terça-feira, 29 de março de 2016

"A felicidade começa quando não mais esperamos" (Sponville)





Materialismo, desespero e solidão
Porque toda filosofia é desesperada


Se fôssemos felizes – escreve Sponville – não precisaríamos filosofar”[1] e assim prossegue:


“E se não pudéssemos sê-lo, filosofaríamos em vão. A possibilidade da felicidade define, assim, parece-me o espaço aberto à filosofia. Trata-se de pensar de tal modo que a felicidade, de possível que era, se torne real e presente, e deixe de ser esperada para ser enfim vivida. Pensar sua vida, portanto, e viver seu pensamento: prazer e grandeza da filosofia”.


É porque não somos verdadeiramente felizes que precisamos filosofar. Todavia, a filosofia seria desnecessária, se a felicidade não fosse possível. Portanto, a condição de possibilidade para o exercício da filosofia é a possibilidade da realização da vida feliz. A questão sobre como é possível ao homem fruir uma vida feliz recebeu respostas diversas ao longo da história da filosofia. Neste texto, cingir-me-ei a apresentar e a discutir a resposta schopenhaueriana.  A maneira como Schopenhauer respondeu à questão sobre como é possível uma vida feliz é, de fato, desafiadora para quem pretende rejeitá-la. Uma de minhas preocupações, neste texto, é examinar a resposta schopenhauriana. Contudo, não me limitando à abordagem da resposta schopenhaueriana,  pretendo também, neste texto, fixar as bases de uma filosofia do desespero, que tomarei, seguindo de perto Sponville, como a única orientação filosófica que atende à pretensão da filosofia de ser uma atividade que, realizando-se através de discursos e raciocínios, objetiva desilusionar aquele que a ela se entrega. Os dois interesses que me levam a compor este texto não estão, de modo algum, desvinculados. Se a filosofia se define a partir da possibilidade da experiência da felicidade, então é necessário se ocupar das duas questões seguintes: qual felicidade? e qual filosofia?. Se a filosofia, como a define Epicuro, “é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”, é forçoso pensar qual das muitas filosofias ou orientações filosóficas propostas é a mais adequada a esse fim e também que felicidade é esta que nos seria possível e à qual a filosofia, de que então nos apropriamos como nosso modo próprio de viver, nos conduziria.
É preciso dizer, contudo, que a felicidade que Sponville pensa como possível não é a de Schopenhauer. Sponville, mais próximo de Espinosa também nessa matéria, não admitirá uma felicidade sem alguma parte de desespero, isto é, a felicidade não pode ser objeto de espera; só há felicidade desesperada, enquanto esperamos ser felizes, jamais o seremos. A felicidade absoluta é impossível; só há uma felicidade relativa, isto é, somos mais ou menos felizes, dependendo da hora, das circunstâncias em que nos encontramos. O que nos propõe Sponville, correndo o risco de simplificar demais a extensão e profundidade de suas reflexões, é que esperemos um pouco menos, mesmo a felicidade. A felicidade só parece possível, segundo o filósofo, na indiferença em relação a ela. O que afasta Sponville de Schopenhauer e o aproxima de Espinosa, no que diz respeito à questão da felicidade, é a concepção de desejo. Se Schopenhaeur, seguindo Platão, pensa o desejo como carência, Sponville, seguindo Epicuro e, sobretudo, Espinosa, pensa o desejo como potência. Essas duas interpretações do desejo indicam dois caminhos distintos para a compreensão do problema da felicidade. Sponville reconhece que, em muitos casos, o desejo é carência; mas, em outros, o desejo é potência de gozar ou o gozo em potencial, sendo o prazer seu próprio ato. É com exatidão que se diz de alguém que tem potência sexual para descrever sua capacidade de desejar e de gozar. Sponville inscreve o desejo no horizonte de uma filosofia trágica, pois que o desejo como potência nos impele a amar o real, a querer o real, e renunciar a desejar o irreal. Para ele, o desejo como carência ainda se inscreve no domínio semântico da esperança e, portanto, na nossa relação com o futuro.
Não estarei, contudo, preocupado em examinar como Sponville encaminha a questão da vida feliz. É das considerações de Schopenhauer acerca da vida feliz que me ocuparei. Mas de Sponville aproveita-me a proposta de uma filosofia do desespero. Tratarei de apresentá-la, avaliando em que medida ela responde bem à concepção negativa de felicidade de que Schopnhauer, e antes dele, Epicuro, nos dá testemunho. A preferência por Schopenhauer a Epicuro no que diz respeito ao tratamento da questão da vida feliz se deve ao fato de Schopenhauer, melhor do que Epicuro, ter aprofundado o problema do sofrimento como um obstáculo à fruição da felicidade.



1. Para começo de conversa: a felicidade outrora e hoje

Não obstante serem muito diferentes das nossas as condições sociopolíticas, culturais e econômicas em que viveram os antigos gregos, a felicidade, enquanto problema filosófico e existencial, é atemporal e importa ao ser humano em todas as épocas e lugares. Quem ousaria, mesmo hoje, discordar de Aristóteles no reconhecimento de que os seres humanos desejam naturalmente a felicidade? Com o objetivo de situar a questão da vida feliz, tal como fora desenvolvida pelos antigos gregos, principiarei por delinear o modo como eles procuraram determinar as condições para alcançar a felicidade. O que farei não será mais do que uma apresentação esquemática do encaminhamento da questão sobre a felicidade na Grécia Antiga[2]. Em seguida, atendendo ao mesmo critério de brevidade, buscarei mostrar como se constitui a experiência de felicidade na chamada hipermodernidade, tempo marcado por uma “felicidade paradoxal” (Lipovetsky, 2007)[3].


1.2. A felicidade no pensamento grego

Na Grécia Antiga, foram diversos os filósofos, em momento e escolas diferentes, que se dedicaram a refletir sobre a felicidade. Pode-se dizer que, em toda a grecidade, no período que se estende dos pré-socráticos (VI a IV a.C) ao helenismo greco-romano, a felicidade foi pensada relativamente:

a) à alma. A felicidade se encontra na alma, no exercício do pensamento;

b) à virtude. Uma vida virtuosa é necessariamente uma vida feliz. A felicidade depende da moderação das paixões;
c) à noção de justiça e de sabedoria.

Em claro contraste com a felicidade de nosso tempo, a qual é atrelada à efemeridade do gozo consumista, filósofos antigos preocupavam-se em pensar a felicidade na sua qualidade duradoura. Quer fosse um estado de espírito, quer uma atividade, quer ainda uma qualidade do viver, a felicidade deveria caracterizar-se pela duração; ela deveria acompanhar o indivíduo até o termo de sua vida. Embora possamos encontrar divergências de acento nas relações entre felicidade, prazer, sabedoria e virtude, os antigos gregos concordavam em dizer que a felicidade não podia ser alcançada no acúmulo da riqueza e por uma razão simples: a posse de bens materiais é instável.  Ademais, quem cumula bens materiais teme perdê-los, e uma vida com temor não pode ser considerada uma vida feliz. Tampouco pode a felicidade ser encontrada nas honras e glórias, visto que são igualmente transitórias. Para Aristóteles, a felicidade é o sumo bem, justamente aquilo em virtude do qual tudo o mais é feito. Um bem é mais perfeito do que outros quando o buscamos por si mesmo e não em vista de outra coisa. A felicidade é, pois, um bem desse gênero; ao contrário, bens como “honra”, “riqueza”, “prazer” e “poder” são buscados tendo em vista outros bens. O homem feliz, segundo Aristóteles, é aquele que se realiza plenamente, sem de nada mais necessitar.
Para Aristóteles, a felicidade também não podia consistir no prazer, porque o prazer é efêmero, e Aristóteles supunha que a felicidade deveria ser duradoura. O que é, então, a felicidade, para Aristóteles? Ela não é um estado de alma; é uma forma de atividade. A felicidade, segundo Aristóteles, é a atividade do intelecto. Aristóteles não diverge, essencialmente, de filósofos que o precederam, como Sócrates e Platão. Mas Aristóteles não reduz a felicidade à virtude. A felicidade, para Aristóteles, consiste na atividade contemplativa, consiste em viver segundo o intelecto. A felicidade perfeita identifica-se com a excelência intelectual. Por isso, o sábio é o homem mais feliz, já que é aquele que exercita a razão teorética ou, em outras palavras, vive dedicado ao exercício da parte mais nobre de sua alma: o intelecto. O homem feliz – repito – é aquele que realiza a atividade contemplativa através do exercício da razão teorética. Ao exercitá-la, esse homem se realiza plenamente, pois que vive segundo aquilo (o intelecto, a alma racional) que, em ato, é possibilidade para a (realização da) felicidade.
Sócrates (469-399 a.C.) submeteu os prazeres à sabedoria. Seu discípulo Aristipo de Cirene (435-356 a.C.), considerando o prazer um bem em si mesmo, submeteu a sabedoria aos prazeres. Mas ambos concordavam em fazer acompanhar o gozo dos prazeres da sabedoria. Por isso, mesmo o fundador da escola cirenaica, o qual sustentava ser o prazer um bem em si, estava de acordo com seu mestre na convicção de que sem sabedoria não é possível a felicidade. E não é possível porque, sem sabedoria, não há autonomia, e, na ausência desta, o indivíduo é dominado pelos prazeres, os quais levam ao excesso, à desmesura (hýbris) e acabam, assim, por se transformar em fonte de desprazer e infelicidade.
Se Aristóteles não aceitava a redução da felicidade à virtude, concordava com Sócrates e Platão (428/427-348/347 a.C.) em estabelecer um vínculo entre felicidade, sabedoria e virtude, muito embora Platão, por razões que não cabe serem apresentadas aqui, tenha advogado que a plena felicidade só poderia ser alcançada após a morte, quando a alma se separaria do corpo, o qual lhe era um obstáculo para atingir a sabedoria plena na contemplação das Ideias. Em todo caso, os três concordavam em que somos tanto mais felizes quanto mais sábios. Não somos mais felizes porque mais jovens, ou ricos, ou ilustres. O conhecimento que possuímos leva-nos a viver uma vida virtuosa, pois que o conhecimento nos orienta para o bem viver. Destarte, somos considerados sábios, porquanto a sabedoria que possuímos permite-nos tornar-nos virtuosos. Uma vida segundo a virtude é uma vida feliz, porque conduz à prática do bem a si mesmo e ao bem da cidade. O bem da cidade consiste no respeito às leis. O cidadão grego por excelência é aquele que contribui para a elaboração das boas leis. Felizes são aqueles que agem segundo a justiça e a temperança; infelizes, por outro lado, os que são injustos e se deixam arrastar pelo vício. Quem modera seus prazeres, seus desejos e pratica o bem para si e para a pólis é, necessariamente, feliz. Platão também aqui é fiel ao seu mestre: o conhecimento é a condição para o agir bem e para o viver moderado. O conhecimento leva à sabedoria; e a sabedoria, à virtude; e, por fim, uma vida virtuosa é a própria concretização da vida feliz.
No período helenístico, Epicuro (341-270 a.C.) dirá que a felicidade consiste no prazer; mas não em qualquer prazer.[4] Pela sabedoria, o homem pode discriminar os prazeres que contribuem para a serenidade da alma dos prazeres que lhe causam perturbação. O eudemonismo epicurista aspira à autarquia, a saber, à autonomia na escolha de prazeres que produzam uma felicidade autêntica. Para os epicuristas, a condição para a vida feliz é a liberdade. Um indivíduo que se deixa dominar por suas paixões, que se entrega à desmesura de seus prazeres atrai para si mais dor que satisfação, por isso não pode ser feliz. Epicuro também rejeita estar na posse das riquezas e na abundância das coisas, ou mesmo na obtenção de cargos e do poder, a felicidade.
Os antigos gregos estavam preocupados em pensar a felicidade como uma experiência duradoura ou constante. Quando nos debruçamos sobre a questão da felicidade em nossa época, marcada fundamentalmente pelo hiperconsumo, constatamos que o gozo das alegrias e prazeres prende-se ao consumo de mercadorias. Mas as mercadorias – o sabemos bem, sem necessitar de muita elaboração teórica – são coisas que, em pouco tempo, se tornam obsoletas. Assim como as mercadorias são dotadas de um prazo de validade, assim também nossas alegrias a elas associadas dão lugar, em pouco tempo, ao sentimento de vazio, ao tédio, à insatisfação. Os prazeres que o consumo das mercadorias nos promete são tão efêmeros quanto as próprias mercadorias consumidas. Em tais condições, é inevitável que o indivíduo experiencie o sentimento de vanidade em um modo de viver que consiste em consumir mais e mais na esperança de fruir uma felicidade duradoura que, embora prometida pelo hipercapitalismo, jamais pode ser alcançada . Descerei a considerações sobre nossa atual experiência de felicidade, doravante.


1.3. A felicidade na hipermodernidade

O que Lipovetsky chama cultura globalizada surge e se desenvolve a partir da década de 1980 como uma cultura desprovida de fronteiras. Seu contexto sócio-histórico é estruturado pelos domínios axiomáticos a) do hipercapitalismo, força que impulsiona a globalização financeira, b) da hipertecnização, grau superlativo da universalidade da técnica moderna; c) do hiperindividualismo, supervalorização do indivíduo então liberto das coerções comunitárias à moda antiga; d) do hiperconsumismo, a forma hipertrofiada do hedonismo mercantil.
Essa cultura globalizada tem como meta a produção e a satisfação de uma sociedade universal de consumidores. Mercado, tecnociência e indivíduo constituem os princípios organizadores dominantes que deram origem a uma “cultura-mundo”, sem par na história. É nessa cultura-mundo que o homem experiencia um “novo mal-estar na civilização” (Lipovetsky, 2011, p. 32).
Em nossas sociedades hipermodernas, hiperindividualistas, hiperconsumistas e democráticas, nas quais a promessa de felicidade é extensiva a todos e os prazeres se acham disponíveis e são celebrados por toda parte, multiplicam-se as experiências deceptivas, quer na esfera pública, quer na esfera privada. Segundo Lipovetsky, o indivíduo hipermoderno, malgrado viver em condições sócio-históricas nas quais são inúmeras as ofertas de felicidade aqui na terra, não experimenta senão uma “felicidade paradoxal”: “a sociedade da distração e do bem-estar coabita com o aprofundamento da dificuldade de viver e do mal-estar subjetivo” (Lipovetsky, 2012, p. 26).
Na sociedade hipermoderna, a multiplicação de experiências deceptivas se acompanha da ausência de dispositivos institucionalizados que serviriam para amenizá-las. Nessa sociedade, os dispositivos de socialização e consolação religiosas se enfraqueceram e, em lugar destes, nossas sociedades hipermodernas dispõem de meios de estimulações incessantes para consumir, fruir e mudar. Destarte, “quanto mais se multiplicam as vivências deceptivas, mais são os numerosos convites para agir e as ocasiões de distração e de prazer” (Ibidem, p. 29).
O homem hipermoderno é um indivíduo constantemente estimulado a procurar a felicidade e cujo desejo de obtê-la é incessantemente renovado. A felicidade é prometida no próprio prazer de consumir. Esse homem ávido de consumir, ávido de prazeres cada vez mais intensos, convencido de conseguir fruir a felicidade prometida pelo mercado, é, no entanto, exposto às amarguras do presente, ao desencanto dos sonhos destruídos.

“Enquanto ser de desejo cuja essência é negar o que é – Sartre dizia do homem que ele não é o que é e é o que não é – o homem é um ser que espera e que, assim, não pode escapar à experiência da decepção. Desejo e decepção andam lado a lado, a diferença entre expectativa e real, princípio de prazer e princípio de realidade, raramente é satisfeita. (Lipovetsky, 2012, p. 27).


O hipercapitalismo, que produz este tipo consumidor das sociedades hipermodernas, promete-lhe a felicidade na busca de prazeres renovados, na busca de experiências sensitivas ou estéticas, comunicacionais ou lúdicas. Esse consumidor consome excitações e sensações, as quais são as mercadorias vendidas; ele é um comprador de experiências vividas. O consumidor das sociedades hipermodernas é um “colecionador de experiências” (Lipovetsky, 2007, p. 68).
Se as promessas de felicidade são extensivas a todos, nem todos podem desfrutá-la. Uma vez que a felicidade, numa sociedade hipermoderna, é associada ao consumo de bens e lazeres, os que não podem beneficiar-se dele, vivem num estado de frustração, autodesqualificação e fracasso pessoal permanente. Nem todos podem ser bons consumidores; portanto, nem todos podem provar de sua fatia de felicidade. O capitalismo do hiperconsumo, segundo nota Lipovetsky, se, por um lado, faz desaparecer a miséria absoluta; por outro lado, “aumenta a miséria interior, o ressentimento de viver uma “subexistência”” (Lipovetsky, 2011, p. 61). Miséria interior e ressentimento de viver uma “subexistência” são os mal-estares daqueles que se veem privados do acesso à felicidade consumista. Ainda segundo Lipovetsky, “a sociedade do hiperconsumo é a do “sempre mais”, mas não há “sempre mais felicidade” (ibidem).
Sucede, então, que a corrida em larga escala de consumidores ávidos de consumir cada vez mais não acarreta o aumento da felicidade, a despeito das promessas do mercado. O que, na verdade, esse consumo desenfreado assegura é a reprodução da esperança de que, na próxima compra, o consumidor conseguirá alcançar a tão anelada felicidade. O capitalismo produz, assim,  no consumidor as necessidades de consumir que ele acredita serem suas. Assim, o que o consumidor deseja é experienciar os prazeres que se lhe afiguram na imaginação, e cada novo produto que consome se apresenta a ele como uma possibilidade de satisfazer esse desejo. Acontece que logo experimenta a desilusão após uma compra, razão por que está sempre ávido de obter novos produtos prometedores de satisfação de desejos sempre renovados. Se o homem é, essencialmente, um ente desejante, ele não pode parar de desejar. Mas, enquanto ser desejante, porque todo desejo – se acompanharmos Platão – é carência, o homem está continuamente em estado de carência, e a satisfação obtida é sempre temporária. Numa sociedade de consumidores, o mercado precisa manter os indivíduos sempre num estado desejante (carência), produzindo neles necessidades ilimitadas e insaciáveis. O mercado capitalista aspira ao crescimento permanente e, para consegui-lo, precisa produzir nos consumidores uma ansiedade por satisfação de suas necessidades, algum dia.


2. Uma felicidade desesperada

Desespero quer dizer “não mais esperar”. Quem espera, ou seja, quem tem esperança tem medo. Esperança e medo são afetos inseparáveis. Assim, quem espera tornar-se rico tem medo, ao mesmo tempo, de ficar pobre. Onde há esperança há medo. Desespero quer dizer, portanto, nada a temer, nada a esperar. Não devemos atribuir à palavra desespero o sentido que tem no colóquio. As pessoas, em geral, se habituaram a falar de desespero como um sentimento de “desesperação”, “angústia”, “infelicidade”, “tristeza”. Devemos rejeitar a atribuição de tais significados à palavra “desespero”, se quisermos compreender o alcance existencial de uma filosofia do desespero. Trata-se de nos atermos ao significado etimológico de “desesperança”.
Costuma-se dizer que o desesperado é mais suscetível ao suicídio, que um homem se mata por desespero. Mas o bom senso contraria essa compreensão. Se esse homem estivesse verdadeiramente desesperado, a vida lhe seria indiferente e a morte não se lhe afiguraria como uma solução. Quem se suicida crê que a morte é sua única esperança. Habituamo-nos a pensar que o otimismo é a garantia de felicidade, que é preciso ver a vida sempre “pelo lado bom”, que é preciso sempre ter a esperança de que as coisas se encaminharão para o melhor, isto é, para a satisfação de nosso desejo. Na dóxa, todos somos prisioneiros da esperança. A verdade parece ser outra: as pessoas não se matam por desespero, mas por decepção. Segundo Sponville (2001, p. 407):


“As pessoas só querem morrer por demasiadas esperanças frustradas (é por isso que os verdadeiros pessimistas não se suicidam (...) ou quando a vida , tornando-se difícil ou dolorosa demais, não deixa mais nada a esperar, salvo o próprio nada – mas ainda é uma esperança!”


