segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"A má consciência é a perversão da vontade de poder no homem"





PARTE III[1]

                        A má consciência: inibição dos instintos

O título que demos à primeira seção dessa terceira parte deixa entrever nossa proposta de compreensão do problema da má consciência, explorado por Nietzsche na Segunda Dissertação da Genealogia. O que nos chama atenção tão-logo nos aproximamos do tratamento dispensado por Nietzsche ao problema da “má consciência” é o fato de ela formar-se a partir de um conflito entre impulsos instintivos e imposições sociais.  A má consciência é o efeito colateral do processo de domesticação social a que é submetido o homem. Para integrar-se na ordem social, o animal humano precisa ser educado em práticas disciplinadoras, castradoras de suas tendências agressivas, antissociais. É difícil evitar a tentação de aproximar as interpretações de Nietzsche e de Freud, à medida que se vai descobrindo que o tratamento dispensado por Nietzsche ao tema da má consciência parece prefigurar um horizonte de intuições valiosíssimas que viriam a dar corpo à teoria freudiana das neuroses. No entanto, evitaremos aqui ler a concepção nietzschiana de má consciência à luz da teoria das neuroses de Freud. Em todo caso, registre-se que Nietzsche soube ver muitos aspectos da neurose que Freud viria a estudar e aprofundar na Psicanálise, tais como conflitos entre o medo, a ira (agressão) e sentimento de culpa.[2] Evitaremos o uso do vocábulo “neurose” para nos referirmos aos sintomas da má consciência, já que não queremos sugerir que se tome a má consciência por neurose[3].
A fim de que possamos compreender o que é a má consciência e qual é a sua gênese, é necessário, primeiramente, compreender o que Nietzsche entende por consciência[4]. Em A Gaia Ciência, se topa um fragmento em que Nietzsche nos diz, inicialmente: “A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, o que nele é mais inacabado e menos forte”.[5] A consciência não é uma faculdade superior; não se opõe ao corpo; não se identifica com um “eu”, tampouco controla a vida orgânica do vivente. A consciência é produto de processos orgânicos, é instinto entre outros instintos – um instinto, é verdade, que, segundo Nietzsche, foi tomado como instinto predominante sobre os outros.
Recorde-se que Nietzsche pensava a vida como um combate incessante de forças (e estamos autorizados a dizer: de instintos). A consciência, na medida em que é produto do desenvolvimento do orgânico, é marcada por um incessante combate. A consciência é também corpo, muito embora tenha instrumentalizado o corpo. É assim que a consciência pode sentir-se como “pessoa” ou “sujeito” e, portanto, como superior ao corpo.
Essas considerações sobre a consciência, à luz da compreensão nietzschiana, deverão ser suficientes para os nossos propósitos. Não posterguemos mais a consideração do problema da má consciência. Começaremos por compreender a sua gênese, esforço este que deverá nos encaminhar, segundo pretende Nietzsche, ao desenvolvimento da relação entre “credor” e “devedor” e o consequente aparecimento do sentimento de culpa.


3.1. A relação contratual entre credor e devedor

A relação entre credor e devedor constituirá o quadro teórico à luz do qual Nietzsche explicará a origem do  conceito moral de culpa, a funcionalidade da aplicação do castigo, a equivalência entre dor e dano e o consequente desenvolvimento da má consciência.
Segundo Nietzsche, a origem do conceito moral de culpa está no conceito muito material de dívida, a qual supõe a relação contratual entre credor e devedor. O castigo é reparação e seu conceito se desenvolveu sem qualquer pressuposto de liberdade da vontade, a partir do qual se creria que o castigado poderia ter agido de outro modo, evitando, assim, o castigo. A aplicação do castigo como forma de reparação de um dano causado não supunha também a responsabilidade do perpetrador, conforme lemos no excerto a seguir:

Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o deliquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devido a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou, mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador.[6] (ênfases no original)

Como se pode ver, a motivação para a aplicação do castigo foi, durante um longo período da história humana, a raiva que experimenta aquele que foi lesado. O que Nietzsche buscará descrever a partir daí é o modo de funcionamento da psicologia humana antiga. O castigo permite a quem foi lesado liberar sua raiva na forma de castigo no causador do dano. A dor sofrida por este, como consequência do castigo que lhe foi aplicado, funciona como uma compensação do dano sofrido. Nietzsche fará remontar a origem da equivalência entre dano e dor à relação entre credor e devedor. Ao ocupar-se dessa relação, Nietzsche começa observando que nela é necessário que se façam promessas. As promessas constituem no devedor, isto é, naquele que promete saldar sua dívida, uma memória. No momento em que, ao se fazerem promessas, se constrói uma memória, toda uma série de punições cruéis, duras passariam a encontrar justificação. Ao prometer, o devedor não poderá alegar esquecimento na tentativa de escapar ao castigo ou de adiar o momento de sua aplicação, porque, por ocasião da promessa, tem memória e, com ela, a restituição ao credor torna-se para ele um dever ou obrigação. Assim, consoante Nietzsche,

O devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um contrato, empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo, seu mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida (ou em certas circunstâncias religiosas, sua bem-aventurança, a salvação de sua alma, e por fim até a paz no túmulo (...). [7]

Mas essas formas de garantia dadas pelo devedor ao credor não subtraía a este o poder de punir o devedor com toda sorte de aflições e torturas em seu corpo. A dor causada ao devedor infunde no credor “uma espécie de satisfação íntima”; e essa satisfação funciona como um equivalente ao benefício que se seguiria do saldo da dívida. Na impossibilidade de ser ressarcido, o devedor se regozija em poder causar sofrimento no devedor. Por isso, escreve Nietzsche “a compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”.[8]
Uma observação se impõe urgente, antes de prosseguirmos. Para Nietzsche, é na esfera das obrigações legais que devemos buscar a origem do mundo dos conceitos morais. É nessa esfera que se desenvolverá o conceito de culpa, de consciência, de “dever”, da “sacralidade do dever” – e não menos importante: é preciso reconhecer, com Nietzsche, que esse mundo dos conceitos morais se constituiu com muito derramamento de sangue e práticas de tortura, com muito gosto apurado pela prática do sofrimento. Nietzsche identifica nesse mundo o vínculo entre culpa e sofrimento, donde a necessidade da pergunta: em que medida o sofrimento pode compensar uma dívida? A resposta já pode ser inferida do que se expôs sobre a satisfação na aplicação do castigo: “fazer sofrer era altamente gratificante”[9] – escreve Nietzsche. O sofrimento causado ao devedor compensava o desprazer sentido pelo credor pelo dano que aquele lhe causou. Fazer sofrer, nota Nietzsche, torna-se assim uma “grande festa”, e a crueldade  passou a ser “o grande festivo da humanidade antiga”[10] Em Aurora, Nietzsche escreve sobre “a alegria da crueldade”, considerando-a uma experiência predominante na condição humana. Leia-se atentamente o que nos diz Nietzsche sobre ela.

