quinta-feira, 22 de outubro de 2015

"Se os macacos chegassem a experimentar tédio, poderiam tornar-se gente." (Goethe)

                                 
                         


                           A experiência do Tédio
                              O Dasein e o mundo


1. Prelúdio
O aparecimento do mundo

Nossa mais primitiva forma de nos relacionarmos com o mundo se realiza através do corpo. Piaget identificou como período sensório-motor a fase que se estende desde o nascimento da criança até seus dois anos de vida – fase em que a criança começa a formar uma noção de “eu”, graças à qual ela se diferencia do mundo externo. O “eu”, na verdade, tem como centro gravitacional o corpo. A criança se apercebe como um corpo próprio distinto do mundo. Essa fase é caracterizada, fundamentalmente, pela ausência da função semiótica. É interessante notar que, para Piaget, a criança nasce num universo que se lhe apresenta caótico, preenchido por objetos que deixam de existir quando fora do campo da percepção. O espaço e o tempo são subjetivamente sentidos, e a causalidade é reduzida ao poder das ações. A criança explora o ambiente em que se encontra através das mãos e da visão. A experiência que obtém depende das ações num processo de imitação. Sua inteligência é prática: as ações precedem o pensamento. Mas uma grande transformação acontece quando a criança começa a desenvolver sua capacidade de linguagem. A aquisição da linguagem, segundo Piaget, tem início no final do período sensório-motor, quando a criança conta entre 3 e 4 anos. Evidentemente, a aquisição da linguagem é um processo de maturação, que envolve estágios, muito embora esse processo se desenvolva muito rapidamente acarretando um desenvolvimento cognitivo exponencial na criança. Com o desenvolvimento da linguagem, o que outrora lhe era caótico, torna-se dotado de ordem e significado: é a relação da criança com o mundo que se transforma radicalmente. É evidente que ela não deixa de relacionar-se com o mundo por meio de seus cinco sentidos e pelas ações de seu corpo. O processo de cognição é um processo corporificado e dependente das relações com outros. A cognição não é uma coisa que acontece na subjetividade dos indivíduos, mas é, fundamentalmente, cognição social, uma atividade que acontece entre indivíduos que atuam reciprocamente. Não obstante continuarmos até a morte a nos relacionar com o mundo através de nosso corpo, com o desenvolvimento da capacidade da linguagem articulada, a própria relação com o mundo assentada no corpo se transforma. O que entendo aqui por cognição é todas as atividades mentais associadas com o pensamento, com o conhecimento, com a memória e com a linguagem.
É por hábito que uso a palavra “mundo”, quando considero o desenvolvimento da criança antes do advento da capacidade linguística. Na verdade, não há mundo fora da linguagem ou antes da linguagem. O mundo não é uma coleção de coisas ou, pelo menos, não se reduz a uma coleção de coisas. Não nego que haja coisas no mundo (há este livro, aquela cadeira, aquela árvore, aquele rio, etc.). Mas este mundo mobilhado permanece imerso num breu impenetrável para nós antes que sejamos capazes de semiotizá-lo. A linguagem é a própria clareira à luz da qual o mundo aparece para nós como uma totalidade significativa. É forçoso protelar, por alguns instantes, o desenvolvimento de minha compreensão do conceito de mundo, para retomar o conceito de cognição em sua relação com a linguagem.
Devemos, pois, ter em conta que os processos cognitivos têm uma gênese sócio-cultural, não simplesmente biológica, pré-fixada. Os processos cognitivos, ademais, são objetos da consciência. Eles são mediados por instrumentos culturais e simbólicos. Quando nos referimos à cognição, pretendemos designar o processo de aquisição de conhecimento  que se dá pelo concurso da percepção, memória, raciocínio, imaginação e linguagem. Não menos importante é reter que, desde muito cedo, os signos inserem a criança no mundo social e organizam a experiência e a conduta delas; por seu turno, a criança torna-se capaz de engendrar linguística e cognitivamente o mundo, atuando sobre ele.
O que chamamos “mundo” não existe sem que ele seja estruturado pela dimensão simbólica. Esta dimensão não preexiste ao homem, mas é fundante do mundo pelo advento do homem. O simbólico, segundo Vygostky, recobre a construção de representações e a operação sobre elas, transformando a experiência humana com o real em conceitos, por meio dos quais o mundo é classificado e categorizado.
Para Vygotsky, é o significado das palavras que permite a elaboração de conceitos e de sistemas conceituais, de complexidade crescente de cadeias de pensamento. Lembro que o acesso ao significado das palavras é o momento de transição feita pela criança da inteligência prática – sensório-motora, para Piaget – aos complexos processos de pensamento.
Ainda com base em Vygotsky, uma vez que a natureza da linguagem é significar, segue-se daí que o desenvolvimento do pensamento conceitual é determinado pela linguagem, no curso das experiências sócio-culturais em que a criança está envolvida. Vygotsky percebeu bem que o significado é um elemento necessário e constitutivo da palavra e que a palavra sem significado não é palavra, mas um som (como são os fones de uma língua). Ademais, ele via o significado de uma palavra como uma generalização e, como tal, não era senão um conceito. A generalização é o próprio processo de formação de conceito, segundo Vygotsky, no que estamos de acordo. É um ato inegável e específico de pensamento. É forçoso, portanto, reconhecer que o significado da palavra, ou o conceito, é também um fenômeno do pensar.
As coisas que se dão em nossa experiência sensível não seriam totalmente conhecidas se não fossem reconhecidas pelo pensamento humano fundado no signo. Antes da aquisição da linguagem ou durante o desenvolvimento do processo, a criança já está sendo moldada pelas palavras dos adultos. Ainda que, nesse período, a imagem e a palavra se confundam para a criança, a palavra confere à imagem significado.
Quando as coisas são nomeadas pela palavra, ela liga a ordem do real (das coisas sensíveis) à ordem simbólica (das coisas para si), tornando aquela primeira ordem pensável e comunicável. Vale ponderar sobre este ponto. Não se negue a existência das coisas sensíveis, mas se rejeita a preexistência de uma ordem de coisas sensíveis. A totalidade das coisas sensíveis só se torna inteligível, só pode ser submetida aos processos de pensamento, quando a palavra ou a linguagem verbal lhe impõe uma ordem significativa. Somente quando essa totalidade sensível é estruturada numa ordem simbólica é que passa, então, a entrar a fazer parte da consciência humana como conhecimento.
Vygotsky nos mostra que o processo de internalização da linguagem faz confluir para um mesmo sentido o mundo biológico e as referências do mundo sócio-cultural. Esse processo desencadeia mudanças na relação do sujeito com a linguagem; marca as impressões culturais nos processos cognitivos, conferindo-lhes uma dimensão humana e estruturando a consciência e a cognição infantil.
O que é o mundo humano senão um sistema de significados? (Azeredo, 2007, p. 17).[1]
A linguagem, tal como a venho pensando aqui, é uma capacidade humana natural e mental que se acha articulada com outras funções cognitivas, tais como pensamento, memória, aprendizagem, inteligência, entre outras. A linguagem, segundo Chomsky, é a porta de acesso à compreensão da cognição humana. Nesse sentido, o estudo da linguagem possibilita a compreensão do funcionamento da mente.
Benveniste, em Problemas de Linguística Geral I (1989), chama-nos a atenção para a natureza fundante da linguagem:

“Por que o indivíduo e a sociedade juntos e por qual necessidade se fundam na língua? Porque a linguagem representa a mais alta forma de uma faculdade que é inerente à condição humana, a faculdade de simbolizar. Entendamos por aí, muito amplamente, a faculdade de representar o real por um “signo” e de compreender o “signo” como representante do real, de estabelecer, pois, uma relação de “significação” entre algo e algo diferente (...) A transformação simbólica dos elementos da realidade ou da experiência em conceitos é o processo pelo qual se cumpre o poder racionalizante do espírito. O pensamento não é um simples reflexo do mundo; classifica a realidade e nessa função organizadora (ênfase minha) está tão estritamente associado à linguagem que podemos ser tentados a identificar pensamento e a linguagem sob esse aspecto”. (1989, p. 30) (grifos meus).