O desespero, no significado que lhe empresto no contexto desta discussão, pretende redefinir nossa relação com o tempo. O homem desesperado é alguém liberto do futuro que nos atormenta, dos sonhos que nos distanciam da vida aqui e agora. O homem desesperado é alguém reconciliado com o presente, isto é, com o real. O real deverá ser entendido à luz da filosofia materialista clássica. Antes, porém, de esclarecer o que devemos entender por real, necessário será elucidar os outros dois domínios previstos por uma filosofia do desespero: a solidão e o materialismo.
O desespero é, portanto, abandono das esperanças, abandono, fundamentalmente, de toda e qualquer esperança religiosa. Solidão é o que resulta da constatação, sempre difícil e dolorosa, de que entre dois indivíduos jamais há qualquer transparência. Solidão quer dizer: impossibilidade de qualquer comunhão ou fusão absoluta com o outro. Desespero, materialismo e solidão são ideias que se assentam numa recusa. No respeitante ao materialismo, desde Demócrito, Epicuro e Lucrécio, ser materialista é recusar as superstições, as teorias idealistas, finalistas e religiosas. Não há Espírito imaterial; não há divindades; não há mundo inteligível nem valores absolutos. O materialismo celebra a positividade do real, e o real “é o que resta... quando nos calamos” (Sponville, 2001, p. 402).
Os antigos gregos estavam de acordo quanto a esta proposição: nada nasce do não-ser. O ser é eterno. O materialismo, o desespero e a solidão negam o que não é e, por isso, afirmam a totalidade do que é; em uma palavra, o real mesmo, tal como é e aparece para nós.
Para os materialistas, particularmente Epicuro, nossa imaginação, as ilusões de nossos sentidos, os terrores de nossa alma são reais. Não são as imagens, as ilusões ou as percepções que são falsas ou verdadeiras. As qualidades de falso e verdadeiro só se aplicam às proposições ou juízos que formamos com base em nossas percepções ou imagens. Portanto, dizemos que este enunciado ou juízo é falso ou verdadeiro. O real é, necessariamente, verdadeiro. Assim, o real não se presta à distinção entre falso e verdadeiro. O real tal como é e aparece e porque é e aparece é verdadeiro.
O que é, então, o real, à luz do materialismo? O real é o que resta quando silenciamos todo dizer a respeito dele. O real é o silêncio. O silêncio é o próprio real quando calamos todo palavrório a respeito dele. Podemos, agora, compreender o que nos escreve Sponville no seguinte excerto:


“Começar pela angústia, começar pelo desespero: ir de um ao outro. Descer. No fim de tudo, o silêncio. A tranquilidade do silêncio. A noite que cai aplaca os temores do crepúsculo. Não mais fantasmas: o vazio. Não mais angústia: o silêncio. Não mais perturbação: o repouso. Nada a temer; nada a esperar: Desespero.” (Sponville, 2001, p. 15).


Esse começo pela angústia é o da solidão que eu sou. Na solidão, se me revela o nada que eu sou. A verdade da angústia é o vazio em mim de minha presença; porque nada sou, nada há em mim a descobrir, nada a compreender, nada a conhecer. Solidão da angústia: a alma não existe. O desespero é a perda da esperança – está claro. Mas é preciso acrescentar que o desespero não é um estado; é uma ação. Materialismo e desespero se encontram na recusa de toda ilusão, de toda superstição, de toda esperança. A natureza é indiferente. O materialismo é a própria desilusão. Sponville nos dá testemunho de que nosso tempo ainda é incapaz de se apropriar do ensinamento materialista com todas as suas consequências:


“Nosso tempo não é o do desespero, mas o da decepção. E da decepção suprema: a de não sermos imortais. É que esperamos demais, sempre demais. Empurramos nossos rochedos, e ei-los que tornam a cair... Mas de que outro modo poderiam fazer? São rochedos... E tornamos a descer com eles, chorando sobre nossas ilusões perdidas e já sonhando com as próximas...”. (Sponville, 2001, p. 35-36).


Compreendamos o que é este silêncio de que nos fala Sponville. Insistirei neste ponto: o silêncio é o real, é a verdade quando suprimimos nossos signos (palavras), nossas lembranças ou nossas esperanças; o real é pura imediatidade de sua presença. O real é o silêncio, porque o real não tem nada a nos dizer. No silêncio, tudo se equivale (e não vale nada). O real não tem sentido. Sentido quer dizer finalidade, significação e valor. A verdade, a cujo desvendamento aspira toda empresa filosófica, está, para os materialistas, “no fundo do abismo”. Entendamos: ela não só é difícil de conhecer, como também é independente de qualquer juízo ou de qualquer discurso. A verdade habita o silêncio - sem significação, sem valor e sem finalidade - do real.
Para os materialistas, o essencial não é a filosofia, mas a sabedoria; não é o pensamento, mas a vida.  A filosofia deve ser uma arte de viver e isso se chama ética. Trata-se de pensar nossa vida e viver nosso pensamento. Uma filosofia que tem em vista a si mesma não tem valor algum.
O que pretende o materialismo?[5] O materialismo, em filosofia, é, fundamentalmente, ateísmo. Seu princípio consiste em submeter o pensamento unicamente à verdade. A felicidade não é a norma (devo ser feliz, tenho de ser feliz). Assim, a filosofia não deve ter em vista a felicidade; esta é acrescentada à submissão do pensamento à verdade. A norma do pensamento filosófico é a verdade.
Não é que não possamos querer a felicidade; mas trata-se de querê-la não na forma de consolo, de esperança ou da fé. A esperança acompanha a religião: a felicidade é, assim, aguardada para um além-mundo. O materialismo é um ateísmo generalizado que recusa tomem-se os desejos pelo real. O materialismo disjunge o ser e o valor, o verdadeiro e o bem, o real e o sentido. O materialismo não toma o valor por verdadeiro, já que os valores não dizem respeito ao conhecimento, mas ao desejo. Desejamos uma coisa não porque ela vale, mas é porque a desejamos que ela vale. O real é objeto de conhecimento e indiferente ao nosso desejo. Nenhuma verdade é normativa; nenhuma norma é verdadeira.


“Ser materialista, portanto, é recusar não apenas o Bom Deus, mas também todas as divindades substitutas (a boa historia, a boa ciência, a boa razão, o bom inconsciente...) (...) Porque toda religião é feita de esperança, todo materialismo é feito de desespero ou, dá na mesma, de desilusão. É o que eu chamaria, com muito gosto, após Freud e num sentido mais geral, de trabalho de luto. Quem pode desesperar sem sofrer?” (Sponville, 2001, p. 411).




 2.1. Uma sabedoria desesperada


Há um ponto pacífico entre os filósofos materialistas: não há sabedoria sem felicidade. Uma vez que admitamos essa proposição, precisamos dar conta de duas questões que ela implica. A primeira delas é a seguinte: qual é a sabedoria que pode nos encaminhar à felicidade? E a segunda questão é: que felicidade nos é possível?
No tangente à sabedoria, importa entender que só há felicidade na sabedoria desesperada. Em primeiro lugar, porque o sábio não carece de nada, não precisa esperar nada. Nós só esperamos aquilo que não temos; e o sábio não tem falta de nada. É porque não tem falta de nada que o sábio é plenamente feliz.
Não carecendo de nada, o sábio é desesperado; porque é desesperado, nada lhe falta. A felicidade do sábio é desesperadora, porquanto se realiza quando já não mais aguarda nada. Basta o real, isto é, o presente. Avancemos um pouco mais esse raciocínio. A sabedoria materialista é desesperada também porque recusa qualquer esperança. Ora, a esperança é desejo sem gozo. A esperança é desejo que remete ao futuro. Enquanto esperamos, carecemos daquilo que esperamos possuir. Ninguém espera o que tem e o que faz. Toda esperança é, portanto, carência. Esperança é não só desejar sem gozar, é também desejar sem poder e sem saber. A esperança é desejo que remete ao futuro e é em relação ao futuro que somos impotentes. O futuro é objeto de desejo e de ignorância, já que desejamos aquilo que não temos (que esperamos ter) e do futuro nada sabemos.
O sábio não é livre da esperança por saber tudo, nem por poder tudo. Ele é livre de esperança, porque cessou de desejar outra coisa além do que ele sabe ou pode. Trata-se de desejar um pouco menos e de querer um pouco mais. Em filosofia, o querer é a vontade; e, embora a vontade seja desejo, nem todo desejo é vontade. Vontade ou o querer é o ato mesmo do desejo ou, se preferirmos, o ato da vontade.  O desejo pode ser conflituoso: posso desejar comer e não comer, posso desejar sair para dançar e desejar ficar em casa ao mesmo tempo. Mas não posso querer sair para dançar sem já tomar a resolução de fazê-lo. Na vontade, causa e efeito são simultâneos: querer estender o braço é estender o braço, ou, havendo algum obstáculo que me impeça de fazê-lo, é esforçar-se por estendê-lo. Que a vontade não é livre é o que pensam filósofos como Espinosa e Nietzsche. Para Nietzsche, nossos valores, mormente, nossas paixões determinam nosso querer. Que a vontade seja determinada por paixões, apetites, pulsões, valores basta para nos libertar da crença no livre-arbítrio; mas afirmar que a vontade não é livre não significa negar que a vontade é ativa. A vontade é simultânea à ação. Se nossos desejos são muitos e podem ser contraditórios, a vontade é uma, ou não é. A vontade é o próprio desejo, mas apenas enquanto age.

2.2. A felicidade negativa

Todos os homens desejam naturalmente ser felizes. A felicidade é o sumo bem, aquele a que todo homem tende por si mesmo, e não em vista de outra coisa. A felicidade é o que desejamos absolutamente; é o bem que se busca sem ter em vista outra coisa. A felicidade é sempre desejável em si mesma; é o mais desejável de todos os bens. Eis o que, em síntese, nos ensinou Aristóteles. Mas o desejo, mantém Platão, é carência, já que desejamos o que não temos. Porque o desejo é carência, e a felicidade é o bem que mais desejamos, resulta que a felicidade nos escapa. O desejo é carência, logo sempre nos falta o que desejamos (carência é sofrimento). Enquanto desejamos, carecemos e sofremos por não ter aquilo que desejamos. Carecer do que desejamos é uma infelicidade. Seríamos, então, felizes quando obtivéssemos aquilo que desejamos? Será que a felicidade depende da satisfação de nosso desejo?
Schopenhauer mostrará que não. O homem é desejo e desejo é carência. Todo desejo tem por princípio uma necessidade, uma carência, uma dor. A carência é sofrimento; a satisfação é prazer. Mas a felicidade não se segue da satisfação do desejo. É que nenhuma satisfação é duradoura. Tão logo estejamos satisfeitos, somos arrastados por um novo desejo, e nos encontramos novamente em carência. A satisfação que suprime momentaneamente a carência (o desejo) não é a felicidade certamente. A satisfação suprime o sofrimento da carência; todavia, o que ela carreia é o tédio. Em vez da felicidade esperada, estando satisfeito o desejo, o que resta é a marca do desejo desaparecido. A felicidade nos falta quando sofremos e nos entediamos quando, satisfeitos, não sofremos mais. Destarte, o sofrimento é carência de felicidade; e o tédio, ausência da carência da felicidade. A ausência da ausência (carência) é ainda uma ausência. Não escapamos ao ciclo do ‘desejo-satisfação-tédio-desejo’. Nossa condição é de seres continuamente desejantes e perpetuamente insatisfeitos: ou desejamos o que não temos e sofremos por causa dessa carência; ou temos o que não mais desejamos (porque temos), e nos entediamos.
Schopenhauer, portanto, conduz-nos à conclusão de que a felicidade simplesmente não existe, ou só existe na imaginação, visto que a felicidade sempre falta, no desejo, que é carência e sofrimento, ou no tédio, quando satisfeita a carência, não há mais a condição prévia para o gozo. Toda felicidade repousa na esperança; e a vida é decepção. Atentemos para o que nos escreve Schopenhauer em Do mundo como Vontade e Representação (2012):

“A vida humana transcorre, portanto, toda inteira entre o querer e o conquistar. O desejo, por sua natureza, é dor: a satisfação bem cedo traz a saciedade. O fim não era mais que miragem: a posse lhe tolhe o prestígio; o desejo ou a necessidade novamente se apresentam sob outra forma, que do contrário vem o nada, o vazio, o tédio, e contra isto é tão penosa a luta como contra a miséria” .(p. 82).


Se nenhuma satisfação garante o prazer duradouro, a felicidade desejada, se em cada desejo satisfeito, o homem se vê, em pouco tempo, entediado, condição da qual só escapa quando lhe sobrevém outro desejo, outra carência, deve o homem não mais perseguir prazeres. “O sábio não persegue o prazer, mas a ausência de dor”, lição esta que Schopenhauer toma da pena de Aristóteles. A eudemonologia schopenhaueriana combina entre si a ética aristotélica, a ética epicurista e a ética estóica. Schopenhauer, seguindo de perto Aristóteles e Epicuro, aconselha-nos a fixar nossa atenção não nos gozos e diversões, mas nos meios de evitar males possíveis e inumeráveis. É o que podemos ler no trecho abaixo, colhido de A Sabedoria da Vida (2012):

“Assim, pois, quando se quer fazer o balanço da vida, do ponto de vista eudemonológico, não temos que levar em conta os prazeres que saboreamos, mas os males que conseguimos evitar”. (p. 118).


A eudemonologia é o tratado da vida feliz, e “vida feliz”, para Schopenhauer, significa vida “menos desgraçada”, isto é, tolerável.

“O homem mais feliz é, pois, aquele que passa a vida sem grandes dores, tanto morais como físicas, e não o que tem de sua parte as alegrias mais vivas e os gozos mais intensos”. (p. 119).




Por que devemos evitar os júbilos excessivos? Devemos evitá-los, diz-nos Schopenhauer, porque eles assentam na ilusão de termos encontrado na vida a satisfação durável dos desejos, mas a satisfação durável é impossível. As dores excessivas também fundam-se na ilusão de sua permanência. A sabedoria de vida schopenhaueriana propõe-nos, portanto, uma felicidade negativa. A tese em que se estriba essa sabedoria se topa no seguinte excerto, colhido de A arte de ser feliz (2001):

“O caminho da sabedoria de vida consiste em partir da convicção de que toda felicidade e todo prazer são de natureza apenas negativa, enquanto a dor e a indigência têm caráter real e positivo. Partindo-se desse pressuposto, todo projeto de vida direciona-se com a intenção de evitar a dor e de afastar a indigência; nesse sentido, pode-se obter algum resultado, mas isso só é possível com certa segurança se o projeto não sofre a interferência da aspiração à quimera da felicidade positiva”. (p. 62).



Enfatize-se que, para Schopenhauer, a felicidade positiva é uma quimera. Uma felicidade positiva é uma felicidade que teria um conteúdo determinável (é isto ou aquilo...); é uma felicidade que experienciaríamos pela fruição de prazeres, de alegrias que nos encheriam a alma de satisfação. Mas todo prazer possível ou toda felicidade real consiste na ausência de perturbação da alma e do corpo. No primeiro caso, temos o que os gregos chamavam de ataraxia; no segundo, aponía. A felicidade negativa consiste, portanto, na ausência de perturbação e de dor na alma e no corpo. Essa felicidade se diz negativa porque se define pela ausência daquilo que não é ela (a dor, a perturbação, o sofrimento). Estou feliz se me encontro num estado anímico de serenidade, se nada me perturba a harmonia da alma com o corpo. Aqui Schopenhauer é claramente um epicurista: o sumo prazer consiste na ausência de dor. A única felicidade possível ao homem consiste em encontrar-se no estado de impertubabilidade, de serenidade. Schopenhauer foi um grande especialista no drama da condição humana. Na máxima 16 de seu A arte de ser feliz (2001), o filósofo escreve:



“Todos nós nascemos na Arcádia, todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e prazer, e conservamos a insensata esperança de fazê-las valer, até o momento em que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é nosso, mas tudo é dele, uma vez ele detém um direito incontestável não apenas sobre nossas posses e nossos ganhos, mas também sobre nossos braços e nossas pernas, nossos olhos e nossas ouvidos, e até mesmo sobre nosso nariz no centro do rosto. A experiência vem em seguida e nos ensina que a felicidade e o prazer não passam de uma quimera, mostrada a distância por uma ilusão enquanto o sofrimento e a dor são reais e manifestam-se diretamente por si só, sem a necessidade da ilusão e da espera. Se seu ensinamento se torna infrutífero, deixamos de buscar a felicidade e o prazer e passamos a nos preocupar apenas em fugir ao máximo do sofrimento e da dor”. (p. 47).