A crueldade é uma das mais antigas alegrias da humanidade. Julga-se, por conseguinte, que os próprios deuses se reconfortam e se divertem quando lhes é oferecido o espetáculo da crueldade, de tal modo que a ideia do sentido e do valor superior que há no sofrimento voluntário e no martírio escolhido livremente foi introduzido no mundo. Pouco a pouco o costume estabelece na comunidade uma prática conforme essa ideia doravante se desconfia de todo bem-estar exuberante e se recobra confiança cada vez se está num estado de grande dor; então se diz que os deuses poderiam ser desfavoráveis por causa da felicidade e favoráveis por causa da infelicidade – desfavoráveis e de modo algum compassivos (...).[11]


Nesse trecho, Nietzsche alude a um tema que se prende intimamente ao tema dos ideias ascéticos: o do sofrimento voluntário e o do martírio escolhido. O problema do sofrimento no cristianismo merecerá alguma atenção nossa antes de nos ocuparmos com o problema dos ideais ascéticos ainda nesta terceira parte de nosso tratado. Por ora, é conveniente continuar com a discussão que então iniciamos nesta subseção, voltando-nos, doravante, para a questão do sentido do castigo.
Nietzsche observa que, muito embora a história do castigo (como toda história), tendo-se realizado pela condensação semiótica da experiência do castigo em conceito, não possibilite o acesso a todos os fins a que servia o castigo, é possível recuperar os diversos fins da aplicação do castigo quando nos reportamos a um estágio anterior em que a síntese dos “sentidos” ainda nos permite algum discernimento.[12] Assim, Nietzsche passará a elencar a diversidade de propósitos a que servia o procedimento do castigo. Para fins dessa discussão, importa-nos destacar dois sentidos do castigo dentre os que Nietzsche apresenta: 1) o castigo destinado à criação da memória; 2) o castigo destinado a incutir sentimento de culpa. Como criação da memória, o castigo serve de advertência tanto para aquele que sofre o castigo como para os que o testemunham. O que mais nos interessa, no entanto, é o segundo sentido do castigo: o ser ele capaz de inspirar sentimento de culpa naquele que é castigado. Nietzsche discordará dessa crença comum. Para ele, o castigo não conseguiu produzir o alegado sentimento de culpa. Isso significa dizer que o castigo não produziu a má consciência ou, o que Nietzsche entenderá, a esta altura, como “remorso”. Para ele, o castigo somente “endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância, aumenta a força de resistência”.[13] Portanto, Nietzsche nega que a má consciência tem surgido como sentimento de culpa decorrente da aplicação do castigo. Quem aplicava o castigo não pensava que estivesse em face de um culpado, mas de um causador de dano. Agora, devemo-nos perguntar: qual era a reação do infrator ao castigo recebido? Façamos Nietzsche dizer:

(...) durante milênios os malfeitores alcançados pelo castigo pensaram a respeito de sua “falta”: “algo aqui saiu errado” e não: “eu não devia ter feito isso” – eles se submetiam ao castigo como alguém se submete a uma doença, a uma desgraça ou à morte, com aquele impávido fatalismo sem revolta (...). Se havia então uma crítica do ato era a prudência que a exercia: inquestionavelmente se deve buscar o genuíno efeito do castigo, antes de tudo, numa intensificação da prudência, num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta, desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para muitas coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio.[14]


Nietzsche não poderia ser mais claro ao nos explicar qual é, realmente, o efeito produzido pelo castigo naquele sobre o qual ele recai: “numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta”. O que sofre o castigo não tomará como lição “nunca mais devo fazer o que fiz”, mas sim “na próxima vez, terei de ser mais cuidadoso”. Se o castigo não causa naquele que o recebe sentimento de culpa, não deixa de causar, de modo geral, o medo e o “controle dos desejos”. O castigo atende à domesticação do homem; o castigo pode servir para reprimir seus instintos agressivos, para conformá-lo às exigências da vida civilizada, mas jamais o torna melhor. Essa conformação às exigências da vida civilizada não representa, de modo algum, um aumento da vontade de poder no homem; é apenas um procedimento repressor que permite mantê-lo sob vigilância, sob controle.
Terminado esse exame do conceito de castigo, do qual demos um testemunho o mais cuidadoso possível, Nietzsche apresentar-nos-á sua hipótese provisória sobre a origem da má consciência. Essa hipótese não se nos apresenta na forma de um enunciado único e definidor, que possamos apreender diretamente sem a necessidade de elaborá-lo em consonância com os desdobramentos dela. A origem da má consciência repousa no voltar-se de todos os instintos contra o homem – a hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – que animavam a vida do homem livre e selvagem. A má consciência é, portanto, um adoecimento do homem por força desse retorno contra si mesmo dos instintos que davam à sua vida um caráter de inocência. Por que sucede esse retornar dos instintos para o interior do homem? Porque os instintos devem ser retidos, ao longo do processo de socialização, de desnaturalização do homem, como condição para o ingresso no mundo da cultura. O que o homem experiencia nesse processo é uma grande pressão interna, justamente porque seus instintos precisam ser reprimidos, inibidos, não encontrando ocasião para a descarga. Esse é o custo para que o homem ingresse no “âmbito da sociedade e da paz”[15]. A má consciência – “esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo”[16] é resultado de processos disciplinadores destinados ao amanssamento do animal humano. A má consciência é o próprio sofrimento do homem que se interiorizou, que foi forçado a reter seus instintos em seu interior, que se viu privado de descarregar todo o quantum de suas forças. Acompanhemos Nietzsche:

Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”.[17]

A má consciência inscreve no interior do homem a memória do pesado custo da separação do  próprio homem de sua condição originária como animal selvagem. Doravante, o homem domesticado, corroído por um profundo sentimento de mal-estar consigo mesmo, transforma-se numa arena de conflitos instintivos incessantes.