Volvemos nossa atenção para o que é o mundo. Numa perspectiva à luz da qual o mundo é resultado de uma construção para a qual concorre a percepção-cognição, a linguagem e a cultura, deve-se rejeitar a ideia de um mundo já dado, ordenado e preexistindo ao homem. Que as coisas estejam aí e que nós habitamos em meio a elas não se coloca sob suspeita. A questão sobre o que é o mundo situa-se para além de nossa experiência imediata com ele. Nós nos habituamos a nos relacionar com o mundo enquanto uma totalidade de coisas já constituída. Husserl chama de mundo da vida o mundo da experiência humana considerado anteriormente a qualquer tematização conceitual. O mundo da vida é aquilo que se aceita, que se toma como dado, como pressuposto, constituindo nossa experiência cotidiana. O mundo da vida é o real em seu sentido pré-teórico, pré-reflexivo. Portanto, ao aventarmos a questão sobre o que é o mundo, estamos já formulando uma tentativa de teorizá-lo. A questão sobre o mundo retira-nos desse mundo da vida para nos lançar no domínio da reflexão sobre o que é mundo. Há algo, mas antes do advento do sentido não sabemos o que é algo. Ao nomear, o homem traz à existência as coisas. Vemos uma queda d’água. Algum tempo depois, ao retornar ao lugar, não a encontramos mais: o lugar permanece, pela memória identifico o ambiente em que antes me encontrara; mas não vejo mais a queda d’água. Se tudo muda no mundo, o que nos garante a permanência das coisas é a linguagem. Se disponho de uma palavra como “cachoeira” para designar aquele fenômeno que outrora percebi, mesmo na sua ausência, posso referir-me a ele, pensá-lo, torná-lo objeto de comunicação. O mundo natural, embora não seja fabricado pelo homem, não existe sem o investimento simbólico. É preciso nos prevenir contra a ideia ingênua de que a existência para o homem se reduza a estar em contato com as coisas, a estar no mundo em meio às coisas. A existência humana é atravessada pela dimensão simbólica: o homem existe numa rede de significados que ele mesmo constrói. Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser pensado, não existe. Aquela árvore, aquela cachoeira, aquele rio não sei o que são, antes de nomeá-los como tais. O mundo é uma totalidade ordenada de significados. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. 
Considerando o transtorno da depressão, a psiquiatra Maria Rita Kelh faz menção à ideia de “rede de sentido e amparo”, ao observar o rompimento dessa rede pela depressão. Ora, nossa relação com o mundo, nossa existência é constituída dessa rede de sentido e amparo. É oportuno citar as palavras da autora, já que, além de corroborar minha compreensão do que é o mundo até o presente momento, encaminhará minhas considerações ulteriores acerca dele:

“A depressão é o rompimento desta rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca, ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda (...)”.[2]

A psicanalista também se refere à ausência de sentido da vida e a brevidade de nossa vã existência. Ademais, nota que é pela multiplicidade de nossos laços libidinais que “tecemos uma rede de sentido para a existência”. Não estou interessado nas questões psicanalíticas suscitadas por esse passo. Interessa-me, na verdade, a ideia de que somos nós, seres humanos, que construímos uma rede de significados que constitui a totalidade do que chamamos de mundo. No entanto, o mundo, tomado em si mesmo, não está ordenado em significados, sequer se pode dizer que seja ele a manifestação exterior de uma natureza que lhe é subjacente. Em outros termos, não há uma natureza (essência) dada, um ser que as aparências escondem. Deve-se rejeitar a visão de que o mundo seja dotado de significado a partir de uma dimensão ontológica. Na contracapa de Antinatureza: elementos para uma filosofia trágica (1989), Rosset convida-nos a uma aprovação trágica da existência que consiste em prescindir de qualquer referencial ontológico:

“Aprovar a existência é aprovar o trágico: consentir em uma intangibilidade da existência em geral que as noções de acaso, artifício, facticidade, não-duração, descrevem cada um em seu nível conceitual. É também renunciar a toda exigência de ser para além da soma das existências. Ser e trágico opõe-se tal qual o não e o sim, a denegação e a afirmação, a necessidade e o acaso, a natureza e o artifício. O trágico da existência é o prescindir de qualquer referencial ontológico – ‘não nos comunicamos com o ser – diz Montaigne; todavia, seu privilégio é, paradoxalmente, ‘ser’. Por isso a existência somente é aprovada se simultaneamente for aprovado o caráter factício e artificial: ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação”.


A natureza ou phýsis deve ser aqui entendida como a Ordem do mundo, uma lei que rege todos os fenômenos. Trata-se de uma natureza universal a partir da qual a vida se organiza. É ela que faz crescer, brotar, nascer tudo que há. Para Rosset, é necessário desaprender a ver o mundo como uma totalidade ordenada segundo uma natureza que lhe subjaz. Por isso, o autor escreve:

“Considerar o mundo independentemente da ideia de natureza significa generalizar uma experiência de desaprendizagem que a maioria dos poetas recomenda a todos que desejam reencontrar um contato “ingênuo”, ao mesmo tempo novo e original, com a existência – contato gerador desta “emoção” diante das coisas de que fala F. Garcia Lorca, e que supõe o esquecimento fulgurante das redes de significação tramadas pelo costume e pelo hábito. (p.49) (grifo meu).


Reencontrar o contato ingênuo com a existência é tornarmo-nos capazes de ter a experiência do espanto em face do real. Mas essa experiência supõe que reconheçamos que as redes de significação de que se constitui a existência são “tramadas pelo costume e pelo hábito”; em outras palavras, são tramadas por nós, seres humanos, na vida em sociedade. Essas redes de significação não preexistem ao nosso advento no mundo.  O mundo é o caos – sustenta Nietzsche. A lógica do mundo não se encontra no mundo, mas em nós. Nós é que logicizamos o mundo.


2. Considerações filosóficas sobre o tédio.

Nesta seção, atacarei o problema que me interessará, de fato, neste texto. As considerações preliminares serviram-me para melhor situá-lo. Espero que o leitor não encontre demasiada dificuldade para apreender a conexão entre essa segunda etapa do texto e a primeira, na qual revistei, em linhas gerais, a problematicidade da relação entre linguagem e mundo. Estou especialmente interessado em discutir o modo como Heidegger elabora sua compreensão do tédio. Não obstante, começarei referindo as palavras de Schopenhauer que já introduz algumas dimensões da significatividade do tédio que não poderiam ser ignoradas para efeito de discussão. No livro As dores do mundo (2014), Schopenhauer traça-nos a imagem da condição existencial do homem ocupado. Leia-se o excerto abaixo:

“O que ocupa todos os seres vivos e os conserva em sua contínua atividade é a necessidade de assegurar a existência. Mas feito isso, não sabem que mais hão de fazer. Assim, o segundo esforço dos homens é aliviar o peso da vida, tornar-se insensível, matar o tempo, isto é, fugir ao aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda miséria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existência, e considerarem um ganho toda hora que têm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência, a qual se esforçam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz que os homens, que se amam tão pouco uns aos outros, se procurem com tanto entusiasmo; é a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para combatê-lo”. (2014, p. 34).


A leitura deste trecho não pode dispensar de articular as seguintes ideias. Em primeiro lugar, todos os seres vivos, entre os quais o homem, se ocupam, primordialmente, de assegurar sua sobrevivência. Garantir a sobrevivência é a atividade comum ao homem do cotidiano: o mundo da vida encontra nessa atividade seu modus operandi. Em segundo lugar, ocorre que, após realizar o trabalho que visa a garantir a subsistência, o homem se vê esmagado pelo peso da existência. Sua segunda tarefa consistirá em aliviar-se desse peso. Como o faz? Entretendo-se. Não encontrando mais nada que fazer, o homem se impõe a necessidade de escapar ao aborrecimento, isto é, ao tédio. Ele irá buscar meios para distrair-se da tediosa condição que é a sua, a saber, a de um existente. Estranhamente, a despeito do peso da existência, o homem preocupa-se em prolongá-la “com tanto zelo”. Para escapar ao desespero inerente à sua condição, os homens procuram uns aos outros, isto é, entregam-se à sociabilidade mesmo que “se amem tão pouco”. Para Schopenhauer, parece claro que os homens só constituíram a sociedade a fim de escapar ao aborrecimento e ao desespero inerente à sua condição. O Estado não pode permitir que os homens sejam abandonados a seu desespero, pois homens desesperados são muito suscetíveis à revolta contra a ordem que, na lucidez do desespero, pode revelar-se-lhes absurda e opressiva. Por isso, o Estado precisa sempre vigiar os homens e cuidar para que eles se mantenham domesticados e ocupados de tal modo, que não venham a se conscientizar do desespero de sua condição.
O homem ocupado é aquele que permanece fugindo ao tédio e ao desespero. Ele não está ocupado, propriamente, com a sua existência, com a sua condição enquanto existente, pois isso significaria ter de lidar com a vacuidade, com o vazio, com a fragilidade da rede de significados que dota o mundo de uma “ordem” e que sustenta a existência.
Em A filosofia do tédio (2006), o filósofo Svendsen desenvolverá uma compreensão do tédio como perda de significado. Vou-me ocupar de esclarecer essa compreensão. O tédio compreendido como uma perda de significado evoca-nos o que eu expus, na primeira seção, sobre o mundo como uma totalidade de significados. Acompanhemos o que nos escreve o autor:

“O homem é viciado em significado. Todos nós temos um grande problema. Nossas vidas têm deter alguma espécie de conteúdo. Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. E o tédio pode ser descrito metaforicamente como perda de significado. O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita” (p. 32).


