do
que podemos chamar de “mentalidade teológica” não foi de todo abandonada por
Kant, se considerarmos o fato de que Kant expressa, com formas secularizadas, o
que a teologia popular não cansa de afirmar: “Deus escreve certo com linhas
tortas” – e a Natureza, diremos com Kant, se seve dos meios pouco dignos de
apreço para atingir o melhor. Nesse sentido, a Providência da Natureza se
assemelha à Providência divina, e Kant não fez mais do que escolher um meio em
detrimento de outro para atingir seu fim: garantir que a História tem um
sentido.
[1] Ao
sustentarmos que a Natureza, no texto kantiano submetido à análise, ocupa o
lugar outrora preenchido por Deus, não se segue que a Natureza, à semelhança do
Deus judaico-cristão, tenha algum compromisso moral. A Providência da Natureza
não é semanticamente redutível à Providência divina; a relação entre as duas
formas de Providência é analógica. A Natureza é providente no sentido de que
ela dispõe os homens para que desenvolvam suas disposições naturais, seus
talentos em condições existencialmente tensionadas.