3.2. A má consciência: o homem como inimigo de si mesmo


A má consciência é a perversão da vontade de poder no homem, pois que, alcançado esse estado de adoecimento do homem, este se serve dela para violentar a si mesmo, para conformar-se (‘lapidar-se’). Nietzsche se refere a isso como uma “crueldade de artista” - não do artista dionisíaco que conduzirá o homem a reconciliar-se consigo mesmo-, mas do artista que se deleita “em se dar uma forma, como a uma matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não”[18]. Esse homem cindido pela má consciência faz sofrer a si mesmo. Todos os ideais ascéticos encontram aqui sua origem: ausência de si, abnegação, sacrifício, o prazer em se mortificar, o tornar-se desinteressado, etc. O não-egoísmo como valor moral é consequência dessa necessidade que tem o homem, a partir de então, de se maltratar. A má consciência é a vontade de maltratar-se que dominará o homem.
Estendamos nossas considerações, doravante, aos seguintes tópicos sem cujo tratamento nosso estudo estaria analiticamente fraturado. Os tópicos que passaremos a considerar são os seguintes: 1) o desenvolvimento do sentimento de culpa; 2) a moralização da culpa e do dever; e 3) a relação entre a má consciência e a noção de Deus.


3.3. O desenvolvimento do sentimento de culpa

Devemos, pois, procurar examinar o seguinte problema: se o sentimento de culpa não surge da aplicação do castigo, como, afinal, ele apareceu? O sentimento de culpa é um estágio de agravamento da má consciência, é uma forma de doença mais terrível. Para que compreendamos como surgiu no mundo o sentimento de culpa, devemos acolher o convite de Nietzsche a retomar a relação de direito privado entre o devedor e o credor, a fim de que, a partir daí, se nos esclareçam seus desdobramentos.
Nietzsche ensina que o modelo de relação entre devedor e credor foi projetado na relação entre os vivos e os seus antepassados. Nas comunidades tribais, a geração sobrevivente reconhece ter uma obrigação jurídica com seus antepassados. Os integrantes da comunidade acalentam a crença de que a subsistência da comunidade se deve aos sacrifícios e aos grandes feitos de seus antepassados. Disso concluem que têm para com eles uma dívida, que não cessa de avolumar-se, porquanto os antepassados, sendo espíritos poderosos no além-mundo, continuam a beneficiar a sua estirpe. Os membros da comunidade lhe devem, por isso, sacrifícios e realizações. Entre esses sacrifícios e realizações, estão, segundo Nietzsche: “alimentação, festas, música, homenagem, sobretudo obediência”[19].
A relação entre os vivos e os antepassados assenta-se numa lógica de proporcionalidade que consiste na seguinte:

o medo do ancestral e do seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce necessariamente na exata medida em que cresce o poder da estirpe, na medida em que ela mesma se torna mais vitoriosa, independente, venerada e temida. Não o contrário! E todo passo para o debilitamento da estirpe, todo acaso infeliz, todos os indícios de degeneração, de desagregação iminente, diminuem o medo do espírito de seu fundador, oferecendo uma imagem cada vez mais pobre de sua sagacidade, de sua previdência e da presença de seu poder.[20] (ênfases no original).


Essa lógica, segundo pretende Nietzsche, se levada até as últimas consequências, deverá estruturar a seguinte perspectiva. Os ancestrais das estirpes mais poderosas se transfigurarão em deuses por força da fantasia e do temor dos integrantes da comunidade. Nietzsche acredita que a origem dos deuses talvez possa estar no medo. Ainda segundo Nietzsche, a crença em que os vivos contraem dívidas para com as divindades subsistiu ao declínio das formas de organização humana baseada em vínculos de sangue. As gerações posteriores herdaram o compromisso com as dívidas não pagas e o mesmo anseio de redimir-se perante os deuses. O sentimento de culpa em face da divindade não cessou de crescer durante milênios e sempre na mesma proporção com que o conceito e sentimento de Deus se superlativizavam. No que toca ao aparecimento do conceito do Deus cristão, observa Nietzsche o seguinte:

O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. Supondo que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um declínio considerável da consciência de culpa do homem; sim, não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira]. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis.[21]


Antes de nos ocuparmos com a elucidação do segundo problema entre os três que definimos como objeto de nossas considerações, convém dilucidar alguns pontos que talvez ainda permaneçam com alguma margem de dúvida. Nietzsche propôs pensar o agravamento da má consciência, isto é, o sentimento de culpa a partir do modelo de relação contratual entre credor e devedor. A grande transformação ocorrida nesse modelo para que fosse possível o surgimento da consciência de culpa foi que a relação baseada num sentimento de dívida reúne agora os vivos como devedores e os mortos como credores. Essa consciência de ter dívida para com os mortos era sempre alimentada, renovada e mantida pela fantasia e pelo medo dos vivos. Pela fantasia, os homens tomam como credor os antepassados, e por força dela também, os que pertencem à estirpe mais poderosa transformam seus antepassados em divindades. A mesma fantasia os faz experienciar o temor crescente em face da possibilidade de serem punidos, caso negligenciem o cumprimento do dever que lhes foi herdado pelas gerações precedentes. Está, pois, constituído o mecanismo psicológico que será decisivo na moralização da culpa. O devedor imagina-se perpetuamente em dívida com seus antepassados-deuses. A consciência de culpa é um sintoma de um processo imaginativo que está na origem de uma série de crenças: crença num credor sobre-humano, crença em estar em dívida com esse credor, crença na influência benévola ou malévola desse credor, crença na “hereditariedade” do compromisso com o credor. Como seja produto de um processo imaginativo que se reproduz continuamente, a consciência de culpa encontra aí um terreno sólido para se perpetuar.
No que diz respeito à crítica avassaladora que Nietzsche dirigirá ao cristianismo, não devemos perder de vista o fato de que ele estava muito pouco interessado no problema da existência ou inexistência de Deus, ou na exatidão histórica das lendas fundadoras do cristianismo. Para ele, importava muito mais considerar o problema do valor da moral cristã. Nietzsche considerava a moral cristã “um atentado capital contra a vida”[22]
Por fim, atentando para o excerto citado anteriormente, o que deveremos, na próxima subseção, examinar é justamente o modo como o sentimento de culpa foi maximizado com o advento do Deus cristão.