Cuido estar suficientemente clara a ideia de que o homem está condenado a significar. A condição para que o homem prolongue sua existência é que esta continue sendo fonte de significados. O que ocorre no tédio é que o homem experiencia a escassez da produção de significado. No tédio, homem reconhece a fragilidade da estrutura de significado que sustenta sua existência. Se ele crê que essa estrutura já está pronta, já está dada, cabendo-lhe apenas ajustar-se a ela, explorá-la, é possível que, no tédio, venha a suspeitar de sua solidez. Se, no entanto, não crê que essa estrutura seja preexistente e já constituída, é possível que, no tédio, reconheça não ser ela senão uma ficção que ele mesmo produz. Em qualquer dos casos, o homem precisa enfrentar a fragilidade dessa estrutura, que não resiste à própria fragilidade da vida.
Segundo Svendsen, no tédio, o homem experiencia o vazio do tempo como um vazio de significado. Ademais, o tédio tem a ver com a finitude e o nada. O tédio “é a morte em vida, uma não-vida” (p. 43).
Na perspectiva de Heidegger, o tédio é pensado a partir do conceito de humor. Os humores não devem ser reduzidos a estados psicológicos. Os humores são uma característica básica de nosso ser-no-mundo. Por conseguinte, segundo Svendsen,

“Uma mudança de humor deve, portanto, ser considerada também uma mudança no mundo quando operamos com um conceito de mundo como algo que pode ou não ter significado – pois não temos um mundo afetado para tomar como comparação, um mundo que não se deixasse atingir pela mudança de humor” .(p. 141).

O humor não é simplesmente um estado interno ou subjetivo que se projeta sobre o mundo. O humor modifica o próprio mundo. Se assumimos que o significado do mundo é construído pelo homem, então esse mundo pode ou não ter significado. O humor afeta o mundo como um todo e nossa relação com ele. Justamente porque é extensivo à totalidade do mundo, o humor difere da emoção. Emoções não são, necessariamente, gerais. Ademais, o humor pode durar por um tempo maior que a emoção. O humor também não tem objeto intencional; ao contrário, a emoção o tem.
O tédio será um humor, quando o mundo inteiro nos parecer entediante. O tédio que me interessa, para efeito de reflexão, é o tédio existencial, que pode assumir a forma de tédio profundo. Mas, ainda no que toca ao humor, é necessário frisar que encontrar-se num determinado humor não é apenas uma determinação ontológica do homem. Humores formam uma moldura básica para o entendimento e a experiência. Temos diferentes experiências de tempo dependendo do humor em que nos encontramos. Quando nos encontramos situacionalmente entediados, desejamos a supressão do presente, queremos escapar do lugar onde estamos. Portanto, diferentes humores são responsáveis por diferentes experiências de espaço também.
No tédio existencial, o tempo implode, torna-se uma espécie de presente eterno e enfadonho. Todo nosso ambiente perde sua vitalidade. E a diferença entre o próximo e o distante desaparece. No tédio, o indivíduo experimenta o desaparecimento das possibilidades que, quando se acha num humor adequado, se apresentam em número infinito.
Revisitando o pensamento heideggeriano sobre a estrutura existencial do Dasein, devemos lembrar que Dasein é um ser ocupado com o mundo. O Dasein é caracterizado por ser interessado em sua existência enquanto existente. O Dasein tem uma relação com sua própria existência. Ele também é um ser que tem uma compreensão de si mesmo, que se interpreta. Um humor pode abrir ao Dasein um horizonte de possibilidade de relacionar-se consigo. Trata-se, nesse caso, de um humor fundamental que o afeta a partir do mundo.
O exame dos humores pode revelar a disposição fundamental da existência humana, a saber, como ela deve estar no mundo. A disposição envolve sempre um descobrimento passivo do mundo feito pelo Dasein. A disposição não está sob seu controle. Mas é a disposição a condição necessária para que o Dasein perceba as coisas como significativas ou indiferentes. A disposição se revela através dos humores. Na verdade, são estes que revelam se alguma coisa tem significação para o Dasein.
A ideia de disposição consiste em que o Dasein já se encontra situado. Na disposição, o Dasein está aberto para o mundo. É necessário dizer que o humor é condição para o pensamento e a ação. Pelos humores, o Dasein vê seus próprios projetos. O humor o põe em contato com o mundo.
Para Heidegger, o tédio é um humor fundamental que nos conduz para a problematicidade do ser e do tempo. Como é a experiência do tempo no tédio? O tempo, no tédio, parece não passar como de costume. No tédio, experimentamos a realidade do tempo. O significado da vida se esfacela. E o Dasein perde sua relação com o mundo. Não lhe resta senão o nada, “uma falta que engloba tudo” (Svendsen, p. 140).
“(...) O Dasein é aprisionado no tempo, abandonado num vazio que parece impossível preencher. Ele fica entediado porque falta à vida um propósito e um significado; e a tarefa do tédio é atrair nossa atenção exatamente para isso”. (ib.id.).


Como se pode inferir da passagem acima, o tédio pode ser uma experiência de elucidação: no tédio, somos despertados para a insignificância de tudo. O homem entediado torna-se homem esclarecido sobre sua condição existencial no mundo: o mundo, em si, é desprovido de significado e a rede de significados que sustenta a existência é frágil. Por outro lado, o tédio não deixa de ser desumanizador, porque priva a vida humana do significado que a estrutura. Portanto, segundo Svendsen, “no tédio, há uma perda de mundo”, e “o Dasein torna-se empobrecido de mundo” (ib.id.). O tédio, tal como venho descrevendo-o, não é situacional, mas deve ser encarado como “um dado incontornável, como a própria gravidade da vida”. (p. 169).


2.1. Heidegger e a questão do tédio


Doravante, deter-me-ei a considerar, com mais acuro, a compreensão heideggeriana do tédio. Heidegger é mais conhecido por sua preocupação com o tema da angústia do que com o tema do tédio. Não obstante, não se deve daí concluir que ele estivesse desinteressado de pensar o tédio. Heidegger empreendeu uma análise de uma série de humores diferentes.
Ele insistia na necessidade de despertar um humor fundamental para a filosofia. Isso que deve ser despertado está, portanto, adormecido. O que ele quer despertar não é senão o tédio. O tédio dorme enquanto nos valemos de diversas formas para entretermo-nos cotidianamente. No entretenimento, o tédio fica adormecido. Mas por que deveríamos querer despertá-lo? Para Heidegger, é preciso despertá-lo porque só assim nós também seremos despertados. Os homens, segundo Heidegger, estão adormecidos em seus passatempos habituais. Heidegger via nesse sono comum a todos os homens na cotidianidade um caráter destrutivo. Adormecidos, os homens tornam-se incapazes de projetar-se para as suas verdadeiras possibilidades. Tais possibilidades se ocultam nos passatempos dos homens adormecidos. Segundo Svendsen,

“O principal problema com a vida real é que ela não nos dá acesso aos fundamentos da existência, uma vez que é uma vida que foge do fundamental. Viver é importar-se, especialmente, no sentido de facilitar as coisas para si escapando”. (p. 128-129).


A vida do homem do cotidiano assemelha-se à vida dos prisioneiros da Caverna de Platão; mas, no caso do homem do cotidiano, a verdade que lhes está oculta é a verdade sobre a sua condição enquanto ser-no-mundo. Consoante Heidegger, experiências como a angústia e o tédio provocam no homem a necessidade de reagir, visto que nelas o homem não pode mais relacionar-se confortavelmente com o mundo. O homem se vê lançado brutalmente de volta para si mesmo. Heidegger diz haver várias formas de tédio. Num extremo, há o tédio superficial; noutro, o tédio profundo, que atinge o próprio fundamento do Ser. É possível, segundo Heidegger, que sejamos lançados ao tédio profundo pela experiência do tédio superficial.
Retome-se a ideia de divertimento como meio de fugir ao tédio. Pascal expressa bem essa ideia no seguinte trecho:

“O único bem dos homens consiste, pois, em divertir o pensamento de sua condição, ou por uma ocupação que dele os desvie, ou por alguma paixão agradável e nova que os ocupe, ou pelo jogo, a caça, algum espetáculo atraente e finalmente por aquilo a que se chama divertimento”.[3]