A Arcádia era uma província grega que veio a se tornar pela pena dos poetas e artistas do Renascimento e do Romantismo uma região imaginária, um ambiente idílico onde reina a felicidade, onde desejamos estar para desfrutar da paz e da vida simples. Buscamos avidamente o prazer e, uma vez que nós consigamos dele desfrutar, desejamos permanecer nesse estado indefinidamente; portanto, nessa Arcádia. Mas a realidade (ou o destino) manifesta-se em desacordo com nosso desejo. Somente a dor e o sofrimento são positivos (isto é, reais); a felicidade é uma quimera, e a experiência por si mesma o prova. Schopenhauer pede-nos que não ignoremos o que a experiência nos ensina. Uma vez acolhamos o ensinamento da experiência, devemos nos preocupar em escapar ao máximo do sofrimento e da dor – “porque o melhor meio de não ser infeliz é não desejar ser muito feliz”. Se o destino é que determina todo o curso de nossas vidas por uma necessidade inflexível, devemo-nos contentar com um presente tranquilo e sem dor. Se pudermos desfrutar desse presente, devemos fazê-lo sem ansiar por alegrias imaginárias e sem nos preocupar com o futuro, sempre incerto, dado que, em que pese aos nossos esforços, o futuro não depende de nós, mas é inteiramente jurisdição do destino.
A filosofia schopenhaueriana pode ser interpretada como o enfrentamento de uma única verdade, que constitui seu postulado, tomado ao ensinamento budista: viver é sofrer. O pensamento de Schopenhauer foi devedor do misticismo oriental, particularmente do hinduísmo e do budismo. O budismo mantém que toda existência é sofrimento, e a origem do sofrimento está no desejo. A primeira das Quatro Nobres Verdades budistas reza que “nascer é sofrer, envelhecer é sofrer, morrer é sofrer”. “O sofrimento tece as malhas da existência” – esta minha frase, que se me formou no espírito há alguns anos, reverbera o ensinamento budista e schopenhaueriano. Viver é, essencialmente, sofrer – o budismo o reconhece e Schopenhauer o demonstrará. Buda ensinou que toda a existência é impregnada de sofrimento, porque tudo é passageiro. Quem não consegue compreender que o mundo é inadequado ao homem é uma pessoa cega. Budismo heraclitiano: a realidade está em constante mudança; tudo muda, nada permanece. Tudo aquilo que amamos e a que nos apegamos simplesmente não vai durar. Nisso consiste a fragilidade da vida: a vida é um fluxo constante que pode cessar num átimo.
Para Buda, o sofrimento tem sua origem no desejo. Desejo envolve, sobretudo, ânsia de prazeres sensitivos, físicos. O problema é que esse desejo nunca é plenamente saciado, e a insaciabilidade do desejo acarreta sempre um sentimento de desprazer. Até mesmo o desejo de sobrevivência mantém o sofrimento. Quem se apega à vida, crendo possuir uma alma, permanece no sofrimento. Mas o suicídio – e aqui também podemos ver a influência do pensamento budista sobre a filosofia de Schopenhauer – não é uma solução. Quem atenta contra a própria vida ou comete suicídio permanece atado à existência. Em primeiro lugar, porque o desejo de matar-se ou o próprio suicídio envolve a crença de que o ser humano tem uma alma que pode ser eliminada. Em segundo lugar, porque aquele que deseja se matar ou que se mata não leva em consideração o carma. O suicídio, assim, não liberta a pessoa do samsara, isto é, do ciclo de renascimentos. O budismo não oferece paraíso; não há milagres nem vida além-túmulo. A morte, para o budismo, “é dissolução da forma perceptível aos nossos sentidos, de um agrupamento de elementos que vão se reagregar em novas combinações” (Barbeiro, 2009, p. 64). Schopenhauer anuirá tanto à necessidade de fazer cessar o que, em sua linguagem, chamará de “vontade” (o querer-viver), quanto à rejeição do suicídio como solução para os tormentos da vida. Aqui não é o lugar para me deter na apresentação das razões por que Schopenhauer, a exemplo da doutrina budista, rejeita o suicídio; mas o essencial pode ser dito assim: o suicídio é um ato inútil porque elimina o fenômeno individual, mas não a vontade de viver, a qual permanece in aeternum.
Feita essa incursão pela influência budista no pensamento schopenhaueriano, podemos compreender melhor por que, em Schopenhauer, a sabedoria da vida que pretende nos iluminar o caminho para a felicidade não pode esquivar-se do enfrentamento do maior dos problemas: viver é, essencialmente, sofrer. A influência budista repercute claramente no pensamento schopenhaueriano no seguinte trecho, colhido de As dores do mundo (2014):


Querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida. A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina: uma história natural que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados”. (grifos meus, p. 39).



Ensina Schopenhauer que o homem que superou o egoísmo com base no qual se via como distinto do resto mundo pode apropriar-se da dor universal, isto é, pode compreender que a dor, o sofrimento e os tormentos infinitos são extensivos a todos os seres que possuem vida. Este homem “vê tudo quanto existe condenado a contínuo aniquilamento, a vãs esperanças, ao autoconflito e à dor sem trégua” (Schopenhauer, 2012, p.167). Esse homem, no qual o princípio de individuação atingiu os limites extremos, permitindo-lhe compreender que a vontade é idêntica em todos os seus fenômenos, é, enfim, capaz de reconhecer que a dor é a essência da existência. Para onde quer que olhe, verá o animal sofrer e o mundo dissolver-se. Nas palavras de Schopenhauer, “a visão já não lhe está constrita sobre a sua felicidade e desventuras pessoais, como sucede com aqueles que o egoísmo domina para sempre”. Superado o egoísmo, o homem torna-se capaz de compaixão: ele se compadece de todo sofrimento que faz gemer os viventes suscetíveis à dor. Essa ética baseada no reconhecimento do caráter universal da dor, que levaria o homem a se solidarizar com o sofrimento dos viventes mais suscetíveis a ela, é incompatível com uma compaixão cristã, que se inscreve num horizonte hermenêutico à luz do qual o sofrimento deve ser portador de um sentido e que, a despeito disso, não pode (ou pouco pode) explicar o sofrimento dos animais. A dor e o sofrimento não têm sentido. Dor e sofrimento são constitutivos do tecido do real, e justamente porque são constitutivos do real, que é silêncio, que não tem sentido, não podem também fazer sentido algum.
Dispensando atenção ao excerto supracitado, gostaria de dilucidar os seguintes fragmentos: 1) “querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda existência é essencialmente dor”; 2) “quanto mais elevado é o ser, mais sofre”; 3) “a vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida”. Com vistas a esclarecer esses três fragmentos, preciso dizer, desde já, que Schopenhauer concebe a vida como uma luta incessante entre nascimento e morte. Nascimento e morte equilibram-se como dois polos do fenômeno total da existência. Essa compreensão do viver Schopenhauer deve ao ensinamento hinduísta.
Intentando esclarecer os três fragmentos destacados do excerto supracitado, precisarei lançar algumas luzes sobre o conceito de Vontade, que constitui o alicerce de todo o pensamento metafísico de Schopenhauer. Schopenhauer empreende sua investigação sobre o mundo segundo dois pontos de vista: o da representação e da Vontade. O mundo como representação, isto é, o mundo fenomênico, o mundo tal como aparece para o sujeito cognoscente é a objetivação da Vontade. A Vontade é, então, a coisa-em-si, a essência do mundo. Schopenhauer define a Vontade (com “V” maiúsculo) não como a vontade do homem, embora o indivíduo humano seja a manifestação fenomenal da Vontade, mas como a essência do Universo; a Vontade é aquilo que é comum a todos os fenômenos. Cada indivíduo é a manifestação específica da Vontade que anima todo o Universo.
Schopenhauer escreverá “meu corpo e minha vontade são a mesma coisa”. O corpo se dá ao sujeito do conhecimento sob dois modos: como representação no conhecimento fenomênico, isto é, como objeto entre outros objetos no mundo; e como Vontade. A ação do corpo é a Vontade objetivada. A Vontade é o querer-viver, a tendência à vida por parte de toda criatura. A Vontade é impulso de ser, de viver e de agir. Ela sustenta o mundo, torna-o fecundo e diversifica-o. A Vontade, no entanto, está fora do tempo e do espaço, embora as formas de sua objetivação ocupem o espaço e o tempo. A Vontade permeia todo o mundo inorgânico e orgânico. No primeiro, por meio de causas; no segundo, por meio de motivos. Aprofundemos um pouco mais a compreensão do conceito de Vontade, lendo o que a respeito dele nos escreve o próprio Schopenhauer:


“A vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente; é uma simples tendência, cega e irresistível, a qual encontramos tanto na natureza do reino inorgânico e do vegetal e nas suas leis, como também na parte vegetativa da nossa vida; mas pelo acréscimo do mundo da representação que se desenvolveu pelo seu uso, ela adquire a consciência do seu querer e do objeto do seu querer; reconhece que aquilo que quer não é outra coisa senão o mundo e a vida como são; dizemos, por isso, que o mundo visível é a sua imagem ou a sua objetividade; e como o que a vontade quer é sempre a vida, pois que a vida para a representação é a manifestação da vontade, resulta que é indiferente e constitui puro pleonasmo se em vez de dizer “a vontade”, dissermos “a vontade de viver” (grifos meu, Schopenhauer, 2012, p. 31)


O que quer a Vontade? Quer o mundo e a vida como são. Quer encontrar na matéria seu meio de manifestação. A Vontade é o mesmo que “vontade de viver”. A Vontade é a coisa-em-si, a substância, a essência do mundo. A vida, o mundo visível ou o fenômeno é o espelho da Vontade. Vida, mundo ou fenômeno é inseparável da Vontade, tal como é a sombra inseparável do corpo: “onde houver Vontade, haverá também vida, mundo”. A vida é garantida pelo querer viver. A Vontade não quer senão a vida; a Vontade é um querer-viver incessante.
Tudo quanto a natureza compreende, isto é, o conjunto dos fenômenos, é absolutamente necessário. O mundo fenomênico é regido pela lei da causalidade. O mundo, com todos os seus fenômenos, é objetivação da Vontade, mas a Vontade, porque não é nem fenômeno, isto é, representação, nem objeto, mas a coisa-em-si, não está submetida ao princípio da razão; por conseguinte, a Vontade não é efeito de uma causa e, por isso, necessariamente, a Vontade é livre: “qualquer coisa, como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessária: em si, a vontade é inteiramente e eternamente livre.” (Schopenhauer, 2012, p. 46).
A Vontade não é objeto de conhecimento intuitivo, dado que esta forma de conhecimento está ligada às condições de tempo e espaço. Todavia, podemos apreender a presença da Vontade em nós e nos outros corpos da natureza. A Vontade atua no mundo inorgânico por meio de causas e na vida animal por meio de motivos. No mundo vegetal, ela se manifesta através da excitação ou irritabilidade. Também verificamos a excitação na parte vegetativa da vida animal, de modo que a excitação (ou irritabilidade) está a meio caminho entre a causa e o motivo (causalidade consciente).
Finalmente, devemos ter em mente que a Vontade não tem nenhum escopo final. Ela é aspiração perpétua que não pode ser exaurida por nenhum escopo que ela possa atingir. Não há satisfação final para a Vontade. Não há um instante sequer em que ela se encontre em repouso. Não há corpo sem aspiração. A Vontade quer manifestar-se nas formas fenomênicas. A Vontade é o fundo de todos os fenômenos. A matéria é o “lugar” onde as forças naturais, que são objetivações da Vontade, querem se manifestar. A Vontade é cega, é inconsciente; ela atua sem qualquer finalidade, ela não quer outra coisa senão um ‘corpo’ para se manifestar. Mas a Vontade que não quer senão a vida não deixa de encontrar obstáculos. Ela, a Vontade, é o próprio esforço para a objetivação do seu querer.

“(...) em todo lugar as diversas forças da natureza e as formas vivas disputam mutuamente a matéria, todas tendem a usurpá-la, cada uma possui justamente o que arrancou às outras; assim se mantém uma guerra eterna, em que se trata de vida e de morte. Daí resultam resistências que de todos os lados opõem obstáculos a esse esforço, essência íntima de todas as coisas, reduzem-no a um desejo mal satisfeito, sem que, contudo, ele possa abandonar aquilo que constitui todo o seu ser, e o forçam assim a torturar-se, até que o fenômeno desaparece, deixando o seu lugar e sua matéria imediatamente açambarcadas por outras”. (grifo meu, Schopenhauer, 2001, p. 324).



As forças da natureza e as formas vivas são graus distintos da objetivação da vontade. As forças da natureza são o grau mais baixo dessa objetivação. As forças da natureza e as formas vivas disputam a matéria na qual querem se manifestar. Essa disputa perpetua uma guerra na qual umas sobrepujarão as outras. Mas o que sucumbe é o fenômeno, por exemplo, este ou aquele animal, mas nunca a Vontade em si. Schopenhauer mostra que o sofrimento é o obstáculo que se interpõe entre a aspiração da Vontade e o seu escopo momentâneo. O sofrimento continuará existindo até que a aspiração seja satisfeita; mas, como não é possível satisfação duradoura, esta termina por ser o ponto de partida duma nova aspiração sempre obstada de todos os modos. Há, portanto, sempre luta, sempre dor. Não há, para a aspiração, um escopo final, nenhum termo para o sofrimento.
Consoante Schopenhauer, quanto mais perfeito é o fenômeno da vontade tanto mais patente é o sofrimento. A intensidade do sofrimento é proporcional ao grau de aperfeiçoamento do fenômeno da Vontade. O sofrimento é tanto mais elevado quanto mais claro é o conhecimento e desenvolvida a consciência. Assim,


“À medida que o conhecimento se torna mais claro e que a consciência aumenta, o sofrimento cresce, chegando no homem ao grau supremo: e é neste ponto tanto mais violento quanto melhor é o homem dotado de lucidez de conhecimento, quanto mais é excelsa a sua inteligência: aquele em quem está o gênio é sempre aquele que maiormente sofre” (Schopenhauer, 2012, p. 77).


O sofrimento é, portanto, proporcional ao grau de aperfeiçoamento do fenômeno da Vontade. As plantas não sofrem, segundo Schopenhauer, porque carecem de sensibilidade. Nos insetos, a faculdade de sentir e sofrer é mínima; mas nos vertebrados essa faculdade atinge um grau muito elevado, visto que eles possuem um perfeito sistema nervoso. Quanto maior é a inteligência nestes, maior será o sofrimento. Por isso, no homem, a capacidade de sofrer atinge seu grau supremo. Mas, mesmo entre os homens, existem os que sofrem de modo mais violento, porquanto dotados de lucidez. Quanto mais ciência adquire um homem maior será sua capacidade de sofrer. Esse homem sofre mais, sobretudo porque é mais suscetível à angústia. Por ser lúcido, reconhece que seu sofrimento não é senão a própria objetivação particular da essência mesma da vida, qual seja, a dor. Seu sofrimento não é mais do que a consequência inevitável da aspiração cega e inconsciente da Vontade.
“Querer é, essencialmente, sofrer” e “toda existência é, essencialmente, dor”, porque a existência é luta sem trégua entre as objetivações da Vontade que tendem a disputar a matéria em que querem se manifestar. Toda satisfação é momentânea e serve de ponto de partida para nova aspiração que terá de enfrentar resistências. Como a existência é luta entre nascimento e morte, mesmo o homem, que é mero fenômeno da Vontade, não escapa a esse movimento tendente da vida para a morte. Não importam seus inúmeros esforços por perseverar no ser, ao fim e ao cabo, é a morte que vencerá.


3. Considerações finais

Uma filosofia do desespero que pretende desilusionar o homem, libertando-o de suas esperanças vãs, sobretudo as de felicidade que, incompatível com a constituição afetiva do desejo, não passa de uma miragem, deverá encarar com perícia cirúrgica o problema do sofrimento, que, à luz de um exame sem pressupostos teológicos, apresenta-se como o modo próprio de constituição do viver. A sabedoria do desespero, tal como a que propõe Sponville, insistindo no cuidado com o presente, é compatível com a concepção schopenhaueriana de vida feliz. O próprio Schopenhauer celebra o presente: “O presente é a única coisa que existe sempre, sempre estável, inabalável” (Schopenhauer, 2001, p. 293). E acresce:


“Antes de tudo, o que é preciso compreender bem é que a forma própria de manifestação do querer – por consequência, a forma da vida e da realidade – é o presente, só o presente, não o futuro nem o passado: estes têm apenas existência como noções, relativamente ao conhecimento (...) Jamais homem algum viveu no seu passado, nem viverá no seu futuro: é só o presente que é a forma de toda a vida” .(Idem, p. 292).


Que felicidade é, então, possível ao homem? Aquela que nos mantém provisoriamente imperturbáveis enquanto não nos atormentam as dores que o mundo, inevitavelmente, nos reserva.



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COMTE-SPONVILLE, André. Uma Educação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2012.

______________. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

____________. Felicidade Paradoxal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SCHOPENHAUER, Arthur. Do mundo como Vontade e Representação – Como Vontade – Segunda consideração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

________________. O mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.






[1] COMTE-SPONVILLE, André. Uma Educação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 398.
[2] A expressão Grécia Antiga recobre os períodos arcaico (fins do século VIII a.C. ao início do século V a.C.), clássico (do século V a.C ao IV a.C.) e helenístico ( do século III a.C. ao III d.C.). Se considerarmos o helenismo como o período que abriga uma filosofia greco-romana e doutrinas cristãs, então a filosofia antiga se estende até o século VI d.C. Teríamos, então, ao todo, dez séculos.
[3] LIPOVETSKY, Gilles. Felicidade Paradoxal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[4] Uma exposição sobre a ética hedonista de Epicuro o leitor poderá encontrar no link: http://escritosdobar.blogspot.com.br/2015/07/que-ninguem-hesite-em-se-dedicar.html
[5] Uma discussão detida da filosofia materialista encontra-se em:

domingo, 20 de março de 2016

Advérbios modalizadores

             
                                                            
                                                                                




                           Advérbios modalizadores
                                Um estudo de usos


Um livro didático em cuja capa se estampa o título gramática reflexiva, como a Gramática Reflexiva: texto, semântica e interação (2005), de Cereja & Magalhães, porquanto pretende contribuir para o aperfeiçoamento da capacidade de uso da língua pelos seus usuários, não poderia oferecer exercícios como o exercício em que se solicita ao aluno a identificação do valor semântico do advérbio nunca, extraído de uma tirinha, a qual, enquanto gênero do discurso, poderia ser mais bem aproveitada para fomentar um trabalho com a língua que contribuísse para conscientizar os estudantes das formas como as unidades linguísticas produzem sentido.