3.4. A moralização da culpa e do dever e a relação da má consciência com a noção de Deus


A moralização da culpa e do dever tem como pressuposto a crença no Deus cristão, agora o novo credor do homem. Com a crença no Deus cristão, o homem contrai uma dívida que jamais conseguirá saldar. A má consciência está mais profundamente enraizada nele, e a culpa e o dever o afligem com uma força destrutiva jamais conhecida. Não lhe é possível mais realizar a penitência; sua condição é de castigo eterno. Todavia, não é só o homem que é atormentado pela culpa e pelo dever; o dever e a culpa voltam-se também contra o credor. Primeiramente, contra o ancestral do homem, Adão. A espécie humana agora carrega uma maldição (“pecado original”); ou ainda se voltam contra a natureza, agora demonizada, porque dela se origina todo mal; ou contra a existência, então destituída de qualquer valor (donde o desejo do nada, o desprezo niilista pela vida).
O cristianismo ainda legaria à história o mais eficaz paradoxo: o Deus sacrificado. Agora, é o credor que se sacrifica pela culpa do homem; o credor paga a si mesmo. Somente Deus pode redimir o homem – “o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”[23]
Nietzsche argumenta que a invenção da má consciência fez surgir no homem a vontade de se torturar. O homem, que inventou a má consciência, soube ainda intensificar o mal a si mesmo: passou a crer estar em dívida para com Deus e, assim, criou seu maior instrumento de suplício.

Ele apreende em “Deus” as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais: ele reinterpretou esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizada, insurreição, rebelião contra o “Senhor”, o Pai, o progenitor e princípio do mundo), ele se retesa na contradição “Deus” e “Diabo”; todo o Não que diz a si, à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta fora de si como um Sim, como algo existente, corpóreo, real, como Deus, como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus verdugo, como Além, como eternidade, como tormento sem fim, como inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa.[24]


Deus se torna signo de uma implacável crueldade psíquica cometida pelo homem contra si mesmo. A vontade se torna corrompida no homem. O homem quer-se culpado, quer-se castigado, quer-se desprezível, quer-se irredimível.  Nietzsche diz que o homem deseja “cortar para si a saída desse labirinto de “ideias fixas”[25]: como evitar não pensar na neurotização do homem, no adoecimento psíquico do homem - do homem que se torna um compulsivo obsessivo transtornado?



Aqui há doença, sem qualquer dúvida, a mais terrível doença que jamais devastou o homem – e quem ainda consegue ouvir (mas hoje não há ouvidos para isso!) como nessa noite de tormenta e absurdo ressoou o grito de amor, o grito do mais sequioso êxtase, da salvação no amor, voltará as costas, tomado de horror invencível... Há tanta coisa horrível no homem!... Já por muito tempo a terra foi um hospício!...[26]



3.5. Os ideais ascéticos: o autodesprezo do homem

Nesta última seção da terceira parte de nosso estudo, vamos enfocar a significação dos ideais ascéticos, tendo como pressuposto o fato de eles servirem como instrumento de hostilidade à vida. Embora Nietzsche se tenha ocupado com a figura do filósofo ascético, nossa atenção se concentrará exclusivamente na figura do sacerdote ascético. Essa escolha não é arbitrária. Há duas razões que a determinam: 1) o sacerdote ascético é o principal representante da espécie de moral que Nietzsche censura duramente – “o sacerdote ascético tem nesse ideal [no ideal ascético] não apenas a sua fé, mas também sua vontade, seu poder, seu interesse”[27]; 2) o asceticismo do filósofo tem sua origem no asceticismo mais “sério” do sacerdote ascético.[28]
O que nos proporemos fazer, inicialmente, não constitui, de modo algum, um desvio do fio discursivo pré-fixado no parágrafo anterior. Ao nos ocuparmos com o modo como Nietzsche busca determinar o significado do ideal ascético (pois é nisso que Nietzsche está interessado; não no que esse ideal realizou), cuidamos haver um problema central na forma como se constituiu esse ideal, qual seja, o problema do sofrimento. Nesse trabalho, esforçamo-nos por enfatizar que o sofrimento para Nietzsche não deve ser razão suficiente para desaprovar a existência; ao contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de homem forte – dionisíaco - um fortificante para a vida, para “mais vida”, não porque se deve amar o sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se deve querê-la, amá-la incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo na dor. A vida do sacerdote ascético, a vontade de poder que ele afirma, por outro lado, é uma vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta contra si mesma, que enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador, mas seus valores são valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da vida. O sofrimento que o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento de punição. Esse homem doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é mais vida, é mais dor; nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de poder, o tipo vital que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele reinterpretou o sofrimento como castigo. Com o sacerdote ascético, a má consciência se chama pecado; nele se dá o agravamento mais nefasto da doença do espírito. Antes de nos determos na análise do significado do ideal ascético e na ressignificação do sofrimento feita pelo sacerdote ascético, passemos em revista como a dogmática cristã interpreta o sofrimento.