Neste passo, convém, para a satisfação dos meus propósitos, reter a ideia de que os homens, para escapar ao tédio, buscam o divertimento. É necessário que busquemos alguma coisa que nos prenda a atenção e que nos ajude a passar o tempo. O tempo é nosso grande inimigo quando nos sentimos entediados. Se olhamos continuamente o relógio num determinado momento, é sinal de que o tédio está se acentuando. Olhamos o relógio quase compulsivamente na esperança de perceber que o tempo passou, que passou mais rápido do que de costume. Sabemos, contudo, que, normalmente, ficamos desapontados.
No tédio, o que importa, o que nos aflige é o ritmo do tempo. No tédio, o tempo é lento, e essa lentidão mostra-nos que não dispomos de controle sobre o tempo.
No passatempo, importa-nos a ocupação. Nós nos mantemos ocupados porque queremos escapar ao vazio do tédio. Mas não será possível entediar-se fazendo alguma coisa? A resposta é sim. Heidegger distingue entre o entediar-se por alguma coisa e o entediar-se fazendo alguma coisa. O tédio profundo corresponde a esta última forma de tédio. Posso estar ocupado fazendo algo e, a posteriori, tornar-me consciente de que estava entediado. Nesse caso, experimento um vazio que se enraíza na temporalidade de meu próprio eu. Na forma profunda de tédio, é o próprio tédio que entedia.
No tédio profundo, sentimo-nos vazios tanto em relação às coisas que nos cercam quanto em relação a nós mesmos. No tédio profundo, o Dasein é abandonado à totalidade de ser que, no entanto, se retrai. As possibilidades genuínas do Dasein deixam de se realizar no tédio. Tudo se torna ao mesmo tempo indiferente e aborrecido em sua falta de significado. Eu mesmo me torno indiferente a mim mesmo. Sinto-me absorvido na vacuidade de ser eu. Segundo Svendsen, “o tédio revela um vazio, uma insignificância, em que todas as coisas são atraídas para uma indiferença geral”. (p. 139).
Para Heidegger, o tédio revela o puro ser. Compreendamos o que significa isso. Em primeiro lugar, o Dasein tende, em si mesmo, a viver na inautenticidade, estado em que se deixa dispersar-se em distrações. Heidegger está interessado em pôr a nu a sensação de terror em nós. O tédio, como vimos, tem o privilégio de nos despertar; mas nós despertamos assustados quando o tédio nos afeta. O Dasein não está confortável no mundo do tédio. No tédio, o mundo torna-se estranho e inóspito – o mundo deixa de ser um lar protetor e se torna ameaçador. No tédio, experienciamos o nada da realidade. Nossa relação normal com o mundo, com as coisas se rompe. O nada do tédio parece atrair completamente nossa atenção; só o nada do tédio nos interessa. No tédio, o significado das coisas é destruído, de modo que elas nos aparecem como efêmeras e vazias.
Cabe perguntar o que, então, resta ao Dasein? O Ser. Mesmo imerso completamente em nada, o Dasein é; e o ser pode, portanto, se revelar para o Dasein com toda a sua nudez insignificante. No estado inautêntico de ser, o verdadeiro caráter de ser é encoberto. Uma vez que se rompa a relação inautêntica e sem significatividade do Dasein com o mundo, somos despertados para uma relação autêntica com nós mesmos.
É mediante o colapso de todo significado estruturante de mundo que o Dasein se liberta de sua dependência de outros seres.  Ao menos, duas questões se nos apresentam prementes na abordagem heideggeriana do tédio – trata-se de questões que o próprio Heidegger não resolve: 1) De onde provêm os recursos que freariam a tendência do Dasein a cair no mundo?; 2) Será que o tédio pode nos permitir uma compreensão abrangente e profunda “do significado do Ser”?  Finalmente, poderíamos perguntar se não seria o tédio um problema que diz respeito à nossa vida concreta.






[1] Todo este trecho se acha no texto O domínio do simbólico, publicado neste blog. Nesse texto, empreendi uma discussão mais pormenorizada sobre questões que, nesta nova oportunidade, merecerão tão-só um tratamento tangencial.
[2] http://www.contioutra.com/depressao-um-enfrentamento-insuportavel-com-a-verdade/
[3] PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 50.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

"Mermo quano falamo assim sabemo falá" (BAR)

            
                      

          A influência de aspectos fonéticos na ortografia


Aspectos fonológicos e fonéticos do português brasileiro e ortografia este foi o tema de uma prova do processo de admissão de professores de língua portuguesa da UFF. Os pleiteantes à vaga deveriam, pois, dissertar sobre esse vasto tema, sem que lhes fosse dada qualquer indicação sobre quais  critérios seriam utilizados pela banca na avaliação dos textos. Como se pode ver, tal como se apresenta o enunciado do assunto ao qual os candidatos deveriam dispensar sua atenção, as possibilidades de abordagem são inumeráveis. Quais os aspectos deveriam ser privilegiados? De que modo se deveria considerar a questão ortográfica? De minha parte, a ortografia só poderia ser abordada pontuando as influências de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. O candidato que decidisse tratar das regras do Novo Acordo Ortográfico não conseguiria estabelecer a unidade de sentido pressuposta pelo tema. Se o tema da ortografia se apresenta coordenado ao tema dos aspectos fonéticos e fonológicos, é lícito supor que se está esperando que o candidato correlacione os dois temas.
Há muitos fenômenos fonéticos que influenciam na produção escrita dos usuários do português brasileiro. Em outros termos, há muitos fenômenos fonéticos que explicam por que os usuários do português, mormente nas fases iniciais de alfabetização, tendem a grafar erroneamente certas palavras. É preciso, pois, ter em conta o fato de que tais erros são, em última instância, decorrentes de fenômenos regulares que se dão na fala dos usuários do português brasileiro. Esses fenômenos podem ser divididos, a título metodológico, em dois grupos: 1) os que pertencem ao grupo dos mais estigmatizados; 2) os que pertencem ao vernáculo geral brasileiro, a saber, que ocorrem na língua falada por todos os brasileiros. Vejamos alguns exemplos de fenômenos em cada grupo.
Comecemos por examinar os fenômenos fonéticos inclusos no grupo 1. O fenômeno do rotacismo carreia, sem dúvida, um alto grau de estigmatização social. O rotacismo consiste na permuta do fonema /l/ por /r/ nos encontros consonantais /bl/, /cl/, /fl/. Os pares bloco > broco; claro > craro; flauta > frauta são exemplos de rotacismo. O rotacismo, nesse ambiente fonológico – em encontro consonantal – é estigmatizado em todo o Brasil. Pode ocorrer também o rotacismo em final de sílaba, como no par tal-co > tar-co. Essa forma de rotacismo é característica de algumas regiões onde se usa o vulgarmente chamado “dialeto caipira” (interior de São Paulo, Sul de Minas Gerais, etc.). Os falantes dessa variedade linguística usam uma consoante retroflexa em sílabas travadas, como em “porta” (o /r/ retroflexo é pronunciado com o levantamento e o encurvamento da ponta da língua em direção ao palato duro).
Outro fenômeno bastante estigmatizado é o da monotongação de ditongos átonos crescentes em posição final. Palavras como notícia, paciência, imundície são, por força desse fenômeno, pronunciadas como notiça, paciença, imundice. Um personagem de televisão ficou conhecido por usar, de forma caricatural, a variante poliça por polícia. Sucede, contudo, que os usuários da língua que se utilizam dessas formas monotonganizadas seguem uma deriva histórica da língua. Na história do português, há muitos exemplos da mesma tendência. A forma latina prigritia deu origem à forma portuguesa “preguiça”; “pretiu”  deu origem à forma “preço”, etc.
Passemos a considerar alguns fenômenos que se situam no grupo 2. Eles caracterizam usos linguísticos comuns a todos os brasileiros. Por exemplo, todos nós, falantes nativos de português brasileiro, independentemente de classe socioeconômica, grau de escolarização, faixa etária, sexo, etc., apagamos o /r/ em final de palavra, sobretudo em final de verbos no infinitivo. Assim, pronunciamos “cantar”, “falar”, “vender” como “cantá”, “falá” e “vendê”. Também alguns substantivos perdem o /r/ final, como “professô”, “dotô” (cf. “doutor”), etc. No caso de “dotô”, ocorre ainda a redução do ditongo /ow/. Casos como este são gerais na fala do brasileiro. A monotongação dos ditongos /ey/ e /ay/ são, particularmente, gerais diante de consoantes palatais ou da vibrante simples (/r/). Vejam-se os exemplos “chêro”, “bêjo”, “pêxe” e “caxa” correspondentes às formas grafadas “cheiro”, “beijo”, “peixe” e “caixa”. Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização, dado que a tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não o ditongo. Portanto, não nos devemos surpreender se uma criança, nessa fase de escolarização, escrever “bêjo” em vez de “beijo”, o que não significa dizer que não se deve ensiná-la a grafia correta. O mesmo fenômeno está na origem das formas escritas “carangueijo”, “bandeija” e “prazeiroso”, por exemplo, as quais indicam uma hipercorreção por influência do processo de monotongação na fala. Nesse caso, o falante, por analogia, escreve com ditongo as formas que não têm ditongo. Por um processo de indução, julga que também aquelas palavras têm grafia diferente do modo como se pronunciam, tal como sucede com as formas “cheiro”, “beijo”, “peixe”. A hipercorreção se realiza como processo inverso da monotongação: usa-se ditongo onde não há, nem na fala, nem na escrita, ditongo.
Por fim, veja-se outro caso típico de variação linguística no domínio fonético que influencia na forma como se grafam as palavras. A consoante lateral /l/, quando em final de sílaba ou de palavra, é pronunciada, na maior parte do território brasileiro, como a semivogal [w] (é o nosso “u” de “incauto”). Daí resultam certas dificuldades de escrita, como a grafia das palavras “mal” e “mau”, que se pronunciam de modo indistinto. A vocalização da lateral, comum em formas como “Brasil” (Brasiu), “barril” (barriu), “alto” (auto), “esbelto” (“esbeuto”), leva o falante a produzir, na escrita, frases em que “mau” aparece no lugar de “mal” e vice-versa. Assim, é comum grafar “mau” em “ele se veste mau” e “mal” em “Ele é mal”, malgrado o esforço despendido pelo professor de português na insistência com que diz que “mau” corresponde a “bom” e “mal” corresponde a “bem”, o que significa dizer que “mau” é adjetivo, portanto, que se usa para modificar substantivo, e “mal” é advérbio e que, portanto, se usa para modificar verbo (cf. Ele se veste mal/ Ele canta mal).
No tocante ao apagamento do /r/ em final de palavra, que vimos anteriormente, é importante lembrar, nas formas infinitivas, esse fenômeno nos permite explicar por que são possíveis grafias como “você estar em casa” e “ele dar um bom partido”. Esses casos patenteiam a hipercorreção por influência da tendência geral de apagamento do /r/ em final de palavra, na língua falada.
De tudo que foi exposto, depreende-se facilmente que vários erros de ortografia se elucidam quando compreendemos a influência de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. Tais fenômenos podem ser gerais, caracterizando o vernáculo brasileiro, ou podem ser característicos de variedades linguísticas bastante estigmatizadas. Mais uma vez, tais fenômenos dão testemunho de um aspecto geral e inerente a todas às línguas conhecidas: a variação e mudança das formas como são usadas pelos seus falantes.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