                   








No exercício a que me refiro, à pergunta “que valor semântico o advérbio nunca exprime?” seguem-se cinco alternativas entre as quais uma deve ser assinalada como a que corresponde ao valor semântico de “nunca”: condição, negação, tempo, intensidade, modo. Os autores assinalam “tempo” como a resposta correta; mas silenciam sobre o fato de que “nunca” quantifica negativamente o predicado “consigo me balançar no balanço”. Ora, “nunca” cumula com a noção de “tempo” a função de negação e significa “em tempo nenhum”. Vê-se, então, a dificuldade em que se encontra o professor: afinal, “nunca” deve ser classificado como advérbio de tempo ou de negação? As gramáticas normativas o classificam como advérbio de tempo; todavia, como negar que “nunca” sirva à negação da relação predicativa entre o sujeito “eu” e o predicado “vi este garoto” em “Eu nunca vi esse garoto”? Resta alguma dúvida de que “nunca” nega a possibilidade de atribuição de um determinado predicado a um determinado sujeito?
Está claro, portanto, que o primeiro problema ignorado pelos autores diz respeito ao fato de a operação de negação poder atualizar-se por meio de outros elementos diferentes do operador “não”. A língua disponibiliza uma gama variada de recursos que servem para a expressão da negação. Alguns exemplos desses recursos são, além de nunca, as formas nenhum, jamais,  ninguém, nem, nada, senão, verbos de valor negativo como “recusar”, “impedir”, “abster-se”, “sem” combinado ou não com a conjunção “que” (cf. sem que), entre outros.
O problema que, no entanto, considero mais grave consiste no fato de o exercício apresentado não atender ao objetivo previsto por uma gramática que se denomina de gramática reflexiva. Uma gramática reflexiva, segundo Travaglia (2003, p. 142), deve favorecer o desenvolvimento da competência comunicativa dos usuários da língua, ainda que esse modelo de gramática  tenha como preocupação básica possibilitar aos aprendizes uma reflexão sistemática sobre o conhecimento intuitivo que eles têm dos mecanismos gramaticais da sua língua materna. Está claro que a gramática reflexiva deve favorecer a reflexão sobre a estrutura e o funcionamento da língua, em seus níveis morfossintático e semântico; está claro que entre as atividades previstas por esse modelo de gramática se acham a distinção de classes de palavras, a determinação das propriedades semânticos e sintáticas das classes de palavras, o reconhecimento da existência de categorias gramaticais como tempo, modo, voz, gênero, número, pessoa e aspecto, etc. – em uma palavra, está claro que esse modelo de gramática contempla o objetivo que consiste em levar os estudantes a tomar consciência de um conhecimento que lhes é intuitivo ou “quase inconsciente”. Está claro, portanto, que o objetivo dela é submeter à reflexão aquele conhecimento que o falante já tem sob um modo não refletido. Mas o trabalho de explicitação dos mecanismos gramaticais não pode dispensar a preocupação com a reflexão sobre os efeitos de sentido obtidos com o uso das expressões linguísticas em textos cuja funcionalidade deve ser preservada e considerada no momento da reflexão.
Ora, se o objetivo do ensino de português a falantes nativos dessa língua é – insisto -  o desenvolvimento da competência comunicativa deles,, um exercício como o que solicita a classificação semântica do advérbio “nunca” se demonstra claramente inadequado à consecução desse objetivo. Ademais, tampouco estimula uma reflexão satisfatória e sistemática sobre o modo como as unidades linguísticas se estruturam e funcionam no uso real da língua. O exercício simplesmente não leva em conta, por exemplo, o escopo da negação, ou seja, o segmento do enunciado sobre o qual a negação, expressa por meio de “nunca”, incide. Vimos que, em “eu nunca vi esse menino”, “nunca” nega a atribuição do predicado “vi esse menino” ao sujeito “eu”. Analogamente, na tirinha, “eu nunca consigo me balançar no recreio”, “nunca” nega a atribuição do predicado “consigo me balançar no recreio” ao sujeito “eu”.
Uma gramática reflexiva, segundo Travaglia (2003, p. 150), não deve apenas servir ao propósito de tornar possível uma reflexão sobre a estrutura da língua; deve também orientar-se por atividades “que focalizam essencialmente os efeitos de sentido que os elementos linguísticos podem produzir na interlocução”. Ora, uma vez que ainda se pode encontrar materiais didáticos que perpetuam uma metodologia de ensino de português calcada sobre um modelo de estudo formalista da língua desinteressado de quaisquer questões que recobrem o domínio do uso das expressões linguísticas e dos efeitos de sentido produzidos nesse uso, nunca será demais tornar a afirmar a necessidade de promoção de um ensino de língua portuguesa que, mesmo interessado em demonstrar como a gramática dessa língua se estrutura, não perca de vista o fato de que a organização da gramática está a serviço da produção de sentidos. Se o professor pretende que suas aulas sejam ocasiões efetivas para que se desenvolvam reflexões sobre a língua que contribuam para que seus estudantes sejam cada vez mais competentes no uso de sua língua materna, é indispensável que ele reconheça, desde o momento em que planeja suas aulas, que as regras que governam as construções gramaticais, os princípios que tornam possível a produção de enunciados, que permitem aos usuários da língua portuguesa formar frases gramaticalmente aceitáveis nessa língua, estão a serviço da necessidade que têm eles de se fazerem entender pelo parceiro de comunicação. Ao se preocupar com o modo como se estruturam as expressões linguísticas, o professor não pode se esquecer de que a forma (estrutura) que nossos enunciados assumem é determinada pelas funções a que eles servem na interação social. Trata-se de não perder de vista um princípio que é básico em todas as teorias funcionalistas: as escolhas linguísticas que fazemos e o modo como as estruturamos para construir nossos enunciados são determinados pelas funções a que esses enunciados servem. Cada escolha linguística que fazemos cumpre um determinado propósito comunicativo e/ou argumentativo. Num estudo desenvolvido por ocasião de meu doutoramento, mostrei que a escolha do tema, na construção das orações, é determinada por ou atende às necessidades argumentativas do produtor do texto.  Em outras palavras, os processos de tematização refletem as necessidades argumentativas do produtor.  Não se trata, portanto, de considerar a estruturação das unidades da língua em si mesma, mas de se perguntar sempre a que funções, a que propósitos sociointeracionais dada maneira de estruturá-las serve, que efeitos de sentido se produzem ao articular as expressões linguísticas - nossos textos - de tal ou qual maneira.
Tendo em vista a insistência em limitar o estudo do tópico advérbio no ensino de português a atividades de mera classificação semântica[1], prática da qual nos deu testemunho o livro didático por mim considerado, proponho-me apresentar e discutir, neste texto, a importância do advérbio modalizador na construção da orientação argumentativa de textos pertencentes aos gêneros reportagemartigo de opinião.  A escolha de artigos de opinião para efeito de análise do comportamento discursivo do advérbio se deve ao fato de que, sendo o artigo de opinião um gênero discursivo que cumpre explicitamente uma função argumentativa, é o lugar privilegiado onde se podem encontrar usos de advérbios modalizadores. Enfocarei, portanto, o uso do advérbio como modalizador e procurarei mostrar de que modo o ensino de português pode se tornar muito mais proveitoso ao explorá-lo, isto é, pode, de fato, conciliar-se com o objetivo que se postula para o ensino de língua materna.
Antes de me debruçar sobre a tarefa principal a cuja realização se destina o presente texto, farei incursão no tratamento dispensado pelas gramáticas normativas ao advérbio, a fim de que o leitor perceba que, ao se propor considerar o comportamento discursivo do advérbio, o professor estará operando, forçosamente, uma mudança de foco. As gramáticas limitam a abordagem do advérbio (e de todas as demais classes gramaticais) ao âmbito estritamente sintático ou frasal, e o professor deverá ultrapassar essa abordagem limitadora.



1. O advérbio nas gramáticas normativas

Começarei considerando como as gramáticas normativas definem o advérbio. Não pretendo empreender uma análise propriamente crítica e tampouco exaustiva do modo como esse capítulo do estudo gramatical é apresentado. Meu intento é mais modesto. Pretendo tão-só chamar a atenção para as propriedades que são privilegiadas quando da definição dessa classe gramatical, não descurando, contudo, de apontar algumas dificuldades que se encontram no modo como ela é enfocada e que podem passar ao largo de um exame crítico. Deve-se dizer, desde já, que as gramáticas normativas não se preocupam em estabelecer uma hierarquia entre os critérios utilizados na definição das classes de palavra. Ao longo da apresentação de uma classe gramatical, esses critérios aparecem misturados entre si. São três os critérios, tradicionalmente, empregados para definir uma classe gramatical: 1) o critério semântico (que é o mais privilegiado nas gramáticas); 2) o critério morfológico e 3) o critério sintático.
Atendo-me à apresentação do tópico “advérbio”, darei a saber como essa classe de palavra é definida na Nova Gramática do Português Contemporâneo (2001), de Cunha & Cintra.  Segundo os autores, “o advérbio é, fundamentalmente, um modificador do verbo”. ( grifo meu, p. 541).  Na página 542, eles ajuntam: “os advérbios recebem a denominação da circunstância ou de outra ideia acessória que expressam”. Veja-se que se apresentam dois modos de definir o advérbio: 1) ele é um modificador do verbo; 2) ele expressa uma circunstância ou ideia acessória. Trata-se de duas “faces” de uma mesma definição de advérbio. Essas duas “faces” se acham em páginas distintas. A parte 2) da definição é a parte na qual mais claramente é possível apreender o aspecto semântico do advérbio: o advérbio é uma palavra que expressa circunstâncias – acresça-se – do fato verbal. A parte 1) traz alguma dificuldade, pelo menos para o professor não familiarizado com a terminologia da Linguística. Refiro-me à dificuldade que se impõe à compreensão do que significa ser um modificador. O que significa dizer que o advérbio é um modificador? O que é um modificador? Antes de elucidar essa questão, é importante ver que a definição de Cunha & Cintra não esclarece o que significa dizer que o advérbio é um modificador do verbo. 
Em primeiro lugar, modificador é o nome de uma função sintática. Essa função sintática se define pela conjunção de dois aspectos: um sintático e outro semântico. Sintaticamente, modificador é a função desempenhada por termos da oração que se prendem ao núcleo de um sintagma verbal, nominal, adjetival ou adverbial[2]. Semanticamente, o modificador acrescenta um ingrediente semântico ao significado da palavra que funciona como núcleo do sintagma ao qual está integrado. As duas classes de palavra que funcionam como modificadores são o advérbio (modificador verbal) e o adjetivo (modificador do substantivo)[3]. Na modificação, o termo modificador acrescenta um conteúdo semântico ao significado do temo que modifica. O modificador incide semanticamente sobre a extensão do significado do termo modificado. Vejamos os dois exemplos seguintes:



(1) Eles conversaram.
(1a) Eles conversaram demoradamente.

(2) Dois deputados foram presos.
(2a) Dois deputados corruptos foram presos.


No exemplo (1a), o advérbio “demoradamente” acrescenta o conteúdo ‘de modo prolongado’ ao significado ‘interagir verbalmente’, do que resulta o conteúdo estendido ‘eles interagiram verbalmente de modo prolongado (= demoradamente)’. No exemplo (2a), o adjetivo “corrupto” acrescenta oconteúdo ‘que se deixou corromper’ ou ‘que agiu ilegalmente’ ao significado ‘membro de uma assembleia deliberante eleito por voto direto’, do que resulta o conteúdo estendido “dois membros de uma assembleia deliberante eleitos por voto que agiram ilegalmente”.
Acresça-se que, sintaticamente, o modificador é parte integrante de um sintagma a cujo núcleo ele adere. Em (1a), “demoradamente” adere ao núcleo verbal “conversaram”; em (2a), “corrupto” adere ao núcleo nominal “deputado” do sintagma nominal (SN) “dois deputados corruptos”.
Em linguística, o modificador distingue-se do determinante, função esta desempenhada por unidades linguísticas que, dispondo-se à direita do núcleo do sintagma nominal a que pertencem, servem para tornar possível o acesso ao referente, quer no nível da situação espaço-temporal, quer no nível do conhecimento partilhado pelos interlocutores, ou ainda serve para delimitar o número do substantivo a que eles se prendem. A classe dos determinantes inclui os artigos, numerais, os pronomes possessivos, demonstrativos, indefinidos adjetivos. Os numerais, os pronomes indefinidos e os advérbios de intensidade (muito, demais, pouco, etc.) são determinantes quantificadores. Assim, quando dizemos “alguns jogadores” delimitamos um subconjunto de jogadores dentro de uma totalidade de jogadores, mas não precisamos o número de jogadores que compõe o subconjunto. A extensão do substantivo fica, portanto, quantitativamente indefinida. A quantificação operada por “algum” é parcial. Além disso, “algum” não permite identificar o referente do substantivo ao qual se liga, por isso, dizemos que é desprovido do traço semântico ‘identificabilidade’. Naturalmente, os numerais também são desprovidos desse traço, mas se opõem aos pronomes indefinidos por apresentarem quantificação definida (sabemos o número exato de referentes designado pelo substantivo, como “dois cavalos” x “alguns cavalos”).
A classe dos determinantes é bastante heterogênea, mas seus membros têm em comum a função de delimitar a extensão da referência do substantivo a que se vinculam. Para efeito de distinção entre determinante e modificador, podemos recorrer ao aspecto semântico, ou melhor, semântico-referencial: os determinantes delimitam a extensão referencial do substantivo, ou quantificam o significado do substantivo, do adjetivo ou do advérbio aos quais se vinculam (cf. Um menino esperto/ um menino muito esperto). Mas podemos também recorrer ao aspecto formal, observando que os determinantes se dispõem exclusivamente à esquerda do núcleo, ao passo que os modificadores dispõem-se, via de regra, à direita, mas pode haver modificadores que admitem à anteposição ao núcleo (cf. O velho homem). Os modificadores verbais (os advérbios modalizadores, em geral terminados em “-mente”) se distinguem dos determinantes por se prestarem a uma mobilidade distribucional que falta a estes, isto é, os advérbios podem ser mais facilmente deslocados na estrutura da oração. Os determinantes, por seu turno, não permitem a mesma liberdade distribucional que tem os advérbios. Assim, podemos ter “os três garotos”, mas não “três os garotos”; “todos os três garotos”, mas não “os todos três garotos”; “Ele é naturalmente esperto”, “Naturalmente, ele é esperto”, “Ele, naturalmente, é esperto”, mas não ““Ele é esperto muito”*. O modificador adverbial “talvez”, que pode ocupar os seguintes lugares na cadeia da fala: (1) Eles não conseguiram chegar talvez; (2) Talvez eles não tenham conseguido chegar; (3) Eles, talvez, não tenham conseguido chegar; (4) Eles não conseguiram, talvez, chegar (?).
Volvendo à apresentação feita por Cunha & Cintra do advérbio, cumpre ainda observar que os autores elencam, à página 543, as classes semânticas dos advérbios reconhecidas pela NGB: a) advérbios de afirmação: sim, certamente, efetivamente, realmente, etc. ; b) advérbios de intensidade: assaz, bastante, bem, demais, mais, menos, muito, pouco, quase, etc.; c) advérbios de dúvida: acaso, porventura, possivelmente, provavelmente, talvez, etc.; d) advérbios de lugar: abaixo, acima, aqui, aí, ali, além, atrás, através, cá, etc.; e) advérbios de modo: assim, bem, debalde, depressa e quase todos os advérbios terminados em “-mente”; f) advérbio de negação: não; g) advérbios de tempo: agora, ainda, amanhã, ontem, etc.
Em seguida, Cunha & Cintra referem, de modo marginal, outras três classes, das quais dizem que serão tratadas sob a designação de palavras denotativas. Essas três classes marginais são: a) advérbios de ordem: primeiramente, ultimamente, depois, etc.; b) advérbios de exclusão: apenas, senão, salvo, só, somente; c) advérbios de designação: eis. Consoante os autores, as chamadas palavras denotativas são “por vezes enquadradas impropriamente entre os advérbios” (p. 552). E a razão, segundo os autores, por que é impróprio incluí-las entre os advérbios é que elas não modificam nem o verbo, nem o adjetivo, nem outro advérbio.




1.2. O caso de primeiramente, a seguir e finalmente

É importante notar o que a descrição tradicional deixa escapar nessa proposta taxionômica. Tomemos a classe dos chamados advérbios de ordem. A própria denominação da classe é vaga. Que função cumprem os advérbios de ordem? O que eles fazem? De que natureza é essa ordem que eles estabelecem? Na gramática de Cunha & Cintra, não se encontra qualquer esclarecimento sobre a função discursiva desses advérbios. A própria designação mascara a importância funcional desses advérbios na construção da coerência textual. A mesma observação se estende aos advérbios ditos “de exclusão”. Essa classe encerra unidades da língua que cumprem funções argumentativas das mais importantes. Formas como “só”, “somente” e “apenas” são marcadores de pressuposição, isto é, ativam conteúdos implícitos que podem encaminhar o discurso de tal modo a produzir determinados efeitos de sentido. Por exemplo, considerando-se o contexto seguinte:

Contexto: O professor solicita que seus alunos, reunidos em grupos, desenvolvam trabalhos de pesquisa.

Suponhamos que um integrante de um dos grupos, se queixe produzindo (3):

(3) Professor, somente eu fiz o trabalho.

Ora, o uso de “somente”, cujo escopo é o sujeito “eu”, veicula a informação “uma única pessoa fez o trabalho” e essa pessoa é o produtor do enunciado. Essa é a informação explícita que se pretende transmitir com o uso de “somente”. Mas, implicitamente, com o uso de “somente”, diz-se também “os demais integrantes do grupo não fizeram o trabalho”. Nossa reflexão sobre a funcionalidade do marcador de pressuposição “somente” não pode parar aí, se quisermos compreender sua força argumentativa, enfim, todo seu valor funcional. Tendo em vista o contexto (trata-se de um aluno que se encarregou de fazer todo o trabalho que deveria ter sido feito em conjunto com os colegas e que informa ao professor que apenas ele se encarregou da tarefa), o enunciador pode pretender produzir sentidos como 1) sou o único que merece uma premiação (a nota); 2) sou um aluno aplicado, inteligente; 3) sou um aluno responsável; 4) todos os demais colegas são irresponsáveis, desleixados, etc. Da parte do produtor de (3), há um projeto de sentido que pode ou não ser aceito pelo interlocutor. Por exemplo, (3) pode sugerir o desejo do enunciador de que seus colegas recebam nota “zero”; mas o professor, embora parabenizando o empenho do enunciador, pode decidir dar outra chance aos que não se ocuparam da tarefa. Outro aspecto importante diz respeito ao modo como o enunciador escolheu organizar a estrutura tema-rema. O tema é o segmento da oração que, dispondo-se à esquerda, é comunicacionalmente mais saliente. É o segmento da oração do qual se diz alguma coisa; é, em suma, o elemento escolhido pelo falante que serve de âncora (cognitiva?) da organização da mensagem para o interlocutor. O rema, por seu turno, é a parte da oração que encerra a mensagem; é todo o segmento restante que se segue ao tema e que sobre ele informa alguma coisa. Assim, em “O garoto estudou bastante”, “o garoto” é o tema (o segmento do qual se diz alguma coisa) e “estudou bastante” é o rema (o segmento que encerra aquilo que se diz do tema). Tema e rema não são funções sintáticas, mas funções pragmáticas. Tema e rema designam modos de estruturação informacional da oração. Tema e rema são posições ou ‘lugares’ de distribuição informacional. O sujeito ocupa, canonicamente, em português, a posição temática, isto é, figura na posição à esquerda do núcleo da oração. Isso significa dizer que, em sua posição canônica, o sujeito preenche a função temática. O predicado, cujo núcleo é o verbo, segue-se preenche a função temática. Mas, pode suceder – e é frequente o caso – que a posição temática seja ocupada por outro termo que não o sujeito, como em “No próximo domingo, iremos à praia”. Nessa oração, o tema é “no próximo domingo” e o rema é “(nós) iremos à praia”.
No exemplo que venho analisando, a posição temática é ocupada pelo conjunto “somente eu”[4]. A escolha por conferir ao conjunto “somente eu” o estatuto temático cumpre uma função claramente argumentativa. Se a intenção do enunciador é destacar suas qualidades, como seu empenho, dedicação, senso de responsabilidade, capacidade intelectual, se sua intenção é deixar claro que ele foi o único que se ocupou da tarefa, então é de esperar que ele ponha em foco justamente a informação veiculada por “somente eu”. Em outras palavras, novamente aqui, chamo a atenção para o fato de que a forma – isto é, a configuração estrutural de nossos enunciados – é determinada e/ou influenciada pelas funções sociocomunicativas a cuja realização servem nossos enunciados.  O enunciado (3) foi produzido para atender dadas funções ou propósitos que não se reduzem à mera necessidade de informar. É interessante ver que o efeito de sentido pode ser outro, se o enunciado assumir outra forma, como, por exemplo, em (3a):

(3a) Professor, ninguém fez o trabalho, exceto eu.