3.5.1. A tábua do sofrimento: um caminho de retorno a Deus

Vejamos como o significado do “sofrimento”, segundo entendemos, se constitui no cristianismo. Comecemos por notar que a cruz, no cristianismo, é símbolo do sofrimento. Um cristão poderia objetar-nos que, na realidade, a cruz é para a Igreja cristã símbolo da Salvação. Todavia, não devemos perder de vista o fato de que todo símbolo (bem como todo signo) é polissêmico e que, por isso, à cruz se associam dois significados: o de ‘sofrimento’ e o de ‘triunfo’. Este último se situa no campo semântico da ‘salvação’. Mas no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, um sinal de suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso e terrificante. Ao que parece, foi na iconografia cristã que se estabeleceu, relativamente à cruz, a transposição do significado mais original de ‘sofrimento’ para o de ‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Os cristãos hoje veem a cruz de Cristo, de cuja base saem folhas e flores, como símbolo da Salvação.
Essa consideração inicial sobre o simbolismo da cruz sugere que os cristãos proto-ortodoxos, ao longo do desenvolvimento do movimento cristão e em disputas acirradas com outros grupos que sustentavam opinião divergente (grupos chamados, por isso, de “heréticos”), verteram em dogma a interpretação da cruz como símbolo da Salvação. Pelo sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a humanidade de seus pecados. Não surpreende, portanto, que o sofrimento tenha sido valorado, ao longo da tradição cristã, como um caminho para um bem maior.
O texto do Catecismo da Igreja Católica (2000) reconhece que, na dor ou no sofrimento, o homem experimenta sua impotência e que a enfermidade pode levar uma pessoa  a angustiar-se e a revoltar-se contra Deus. Mas, ao mesmo tempo, ensina que a doença pode tornar aquele que dela é acometido mais maduro, ajudando-o a discernir, em sua vida, entre o que é essencial e o que não é essencial. Nesse sentido, a dor, a doença, o sofrimento podem conduzi-lo a valorizar as coisas essenciais. Não é custoso inferir que, entre as coisas essenciais, está, evidentemente, Deus. O sofrimento provoca no sofredor um anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um significado moral no sofrimento, porquanto, graças a ele, o homem orienta sua vida pelo discernimento entre as boas e as más paixões, entre o que é essencial e o que é supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus valores, aperfeiçoa-se moralmente.[29]
Por que o homem sofre? Como foi possível o sofrimento penetrar num mundo criado por um Deus infinitamente bom? A dogmática cristã fornece a resposta: a Queda do homem. O sofrimento e o mal penetraram no mundo em decorrência do pecado original cometido por Eva, do qual tomou parte Adão. Por essa razão, todas as gerações posteriores passaram a carregar o estigma do pecado e, por isso, cada bebê que nasce precisa ser batizado como sinal de aliança com Cristo e com toda a comunidade cristã. Pelo batismo, abre-se o caminho para a Salvação Eterna.
O sofrimento, na medida em que entra no mundo como consequência da Queda do primeiro Homem, animará o anseio humano por libertar-se do mundo, por superá-lo, já que este mundo tornou-se então um “vale de lágrimas”. No entanto, o sofrimento tem o poder de alavancar a verdadeira transformação do homem. O fracasso que o homem experiencia, sempre que pesa sobre ele sua condição sofredora, o conduz, em perseverando na fé, à vitória. Uma vez que o pecado se avilta, se amaldiçoa, ele se crê no caminho que o conduzirá à Salvação. Bruckner, em seu A euforia perpétua (2010, p. 32) nota bem: “Não basta, pois, experimentar o sofrimento, é preciso amá-lo”.
A doutrina cristã prescreve: “É necessário sofrer!”; “Resigne-se ao sofrimento e Deus o concederá sua graça”. O cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se “inspira” na Paixão de Cristo quando se vê fustigado pela dor do sofrimento. O cerne do ritual cristão é a morte em agonia do Cristo-Deus na cruz. Cristo se torna o proprietário da morte. Ele nos lembra a nossa condição sofredora, mas também confirma a promessa da superação dela, na ordem da esperança e do amor, pela sua ascensão à condição sobre-humana. Para o cristão que padece, Jesus é um irmão de sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento, pela culpa do pecado deve encontrar em Jesus um guia em seu próprio calvário. “Deus dá a cruz segundo nossa capacidade de carregá-la” – diz o senso-comum. O sofrimento sujeita o homem cristão à condição de impotência, arranca-lhe as forças, condena-o à resignação, anima-lhe o ressentimento. O homem não pode salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. É do fundo de seu sofrimento atroz que o homem ascende a Deus. O sofrimento é a escada que leva o homem a Deus. O signo do sofrimento quer dizer, no fundo: “dependência do homem em relação a Deus”. Essa dependência não seria possível sem o imperativo do sofrimento, que reaviva na consciência do homem sua condição de criatura mortal e inferior. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que se pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a salvação, sem a introdução da doutrina que atribui sentido ao sofrimento. O sofrimento é o caminho: caminho para a salvação da morte, salvação do mundo onde grassa o pecado; salvação da própria condição humana sofredora.  Em relação ao cristianismo, escreve Bruckner: “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou manifestaram esse “sadismo de piedade” (p. 34). E mais adiante, acrescenta: “o sofrimento é a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo, rebaixá-lo”. (ibid.). O sofrimento torna o homem merecedor de piedade e compaixão.
Na medida em que nos leva a aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é interpretado pelo cristão como um progresso. A miséria traz a paz interior; traz alegria espiritual. O cristão que sofre experimenta, paradoxalmente, a alegria de estar unido a Cristo em sofrimento; e quando algum pensamento queixoso acerca de sua condição lhe assalta a consciência, pune-se na comparação de seu sofrimento com o de outros em condição que ele crê mais desgraçada, ou mesmo com o sofrimento do próprio Cristo, “infinitamente mais pungente”. Novamente Bruckner nos lembra: “com a religião, o sofrimento torna-se um mistério que não deciframos, a não ser sofrendo” (p. 35). O cristão, ao sofrer, atribui um sentido ao seu sofrimento, mesmo que este sentido não lhe seja imediatamente transparente[30]. E Bruckner faz a seguinte observação sobre o trabalho ardiloso dos teólogos: “E os teólogos irão desenvolver tesouros de casuística e de sutileza para legitimar a existência do mal sem atentar à bondade de Deus” (ib.id.). Mesmo o sofrimento gratuito, injustificável será submetido às tentativas escrupulosas de justificação teológica.


3.5.2. O ideal ascético: uma hostilidade contra a vida


O sacerdote ascético, conforme notamos, também é um valorador. A questão que precisa, pois, ser esclarecida, inicialmente, concerne ao modo como se dá a valoração da vida pelo sacerdote ascético. Para tanto, vale a leitura do seguinte trecho da Genealogia:

O pensamento em torno do qual aqui se peleja é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, “natureza”, “mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência. O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta – que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode, a sua valoração da existência.[31]


Está claro, pois, que o sacerdote ascético valora, e a valoração que faz da vida se apóia na suposição da existência de um mundo metafísico – de um “em si” – em vista do qual se orienta a sua vontade de poder autodestrutiva. A sua valoração da existência consiste em retirar dela todo valor. O sacerdote ascético nutre um profundo desgosto pela vida, por si mesmo e sente prazer em causar dor a si mesmo. Ele é dominado por um profundo ressentimento; sua vontade de poder subtrai da vida toda a opulência de suas forças. Ele encontra satisfação na negação de si, na autoflagelação e no autosacrifício. O sofrimento que o asceta causa a si mesmo é uma forma de negação da força, da vida. No sacerdote ascético, a vida volta-se contra a vida. Ele tem horror ao florescimento fisiológico. O ascético trava uma luta consigo mesmo na tentativa de conservar sua existência decaída. Embora ele seja um negador da vida, está proibido de levar sua negação da vida às últimas consequências, isto é, ele está proibido de se matar. Segundo Nietzsche, “o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios”. (ênfase no original).[32] Entendamos aqui essa contradição fisiológica. A exaustão fisiológica experimentada pelo sacerdote ascético nunca é total, pois nele a vida precisa lutar contra a morte. Nesse sentido, Nietzsche vê no ideal ascético um artifício destinado à preservação da vida. Ao autoflagelar-se, o sacerdote ascético precisa continuar vivendo; suas feridas o fazem ocupar-se com a vida que resiste, mesmo que em condição doentia e enfraquecida. Tudo isso explica, para Nietzsche, por que esse tipo de homem pôde predominar sobre os homens na história da civilização ou da domesticação humana. O que é o homem domesticado senão aquele que é forçado a lutar contra seus próprios instintos? No ideal ascético, o homem luta incessantemente contra seu desejo do “fim”. O que deseja o sacerdote ascético? Nietzsche nos esclarece: ele deseja ser outro, deseja estar em outro lugar. O sacerdote ascético “é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão”[33]. Mas – outro paradoxo – justamente o poder desse desejo o acorrenta à vida. Em outras palavras, ao desejar ser outro, ao desejar estar em outro lugar, é ainda um desejante, e enquanto encarnação de um querer, é afirmador da vida. Eliminar de si o querer significaria eliminar a própria vida, mas isso é coisa proibida ao sacerdote ascético. Ele quer não mais viver, mas enquanto quer, enquanto deseja, enquanto é desejante, é afirmador. Estando inevitavelmente preso à vida da qual deseja subtrair-se, na medida em que quer ser outro, não lhe resta alternativa senão se tornar “o instrumento que deve trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e ser-homem”[34]. Assim, segundo Nietzsche,


- precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor. Já me entendem: este sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador – ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida...[35]


Nietzsche chama a esse tipo doente – o sacerdote ascético – de “o grande experimentador de si mesmo”, isto é, aquele que nutre grande satisfação em mensurar sua capacidade de suportar a dor e o sofrimento a que se submete a si mesmo. Segundo Nietzsche, “o não que ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados; sim, quando ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a própria ferida que em seguida o faz viver...”[36]
O tratamento que vimos dando ao tema dos ideias ascéticos não pretende, evidentemente, exaurir toda a significação de sua problematicidade. Nosso tratamento supõe um recorte interpretativo à luz do qual certo conjunto de questões, porque consonante com nossos propósitos, é forçosamente destacado. Com vista a conduzir a bom termo esta terceira parte de nosso estudo, elenquemos as questões que nos cumpre ainda examinar: 1) qual é, segundo Nietzsche, o grande perigo do homem?; 2) que função exerce o sacerdote ascético?; 3) qual é a meta do ideal ascético?; 4) como o pecado foi reinterpretado pelo sacerdote ascético?; 5) como o sofrimento foi interpretado pelo sacerdote ascético?
Examinemos, pois, a primeira questão: qual é, segundo Nietzsche, o grande perigo do homem? Nietzsche oferece o caminho para a resposta, assumindo que a condição normal do homem é a condição de animal doente. Os homens que exibem pujança de alma e de corpo são casos raros e, por isso, deveriam ser “protegidos do ar ruim, do ar de doentes”[37]. O grande perigo do homem saudável são os doentes. Para Nietzsche, são os fracos a causa de todo infortúnio dos mais fortes. O tipo doente de homem é aquele que está cansado do homem, é aquele que tem grande nojo ao homem, isto é, a quem repugna “o ser homem”; em última instância, aquele que não deseja mais ser homem. Ademais, é o tipo que nutre grande compaixão pelo homem. Ter compaixão pelo homem é um modo de apequená-lo, de humilhá-lo, de tomá-lo por fraco, debilitado, doente. Se combinados o nojo ao homem e a compaixão pelo homem, teríamos o tipo de homem niilista, isto é, aquele dominado pela vontade do nada. O tipo de homem doente é também um tipo de vontade de poder,  a saber, a vontade de poder decadente. É um tipo perigoso porque sua vontade é contaminante, é envenenadora. Nietzsche vê toda a história da moral ocidental como a história da predominância da valoração dos decadentes, dos fracos, dos doentes. Acompanhemos Nietzsche no seguinte excerto:


Os doentes são o grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados – são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós. (...) “Quisera ser alguma outra pessoa”, assim suspira esse olhar: mas não há esperança. Eu sou o que sou: como me livraria de mim mesmo? E no entanto – estou farto de mim!”... Neste solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva ruim, toda planta venenosa, e tudo tão pequeno, tão escondido, tão insincero, tão adocicado. Aqui pululam os vermes da vingança e do rancor; aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a rede da mais malévola conspiração.[38]

Nosso convívio com os escritos de Nietzsche avivou-nos a sensibilidade para identificar esses tipos conspiradores. Estamos à volta com eles! Conhecemo-los bem, afinal! Eles nutrem profundo ressentimento contra a vida, contra os logrados, os vitoriosos; eles odeiam os vitoriosos. Eles apreciam censurar os que gozam da “grande saúde”, os que encarnam força e orgulho. Consideram essas qualidades coisas viciosas. O que querem eles? Querem sobrepujar os sãos; querem se tornar seus superiores – “em toda parte a luta dos enfermos contra os sãos – uma luta quase sempre silenciosa, com pequenos venenos, com agulhadas, com astuciosa mímica de mártir”[39]. Nesses tipos doentes cresce subterraneamente o veneno do ressentimento que aguarda o instante para ser inoculado nos sãos. É interessante atentar para o fato de que Nietzsche procura descrever o modo como uma moral que condena a felicidade, que quer que o homem se envergonhe de ser feliz, pôde se tornar vitoriosa no Ocidente. O tipo doente toma como razão para condenar a felicidade a grande quantidade de miséria, de sofrimento no mundo. Querer ser feliz, afirmar a felicidade neste mundo é indecoroso. E Nietzsche soube bem ver que o caráter corrosivo da vontade de viver que essa moral encarna levou  os mais fortes, os mais logrados a começar a suspeitar de seu direito à felicidade.
Tomemos, agora, a segunda questão cuja resposta é impreterível elucidar: que função exerce o sacerdote ascético? Não cabe aos sãos, observa Nietzsche, assistir os doentes. Os sãos não devem tornar sãos os doentes.  O avanço da moral dos decadentes tem necessidade de médicos também doentes que se ocupem de proteger e defender o rebanho doente contra os sãos e também contra a inveja que esse rebanho tem dos sãos. É preciso, afinal, ser puro de coração! Esse médico doente é o sacerdote ascético. O sacerdote ascético ensinará ao rebanho o desprezo pela saúde. Ele é o salvador, o pastor, o defensor do rebanho doente. Ele estenderá sua dominação sobre os que sofrem e seu reino compreenderá a extensão dessa dominação. Dominar os que sofrem é sua função e sua felicidade. Obviamente, somente um tipo também doente é capaz de dispor da necessária empatia para atender às necessidades dos doentes. Mas o sacerdote ascético deve ser também o senhor de si, deve conservar a integridade de sua vontade de poder para que obtenha a confiança e o temor dos doentes. Deve, além disso, representar um novo tipo de animal de rapina, tem de combinar uma nova ferocidade com a astúcia, porque precisa combater os animais de rapina.
O rebanho também precisa ser defendido de si mesmo, pois que ele pode ser consumido pela perfídia e pela malevolência. O sacerdote ascético opera uma grande mudança na direção do ressentimento. O ressentimento, agora, volta-se contra o próprio ressentido. Se, no ressentimento, há a necessidade instintiva de identificar um culpado do mal sofrido – dessa forma raciocinam todos os doentes: “eu sofro, logo alguém tem de ser culpado” -, o sacerdote ascético ensinará ao ressentido: “somente você mesmo é culpado de seu sofrimento”. Nisso consiste a mudança na direção do ressentimento: a culpa recai sobre o próprio sofredor que cumula ressentimento.
A terceira questão que nos compete examinar agora toca ao fato de o sacerdote ascético dispor de uma meta. Devemos responder, portanto, qual é a meta do ideal ascético. Vejamos o que nos ensina Nietzsche a respeito:

O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta – e esta é universal o bastante para que, medidos por ela, todos os demais interesses da existência humana pareçam estreitos e mesquinhos; povos, raças, épocas e homens são por ele interpretados implacavelmente em vista dessa única meta, ele não admite qualquer outra interpretação, qualquer outra meta, ele rejeita, renega, afirma, confirma somente a partir da sua interpretação (- e houve jamais um sistema de interpretação mais elaborado?); ele não se submete a poder algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder – ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba somente dele um sentido, um valor, um direito à existência, como instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta, para uma meta...[40]


Precisamos, nesse momento, ativar alguns conhecimentos pressupostos em nossa memória. Lembremo-nos de que todo processo interpretativo produz um sentido que é, ao mesmo tempo, sintetizador e hierarquizador dos elementos múltiplos relacionais que determinam o mundo. O ideal ascético é vontade de poder e, como tal, um sistema de interpretação do mundo que pretende fixar o sentido hegemônico (perspectiva). O que essa vontade de poder quer é tornar sua interpretação a única interpretação possível do mundo. Seu querer é um querer de primazia sobre outras vontades de poder. Tudo o mais de poder que há deve seu valor, seu sentido a este único sentido fixado pela interpretação efetuada pelo ideal ascético. Qual é, portanto, a meta desse sistema de interpretação que é o ideal ascético? É tornar seu sentido o sentido universal, o seu valor o valor universal. Sua meta consiste em querer impor-se como a única interpretação possível do mundo, reduzindo todos os demais poderes ou forças a instrumentos para a realização e a consolidação dessa meta. Tal foi a influência que sobre a ciência exerceu o ideal ascético. Nietzsche viu na ciência “a mais nova manifestação do ideal ascético”[41]; isso significa dizer que a interpretação ascética conseguiu destilar seu veneno na consciência científica, de sorte que a própria ciência tornou-se “um esconderijo para toda espécie de desânimo, descrença, remorso, despectio sui [desprezo de si, má consciência] – ela é inquietude da ausência de ideal”. (ênfases no original).[42]
As duas últimas questões que se nos impusemos examinar deverão ser contempladas em conjunto. Nietzsche nota que o sacerdote ascético soube muito bem aproveitar-se do sentimento de culpa, cuja gênese – já o sabemos – encontra-se na nova forma assumida pela relação entre devedor e credor. Nietzsche vê o sacerdote ascético como “verdadeiro artista em sentimentos de culpa”[43]. Para que compreendamos como o sacerdote ascético fez uso do sentimento de culpa, é preciso antes dizer que coube ao sacerdote ascético reinterpretar a má consciência como pecado. Corroído por aflições, o animal humano enjaulado é ávido de remédios que possam aliviar seus males. Na dificuldade de encontrá-los, acaba por socorrer-se dos conselhos do sacerdote ascético, grande conhecedor “das coisas ocultas”. O sacerdote ascético indica a primeira causa do sofrer  daquele que se desespera em aflições: busque-a em si mesmo! Buscar em si mesmo significa buscar aquilo que explique o sofrimento. O sofredor identifica em si uma culpa: ele é culpado de seu próprio sofrimento. O sofrimento se lhe afigura, agora, como um instrumento de punição. A culpa torna-se agora a única causa do sofrimento do doente, isto é, do pecador. É oportuno citar Nietzsche:

(...) o doente foi transformado em “pecador”... E agora estamos condenados à visão desse novo doente, “o pecador”, durante alguns milênios – jamais nos livramos dele? – para onde quer que nos voltemos, em toda parte o olhar hipnótico do pecador, movendo-se sempre na mesma direção (na direção da “culpa”, como a única causa do sofrer); em toda parte a má consciência, “essa besta abominável”, no dizer de Lutero, em toda parte o passado ruminado, o fato distorcido, o “olhar belicoso” para toda ação; em toda parte, a incompreensão voluntária do sofrer como sentimento de culpa, medo e castigo; em toda parte o flagelo, o cíclico, o corpo macilento, a contrição; em toda parte o auto-suplício do pecador na roda cruel de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o tormento mudo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões de uma felicidade desconhecida, o grito que pede “redenção”.[44]


Confesso a Deus-Todo poderoso que pequei muitas vezes... por minha culpa, minha tão grande culpa![45]- o pecador reconhece-se como o único grande culpado de seu sofrimento; sua má consciência torna-se exacerbada e ele se consome numa profunda violência psicológica. O sofrimento é seu único verdadeiro remédio contra o sentimento de culpa. Agora, segundo nota Nietzsche, a vida, embora esgotada na fonte de suas forças, não se apresenta mais cansada. Vencida a luta contra o desprazer, o sacerdote ascético se satisfaz na chegada do seu reino. Ele, agora, quer mais dor.
Nietzsche argumenta que o ideal ascético sempre significou o reconhecimento de que há uma falta, uma lacuna em torno do homem. O ascético sofreu, durante longo tempo, porque não conseguia encontrar um sentido para essa falta. Afligia-o a questão do “para que sofrer”. Esse animal doente não negava em si o sofrimento; foi até bastante acostumado a ele. Sua vontade orienta-se para o sofrer, desde que houvesse um sentido para seu sofrer. O homem sofria por não encontrar esse sentido de seu sofrer. O sacerdote ascético lhe ofereceu o sentido. Com ele, o sofrimento foi interpretado. Consideremos este trecho de Nietzsche antes de terminar:

Nele [no ideal ascético] o sofrimento foi interpretado, a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo niilismo suicida. A interpretação – não há dúvida – trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo, mais venenoso e nocivo à vida: colocou todo o sofrimento sob a perspectiva da culpa... Mas apesar de tudo – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estaria salva. Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade... E para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer nada a nada querer...[46]


O ideal ascético, segundo pretende Nietzsche, ao fixar um sentido para o sofrimento do homem, livrou-o do desespero do niilismo radical, ou seja, o homem não é mais “uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo”. Assim, pode conservar-se enquanto vontade de poder. A questão é: a que custo? A vontade que pode continuar querendo é uma vontade de renúncia à vida. Toda a avidez que move esse homem doente, cuja vontade foi, apesar de tudo, preservada, é uma avidez de fugir ao modo como a própria vida se conforma. Ele quer escapar ao devir, à morte, ao desejo, em suma, a tudo que se apresenta como pressupostos da vida. Mas, uma vez orientando para esse fim a sua vontade, essa mesma vontade torna-se vontade de nada – vontade niilista, portanto. Essa vontade niilista se afirma como aversão à vida. Ao querer escapar a tudo quanto é um pressuposto do viver – seu caráter fenomênico, seu devir, o tender para a morte inevitável, etc. -, a vontade desse tipo de homem produzido pelo asceticismo religioso, então acalentado na crença de que conseguiu transpor o abismo aberto pelo niilismo radical, conservou em si mesma seu pendor niilista, na medida em que foi forçada a orientar-se para seu novo ideal: o querer estar em outro lugar. Pode-se concluir, com Nietzsche, que, ao pretender ter consumado a radicalidade do movimento niilista, o ideal ascético deu-lhe apenas outra direção, outro sentido.







[1] Trata-se da terceira parte do trabalho Uma abordagem da semântica relacional do niilismo, da má consciência e do ideal ascético na filosofia de Nietzsche, desenvolvido como requisito para aprovação na disciplina Ética II do curso de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
[2] Não só isso, evidentemente. Nietzsche, antes de Freud, soube divisar a influência determinante do inconsciente sobre a vida consciente do homem. Freud, posteriormente, viria a assumir a radicalidade dessa visão, identificando todo o psiquismo com o inconsciente, destituindo o “eu” do lugar de “senhor em sua própria casa”.
[3] Não se segue daí que essa interpretação seja desautorizada nos escritos de Nietzsche. Cremos, por conseguinte, ser possível ler a má consciência à luz da concepção de neurose.
[4] Consciência e espírito não se distinguem em Nietzsche. Tomemo-los como termos equivalentes.
[5] Livro I, § 11.
[6] Genealogia, Segunda Dissertação, § 4.
[7] Ibid., § 5.
[8] Ibid.
[9] Ibid., § 6.
[10] Ibid.
[11] Aurora, § 18
[12] É interessante a observação de Nietzsche segundo a qual “definível é aquilo que não tem história”, porque nos sugere que o registro semiótico do vivido, sem o qual não há história, opera sempre por processos de “apagamento” das condições originais do registro. Ademais,  não devemos perder de vista o fato de que a semiotização é já uma re-apresentação (ou transformação de ‘dados sensoriais’ em conteúdos da consciência) de tudo aquilo com que nossa consciência pode entrar em contato ou pode conceber, o que já supõe uma interpretação que, por sua vez, envolve abstração e generalização das propriedades da coisa ou acontecimento significado. O que o conceito nos fornece é sempre o resultado de uma síntese; ou melhor, a síntese já é o conceito. Assim, por exemplo, quando se cria o conceito de “castigo”, o que fica no registro semiótico (no signo) é apenas as propriedades gerais que contribuam para a identificação de uma prática ou ato como pertencente à categoria ‘castigo’; e desse registro se exclui toda uma gama de especificidades implicadas nas experiências ou nas práticas diversas de aplicação do ‘castigo’. Certas distinções só serão codificadas, se forem relevantes à vida prática de uma comunidade.
[13] Ibid., § 14.
[14] Ibid., § 15.
[15] Ibid. § 16.
[16] Ibid. § 17.
[17] Ibid.
[18] Ibid., § 18.
[19] Ibid., § 19.
[20] Ibid.
[21] Ibid. § 20.
[22] Vontade de Potência, § 162.
[23] Op.cit. § 21.
[24] Op. cit. § 22.
[25] Ibid.
[26] Ibid.
[27] Terceira dissertação, § 11.
[28] Segundo Nietzsche, “a atitude à parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida, descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente, passando a valer quase como a atitude filosófica em si – ela é sobretudo uma consequência da precariedade das condições em que a filosofia surgiu e subsistiu: na medida em que, durante muitíssimo tempo, não teria sido absolutamente possível filosofia sobre a terra sem o invólucro e disfarce ascético, sem uma auto-incompreensão ascética (...)” (§ 10, ênfases no original).
[29] Trata-se aqui de uma forma de teodiceia chamada pedagógica. Segundo essa linha de justificação do mal e do sofrimento, o sofrimento é indispensável para melhorar as capacidades humanas; em última instância, o sofrimento é necessário para que desenvolvamos maior profundidade de caráter e compaixão. Apesar de essa forma de pensar o sofrimento contrariar nossa psicologia intuitiva (já que, muitas vezes, o sofrimento causa mais ódio e rancor do que maturidade), ela goza de grande acolhida entre teólogos e fiéis.
[30] O sentido que é atribuído pelo cristão já foi, naturalmente, fixado pelas autoridades cristãs, de modo que ele não tem a liberdade de atribuir um sentido outro que não esteja previsto pelo cânone hermenêutico que dá coesão à sua fé. Desse modo, ao atribuir ao seu sofrimento um sentido, o cristão não faz senão reproduzir um sentido preestabelecido.
[31] § 11.
[32] § 13.
[33] Ibid.
[34] Ibid.
[35] Ibid.
[36] Ibid.
[37] § 14.
[38] § Ibid.
[39] Ibid.
[40] § 23.
[41] Ibid.
[42] Ibid.
[43] § 20.
[44] Ibid.
[45] Trecho da oração Confissão pronunciada pelos católicos na celebração da missa.
[46] § 28.