"Há tempo substituí a prece pela sabedoria filosófica. Nossos mortos deveriam ser lembrados não com orações, mas com lições sobre o bem viver. Aos que pranteiam a morte de um ente amado, deveriam ser oferecidas lições sobre o saber morrer. Que a sabedoria filosófica esclareça nossos enterros" (BAR)

                                


                                               Nossa mortalidade

A mãe que abraça a seu filho com o apego próprio de quem ama profundamente deve saber e aceitar que a quem está abraçando deve, necessariamente, morrer. É no amor e no cuidado que pressentimos a necessidade da perda. Lei inexorável: o que nasce tem de perecer. “Erras se pensas que apenas na navegação a vida se distancia pouco da morte: em todo lugar essa distância é tênue. A morte não se mostra em todos os lugares, mas em todos os lugares ela está próxima” (Sêneca).
Vivemos sempre na iminência da morte. Mas nosso estado habitual é o da negação dessa iminência. Saber que compartilhamos com os outros um mesmo destino determinado desde nosso nascimento não é ainda estar absorvido na angústia dessa iminência. A angústia em face da irrupção inesperada do Nada, do Irremediável, do Abismo intransponível permanece em sono profundo no homem do cotidiano. Mas eis que a proximidade da morte de um ente querido irrompe na estrutura nebulosa de nossas vivências ordinárias para sentirmos nossa constituição fisiológica estremecer, nosso corpo latejar e se lembrar de sua inerente impermanência. E com abissal clareza nosso espírito apreende-se como uma totalidade orgânica também perecível. Sentimos o desamparo, o abandono; experienciamos na profundidade sem fundo de nosso ser nossa impotência em face do Inevitável. E que não haja um após, uma possibilidade de reencontro, de retorno, de transfiguração no Eterno, que a vida seja nada mais do que um intervalo de um espetáculo do Acaso, um hiato entre dois nadas, que sejamos apenas “defuntos adiados”, é isto que parece à maioria dos homens intolerável. Que a vida seja um empréstimo de um Credor inquebrantável e pontual, que a vida não passe de um sintoma do Nunca Mais é isto que os apavora, enquanto permanecem ignorando que o morrer é seu modo de ser.


“É preciso, enfim, que a morte triunfe, pois lhe pertencemos pelo próprio fato do nosso nascimento, e ela não faz senão brincar com a presa antes de devorá-la” (Schopenhauer)

“Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que te admires, durante toda a vida se deve aprender a morrer” (Sêneca).




"O tempo da vida humana: um ponto. Sua substância: um fluxo. Suas sensações: trevas. Todo o seu corpo: corrupção. Sua alma: um remoinho. Sua sorte: um enigma. Seu renome: uma cega opinião. Resumindo, tudo, em sua matéria: precariedade. Em seu espírito: sonho e fumaça. Sua existência: uma guerra, a etapa de uma viagem. Sua glória póstuma: esquecimento. Que nos pode então servir de guia? A filosofia, apenas isso".

(Marco Aurélio - Meditações, p. 25)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

"Uma palavra que não representa uma idéia é uma coisa morta, da mesma forma que uma ideia não incorporada em palavras não passa de uma sombra." (Vygotsky)

                           


                          Linguagem e Razão
                           Um caminho de mão única

                                     


Tão logo iniciei meu contato com a filosofia, uma coisa pareceu-me bastante clara: toda discussão filosófica não pode prescindir, desde o início – ou melhor, como condição mesma de possibilidade de tal discussão – da definição dos termos em torno dos quais se desenvolverá a discussão. Se os interlocutores não estiverem de acordo quanto ao sentido atribuído aos termos implicados na questão, o debate se inviabiliza. Definir é, sem dúvida, um momento fundamental da reflexão filosófica; entre os gregos, chegar à definição é o fim (finalidade) da dialética. É claro - poderia intervir o leitor -  que a dialética é o instrumento de busca da verdade, uma pedagogia científica do diálogo, desde Platão. Mas a verdade só se alcançava - pensemos na maiêutica socrática - ao cabo de um processo que culminaria com a definição do que se postulava na questão inicial. O que é o ser? A questão reclama uma definição do objeto interrogado. É à busca da definição que se lança o filósofo. Definir, para Aristóteles, é exprimir a essência de uma coisa. A verdade só se contemplava quando a coisa se deixasse revelar em sua essência na definição. Que a dialética vise a atingir a verdade não há dúvida, mas a verdade, para os gregos, só se alcança quando se deixa ver na transparência do lógos (discurso), quando através da definição expressamos a essência de uma coisa.
Quando, recentemente, ventilei a questão sobre que direção devemos dar à relação entre linguagem e razão, não o fiz por pressupor saber qual é a verdade suscitada pela questão. Especialmente, nesse caso, a verdade parece ser obnubilada pelos próprios termos da questão. A questão – lembro – consiste em saber se a razão é ontologicamente anterior à linguagem, isto é, é o fundamento desta, ou ao contrário. Parece que Aristóteles resolveu essa questão assumindo ser a razão o fundamento do desenvolvimento da linguagem. Eu, no entanto, - e não estou sozinho nessa dúvida – não estou convencido da resposta aristotélica.
Hobbes, por exemplo, lembrar-nos-á, no Leviatã, que os gregos entendiam não haver raciocínio sem linguagem, o que explica, entre eles, a existência de uma palavra – LÓGOS – para designar tanto linguagem quanto razão.
Mas o problema inicial – que é o da definição – precisa ser retomado. Precisamos nos perguntar o que estamos entendendo por razão e linguagem? Comecemos por elucidar o significado de linguagem. Rechacem-se dois sentidos que não devem nos interessar: 1) linguagem como sistema de sinais; 2) linguagem como instrumento de comunicação. Ao nos referirmos à linguagem, aqui e no contexto mais abrangente da tradição filosófica, estamos interessados na linguagem verbal; ou, mais precisamente, na capacidade natural que tem todo ser humano normal de usar uma língua.
Se por razão entendermos a capacidade que temos de articular conceitos e proposições para deles extrair conclusões de acordo com princípios lógicos, ou, o que nos levaria ao mesmo resultado, tendo em vista meus propósitos argumentativos, entendermos por razão a capacidade humana de atribuir sentido a, de ordenar, de estruturar nossas experiências de mundo, reconhecendo nelas relações constantes, então não podemos pensar essa capacidade de modo indissociável da linguagem, ou mesmo sequer podemos pensá-la como anterior ao desenvolvimento da linguagem. Por quê? Porque a linguagem não é mero instrumento de comunicação, também  não é meio de registro de nossos pensamentos. A linguagem é responsável pela constituição de nossas experiências de mundo. Entre as muitas funções a que se presta a linguagem, a função de SIMBOLIZAÇÃO lhe é básica. No que consiste essa função? É a função graças à qual podemos transformar todos os elementos do mundo em dados da nossa consciência e em assuntos dos nossos discursos. O mundo experimentado pelo homem não entra em sua consciência de forma bruta e caótica, mas de forma ordenada, estruturada por meio das categorias fornecidas pela linguagem. Assim, estruturadas nossas experiências de mundo, elas se tornam conteúdos da consciência passíveis de serem comunicados no discurso. Portanto, a língua ou linguagem verbal, antes de tudo – antes de servir à interação social (que não deixa de ser uma função importantíssima), - é um sistema de categorias que permite ao homem organizar o mundo numa estrutura dotada de sentido. Naturalmente, o que povoa a consciência do homem não são as coisas dadas à experiência sensível deles. A linguagem, por intermédio das palavras, e graças à sua função de simbolização, transforma os dados da experiência em conceitos; é na forma de conceitos que esses dados se tornam dados da consciência. O que nossa consciência apreende são os conceitos. Ora, o conceito de “ave” não é a coisa ou o animal bípede, com asas e bico. O conceito é um esquema geral, uma ideia geral que nos permite representar (re-apresentar) a coisa na/à consciência.
Ortega y Gasset, em seu livro QUE É FILOSOFIA? (1971), define o conceito como “um conteúdo mental enunciável” e a esta definição acresce: “o que não se pode dizer, o indizível ou o inefável não é um conceito” (p.83). O que nos chama atenção em sua definição de conceito é a característica de ele ser “enunciável”. Ora, um conceito que não possa ser expresso em palavras não é conceito, o que corrobora a visão de linguistas para os quais as palavras criam conceitos com os quais organizamos nossas experiências de mundo. O pensamento conceitual, portanto, não existe sem linguagem. E mesmo que possamos admitir, como queria Piaget, um pensamento pré-linguístico, ele ainda não é o tipo de pensamento socializável, comunicável, o pensamento sem o qual o homem não seria um ser racional, produtor de cultura, produtor de arte, filosofia, literatura; enfim, de sociedade.
Uma coisa me parece bastante clara e incontestável, ao menos: que o desenvolvimento da capacidade da linguagem levou ao grande “boom” da capacidade intelectual humana. Independentemente do que está na origem - se a linguagem ou a razão-,  o fato é que o desenvolvimento da linguagem levou a um aumento significativo da capacidade racional do homem. Serviu-lhe como uma espécie de “upgrade”, possibilitando a ele transcender os limites de suas experiências imediatas com o mundo e criar outras formas de ser, agir e experimentar o mundo. Mundo? Isso já é uma questão de linguagem.