O leitor há de concordar que a informação “exceto eu” não está saliente na estrutura informacional. Não constitui ela o tema da oração. Agora, o tema é “ninguém”; e o rema é “fez o trabalho”. Já o segmento “exceto eu” tem, informacionalmente, um estatuto secundário em relação à organização tema-rema. Esse segmento é informacionalmente muito menos saliente; figura como uma informação que foi dada por acréscimo. Atente-se para a forma do enunciado “Não constitui ela o tema da oração”, que eu produzi acima, neste parágrafo. O tema dessa oração é “não constitui ela”, já que é este segmento que, colocado à direita, iniciando a frase, torna-se informacionalmente mais saliente. Eu poderia ter dado outro torneio à oração, escrevendo algo como “Ela não constitui o segmento da oração”, caso em que o sujeito “ela” ocuparia a posição temática. A opção por dar estatuto temático ao segmento “não constitui ela” atende a, pelo menos, duas necessidades: a) manter ativa na memória de curto prazo do leitor a relação sinonímica entre “não estar saliente” e “não constituir tema”; b) convencer o leitor de que a informação que não está saliente jamais é tema.
Voltemos nossa atenção para as formas “primeiramente”, “a seguir” e “finalmente”, que estão entre as formas adverbiais integrantes da classe dos advérbios de ordem, segundo a gramática de Cunha & Cintra. Disse que essa classificação deixa escapar, ou melhor, silencia sobre um aspecto importante dessas formas adverbiais: trata-se de seu comportamento textual-discursivo.
As formas “primeiramente”, “a seguir” e “finalmente” são elementos seqüenciadores coesivos, isto é, são sinais de articulação textual, são organizadores textuais. Eles são responsáveis por estruturar linearmente o texto.
A justaposição, que é um modo de manifestação do encadeamento de sequências textuais, pode dar-se com ou sem elementos seqüenciadores. A justaposição com elementos seqüenciadores estabelece um seqüenciamento coesivo entre porções maiores ou menores do texto. As formas adverbiais que estamos considerando aqui são exemplos desses seqüenciadores que organizam o texto em uma sucessão de fragmentos complementares, com o propósito de facilitar o processo interpretativo. Eles operam no nível inter-sequencial, permitindo, portanto, relacionar sequências textuais ou episódios narrativos entre si. Ao articular sequências textuais entre si, esses sinais de articulação demarcam episódios da narrativa (ordenadores temporais), segmentos de uma descrição (ordenadores espaciais) ou indicam ordenação textual. Seguem-se os exemplos:

(4) Muitos anos mais tarde, eu a encontrei por acaso. (organiza temporalmente episódios da narrativa)

(5) Adiante, do lado esquerdo, via-se a catedral. (organiza espacialmente segmentos de uma descrição)

(6) Considerarei, primeiramente, os aspectos morfossintáticos dos advérbios; e, a seguir, tratarei de seu comportamento discursivo. (organizam textualmente as etapas de um procedimento).


1.3. A Gramática Normativa da Língua Portuguesa (2001)

A Gramática Normativa da Língua Portuguesa (2001), de Rocha Lima patenteia-nos a seguinte definição de advérbio: “advérbios são palavras modificadoras do verbo. Servem para expressar as várias circunstâncias que cercam a significação verbal” (ênfase no original, p. 174). Adiante, acrescenta Lima que os advérbios de intensidade “podem também prender-se a adjetivos, a outros advérbios, para indicar-lhes o grau”. Essa característica dos advérbios de intensidade pode ser depreendida da frase “Érica é mais alta (do) que Joana”. Outro exemplo é fornecido pela frase “Érica é muito alta”, em que temos o advérbio “muito” indicando grau superlativo absoluto analítico.
Lima observa também que toda palavra que se presta à anexação do sufixo “-mente” torna-se um advérbio. Em outras palavras, todas as formas terminadas em “-mente” são categorizadas como advérbios. Além disso, observa o gramático que os advérbios constituem uma classe de palavras invariáveis em gênero e em número. Em Lima, há alusão a propriedades morfológicas (anexação de “-mente”, invariabilidade mórfica) do advérbio, mas, como toda gramática normativa, não deixa de dar especial destaque à propriedade semântica.  Seguindo a prática das gramáticas normativas, cuja descrição se limita ao nível frásico, a gramática de Rocha Lima não se preocupa com o comportamento discursivo dos advérbios.



1.4.  Fundamentos de Gramática do Português (2002)

A gramática descritiva do professor José Carlos de Azeredo opta por uma abordagem predominantemente formalista, sem descurar de fazer alusões proveitosas a aspectos discursivos dos fenômenos linguísticos contemplados. O tópico do advérbio é estudado na seção destinada à descrição das espécies de sintagma adverbial. Por isso, será necessário dilucidar o conceito de sintagma, antes de examinarmos os tipos de sintagmas adverbiais e as suas propriedades.
Azeredo (p. 142, § 286) define o advérbio como “a palavra invariável que serve de núcleo a um sintagma adverbial”. Uma outra maneira de definir o advérbio, sem apelar para suas propriedades semânticas, é dizer que são advérbios as palavras que podem ser precedidas por “tão” (ou bem, muito). Por exemplo, “caminhávamos tão/ muito/ bem depressa”, “a casa ficava bem longe”. Há, evidentemente, restrição. Advérbios quantificadores como meio, mais, menos, demais não se deixam preceder de “tão”.
Passemos a considerar o que é o sintagma.




1.4.1. O sintagma

Desde Saussure, o sintagma recobre toda e qualquer construção que resulta da articulação de duas ou mais formas mínimas numa unidade hierarquicamente superior. Nesse sentido, o sintagma não se identifica exclusiva e nocionalmente com os constituintes imediatos da oração. O conceito de sintagma é mais lato e recobre, segundo Câmara (2002), “a combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior”. Essa definição apresentada por Câmara, que remonta à contribuição de Saussure, diz-nos que o sintagma é uma construção resultante da articulação de duas unidades hierarquicamente menores. A construção que daí resulta – o sintagma – é uma unidade de nível superior. Essa definição estende à noção de sintagma a palavras complexas como “reler”, “criado-mudo”, “aguardente”. Ora, em “reler”, temos a combinação de duas formas mínimas “re-” e “ler” numa unidade linguística superior “reler”.  Em sentido lato, o sintagma pode coincidir até mesmo com construções mais complexas que a palavra, como, por exemplo, com orações, frases ou períodos. A oração “Pedro estudou a lição” é um sintagma, visto que é uma unidade de nível hierarquicamente superior aos constituintes que entram em sua formação. É um sintagma (sintagma oracional), porque é uma construção complexa formada pela articulação entre os constituintes “Pedro”, “estudou” e “a lição”.
O sintagma é, então, uma construção linguística resultante de relações de dependência e/ou interdepedência entre unidades pertencentes a um nível hierarquicamente inferior. A condição para que uma sequência de unidades seja um sintagma é que haja aderência das partes ao centro. Os constituintes que compõem o sintagma estabelecem relações que não são lineares, mas hierarquicamente definidas. Assim, por exemplo, em (7) abaixo

(7) A casa de praia de Saquarema

As relações de dependência que se estabelecem com o núcleo “casa” não são lineares. O que temos é uma estruturação em camadas. Ademais, os elementos internos, isto é, situados à direita do núcleo, são mais aderentes do que elementos externos, situados à esquerda do núcleo. Quanto mais próximo do núcleo é uma unidade linguística, mais aderente ela é. Disso resulta que, na análise dos sintagmas, no processo de decomposição deles, os elementos menos aderentes são retirados primeiro, começando pelo elemento mais afastado do núcleo, por ser ele o menos aderente, numa sequência ascendente de aderência; o mais aderente ao núcleo será o último a ser destacado. Como os elementos que se dispõem à esquerda do núcleo são menos aderentes do que os que se dispõem à direita, começamos destacando o menos aderente dos elementos que ocupam a posição à direita do núcleo; em seguida, o segundo menos aderente, até que destaquemos o que está mais próximo do núcleo. Terminada essa etapa, passamos a destacar as unidades que se dispõem à direita do núcleo, começando pela menos aderente (mais afastada) até que destaquemos a mais aderente, isto é, a mais próxima do núcleo.
Tome-se a seguinte construção sintagmática “A casa de praia de Saquarema”.  Toda essa construção constitui um SN (sintagma nominal), cujo núcleo é “casa”. O sintagma “de praia” está encaixado no SN, anexando-se primeiramente ao núcleo “casa” (cf. a casa de praia). Depois de formado o sintagma nominal “casa de praia” é que o sintagma “de Saquarema” é encaixado. Assim, podemos formalizar a composição desse SN da seguinte maneira:


         CASA   núcleo
          CASA  de praia                                  1ª etapa
          CASA de praia de Saquarema          2ª etapa
         A CASA de praia de Saquarema          3ª etapa


Está claro que, dada a maior proximidade do sintagma “de praia” ao núcleo “casa”, é esse sintagma mais aderente e, portanto, será o último elemento a ser retirado na decomposição do SN. Já o sintagma “de Saquarema” está encaixado no sintagma então formado “casa de praia”.  O determinante “a” só adere ao núcleo depois que se formou toda a construção “casa de praia de Saquarema”. O determinante “a”, por ser o último a entrar a fazer parte do SN, é o menos aderente e o primeiro elemento a ser destacado na decomposição desse sintagma. Assim, usando-se colchetes [ ], na análise do sintagma, destacam-se as unidades que se prendem direta ou indiretamente ao núcleo na seguinte ordem:
                       


                                         CASA   núcleo

[a ]  casa de praia de Saquarema                     1ª etapa

casa de praia   [de Saquarema]                        2ª etapa

casa  [de praia]                                                  3ª etapa


Na decomposição, retiramos o elemento menos aderente ao núcleo dentre todos os demais, que é o determinante “a”; em seguida, retiramos o segundo elemento menos aderente ao núcleo, que é o modificador “de Saquarema”. Seu grau de aderência é, no entanto, maior que o grau de aderência de “a”, já que ele situa-se entre os constituintes internos ao sintagma.[5] Por fim, retiramos o sintagma “de praia”, que se articulou primeiramente ao núcleo “casa” e que é o mais aderente e, por isso, o último a sair.[6]
Os sintagmas “de praia” e “de Saquarema” podem também ser decompostos. Como sejam sintagmas preposicionais, seu núcleo é a preposição (“de”). Todo sintagma preposicional é formado da articulação de uma preposição com outro sintagma. Assim, temos que “de praia” é resultado da combinação da preposição “de”, núcleo do sintagma “de praia”, com o sintagma nominal “praia”, cujo núcleo é o próprio substantivo “praia”. Assim, deve-se representar o SP  “de praia” (sintagma preposicional) com o seguinte modelo arbóreo:

                                            




O traço que liga o SP ao SN indica que o SN está sob o domínio do SP. O SN deve aparecer abaixo do SP e do seu núcleo, justamente para sinalizar a hierarquização sintagmática. O SN, assim, é hierarquicamente inferior ao SP no domínio do qual se situa. Todo SP é um sintagma derivado, pois que se forma com base em outro sintagma, como mostra o exemplo examinado. Assim, “de praia” é um SP formado com base no SN “praia”.


Todo sintagma caracteriza-se por apresentar, pelo menos, um núcleo, que pode constituir sozinho a totalidade do sintagma ou vir acompanhado de outros elementos que se lhe aderem.
Em sentido estrito, o sintagma é uma construção sintática que se compõe de um núcleo ou de um núcleo ao qual se articulam outras unidades e que ocupa uma determinada posição na oração. Nesse sentido, os sintagmas são os verdadeiros constituintes da oração. Podemos então definir o sintagma como um bloco significativo e funcional formado de uma ou mais unidade linguística de nível imediatamente inferior.
Resta ainda dizer que uma construção será considerada um sintagma se atender a pelo menos uma das seguintes condições:

a)      ser deslocável para outra posição;
b)     ser comutável com uma forma simples.

O que se explicita em a) e b) acima é dois expedientes formais de determinação de sintagmas. Assim, se queremos determinar se o conjunto “com entusiasmo” é um sintagma, podemos deslocá-lo para outra posição no interior da estrutura oracional. Se, no deslocamento, não há prejuízo na organização sintático-semântica, o grupo deslocado é um sintagma:

(8) Os funcionários receberam a notícia com entusiasmo.
Com entusiasmo, os funcionários receberam a notícia.
Os funcionários receberam, com entusiasmo, a notícia.

Suponhamos que quiséssemos determinar se “os funcionários” é um sintagma. Valendo-nos do expediente apresentado em b), que é o da comutação, procuremos aplicá-lo a esse sintagma.

(9) Os funcionários receberam a notícia com entusiasmo.
       Eles receberam a notícia com entusiasmo.

Aplicando o expediente de comutação também ao conjunto “a notícia”, veremos que esse conjunto constitui um sintagma.

(10) Os funcionários receberam-na (= a notícia) com entusiasmo.

Do que se expôs até aqui, creio ter sido possível depreender que os sintagmas se distribuem em classes. São cinco as classes de sintagma:

a) sintagma nominal (SN);
b) sintagma verbal (SV);
c) sintagma adjetival (Sadj.);
d) sintagma preposicional (SP);
e) sintagma adverbial (Sadv.).


a) SINTAGMA NOMINAL (SN):  tem como núcleo um substantivo ou palavra de valor substantivo (tais como pronomes retos, oblíquos, indefinidos, possessivos (quando antecedidos de artigo), demonstrativos, indefinidos-interrogativos, numerais substantivos, etc.).

b) SINTAGMA VERBAL (SV): tem como núcleo um verbo e pode incluir os complementos e adjuntos adjacentes a esse núcleo, ou constituir-se apenas do núcleo. Assim a extensão do SV varia conforme haja apenas o verbo ou este e os elementos a ele adjacentes.
c) SINTAGMA ADJETIVAL (SAdj.): tem como núcleo um adjetivo, mas pode constituir-se também de advérbios (de intensidade, de modo, em geral, terminados em “-mente”) ou sintagmas preposicionais que se atrelam ao núcleo.

d) SINTAGMA PREPOSICIONAL (SP): o sintagma preposicional é sempre um sintagma derivado, já que se forma mediante a combinação de uma preposição com outro sintagma. O índice formal do sintagma preposicional, pelo qual podemos reconhecê-lo, é a preposição.

e) SINTAGMA ADVERBIAL (SAdv.): tem como núcleo um advérbio, o qual, eventualmente, pode ser modificado por outro advérbio.
Citem-se os seguintes exemplos:

a) As asas do pica-pau quebraram. (SN)
    Os seis alunos estão em recuperação. (SN)
    Os cinco podem descer agora! (SN)
    Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SN)
    Alguns alunos não foram aprovados. (SN)
    Alguns dos eleitos não assumiram o cargo. (SN)
     Júnior escrevia cartas aos seus. (SN)
   
b) As asas do pica-pau quebraram. (SV)
    Os seis alunos estão em recuperação. (SV)
    Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SV)
    Alguns alunos não foram aprovados neste ano. (SV)
    Alguns dos eleitos não assumiram o cargo. (SV)
    Júnior escrevia cartas aos seus habitualmente. (SV)

c) Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SAdj.)
    Os trabalhadores da empresa de gás cobram melhores condições de trabalho. (SAdj.)
    Os deputados cassados tiveram seu sigilo bancário quebrado. (SAdj.)
    Os leões fugitivos foram muito bem alimentados pelos funcionários do zoológico. (SAdj.)

d) As asas do pica-pau quebraram. (SP)
   Os seis alunos estão em recuperação. (SP)
    Alguns alunos não foram aprovados neste ano. (SP)
    Júnior escrevia cartas aos seus. (SP)

e) Os leões fugitivos foram capturados depressa. (SAdv.)
    Júnior escrevia cartas aos seus habitualmente. (SAdv.)
    Clarice não gostava de acordar muito cedo. (SAdv.)

No último exemplo, o sintagma adverbial “muito cedo” compõe-se de um determinante quantificador atrelado ao núcleo “cedo”.



1.4.2. O sintagma adverbial

O sintagma adverbial, cujo núcleo é um advérbio, é sempre constituinte de um sintagma maior. Destarte, o sintagma adverbial é um constituinte adjacente ao núcleo de um sintagma maior do qual faz parte. Do ponto de vista sintático, isto é, considerando-se a posição que o sintagma adverbial ocupa na estrutura sintagmática maior de que faz parte, pode-se-lhe atribuir cinco subfunções, segundo Azeredo (2002).

1) adjunto oracional: é a função do sintagma adverbial que se prende a todo o período ou frase, sendo, portanto, um constituinte adjacente à oração.

Exemplo: Naturalmente, ela preferiu esperar a sua ligação.

2) adjunto verbal: é a função do sintagma adverbial que é constituinte do SV, adjacente ao verbo.

Exemplo: Ele ainda não falou tudo.

3) adjunto secundário: é a função do sintagma adverbial que é constituinte de um sintagma adjetival e de um sintagma adverbial. O adjunto secundário é um intensificador, modalizador ou delimitador do alcance da referência do núcleo do sintagma do qual ele faz parte.

Exemplos: Vocês comem muito depressa.
                  Vocês estão completamente enganados.
                  Ele estava surpreendentemente calmo.
                  Eles andam devagar.

Note-se que,  em “Vocês comem muito depressa”, o advérbio “muito” é um constituinte do sintagma adverbial “depressa”. Assim, o sintagma oracional decompõe-se da seguinte forma:

[Vocês]  SN
                comem muito depressa     SV
                comem    [muito depressa] Sadv.
                 comem      [muito]  depressa   
                       núcleo           DET       núcleo

O determinante quantificador “muito” é, conforme se vê, um constituinte do sintagma adverbial “muito depressa”, cujo núcleo é “depressa”.

4) adjunto livre: se prende a qualquer classe de sintagma para fins de restrição de uma informação em consonância com o propósito argumentativo do enunciador.

Exemplo:  Eu pedi apenas a compreensão dela.

                Pelo menos, ele conseguiu fazer a prova.


5) adjunto conjuntivo: adjacente ao SV, serve para estabelecer algum tipo de relação lógico-semântica com uma parte precedente do texto.

Exemplo: Eles conversavam muito durante a aula, portanto não sabiam a matéria.

Ao leitor, talvez, cause algum estranhamento o considerar “portanto” como um advérbio, já que, ao longo de sua escolarização, a ele foi ensinado que “portanto” é uma conjunção (coordenativa). Azeredo conserva o valor conjuntivo dessa forma, embora a considere, em consonância com o que as recentes pesquisas linguísticas apontam, que “portanto” é um tipo de advérbio. O que direi a respeito de “portanto” vale também para as formas “por conseguinte”, “contudo”, porém”, “entretanto”, “no entanto”. Quando comparamos o comportamento sintático de “portanto” com o de “mas”, percebemos que “portanto” é dotado de flexibilidade distribucional da qual “mas” é desprovido, ou seja, “portanto”, pode “migrar” para outra(s) posição(ões) na cadeia da fala; a conjunção “mas” não pode. (cf. Não estou com fome, portanto não vou jantar/ Não estou com fome; não vou, portanto, jantar/ Não estou com fome; não vou jantar, portanto). Se quiséssemos deslocar o “mas” para uma posição diferente da posição interfrásica, que lhe é própria, o resultado seria agramatical (cf. Estou cansado, mas vou estudar/ Estou cansado; vou mas estudar*/ vou estudar mas*). Ademais, apenas “portanto” admite a co-ocorrência com a conjunção “e” (cf. Ele agiu precipitadamente, e, portanto, se deu mal). A forma “entretanto” também admite co-ocorrência, quer com “e”, quer com “mas” (cf. Ele estava muito cansado, mas, entretanto, preferiu sair/ e, entretanto, preferiu sair).[7]

Ao considerar a importância do adjunto oracional para a construção do sentido do texto, Azeredo assinala que por meio dele “o enunciador retrata o grau de seu comprometimento com a verdade do fato expresso na oração”. (p. 207).  Assim, o advérbio “certamente”, em “Certamente, eles estão viajando”, marca o grau máximo de comprometimento do enunciador com o valor de verdade do conteúdo expresso no enunciado. Ainda, segundo Azeredo, pelo uso do adjunto oracional “o enunciador define o ponto de vista ou domínio de conhecimento do qual depende a validade do conteúdo da oração”. Assim, em “Pragmaticamente, esta expressão é inadequada”, “pragmaticamente” delimita o domínio sob o qual se deve situar a validade do que é dito no enunciado. “Pragmaticamente” opera um enquadramento epistêmico à luz do qual o conteúdo “esta expressão é inadequada” deve ser considerado. O uso desse tipo de adverbial implica que a validade do enunciado tem alcance limitado. Assim, ele pode ser válido, pode provocar a adesão dos enunciadores ao seu conteúdo, pode produzir consenso quanto à sua validade apenas nos limites marcados por “pragmaticamente”. Se o que se considera inadequado é o uso de uma expressão como “bater as botas” ao se transmitir os profundos sentimentos ao parente de alguém falecido, essa inadequação não é extensiva ao domínio gramatical, desde que a frase esteja bem formada (cf. Pena que seu marido bateu as botas). Portanto, dizer “Pragmaticamente, “pena que seu marido bateu as botas” é uma forma de falar inadequada” é dizer que a rejeição a esse modo de falar só vale quando consideramos sua inadequação pragmática, ficando inválidada essa rejeição se o domínio de referência assumido para a avaliação do enunciado fosse outro, como o gramatical. Assim, poder-se-ia dizer “gramaticalmente, isto é, do ponto de vista gramatical, “Pena que seu marido bateu as botas” não apresenta problema algum”, isto é, “gramaticalmente” (isto é, avaliando-a do ponto de vista gramatical) trata-se de uma frase bem-formada em português.
Ainda, consoante Azeredo, o adjunto oracional pode permitir ao enunciador exprimir um efeito psicológico que o conteúdo da oração lhe provoca. Assim, por exemplo,  em “Infelizmente, ele foi reprovado”, pelo uso de “infelizmente” o enunciador projeta sobre o enunciado uma disposição de espírito: sua insatisfação, seu desagrado, seu descontentamento com o fato comunicado. Darei uma atenção especial a esses tipos de advérbios mais adiante.