(BAR)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

"Todo ato existencial é um ato de indeterminação problemática" (Abbagnano)

                                                         
                     

                       Existir como relação com o ser

Introdução

Este texto não pode ser lido, meditado, saboreado e fisiologicamente compreendido por leitores de ciberespaços, habituados que estão a fast-sentences leves e simples que facilitam a digestão. O tema do texto, decerto, pode intimidá-los, mas é a extensão que os enfada, porque não habituados a consumir seu tempo  com elucubrações. Um texto longo que verse sobre um tema sério demanda do leitor um paciente trabalho de ruminação; mas os leitores de ciberespaços são inaptos para exercícios intelectuais que exigem demora, entrega e paciência mais longas do que se espera numa época em que é preciso estar em movimento constante, indo a todos os lugares sem nunca estar (deter-se) em lugar algum. Mas, quando penso na razão por que insisto em escrever e por que me apetece essa atividade, ela não compreende meu interesse pela recepção do leitor. Muito antes de decidir divulgar meus textos em um blog, escrevia para apreender o que lia e para lançar luzes sobre minhas escuridões, para expurgar meus males, deslindar ou acentuar meus conflitos. Ler e escrever são atividades que se completam: a leitura deve sempre preceder à escrita. No entanto, aquela não pode dispensar esta, pois somente quando escrevemos demonstramos se realmente compreendemos o que foi lido. É chegado o momento de entregar-me à elaboração das reflexões a que este texto se destina. Principio com a apresentação de meu objetivo principal.
Ofereço, neste texto, um recorte da minha leitura da posição existencialista do filósofo italiano Nicola Abbagnano, apresentada e desenvolvida em seu livro Introdução ao Existencialismo (2006). Sendo um recorte, o que ofereço não cobre todo o conjunto de reflexões do autor. Como este texto verse sobre um tema existencialista, os problemas de que me ocuparei recobrem questões que interessam fundamentalmente ao existencialismo. Tais questões podem ser subsumidas em um macro-problema, que será centro de minhas preocupações: o problema do ser. Por ser esse o problema central deste texto, cuidei oportuno revisitar o pensamento de Heidegger, cuja contribuição para o desenvolvimento do pensamento filosófico começa com a retomada da questão sobre o ser. Mas antes de Heidegger, foi preciso iluminar, muito brevemente, o lugar de onde ele partiu, para o que recupero a significação do ser em Parmênides e Platão e a distinção operada pelos filósofos da Idade Média entre ser e ente. Até chegar ao exame da posição de Abbagnano, depois de revisitar Heidegger, foi necessário considerar o tema da liberdade em Sartre com o intento de esclarecer a ideia de indeterminação originária do homem, discutida por Abbagnano. Em Sartre, busquei subsídios para pensar a oposição determinação/indeterminação relativamente ao problema da existência. Com Sartre encerro a primeira parte de minha exposição. A segunda parte é dedicada à análise da posição de Abbagnano, tarefa ao longo da qual discrimino no conjunto de preocupações do autor aquelas que compreendem o problema da existência como relação com o ser. Não se trata de um problema distinto do macro-problema a que aludi acima como sendo o problema central. Trata-se do mesmo problema perspectivado como problema existencial do homem concreto.


                                   PARTE I

1. A questão do ser

Ser, em seu sentido básico e abstrato, é a única realidade verdadeira e fundamental, subjacente à diversidade das coisas que se nos dão à experiência sensível. O ser é o real no sentido mais fundamental. O ser parmenidiano tem caráter oculto e só era acessível ao pensamento.
Para os antigos, o ser é presentificação, é aquilo que se apresenta depois do desvelamento. O ser é presença, é manifestação daquilo que sempre foi, mas que não se deixa apreender pela experiência sensível; é uma presença que gosta de se ocultar. O ser não é a totalidade das coisas sensíveis, mas é condição de possibilidade de aparecimento das coisas. O ser é o que há de mais subjacente na totalidade dos objetos que se dão à nossa experiência sensível. O espanto que os gregos experimentavam diante do ser é o espanto em face de haver algo; o fato de ‘haver’ é fonte de admiração. Os gregos não podiam conceber a geração do ser a partir do nada. O ser é uma presença plenificante e eterna – donde o espanto.
Na filosofia contemporânea, o conceito de ser recobre, além da ideia de imutabilidade que remonta a Parmênides e a Platão, o sentido existencial de ‘existir’ ou ‘estar no mundo’. Do ponto de vista existencialista, o ser é simplesmente aquilo que há ou existe, que está no mundo. Mesmo na contemporaneidade, o conceito de ser não deixou de conservar seu significado mais geral e abstrato, passando a recobrir a ideia de essência ou natureza íntima das coisas. Quando nos referimos ao ser do homem, ao ser desta ou daquela coisa, queremos dizer a essência do homem, a essência ou natureza íntima desta ou daquela coisa, a saber, referimo-nos àquilo faz a coisa ser o que ela é, sem o qual ela deixaria de ser. Os escolásticos pensavam a essência como uma das grandes divisões do ser, de modo que a essência é o ser mesmo das coisas. Vê-se que, entre os escolásticos, apesar da contiguidade semântica entre os dois conceitos, ser e essência não designavam a mesma coisa. É na modernidade, com Descartes, que ser diz o mesmo que essência, ou seja, aquilo que a coisa é.
O significado mais geral e abstrato de ser conduz-nos de volta a Platão. Decerto, toda a metafísica se ocupa, em certo sentido, da reflexão sobre o significado de ser. A abstratividade do conceito de ser, isto é, o ser no sentido de ser puro, sem nenhum determinação chega a exagerar-se em Hegel. Hegel diz que o ser é igual a si mesmo em sua imediatez indeterminada, é a indeterminação pura e o vazio puro. Hegel chega a dizer que o ser é, na realidade, nada.
É preciso notar, contudo, que a diferença entre o sentido geral e abstrato do ser e o sentido existencial levou à distinção, na filosofia da Idade Média, entre o ser e o ente – distinção esta retomada por Heidegger na contemporaneidade. Com base nessa distinção, o ser passou a recobrir o sentido mais geral e abstrato, ou seja, o real em seu sentido mais fundamental e abstrato, a realidade verdadeira e fundamental (sentido que encontramos entre os gregos); e o ente, a designar aquilo que está no mundo, o indivíduo, cada coisa existente. No primeiro capítulo da Introdução de seu Ser e Tempo (2012), Heidegger passa em revista o que a tradição nos legou a respeito do conceito de ser, concluindo não só faltar resposta à questão, mas também, e sobretudo, ser ela obscura e carecida de direção. Dada a reconhecida obscuridade da questão, vejamos de que modo Heidegger procurou encaminhá-la. O ser como horizonte de possibilidade de aparecimento dos entes conduz-nos para a preocupação central da pesquisa heideggeriana, a saber, a existencialidade do Dasein. Cumpre precisar esse ponto com as palavras do próprio Heidegger:

“(...) Entendemos a existencialidade como a constituição de ser de um ente que existe. Na ideia de constituição de ser já se encontra, pois, a ideia de ser em geral. Desse modo, a possibilidade de se realizar uma analítica do Dasein sempre depende de uma elaboração prévia da questão sobre o sentido de ser em geral”. (p. 13)


Quem é o Dasein? Quem é o ser-o-aí? Quem é o ser-no-mundo? A elucidação do sentido do ser depende da análise prévia das estruturas existenciais do Dasein. É a esta empresa que se lança Heidegger. O que eu farei, no entanto, é tão-só lançar luzes sobre o estatuto privilegiado desse ente que é o Dasein, tendo em vista o problema do sentido do ser.

2. Dasein

Atentemos para o trecho a seguir, tomado a Heidegger, em Ser e Tempo (2012):

“O Dasein não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ele se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser do Dasein a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser”. (p.48).


Volvendo olhares sobre o limiar desse trecho, não resta dúvida de que Heidegger ressalta o caráter privilegiado do ente que não é apenas um ente que ocorre em meio a outros entes, ente que não se confunde com os outros entes, que não é mais um entre os demais entes. O Dasein se caracteriza por uma distinção ôntica, que constitui um privilégio seu, qual seja, o de relacionar-se com seu ser em seu modo próprio de ser. O Dasein se “compreende”, tem de fazer-se enquanto existindo. Seu privilégio ôntico de ser se traduz como compreensão implícita do sentido de ser que, em termos heideggerianos, se diz pré-ontológica.
O Dasein é o ente em cujo ser se coloca a questão sobre o sentido do ser. A questão do ser lhe diz respeito. O Dasein é cada um de nós pensado na relação necessária com o ser, a saber, como nosso próprio ser, com o ser das coisas e com o ser dos outros. O modo próprio de ser do Dasein é a existência. Só o Dasein existe. O Dasein é o entre privilegiado para o qual, em seu ser, está em causa o seu próprio ser. É ele o horizonte de abertura para a questão sobre o sentido do ser. Deve-se ficar claro que, partindo do reconhecimento de que a questão sobre o ser é obscura e intentando desdobrá-la em sua transparência, Heidegger propõe como condição primeira de investigação tornar transparente o ser daquele que questiona. A questão sobre o sentido do ser só pode ser elucidada por meio da compreensão prévia do ser do ente para o qual o ser está em questão. Essa é a direção que Heidegger pretende dar a referida questão, após concluir que ela foi tratada pela tradição de modo obscuro, conforme se lê abaixo:

“Assim, o exame dos preconceitos tornou ao mesmo tempo claro que não somente falta resposta à questão do ser, mas que a própria questão é obscura e sem direção”. (p. 40).

Justamente porque não se encontrara, àquela altura, uma resposta para a questão do ser e justamente porque essa questão não foi bem colocada que Heidegger apela a que se a retome.

“Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento precisa, portanto, adquirir a devida transparência (...)”. (ib.id.).


Para que se possa conferir a essa questão uma direção, para que se possa torná-la transparente, necessário se faz que se tome um ponto de partida outro, pelo qual se pode situá-la num horizonte de abertura à luz do qual possamos visualizá-la. Onde encontrar esse horizonte de abertura? A resposta já se deixa entrever desde o início desta sub-seção: no Dasein.

“O Dasein sempre se compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ele mesmo” (p. 48).


A próxima sub-seção será reservada para o tratamento do primado do Dasein. Por ora, notemos que Heidegger reconhece que as possibilidades de ser ou não ser si mesmo podem ter sido escolhidas pelo Dasein, podem ser possibilidades que lhe aparecem e com as quais ele decide comprometer-se ativamente, ou podem ser possibilidades nas quais ele simplesmente foi lançado. Em quaisquer dos casos, a existência só se decide a partir de cada Dasein (ser-no-mundo). Desde já, é preciso sublinhar que a questão do ser situa-se numa problematicidade existencial que é própria do Dasein. Em Heidegger: introdução a uma leitura (2004), Dubois patenteia-nos o que significa Ser nesse quadro hermenêutico existencial:

“Ser, no sentido existencial, é permanecer engajado numa possibilidade de si mesmo, quer a tenhamos ou não escolhido, de tal modo que esta possibilidade, nós a temos precisamente – a ela nos relacionando – com o ser no sentido verbal e transitivo”. (p. 18, grifo meu).


Ser, para o Dasein, é ser no mundo, é ser ocupado de si mesmo e dos outros entes no mundo. Ao ocupar-se de si, o Dasein está sempre em face da possibilidade de escolher entre ser isto ou aquilo. É nesse sentido que ele se relaciona com o ser em sua acepção verbal. Na tradição gramatical, o verbo “ser” é considerado um verbo de cópula ou de ligação, já que a ele compete unir um predicado a um sujeito, como sucede na frase “eu sou médico”. Enfatize-se, portanto, que, para o Dasein, ser é engajar-se numa possibilidade de ser isto ou aquilo. Esse engajamento numa possibilidade de ser si mesmo se dá a cada vez para um Dasein concreto, numa existência singular. O modo de existir concretamente em sua singularidade que está sempre sob a decisão do Dasein constitui a sua tarefa existencial. Em Heidegger, a investigação das estruturas existenciais do Dasein é tarefa da analítica existencial.


2.1. O primado do Dasein

Segundo Heidegger (p. 49), a analítica existencial deve encarregar-se da determinação da “ontologia fundamental de onde todas as demais podem originar-se”. Essa tarefa impõe o reconhecimento do primado do Dasein sobre todos os outros entes. Esse primado do Dasein se expressa de três maneiras, que Heidegger se encarrega de explicitar:

1) primado ôntico: o Dasein é determinado em seu ser pela existência;

2) primado ontológico: na medida em que é determinado pela existência, o Dasein possui uma compreensão de ser de todos os entes que não possuem o modo de ser de si mesmo. Esta compreensão pertence originariamente ao Dasein e é constitutiva da compreensão da existência;

Convém esclarecer o sentido que assume o termo  compreensão no pensamento Heidegger, quase sempre reconhecidamente obscuro, a fim de que não se confunda esse termo com entendimento ou explicação. Não se trata de uma compressão que demanda reflexão, raciocínios, intelecção. Por um lado, a compreensão que constitui um momento estrutural do Dasein se acompanha da sensibilidade. Mas, principalmente, essa compreensão é já um poder-ser, um projeto. Compreensão é um poder-ser e existir segundo o modo das possibilidades que o Dasein têm diante de si. O Dasein tende para o futuro; nesse ‘tender para’, ele compreende-se como uma possibilidade lançada no mundo, em suma, como projeto. A compreensão, portanto, se move nesse domínio de possibilidades de poder-ser.

3) primado ôntico-ontológico: trata-se da possibilidade de todas as ontologias. Destarte, o Dasein se mostra como ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro. (p. 49).

Na sub-seção seguinte, não se abandonará, de modo algum, o estatuto privilegiado do Dasein. Se lanço mão de outra sub-seção é para realçar esse estatuto a partir do exame da estrutura formal da questão do ser. Compreendamos, então, o modo como Heidegger examina essa estrutura formal da questão do ser.