Passo a considerar na próxima seção o fenômeno da modalização.



2. A modalização

Em princípio, necessário será fazer um enquadramento teórico à luz do qual o fenômeno da modalização deverá ser considerado. Esse enquadramento teórico assenta na seguinte concepção de discurso. Entendo por discurso uma prática social que se realiza pelo uso da língua e na qual se engajam sujeitos historicamente situados que buscam influenciar-se reciprocamente numa dada situação social, cultural e política.
Assumirei também, com Koch (2004), que a argumentatividade é um princípio inerente ao uso da língua. Nesse tocante, vale referir as palavras de Koch (2004, p. 17):

“A interação social por intermédio da língua caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade. Como ser dotado de razão e vontade, o homem, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade – tenta influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe determinadas de suas opiniões [sic.]. É por esta razão que se pode afirmar que o ato de argumentar, isto é,  de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões, constitui o  ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do termo. A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende “neutro”, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade”.


A língua é uma forma de ação social. Ao usarmos a língua, ao produzirmos nossos enunciados, quer falados, quer escritos, realizamos ações. Ao usar a língua, buscamos agir sobre o outro de modo a produzir nele algum efeito, alguma reação, quer verbal, quer não verbal. Assim, todo dizer é fazer. O uso da língua é uma forma de ação social. Na interação social pelo uso da língua, agimos sobre o nosso interlocutor, seja com o objetivo de que ele aceite nossos argumentos, nossas opiniões, seja com o objetivo de modificar-lhe o comportamento. Pelo uso da língua, influenciamos o outro de algum modo; visamos a que ele manifeste determinado comportamento ou reação (verbal ou não verbal). Por isso, a língua é lugar de interação; é uma atividade intersubjetiva, na qual estão engajados sujeitos sociais que, ao produzirem enunciados, estão a produzir atos de linguagem com o objetivo de agir reciprocamente um sobre o outro e, assim, obter um efeito ou reação pretendida.

A exposição do fenômeno de modalização será feita de modo a satisfazer dois requisitos fundamentais: a minúcia e a clareza. Tentarei esclarecer o leitor sobre o fenômeno da modalização, esforçando-me por combinar, tanto quanto possível, o rigor que se espera no tratamento de um tema de estudo científico com a clareza desejável numa abordagem que se pretende pedagogicamente eficiente.
Intentando satisfazer o primeiro dos requisitos, começo observando que os estudos da modalização na linguagem são devedores de uma tradição que remonta à Lógica modal aristotélica. A longevidade desse estudo só pode surpreender o leitor que ignora o fato de que as especulações sobre a linguagem foram, originalmente, levadas a efeito pelos antigos gregos há mais de 2.000 anos. O que se costuma chamar de Gramática Tradicional recobre um conjunto de atitudes e métodos que permearam o estudo gramatical cuja origem encontra-se na Antenas dos séculos V-IV. Foi Platão o primeiro pensador a refletir sobre os problemas fundamentais da linguagem. A tradição gramatical, tendo origem na Grécia Clássica, recobre também o trabalho dos gramáticos romanos, dos autores do Renascimento e dos gramáticos prescritivistas do século XVIII.
A palavra linguística só viria a aparecer em meados do século XIX, para caracterizar uma abordagem da língua que se diferenciava da abordagem mais tradicional da filosofia.
Muito esquematicamente, pode-se dizer que o linguista preocupa-se em observar, descrever e analisar os fenômenos linguísticos num dado estado sincrônico de sua história. O linguista, embora possa interessar-se por fenômenos linguísticos tomados de um corpus representativo da modalidade escrita, tende a priorizar fenômenos linguísticos que se verificam em textos da modalidade oral. O filólogo, ao contrário, está circunscritamente interessado no desenvolvimento histórico das línguas, segundo dele nos dão testemunho textos escritos, sobretudo os do domínio literário levando em conta aspectos culturais que lhe estão associados.
Retomando-se a herança grega do estudo da modalização, é preciso enfatizar que Aristóteles não se ocupou, a rigor, da modalização tal como hoje a compreendemos. Aristóteles estava preocupado em determinar as modalidades dos enunciados, entendendo por modalidade um conjunto de relações entre o locutor, o enunciado e a realidade objetiva. Originalmente, portanto, modalidade recobria as expressões que remetem às oposições entre os conceitos de possibilidade, realidade e necessidade.
As primeiras modalidades foram, pois, determinadas por Aristóteles em seu quadrado lógico. Nele, Aristóteles estabeleceu as modalidades fundamentais do possível e do necessário, a partir das quais, por negação, definiu os respectivos contrários, a saber, o impossível e o contingente. Coube a Aristóteles, portanto, estabelecer o quadro da modalidade alética, que toca às noções de verdade e falsidade das proposições.
Estabelecidas as modalidades aléticas, lógicos posteriores viriam a definir outros dois âmbitos conceituais da modalidade: o do conhecimento (modalidade epistêmica) e o da conduta (modalidade deôntica).
O estudo da modalização, desenvolvido em Linguística, é devedor das contribuições da Lógica modal. De fato, ao buscarmos compreender e descrever a modalização, não podemos evitar a consideração de conceitos lógicos como “possibilidade” e “necessidade”. À medida que nos debruçamos sobre as formas como se marca a modalidade no uso real da língua, no entanto, somos levados a aceitar forçosamente o fato de que as línguas naturais são alógicas (Neves, 2006). Ora, ao contrário da Lógica modal, a Linguística não está interessada em determinar a estrutura formal das modalidades em termos de valor de verdade sem levar em conta as relações entre os interactantes. Para o linguista, saber que uma proposição p é obrigatória ou necessária é saber para quem p é obrigatória ou necessária, é saber também quem aprecia o valor modal do enunciado de p e em função de qual sistema de normas.
Sem pretender adentrar na discussão da intricada relação entre lógica modal e o estudo linguístico da modalização e reconhecendo que “apesar de as línguas naturais não se comportarem de maneira lógica, as pesquisas têm mostrado que os domínios da Lógica e da Linguística são inseparáveis” (Neves, 2006, p. 157), limito-me a observar o que separa o estudo da modalização, levado a efeito pela Linguística, do estudo da modalidade, levado a efeito pela Lógica modal, é a preocupação quem tem a Linguística em descrever as formas como se marca a modalização dos enunciados tendo em vista o envolvimento dos interactantes que atuam linguisticamente numa situação de interação determinada, na qual estão em jogo suas crenças e expectativas. Portanto, se a Lógica modal silencia sobre as condições de uso da língua no estudo das modalidades, a Linguística traz para a cena descritiva da modalização todo o contexto sociocomunicativo, do qual fazem parte os interlocutores, seus atos de linguagem, suas intenções e seus contextos sociocognitivos. A esse propósito, citem-se  as palavras de Neves (2006, p. 158):


“(...) a investigação das modalidades na língua em uso, embora indissociável das bases lógicas que definem as proposições individuais, se redefine em função de sua inserção pragmática, ou seja, da sua inserção no evento comunicativo, no qual a expressão linguística – e, portanto, as proposições que a compõem – é apenas um elemento dentro das relações entre falante e ouvinte, suas intenções e suas reconstruções de intenções. Reconstruídas como parâmetros comunicativos, as modalidades proposicionais, tanto da tradição antiga (por exemplo, a necessidade) como da mais recente (por exemplo, a pressuposição) se redefinem, substituindo-se verdade e falsidade das proposições pelas atitudes, crenças e expectativas dos participantes da comunicação, considerados os enunciados reais como atos de fala que contêm proposições”.



A modalidade alética ou aristotélica relaciona-se com o mundo ontológico e exprime a escala que se estende do necessário ao impossível, passando pelo possível e pelo contingente. Assim, as modalidades aléticas dizem respeito ao domínio da existência, já que determinam o valor de verdade das proposições. Consoante nota Neves (2006, p. 159).

“embora central na Lógica, a modalidade alética é dificilmente detectada nas línguas naturais, já que o comprometimento da modalização alética com a verdade relacionada a mundos possíveis torna pouco claros no discurso comum casos de sentenças que sejam apenas aleticamente modalizadas.  É muito improvável que um conteúdo asseverado num ato de fala seja portador de uma verdade não filtrada pelo conhecimento e julgamento do falante”.


Resta perguntar o que então está em jogo no exame do fenômeno da modalização. A resposta só pode ser: as diversas formas como o enunciador marca sua relação com o enunciado que produz. Modalizar é, numa primeira aproximação, o mecanismo pelo qual o enunciador marca sua atitude relativamente ao conteúdo do enunciado que produz. Decerto, há uma classe de modalizadores que são especializados para a manifestação de várias atitudes ou formas de afeto do enunciador no enunciado que ele produz. Na modalização, o enunciador deixa registrada no seu enunciado uma marca de sua presença enquanto sujeito de valoração. A modalização marca, assim, algum tipo de intervenção do enunciador no seu próprio enunciado. O que a modalização deixa apreender é o grau de engajamento do enunciador com relação ao conteúdo proposicional de que é expressão o seu enunciado.
Definirei, pois, modalização como a expressão do grau de maior ou menor adesão do enunciador ao conteúdo de seus enunciados. A modalização é, portanto, um fenômeno linguístico, pragmático que diz respeito ao grau de adesão, de comprometimento do enunciador com o conteúdo comunicado em seu enunciado. A modalização permite-nos avaliar o grau de adesão do enunciador ao seu enunciado. Na medida em que a modalização se realiza mediante recursos linguísticos, ela constitui um procedimento extremamente relevante e eficaz no processo de construção da orientação argumentativa do discurso. Destarte, manifestar o nosso grau de adesão aos nossos enunciados, marcar o tipo de envolvimento que temos com aquilo que comunicamos, é argumentar. Chamam-se modalizadores, por conseguinte, aos recursos linguísticos responsáveis pela expressão da modalização. Eles constituem marcas ou registros linguísticos que o enunciador deixa no enunciado e que permitem ao interlocutor reconhecer o tipo de envolvimento, o grau de adesão do enunciador relativamente ao seu enunciado.

2. 1. Advérbios modalizadores

Os graus de maior ou menor adesão do falante ao seu enunciado se marcam relativamente às esferas: epistêmica (quanto ao valor de verdade), deôntica (dever, obrigatoriedade, necessidade), atitudinal, de delimitação de domínio e de avaliação da própria formulação linguística[8].

Funcionalmente, os advérbios modalizadores permitem ao enunciador avaliar o conteúdo de seus enunciados. Passemos, então, a considerar as diferentes classes de advérbios modalizadores.


1) Modalizadores epistêmicos

Servem à expressão de uma avaliação que faz o falante do conteúdo de seu enunciado com base no conhecimento de que ele dispõe. O que está no escopo da apreciação do falante é o valor de verdade do que diz no enunciado. Nesse sentido, os modalizadores epistêmicos marcam a adesão do enunciador ao estado-de-coisas designado no enunciado com base em seu saber a respeito das ocorrências do mundo.
Os modalizadores epistêmicos são advérbios asseverativos. Uma vez que a asseveração pode ser positiva, negativa ou relativa, os advérbios modalizadores epistêmicos podem ser classificados de acordo com o tipo de asseveração que realizam. Assim, temos:

1.1.) asseverativos afirmativos

Os asseverativos afirmativos pertencem à classe da factualidade (= eu sei que, é certo que). Pelo uso desses modalizadores adverbiais, o falante sinaliza que o conteúdo afirmado ou negado no enunciado está fora de dúvida, é um fato. Tais advérbios assertivos indicam:

a) evidência: evidentemente, reconhecidamente;

b) irrefutabilidade: incontestavelmente, indiscutivelmente e indibitavelmente;

c) verdade dos fatos: verdadeiramente, realmente, na realidade;

d) naturalidade dos fatos: naturalmente, obviamente, logicamente;

e) crença ou certeza do falante: efetivamente, certamente, seguramente, com certeza, sem dúvida (alguma), mesmo.

1.2.) asseverativos negativos

Indicam contrafactualidade (= sei que não, é certo que não). O falante apresenta o conteúdo comunicado como indubitavelmente não factual.

Exemplo: De forma alguma, ele concordaria com essa decisão.


1.3.) asseverativos relativos

Os modalizadores adverbiais asseverativos relativos marcam a crença do falante na possibilidade ou impossibilidade, na probabilidade ou improbabilidade do conteúdo comunicado. Com tais modalizadores, o enunciador não se compromete com a verdade do que é dito; por isso, seu uso é indicativo do baixo grau de adesão do enunciador ao seu enunciado.

Exemplo: Talvez, não haja ninguém em casa.

Há duas formas bastante comuns de marcar maior incerteza no tocante ao conteúdo do enunciado: o emprego do subjuntivo ou o emprego do futuro do pretérito. Podem ocorrer também verbos auxiliares modais indicativos de eventualidade.

Exemplo: Eventualmente, eu poderia buscar as crianças na escola.
               
Talvez, ela não estivesse tão apaixonada assim.

Por outro lado, pode-se marcar certo grau de certeza ou probabilidade com o uso do indicativo, como em

Ele provavelmente se esqueceu de trazer as toalhas.

Faz-se mister salientar que os advérbios assertivos não garantem que o conteúdo do que se diz é, de fato, verdadeiro, ou falso, ou possível, etc. O uso de tais advérbios indica, certamente – e é isto que mais interessa à descrição linguística – que o enunciador pretende assumir seu enunciado como digno de crédito. A modalização, nesse caso, opera como uma estratégia pela qual o enunciador busca proteger sua própria face.[9] O uso de advérbios assertivos que atenuam o grau de adesão do enunciador ao conteúdo do seu enunciado cumpre, pragmaticamente, a função de proteção de face. Assim, o enunciador procura salvar sua própria face positiva, evitando a desconfiança do interlocutor quanto ao lugar que ele, enunciador, pretende ocupar, enquanto sujeito epistemicamente legitimado para afirmar ou negar o que diz. Em outros termos, se eu disponho de poucas evidências ou de nenhuma para dizer “sei que p”, evito que se levante contra mim alguma desconfiança ou suspeita (não quero que me tomem por mentiroso, por farsante, por desonesto, etc.), modalizando o que eu digo com uma forma como “talvez”. Assim, ao produzir “talvez, ela esteja trabalhando”, marco, pelo uso de “talvez”, baixo grau de adesão ao conteúdo comunicado. Não assumo como factual “ela esteja trabalhando” (note-se o uso do subjetivo, por força da ocorrência do “talvez”, que confere ao estado-de-coisas o caráter de eventualidade, de possibilidade).  Ser bem-sucedido ao jogar o jogo da linguagem depende de nossa capacidade de saber delimitar a extensão de nosso comprometimento argumentativo. Ao usar a língua queremos provocar a adesão de nosso interlocutor (aos nossos argumentos, opiniões, crenças) – é verdade -, mas não a qualquer custo; pois, nos jogos de linguagem também está em jogo nosso éthos, nossa reputação, nosso desejo de continuar jogando.


2) Modalizadores delimitadores

Os advérbios modalizadores delimitadores não servem para marcar o grau de comprometimento do enunciador com o valor de verdade do conteúdo proposicional do enunciado. Eles servem para delimitar o âmbito no limite do qual se deve buscar a factualidade ou não do que é dito. Vejam-se os dois exemplos abaixo:

Profissionalmente, Júlio é muito dedicado.
Pragmaticamente, esta expressão linguística é inadequada.

É possível delimitar a validade do enunciado segundo a perspectiva do falante, como no exemplo a seguir:

Pessoalmente, não me oponho a sua decisão.

Há advérbios que delimitam o domínio de conhecimento à luz do qual se deve considerar a validade do enunciado. Segue-se o exemplo abaixo:

Cientificamente, não existem evidências que sustentem a crença na existência de Deus.

Há advérbios delimitadores que marcam uma totalidade genérica. Esses advérbios operam uma generalização, e não uma restrição como os demais.

Em geral, essas terras são produtivas.

O advérbio quase opera uma generalização que recobre apenas aproximação de um limite.

O rapaz quase não sai.

Ele está quase (praticamente) falido.

Há advérbios delimitadores que operam, por sua natureza lexical, exclusivamente restrição.

Todos os indícios apontam para a culpabilidade do acusado, especificamente os indícios encontrados na varredura que fizemos em seu apartamento.

3) Modalizadores deônticos

Os advérbios que pertencem a essa classe servem para marcar a crença do falante na necessidade ou obrigatoriedade da ocorrência do estado-de-coisas designado. Esses advérbios indicam que o falante toma o estado-de-coisas representado no enunciado como algo que deve necessariamente ocorrer.

Exemplo: Estamos aqui para necessariamente protestar.


Tais advérbios co-ocorrem, frequentemente, com auxiliares modais deônticos. Veja-se o exemplo a seguir:

Ele deve necessariamente obedecer ao regulamento do clube.

O modalizador deôntico pode incidir sobre toda a oração ou sobre um constituinte dela.

ed=1254 id=5403=j1: O que acontece, naturalmente, é que, dado que há outras exigências de linguagem na televisão, se tem ido para outras formas de ficção audiovisual, não necessariamente o teatro.

Nesse exemplo, “necessariamente” incide sobre o SN “o teatro”.

O advérbio modalizador deôntico pode incidir sobre toda a oração.

Necessariamente, todos devem cumprir o regulamento.

4) Modalizadores afetivos[10]

Através do uso dos modalizadores afetivos, o enunciador exprime reações afetivas, isto é, manifesta uma disposição de espírito em relação ao conteúdo de seu enunciado.
Essa forma de modalização pode envolver simplesmente a projeção de emoções ou sentimentos do falante, tais como felicidade, curiosidade, surpresa, espanto, etc., ou pode ser também de natureza interpessoal, caso em que o sentimento que se marca pela expressão modalizadora se define na relação entre o locutor e o interlocutor.

Constituem exemplos de modalizadores afetivos subjetivos

Felizmente, infelizmente, surpreendentemente, lamentavelmente, espantosamente, curiosamente.

Constituem exemplos de modalizadores afetivos interpessoais

Sinceramente, francamente, honestamente


3. Distribuição e posição dos advérbios modalizadores


Os advérbios modalizadores podem incidir sobre:

a) um sintagma adjetival na função de modificador ou predicador. Nesse caso, o advérbio figura anteposto.

Exemplos:

As palavras realmente importantes não podem ser silenciadas.
                                               modificador

Este homem é realmente honesto.
                                                  predicador



b) um sintagma verbal

O rapaz praticamente   não sai.
                                         SV

c) um sintagma nominal

Conheço quase todos os professores desta escola.
                                       SN

Não sei quase nada.[11]
                         SN (pronominal)

d) um sintagma adverbial

Com advérbio anteposto ou posposto:

Ele falou quase inaudivelmente.

Tente falar com ela, abertamente talvez.

e) uma predicação (estado-de-coisas)

O advérbio pode vir posposto:

Conto com você realmente.

O advérbio pode figurar intercalado entre o verbo e o seu complemento, ou entre o verbo e o seu predicador.

Espero realmente notícias.

Você é realmente especial.

O advérbio pode também figurar entre o verbo auxiliar e o verbo principal, como em:

Tenho evidentemente de fazer o trabalho de novo.

Vou realmente falar com ele.

f) um enunciado

Talvez, nós devêssemos ser apenas amigos.

Provavelmente, ele não a reconheceu.

O advérbio pode figurar no fim do enunciado também:

Todas as medidas adotadas pelo governo foram ineficazes politicamente.



4. Advérbios modalizadores em reportagem e artigo de opinião: uma análise funcional-argumentativa


Quando interagimos por meio da linguagem (quando nos propomos jogar o “jogo”), temos sempre objetivos, fins a serem atingidos; há relações que desejamos estabelecer, efeitos que pretendemos causar, comportamentos que queremos ver desencadeados, isto é, pretendemos atuar sobre o outro de determinada maneira, obter dele determinadas reações (verbais ou não-verbais). É por isso que se pode afirmar que o uso da linguagem é essencialmente argumentativo: pretendemos orientar os enunciados que produzimos no sentido de determinadas conclusões (com exclusão de outras). Em outras palavras, procuramos dotar nossos enunciados de determinada força argumentativa.
A argumentatividade é constitutiva da linguagem, e o ato de argumentar consiste no ato de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões. A distinção entre argumentação e dissertação, uma vez que se aceite o fato de que a argumentatividade é uma propriedade que atravessa a dinâmica dos usos da língua, não mais se sustenta. Assim, quando dissertamos, a simples seleção de opiniões ou perspectivas sinaliza um posicionamento nosso.  A argumentação é, portanto, uma atividade linguística que pretende causar a adesão de espíritos às teses apresentadas.
Ao produzir um discurso, o homem se apropria da língua, não só com o fim de veicular mensagens, mas, principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir socialmente, instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que é por sua vez constitutivo do próprio EU, por meio do jogo de representações e imagens recíprocas que entre eles se estabelecem. Sublinho que o “Eu” se constitui na relação necessária com o “outro” por meio da palavra; nessa relação de interação verbal, o “Eu” se constitui constituindo o Eu-do-outro e por esse “Eu-outro” é constituído.
O discurso, enquanto prática social, enquanto atividade intersubjetiva, tem em vista sempre a produção de efeitos de sentidos. O texto, por sua vez, materializa o discurso. O texto se caracteriza pela tessitura, ou seja, pela rede ou teia de relações que fazem com que um texto seja texto (e não uma somatória de frases). Todo texto apresenta uma conexão entre as intenções, as idéias e as unidades lingüísticas que o compõem, por meio do encadeamento de enunciados.
Seguindo Marcuschi (2008), endosso a compreensão de gênero textual como fenômeno histórico, como forma de ação social, como entidade sócio-discursiva que está intrinsecamente relacionada à vida cultural e social. O gênero textual se caracteriza muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por seus aspectos estruturais. Disso não se segue que os aspectos formais do gênero devem ser subestimados. Há gêneros textuais em que tais aspectos serão determinantes.
Os gêneros textuais que tomo para fins de análise dos modalizadores adverbiais são paradigmáticos para a avaliação da orientação argumentativa assumida pelo autor quando do uso desses modalizadores. Em meu exame da funcionalidade dos adverbiais modalizadores na construção da orientação argumentativa, os gêneros textuais que considerarei são a reportagem e o artigo de opinião.
Na reportagem, embora o objetivo pretendido (ou declarado) seja informar o leitor, há sempre uma tentativa de convencê-lo do valor de verdade do que é comunicado. O jornalista, ao produzir a notícia, não está pura e simplesmente relatando acontecimentos do mundo extralinguístico, mas reconstruindo o próprio mundo, segundo seu ponto de vista, seus interesses, valores, ideologia ou o ponto de vista, interesses, valores e ideologia do jornal que representa. Na medida em que o discurso jamais espelha a realidade, jamais é uma fotografia do mundo, a própria reportagem dará testemunho de uma versão pública sobre o mundo, de uma forma de significá-lo, constituí-lo. O texto jornalístico não opera uma tradução linguística de um mundo já “pronto”, mas o reconstrói de forma interativa com o leitor em potencial, que é uma imagem de leitor construída por ocasião da própria produção do texto, e levando em conta os valores e as crenças da sociedade em um dado momento histórico.

4.1. O artigo de opinião

O artigo de opinião é um gênero textual, que, sendo divulgado em jornal, em revista, em periódico, na TV ou no webjornalismo, traz a opinião do autor sobre um fato noticiado ou tema de interesse político, cultural, científico, etc. No artigo de opinião, pode-se apreender mais claramente as construções do tipo textual argumentativo, já que, nesse gênero textual, o produtor do texto procura sustentar uma tese, uma proposição com base na apresentação de argumentos que buscam produzir a adesão do leitor à validade da tese que se vai sustentando.
Com vistas a examinar a função discursiva dos advérbios modalizadores, tomarei os dois textos a seguir. Neles, destaquei, em negrito, os advérbios modalizadores.


TEXTO 1
Reportagem

Bate-papos na Internet e e-mails não ajudam a escrever bem no vestibular

 Ficar horas em bate-papos na internet ou trocar e-mails frequentemente com os amigos dificilmente pode ajudar o vestibulando a fazer uma boa redação.
Nos bate-papos, a linguagem usada é coloquial, diferentemente do padrão culto do português, que deve ser adotado na redação.
“Na internet, também existe um interlocutor em concomitância de tempo. Se ele não entende algo que é dito, pode pedir explicações. Isso não acontece em uma dissertação, em que uma pessoa, que não se conhece, irá ler o texto pronto”, disse Francisco Platão Savioli, professor do Anglo.
Apesar de serem textos acabados, como as dissertações, os e-mails geralmente trazem muitas abreviações e sua pontuação é descuidada. Por isso não ajudam a desenvolver a linguagem escrita.


TEXTO 2
Depois de crises e escândalos, qual é o futuro do PT?

Luiz Carlos Borges da Silveira, empresário, médico e professor, foi ministro da Saúde e deputado federal.

Recente levantamento indica que o Partido dos Trabalhadores é o que nominalmente tem menos parlamentares com mandato envolvidos na Operação Lava Jato, o escândalo de corrupção na Petrobras. De acordo com o andamento das investigações, o Partido Popular (PP) tem 32 integrantes; o PMDB conta com 12 citados; e o PT, dez nomes. Depois estão outros, com reduzido número.

Não se trata de nenhum mérito petista – ao contrário: isso deixa claro que o PT, como partido, assumiu o controle central dos atos, seus parlamentares não têm autonomia para atuar em negociatas, propinas e corrupção ativa ou passiva, todos devem obedecer às diretrizes do núcleo diretivo do poder partidário. Nos outros partidos, os integrantes, parlamentares ou não, agem por contra própria, muitas vezes à revelia da direção das siglas a que pertencem.

Corrupção sempre existiu – e provavelmente sempre existirá –, geralmente pontual e cometida por pessoas individualmente. Com a chegada do PT ao governo, esse nefasto sistema assumiu proporções exageradas, deixou de ser prática pessoal de políticos e agentes públicos de má índole e desonestos para se tornar esquema de governo e de partido, institucionalizado; por isso os escândalos proliferaram a partir de 2003.

O partido perdeu credibilidade, as lideranças dignas que deram aval ao PT sentem-se hoje envergonhadas
A constatação dessa situação é lamentável; uma pena para a política brasileira, porque o PT foi criado com ideologia séria e firme em princípios e ideias capazes de promover mudanças nas velhas práticas e restabelecer a verdadeira ética política. E agora, qual é o futuro do PT? Não se sabe exatamente, mas é possível, depois de tantos escândalos de corrupção, prever que dificilmente haverá superação plena e volta aos ideais e bandeiras de outrora porque a depuração é lenta, demorada e existem sequelas para curar, o que somente o tempo de uma geração poderá superar e, mesmo assim, se for estabelecida e seguida uma nova conduta partidária.

O ideário petista, a pregação político-ideológica do partido, conquistou importantes segmentos da sociedade brasileira que contribuíram para o crescimento e consolidação da sigla nascida no meio sindical, no ambiente dos trabalhadores. Lideranças da intelectualidade, da cultura e até do empresariado progressista engajaram-se na luta. Como se sentem, hoje, essas forças do pensamento nacional? O PT não era aquilo que pregava? A partir desses questionamentos é que se avalia o futuro petista.

Intelectuais, sociólogos, teóricos e formadores de opinião a quem a doutrina petista muito deve para sua expansão estão quietos, sem ânimo para defender um partido mergulhado nos escândalos. O partido perdeu credibilidade, as lideranças dignas, decentes e honestas que deram aval ao PT sentem-se hoje envergonhadas, o caminho seguido afastou as pessoas de bem. A militância, tão aguerrida, está retraída e a cada ato público que encena encontra oposição e resistência nas ruas, pois é difícil defender um partido ou um governo com tantas mazelas.

O que restará ao Partido dos Trabalhadores para se recompor e reconquistar a confiança da sociedade? Teria o PT, por seus fracos líderes e mal-intencionadas lideranças, cavado esse futuro? Continuará perdendo adeptos e colaboradores de prestígio? Somente o tempo responderá.

Antes de encetar a análise da contribuição dos advérbios modalizadores na construção da argumentação, nos dois textos referidos acima, preciso chamar a atenção para o fato de que há outras construções modalizadoras, que são igualmente importantes para a orientação argumentativa, mas que não serão por mim consideradas. Por exemplo, o uso do auxiliar modal “pode” (pode ajudar, pode pedir explicações) no TEXTO 1; a ocorrência da construção “acho que”, “é verdade”, “devemos” (devemos confessar”), etc. no TEXTO 2 são exemplos de formas modalizadoras. No entanto, circunscreverei minha preocupação analítica às ocorrências dos advérbios modalizadores, tema do presente texto.
Vou-me debruçar sobre o exame dos dois advérbios modalizadores destacados, em negrito, no texto 1.  O texto 1, embora seja uma reportagem, não deixa, por isso, de ter uma orientação argumentativa. A tese que se anuncia e de cuja validade se pretende fazer com que o leitor comungue apresenta-se já de início: os bate-papos prolongados  na internet ou a troca de e-mail com amigos dificilmente ajudam a ter bom desempenho nas redações de vestibular. Quer-se, então, demonstrar que o bate-papo virtual (ou o uso de e-mail) afeta negativamente a competência do estudante na produção de redações de vestibular. Redações de vestibular são gêneros do discurso para cuja produção se espera dos alunos o domínio de recursos coesivos, de articuladores discursivos, de estratégias argumentativas, enfim, a competência necessária para sustentar uma tese com a articulação lógica-semântica e discursiva de argumentos. O primeiro argumento em favor da tese que se pretende sustentar é o da diferença de registros linguísticos empregados nas duas situações de uso da língua. No bate-papo de internet, a norma é o emprego da variedade coloquial da língua; nas redações de vestibular, exige-se o emprego da variedade de prestígio.  Essa diferença de registros de linguagem tem uma implicação importante: o aluno que se habitou a usar a língua, com muito frequência, nos bate-papos de internet acaba por limitar sua competência comunicativa no uso de uma variedade linguística que, embora adequada à situação sociocomunicativa da rede virtual de relacionamentos, não é adequada à situação de produção de redação de vestibular. Há um segundo argumento, que é anunciado polifonicamente, já que é de responsabilidade de outra voz no discurso – a do professor Francisco Platão Savioli – que consiste na observação de que o rigor de clareza e exatidão na construção do texto é maior numa modalidade escrita em que se espera o uso da variedade formal da língua. O argumento pretende assinalar uma observação importante sobre as condições de produção dos dois gêneros discursivos – o bate-papo da internet e a redação de vestibular: no primeiro, reproduz-se de modo mais ou menos aproximado o gênero da conversação face-a-face, isto é, há co-participação dos interlocutores na construção interacional do discurso, de modo que, se o locutor diz algo pouco claro ou de difícil compreensão, o interlocutor pode ele mesmo corrigir ou solicitar ao locutor que reformule o que disse, ou seja, como há co-produção do discurso, a exigência de exatidão e clareza na construção do texto é atenuada pela possibilidade sempre presente de que problemas que ocorram na produção do texto possam ser sanados on-line. A situação da redação de vestibular é completamente diversa: primeiramente, porque se trata de um texto escrito, cujo interlocutor não se faz presente no momento de sua produção; segundo porque, em decorrência da ausência do interlocutor, cabe ao produtor a inteira responsabilidade pela construção do texto; em terceiro lugar, porque é ele o único responsável pelo texto que produz, deve tomar as devidas precauções para atender aos requisitos de clareza e exatidão, ou,  em outras palavras, deve procurar construir seu texto de modo que o interlocutor possa reconstruir-lhe a coerência. Na conversação de internet, os momentos da produção e da recepção do texto quase sempre são coincidentes, o que não ocorre na produção do texto escrito canônico. Digo “quase sempre”, porque nas interações que se dão nas redes de relacionamento da internet, o locutor pode não ser satisfeito em sua expectativa de resposta responsivo-ativa por parte do interlocutor. Muitas vezes, o locutor faz sua contribuição linguística num dado momento e só obterá resposta em momento bem mais tarde, às vezes, até no dia seguinte ao da produção de seu enunciado. Cabe ainda acrescentar, como parte importante do argumento do professor Francisco Platão, o fato de que, no bate-papo da internet, à semelhança do que ocorre na conversação face-a-face, há sincronia entre as condições de produção e o processamento textual, de modo que as pressões de ordem pragmática se sobrepõem às exigências da sintaxe. No caso da redação de vestibular, o leitor já encontra o texto como produto acabado. Na conversação da internet, em geral, ou pelo menos quando se conservam as variáveis  da circunstância da conversação face-a-face, o texto vai acontecendo, exibindo seu próprio processo de construção. Em outras palavras, ele põe a nu seu próprio processo de construção, de modo que planejamento e verbalização ocorrem simultaneamente (essa é, sem dúvida, uma característica definidora do texto falado na conversação face-a-face; no bate-papo da internet, como já notei, nem sempre há coincidência entre o momento de produção e de recepção, nem sempre o planejamento do texto e sua verbalização coincidem. Podemos produzir um texto para ser postado na caixa de diálogo do interlocutor, sem que ele esteja on-line, e aguardar uma resposta, que pode aparecer muito tempo depois).
Quando o autor do texto 1, que venho analisando, considera o caso do e-mail, ele reconhece que, embora sejam gêneros do discurso da modalidade escrita, é também vazado numa variedade coloquial, ou, para ser mais preciso, não atende às exigências da modalidade formal escrita. Pode-se já fazer uma crítica ao autor da reportagem, que talvez esteja endossando a posição do professor: comete-se o erro comum de identificar modalidade escrita com variedade linguística formal. A língua escrita não é sinônimo de “língua padrão”, “língua culta”. Há textos escritos que se produzem, em consonância com o contexto, numa variedade menos prestigiada; por outro lado, textos falados não são sinônimos de uso coloquial da língua. Há textos falados que se produzem de acordo com a norma da língua de prestígio (por exemplo, os textos falados em conferências, em palestras, em uma entrevista de emprego, etc.). Assim, nem todos os e-mails podem ser escritos numa linguagem informal. O grau de formalidade do e-mail vai ser determinado pelas condições que cercam sua produção: quem é o meu interlocutor? O diretor de uma escola a quem solicito um emprego? O meu chefe? Meu amigo de faculdade? Meu pai? O chefe de meu pai? Um cliente da empresa onde eu trabalho? A que necessidades sociocomunicativas atende o e-mail?  Busco apenas comunicar a um amigo o que o professor deu em aula? Tenho interesse em solicitar ao meu orientador de doutorado um livro para a minha pesquisa de tese? A variedade linguística que utilizaremos no e-mail será diferente em cada uma dessas situações.
Retomemos, contudo, a consideração do propósito argumentativo do texto em análise. Vimos que o autor busca argumentar no sentido de que uso da língua na internet pode produzir hábitos linguísticos no usuário que são incompatíveis com o uso da língua na produção de redação de vestibular. Atendamos, agora, ao uso de “dificilmente”, que figura na tese, e de “geralmente”, que se topa no último parágrafo do texto.
No que toca ao uso de “dificilmente” e tendo em vista o objetivo básico do ensino de língua materna, o professor que se limitasse a sublinhar o comportamento sintático-semântico desse advérbio contribuiria muito pouco – para não dizer “não contribuiria” – (observe-se como procurei modalizar o que assumo como fato: “contribuiria muito pouco”) – para atingir o referido objetivo. É que a competência comunicativa supõe a capacidade de uso interacionalmente adequado da língua, capacidade que envolve saber produzir e compreender textos nos mais diversos contextos de uso. Chamar a atenção do estudante para o fato de que o advérbio “dificilmente” é um modificador da predicação “pode ajudar o vestibulando a fazer uma boa redação” é insuficiente, se o que se pretende é torná-lo mais competente no uso do português. É necessário, portanto, que se vá além do domínio estritamente sintático no ensino de língua.
Assumindo-se o comportamento discursivo do advérbio “dificilmente”, deve-se perguntar sobre a que propósitos,  a que necessidades sociocomunicativas seu uso serve. Deve-se perguntar que efeitos de sentido são produzidos com seu uso. É preciso pensar que seu aparecimento no texto não é por acaso; foi produto de uma escolha operada pelo falante entre outras opções que o sistema lhe disponibiliza. O autor do texto poderia ter feito outras escolhas. Por exemplo, poderia ter usado o advérbio “não” – “Ficar horas em bate-papos na internet ou trocar e-mails frequentemente com os amigos não pode ajudar o vestibulando a fazer uma boa redação”.  Se assim o fizesse, obteria efeitos de sentido outros. Nesse caso, o produtor do texto estaria comprometendo-se completamente com a impossibilidade do estado-de-coisas designado, ou seja, assumiria de modo categórico a crença de que entreter-se com bate-papos na internet não ajuda o vestibulando a fazer uma boa redação.
O uso de “dificilmente”, que é um modalizador epistêmico assertivo relativo, funciona como uma espécie de quantificador da adesão do locutor ao estado-de-coisas designado. Numa escala que se estende da máxima adesão (p. ex. com toda certeza não, não há dúvida alguma de que não) à mínima adesão (é possível que não, acho que não, talvez não, muito provavelmente não), o modalizador “dificilmente” situa-se num lugar aproximativo de menor adesão à possibilidade de o bate-papo de internet ou a troca de e-mail contribuir para o sucesso do estudante na produção de redação de vestibular. É importante notar que, em enunciados de polaridade afirmativa, o modalizador “dificilmente” orienta argumentativamente para a conclusão não-R, isto é, “é o caso que não-p” (cf. Dificilmente ele virá = ele não virá). Quando usado em enunciados de polaridade negativa, “dificilmente” orienta argumentativamente para a conclusão R,  ou seja, “é o caso que p” (cf. Dificilmente ele não virá = ele virá). Assim, ao dizer que o bate-papo dificilmente poderá ajudar o vestibulando a obter sucesso na redação de vestibular, o autor argumenta na direção da possibilidade de não-p, ou seja, o bate-papo não ajudará o vestibulando a obter sucesso na redação de vestibular. Modalizar com “dificilmente” enunciados afirmativos é manifestar uma relativa (maior) adesão ao estado-de-coisas que é contrário ao estado-de-coisas designado, ou seja, é tender a crer em não-p como conclusão implicada. Assim, se dizemos “dificilmente, ele virá”, comprometemo-nos com a crença na possibilidade de que “ele não virá”, conclusão implicada por “dificilmente, ele virá”. Se, por outro lado, dizemos “dificilmente, ele não virá”, comprometemo-nos com a crença no estado-de-coisas contrário, a saber, com (a possibilidade de) “ele virá”, conclusão implicada em “dificilmente, ele não virá”.
Outro modo de compreender o uso modalizador de “dificilmente” é assumir que ele é também um marcador de pressuposição. Nesse sentido, dizer “Dificilmente, o bate-papo poderá ajudar” é manifestar menor adesão ao conteúdo posto (o bate-papo poderá ajudar, tendo a não crer nisso) e maior adesão ao conteúdo pressuposto (o bate-papo não ajudará, nisso tendo a crer). Inversamente, dizer “Dificilmente, o bate-papo não poderá ajudar” é manifestar menor adesão ao posto (não creio que o bate-papo não poderá ajudar) e maior adesão ao pressuposto (pp.), isto é, ao conteúdo “o bate-papo poderá ajudar” (creio que o bate-papo poderá ajudar).
Em suma, modalizando a assertiva afirmativa com “dificilmente”, o autor manifesta sua crença em que o bate-papo e a troca de e-mail não ajudarão o vestibulando na produção de uma boa redação. “Dificilmente” encaminha a crença para (faz tendê-la para) a impossibilidade de ocorrer o estado-de-coisas posto no enunciado (cf. poderão ajudar).
Examino o uso do modalizador “geralmente”, doravante. Trata-se de um exemplo de modalizador delimitador. Esse adverbial modalizador opera uma generalização, ou seja, marca uma totalidade genérica. Semanticamente, ele recorta as circunstâncias linguísticas gerais que caracterizam o e-mail. Assim, diz-se que, na totalidade genérica dos e-mail, observam-se “muitas abreviações” e “descuido de pontuação”. Quando lançamos olhares sobre o âmbito do discurso, a fim de apreender a funcionalidade desse modalizador, não podemos nos esquivar de reconhecer que esse modalizador não implica o grau de adesão do enunciador ao valor de verdade do enunciado. Essa adesão se deixa apreender pela ausência de qualquer modalizador que lhe fixe um grau. Deverá ficar para uma discussão futura a questão de saber se, mesmo na ausência de um marcador de modalização, existe adesão do enunciador ao conteúdo do seu enunciado. Esse problema teórico tem recebido respostas divergentes por parte dos estudiosos, mas não me ocuparei desse problema aqui. Assumirei que, na ausência de um modalizador que “afrouxe” o grau de adesão do locutor ao seu enunciado, o locutor expressa sempre uma tomada de posição, ele autoriza uma interpretação que se encaminha para a afirmação de seu comprometimento com o que enuncia, já que enunciar p é crer que p, salvo, evidentemente, em contextos em que há ironia e, portanto, descompasso entre enunciação e enunciado, ou seja, quando se afirma no enunciado, mas se nega na enunciação.  Transcrevo, a seguir, o trecho em que aparece o advérbio “geralmente”.

Apesar de serem textos acabados, como as dissertações, os e-mails geralmente trazem muitas abreviações e sua pontuação é descuidada. Por isso não ajudam a desenvolver a linguagem escrita.

O advérbio “geralmente” figura no argumento que tem mais força argumentativa, ou seja, no segmento do enunciado que se encadeia sobre a oração subordinada concessiva introduzida por “apesar de”. O operador argumentativo “apesar de (que)” opõe argumentos orientados para conclusões contrárias. O argumento introduzido por “apesar de (que)” não tem força para determinar a orientação argumentativa, ou seja, com o uso de “apesar de” o locutor anuncia, de antemão, que esse argumento “não vale”, não tem força para encaminhar a conclusão R (os e-mails podem contribuir para o bom desempenho em redação). O argumento que é determinante da orientação do discurso é o argumento que se acha na oração principal “os e-mails geralmente trazem muitas abreviações e sua pontuação é descuidada”. A conclusão que se segue daí foi anunciada em “por isso não ajudam a desenvolver a linguagem escrita”.
Observei no início desse parágrafo que “geralmente” figura no argumento decisivo para a referida conclusão. Por indicar uma generalização, o uso desse modalizador faz apelo ao senso comum, ao conhecimento que se supõe partilhado com o interlocutor. O produtor busca provocar o consentimento do leitor quanto à factualidade do que afirma sobre a totalidade indefinida de e-mails. Não está em questão a existência de e-mails que escapam ao padrão, ao geral, ou seja, a existência de e-mails em que não se verificam excesso de abreviações e descuido de pontuação; isso não invalida o fato, assumido pelo locutor, de que a totalidade genérica de e-mails, ou seja, a maioria dos e-mails se caracteriza por abrigar muitas abreviações e por descuidar da pontuação.
É preciso cuidado ao usar um modalizador como “geralmente”, porquanto, às vezes, esse modalizador pode indicar apenas uma falta de compromisso com um exame mais apurado, mais consciencioso e crítico das coisas. Por exemplo, dizer algo como “Em geral, os alunos das universidades públicas são mais aplicados do que os das universidades particulares” é uma pretensão à generalização que sinaliza a reprodução de certo preconceito vulgarmente aceito em nossa sociedade, sem questionamento. O uso de “em geral” ou “geralmente” com enunciados que expressam juízos de valor pode reproduzir mais uma posição ideológica, um preconceito de classe, político ou outro qualquer do que uma generalização com pretensão ao consentimento de factualidade. Em nossa sociedade falocêntrica, sistemicamente machista, é comum, por exemplo, ouvirmos algo como “em geral, as mulheres não sabem dirigir”, caso em que “em geral” pretende naturalizar desigualdades sociais na luta pelo acesso ao poder. Esse uso de “em geral” é, por isso, ideológico, já que busca legitimar, com base na crença numa “deficiência natural”, o interesse de manter a dominação sobre um grupo minoritário, de limitar o acesso desse grupo a um lugar de poder e de autonomia.

Finalmente, considerarei as ocorrências dos modalizadores que se topam no texto 2.  Malgrado eu ter destacado a forma “dificilmente”, escusar-me-ei de avaliá-la, já que o fiz no texto anterior. O texto 2 tem como título uma questão sobre qual será o futuro do PT depois das crises e escândalos que marcam a o contexto político atual de nosso país. O autor termina o texto sem apresentar uma resposta à questão – “somente o futuro dirá”. Mas ele defende uma tese sobre a derrocada da credibilidade petista. Para o autor, foi com a chegada do PT ao governo que a corrupção assumiu a forma institucionalizada, isto é, tornou-se prática de governo e de organização partidária.
No primeiro parágrafo, alude-se a um levantamento recente que teria constatado que o número de parlamentares do PT citados pela Operação Lava Jato é menor do que o número de parlamentares de outros partidos. Inicialmente, portanto, o texto procura encaminhar a conclusão de que o PT é menos corrupto do que os demais partidos. No entanto, devemos atentar para o uso do adverbial nominalmente, que é um modalizador delimitador de domínio. O que o autor considera como fato deve ser considerado à luz do âmbito dos parlamentares cujo nome foi citado na Operação Lava Jato. Nominalmente quer dizer - individualmente há um número menor de petistas citados pela Operação Lava Jato no envolvimento de corrupção na Petrobrás. O autor pretende convencer o leitor da factualidade do que diz no seu enunciado circunscrevendo a factualidade ao domínio delimitado pelo adverbial modalizador “nominalmente”. Há, decerto, um problema que não podemos ignorar. O autor recorre à autoridade de um “recente levantamento”, ou seja, de alguma fonte investigativa confiável que garante ser menor o número de parlamentares individualmente citados no envolvimento na corrupção da Petrobrás. Como o autor não cita a fonte investigativa, isto é,  a autoridade que constatou o que se pretende seja factual, resta ao leitor que não dispõe do conhecimento que tem o autor sobre o levantamento recente a que ele se refere confiar em que o autor está seguindo uma das Máximas Conversacionais de Grice – a Máxima da Qualidade: “só diga coisas para as quais tem evidência adequada; não falte com a verdade”.
O parágrafo seguinte procura conduzir o leitor para uma conclusão contrária à que o primeiro parágrafo autorizava. O segundo parágrafo inicia-se com o enunciado: “não se trata de nenhum mérito petista”. O fato de que há, nominalmente, menos parlamentares petistas citados na Operação Lava Jato não constitui nenhum mérito petista. Para o autor, isso significa outra coisa: significa que a corrupção, com o PT, não é mais uma prática de indivíduos que teriam autonomia para envolver-se em negociatas, mas de parlamentares que devem seguir as diretrizes do núcleo do poder partidário até mesmo quando desejam obter vantagens ilícitas em esquemas de corrupção.
A corrupção não é um problema exclusivo do PT – essa é a ideia em torno da qual se estrutura o argumento do terceiro parágrafo. É nesse parágrafo que o autor lança mão do advérbio modalizador epistêmico provavelmente para marcar seu grau de adesão ao conteúdo de “a corrupção sempre existirá”. O uso de “provavelmente” não marca adesão ao valor de verdade do enunciado. O que ele marca é a crença do autor na possibilidade de ser o caso que p, ou seja, na possibilidade de dar-se o conteúdo comunicado. Provavelmente sinaliza, portanto, a intervenção do autor como sujeito que acredita na possibilidade de a corrupção jamais deixar de existir.
Passemos, agora, ao uso de geralmente, que se segue, no mesmo enunciado, ao uso de “provavelmente”. Transcrevo, abaixo, todo o parágrafo em tela, com vistas a facilitar a compreensão do leitor.

Corrupção sempre existiu – e provavelmente sempre existirá –, geralmente pontual e cometida por pessoas individualmente. Com a chegada do PT ao governo, esse nefasto sistema assumiu proporções exageradas, deixou de ser prática pessoal de políticos e agentes públicos de má índole e desonestos para se tornar esquema de governo e de partido, institucionalizado; por isso os escândalos proliferaram a partir de 2003.

O segmento “e provavelmente sempre existirá” figura sob o modo de um comentário (note-se que vem isolado entre dois travessões). Dar-se conta de como as informações se organizam sintaticamente é importante, nesse caso especialmente, para que não nos confundamos quanto ao domínio semântico-sintático em que se acha o modalizador “geralmente”. Lançando olhares sobre o parágrafo supracitado, devemos notar que “geralmente” integra o segmento “pontual e cometida por pessoas individualmente”, o qual se prende sintaticamente ao segmento “corrupção sempre existiu”. Assim, o domínio semântico-sintático em que se acha  “geralmente” é o seguinte:

Corrupção sempre existiu, geralmente pontual e cometida por pessoas individualmente.

O modalizador “geralmente” incide sobre os sintagmas adjetivais “pontual” e “cometida por pessoas individualmente” na função de modificador (modificador do sujeito “corrupção” = a corrupção é que é pontual e cometida por pessoas individualmente). Já vimos que o modalizador “geralmente” é do tipo delimitador de domínio. Ele opera uma generalização. O que se generaliza são as qualidades que definem a prática “padrão” de corrupção – “pontual” e “individual”. O autor não nega que, historicamente, possam ter existido casos em que a corrupção impregnou grandes setores sociais (organizações, instituições), mas pretende nos fazer crer e aceitar o fato de que, considerada a totalidade das práticas de corrupção, elas foram episódicas e não tiveram alcance estrutural ou sistêmico. O uso de “geralmente”, porque delimita uma totalidade genérica, na base da qual devemos considerar a factualidade do conteúdo afirmado, é uma estratégia argumentativa que exime o autor de determinar a quantidade numérica dos referentes dos quais predica. O uso de “geralmente” pode simplesmente ser o único recurso disponível quando não estamos em condições de afirmar com exatidão, quando é necessário  evitar afirmações taxativas, cujo custo é um comprometimento que nos aproxima do dogmatismo. Por ser uma alternativa à impossibilidade de quantificação numérica de casos, de referentes dos quais predicamos, “geralmente” não imuniza o enunciador da responsabilidade por vagueza, imprecisão ao reportar-se a eventos, situações, por isso seu uso deve procurar ancorar-se num conhecimento comumente aceito e quase nunca questionável.
Finalmente, considere-se o uso de “exatamente”, no trecho transcrito abaixo:

O partido perdeu credibilidade, as lideranças dignas que deram aval ao PT sentem-se hoje envergonhadas
A constatação dessa situação é lamentável; uma pena para a política brasileira, porque o PT foi criado com ideologia séria e firme em princípios e ideias capazes de promover mudanças nas velhas práticas e restabelecer a verdadeira ética política. E agora, qual é o futuro do PT? Não se sabe exatamente, mas é possível, depois de tantos escândalos de corrupção, prever que dificilmente haverá superação plena e volta aos ideais e bandeiras de outrora porque a depuração é lenta, demorada e existem sequelas para curar, o que somente o tempo de uma geração poderá superar e, mesmo assim, se for estabelecida e seguida uma nova conduta partidária.


À questão “ E agora, qual é o futuro do PT?”, segue-se a afirmação da incerteza. Ao usar “não se sabe exatamente”, o autor inscreve o não-saber polifonicamente. O não-saber é atribuído a outro(s) enunciador(es) – provavelmente especialistas, como cientistas políticos, economistas, sociólogos, etc. O sujeito do discurso se inscreve nesse lugar (social) de desconhecimento, de não-saber, partilha desse não-saber, mas, em seguida, afirma sua crença na possibilidade de que será difícil a “superação plena e volta aos ideais e bandeiras de outrora porque a depuração é lenta, demorada e existem sequelas para curar”. No que toca ao uso de “exatamente”, parece claro que funciona como um advérbio delimitador, ou seja, ele modaliza delimitando o âmbito de incidência do não-saber. A negação do saber qual será o futuro do PT atinge rigorosamente o significado do que é “saber algo”: não se sabe com certeza qual será o futuro do PT, há absoluta ignorância sobre o que acontecerá (logicamente, não se pode saber o que se dará no futuro) com o PT,  mas admitem-se hipóteses sobre seu destino. A modalização de “exatamente” é do tipo restritiva e significa: tomando-se rigorosamente o significado de saber, não há saber algum a respeito do que acontecerá com o PT. Ou ainda: literalmente, não há saber a respeito do destino do PT. O uso de “exatamente” pretende que se aceite a factualidade do que é enunciado no limite que é por ele fixado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: 2002

CÂMARA Jr., Mattoso. Dicionário de Linguística e Gramática. Petrópolis: Vozes, 2002

CUNHA, Celso. Luís F. Lindley Cintra. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.


KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Contexto, 2004.

LIMA, Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Olympio, 2001.

MARCHUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.


NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de Usos do Português. São Paulo: UNESP, 2000.
_______________ . Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2006.












[1] É muito comum também encontrarmos atividades em que se solicita o reconhecimento da função sintática do “advérbio”. Em qualquer um dos casos, não há nenhuma preocupação em examinar o comportamento discursivo do advérbio, o que demandaria perguntar-se pelos efeitos de sentido produzidos por seu uso.
[2] Há, também, modificadores oracionais, que representados por sintagmas adverbais ou sintagmas preposicionais que se ajuntam a toda a oração. Eles são externos à oração. (cf. Naturalmente, eles foram pescar; De fato, eles ficaram insatisfeitos).
[3 A rigor, a função de modificador é desempenhada por três classes de sintagma: o sintagma adjetival (cf. a bela menina), o sintagma adverbial (cf. ele andava depressa) e o sintagma preposicional (cf. a casa de Araruama).


[4] “Professor”, porque é vocativo, não integra a estrutura da oração e, por isso, não pode ser considerado “tema”. Tema e rema designam modos de estruturar a informação oracional.
[5] Há, me parece, outros aspectos que definem para o modificador, especialmente para este modificador, um grau de aderência maior que o grau de aderência que tem o artigo. Aqui, apenas levanto duas hipóteses: a) a primeira diz respeito à forma do constituinte, isto é, ao fato de ele prender-se ao conjunto “núcleo + SP” por meio de um instrumento de conexão, que é a preposição; b) a segunda diz respeito ao tipo de relação (semântica) estabelecida. O artigo não traz nenhuma contribuição semântica ao substantivo ao qual se relaciona; determina, na verdade, o estatuto pragmático-cognitivo do referente designado pelo substantivo. Por outro lado, um sintagma preposicional como “de Saquarema” acrescenta um conteúdo semântico – ‘localidade’ – à extensão do substantivo ao qual se prende.
[6] Um expediente que nos ajuda a determinar o baixo grau de aderência do artigo ao núcleo substantivo consiste em intercalar entre o artigo e o núcleo outros determinantes. Sendo a intercalação possível, mostra-se que o artigo é o menos aderente dos determinantes. Assim, por exemplo, dado o sintagma “a garota”, podemos inserir entre o artigo e o núcleo outros elementos. Assim, podemos ter “a bela garota”, “as três belas garotas”, “as três belas interessantes garotas”. Por meio desse expediente, fica claro que o artigo é o menos aderente ao núcleo, já que, à proporção que inserimos um novo item, o artigo vai-se distanciando do núcleo.
[7] Segundo Neves (2006, p. 263), “Em português (...) as partículas adverbiais são fontes de elementos coordenativos, e também são fluidos os limites entre um papel semântico-discursivo e um papel basicamente relacional de tais partículas. Fluida é a própria classificação que pode ser atribuída a elementos ou sintagmas como porém, entretanto, contudo, no entanto, portanto, por conseguinte. As gramáticas em geral arrolam todas essas formas entre as conjunções coordenativas, embora elas não passem nos testes que lhes poderiam dar esse estatuto (...).
[8] Os textos que examinarei não contemplam exemplos de adverbiais modalizadores comentadores da forma de nossos enunciados. Alguns exemplos podem ser, no entanto, oferecidos: “Falando brevemente, estou de acordo”; Apresentando esquematicamente o problema...”.
[9] Num trabalho desenvolvido, em 2010, durante meu doutoramento em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro procurei mostrar de que modo os recursos de modalização estão a serviço das estratégias de preservação da face. Nesse trabalho, preocupei-me, especialmente, com a relação intrínseca entre as formas de tratamento e os recursos de modalização como fenômeno de negociação da face.
[10] Em meu artigo “As marcas da valoração em cartas de leitores: a instanciação da categoria de afeto”, publicado na Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, examino a função de expressões que marcam afeto na construção do sentido em cartas de leitores. O artigo pode ser acessado em:
[11] O núcleo de um SN pode ser um substantivo ou pronome substantivo.