2.2. A questão do ser: sua estrutura formal

De início, vimos que Heidegger afirma a necessidade de se colocar a questão do sentido do ser. Admitindo se tratar de uma questão fundamental, ele está preocupado em dotá-la da devida transparência. Para atingir seu objetivo, ele se encarrega de analisar a constituição da própria questão, a saber, se ocupa de discriminar os elementos implicados na estrutura da questão. A partir desse exame sobre o sentido do ser é que ele evidenciará se tratar de uma questão privilegiada.
Vamos acompanhar com o merecido cuidado o desenvolvimento do raciocínio de Heidegger, dado que se trata de um momento importante de seu pensamento, momento que lança luzes não só sobre as considerações precedentes a respeito do Dasein, como também sobre as ulteriores que figurarão neste texto.
Heidegger principia com a proposição “todo questionar é um buscar” (p. 40). Toda busca – prossegue ele -, tem naquilo que é buscado sua direção prévia. Ora, a determinação do sentido (direção) da busca é fixada pelo objeto de investigação. O questionar é uma busca ciente do ente naquilo que ele é e como é. O que se visa, nessa busca, sempre consciente, é a transparência do ente, que é o objeto buscado. Recapitule-se, então, os três momentos do questionar, até aqui delineados por Heidegger: 1) todo questionar é uma busca; 2) a direção da busca é fixada pelo objeto a que ela se dirige; 3) no questionar, busca-se cientemente o ente naquilo que ele é e como é.  Prossigamos empenhados em compreender o desenvolvimento do pensamento de Heidegger.
Em todo questionar – na medida em que é definido como “questionar sobre alguma coisa” - , há um questionado. Ora, o particípio não deixa dúvida acerca da passividade do objeto do questionar: questionado é aquele (sobre) o qual se questiona. Essa coisa sobre a qual incide o questionar é o questionado. Heidegger dá um passo adiante, identificando o “questionar sobre” com o “interrogar sobre”. Agora, o questionar encerra também o interrogado. Há uma diferença, conquanto não imediatamente clara, entre o questionado e o interrogado. Ambos, naturalmente, estão na condição de objeto. Ainda não sabemos o que é questionado e o que é interrogado. Devemos permanecer à espera de esclarecimentos. Por ora, prossigamos fazendo dizer Heidegger. Cumpre atentar para o trecho abaixo:

“No questionado reside, pois, o perguntado, enquanto o que propriamente se intenciona, aquilo em que o questionamento alcança sua meta. Como atitude de um ente que questiona, o questionar possui em si mesmo um modo próprio de ser”. (p. 40, ênfase no original).


É preciso sublinhar que o que está no escopo do questionar é propriamente o interrogado, justamente aquilo em vista do qual se faz o questionamento. Questionar é uma atitude de um ente que questiona, por isso “possui em si mesmo um modo próprio de ser” (id.ib.) Que ente é este, único capaz de questionar? A resposta salta evidente: o Dasein. Heidegger passa à recapitulação da questão do sentido do ser, a fim de esclarecer alguns pontos que ficaram apenas entrevistos. Prossigamos acompanhando o desdobramento de seu pensamento.
Na medida em que é busca, o questionar demanda uma orientação prévia do que se busca, conforme vimos. Aqui, Heidegger insistirá que o sentido de ser já deve estar, de algum modo, acessível, porquanto sempre nos movemos numa compreensão de ser. Consoante Heidegger, é verdade que “não sabemos o que diz “ser”, mas já quando perguntamos o que é “ser”, mantemo-nos numa compreensão do “é””. (p. 41). Isso não significa que podemos determinar o conceito desse “é”. Para Heidegger, aquilo que se busca no questionar do ser não é algo completamente desconhecido, muito embora seja, numa primeira aproximação, totalmente inapreensível.
Compreendamos, doravante, o conteúdo dos momentos constitutivos da questão do sentido do ser. Heidegger é bastante claro ao dizer que o questionado da questão a ser elaborada é o ser. O ser, em questão, é o ser como condição de possibilidade de aprecimento do ente (“o que determina o ente como ente”). O ser, segundo Heidegger, não “é” em si mesmo um outro ente. Por um lado, na medida em que é o questionado, ser demanda uma forma de demonstração que lhe é própria, portanto, distinta do modo como se dá a descoberta de um ente. Por outro lado, o interrogado, ou seja, o conteúdo do questionar, o sentido do ser, reclama uma conceituação distinta das formas de conceituar a determinação do significado do ente.
Ser é o questionado e é irredutível ao ente. O interrogado na questão do ser é sempre o ente. O ente é interrogado em seu ser. Assim, escreve Heidegger,

“Quanto ao interrogado, a questão de ser exige que se conquiste e se assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em diversos sentidos. Ente é tudo de que falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado, no teor e recurso, no valor e validade, no existir, no “dá-se””. (p. 42).


Heidegger assume que o interrogado é o ente e define os significados de ente em contraste com a acepção de ser. Tal distinção já encontramos na filosofia cristã (embora, aí, Ser identifique-se com o próprio Deus). O ente é sempre objeto de predicação; são as coisas que se acham no mundo e sobre as quais falamos; mas nós mesmos somos um ente. O Dasein é um tipo privilegiado de ente. Esta cadeira em que me sento é um ente. O Ser, por sua vez, é o que possibilita a aparição do ente; o ser é inobjetivável. Ser está no “dar-se”, está no “mostrar-se”; ser está na presença das coisas que se dão a “ver”. O ser é o ser transcendente. O ser não se reduz ao ente.
           O questionado é o ser; o interrogado é o ente; e o perguntado é o sentido do ser. Ser e ente estão em relação de co-pertença; mas a elucidação do ser impõe o interrogar sobre o ente.
Retomemos, contudo, o que ocupa Heidegger, a saber, a tarefa de desvelar o sentido de ser – esse sentido só se deixa apreender na constituição de um ente que existe na abertura para o ser. Por conseguinte, Heidegger se pergunta “de que ente deve partir a abertura para o ser?”; “Qual é  o ente exemplar e em que sentido possui ele um primado?”
Se ainda houver um leitor que tenha resistido ao trabalho laborioso de leitura até aqui, é possível a ele intuir, ao menos, a resposta às questões formuladas por Heidegger. Este ente privilegiado que existe no modo de abertura para o ser é o Dasein. É o Dasein o ente que será interrogado em seu ser, afim de que seja possível dar conta da questão do sentido do ser. Por conseguinte, “elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – que questiona em seu ser” (p. 42). Esse ente que possui, entre outras coisas, a possibilidade de questionar, ente que cada um de nós é, é o Dasein. Questionar é o modo de ser do Dasein, e a própria colocação da questão está essencialmente determinada por aquilo que nela é questionado – o ser.
Crendo ter elucidado a delimitação da questão do sentido do ser em Heidegger, passarei a contemplar a compreensão sartreana de liberdade, com vistas não só a deslindar alguns embaraços que cercam a tentativa de compreensão da questão, como também a lançar alguma luz sobre a indeterminação originária do homem, tema de que me ocuparei quando da discussão da posição existencialista de Abbagnano.


3. No homem, a existência precede a essência

Antes de atacar a problematicidade da questão da liberdade em Sartre, não posso escusar-me de dizer algumas palavras sobre o conceito filosófico de determinação. Ao fazê-lo, pretendo antecipar o significado de indeterminação do homem de que nos fala Abbagnano. Encontramos no Dicionário Básico de Filosofia, de Japiassú & Marcondes (2008), a seguinte definição de determinação, que é a que me interessa na presente exposição:

Determinação é “o fato de ser causa ou condição necessária de uma coisa, provocando diretamente sua existência ou ocorrência” (p. 71)


Assim, dizemos que, se um evento determina outro, ele é a causa necessária desse evento. A determinação cujo significado aqui se define situa-se no domínio da ontologia. Sartre nega que o homem seja objeto de qualquer determinação. O homem não tem uma essência a priori que determine o que ele é. As condições sócio-históricas em que ele vive também não o determinam em seu ser. Também não há um Deus que determine o destino do homem, o que ele é, o que ele deve ser e como deve agir. A indeterminação originária do homem consiste em um poder-ser como existente que nada é antes de existir. Antes de surgir no mundo, o indivíduo humano nada é e existir é a tarefa que ele assume de constituição do seu ser. A questão da indeterminação originária do homem não deve nos ocupar agora, visto que será objeto de exame na seção em que trarei à cena a posição existencialista de Abbagnano. Lancemo-nos à discussão sobre o existencialismo ateu de Sartre, enfocando a questão da liberdade.
O existencialismo ateu de Sartre se articula em torno de um princípio básico que se expressa na fórmula “no homem, a existência precede a essência”. Essa fórmula é esclarecida em O Existencialismo é um Humanismo (1946), obra em que Sartre se ocupa de responder às críticas correntes levantadas por marxistas e católicos à sua doutrina. Essa fórmula, tal como eu a entendo, encapsula uma justificação da liberdade humana. Seu exame encaminha-nos para a compreensão de outra fórmula famosa que consiste na afirmação de que “o homem está condenado a ser livre”.
Na fórmula “a existência precede a essência”, Sartre destaca a anterioridade ontológica do homem como existente. Essa anterioridade ontológica tem caráter distintivo, já que o homem é o único ente que existe antes de ser. Existir é sua condição primeira e fundante. Primeiramente, o homem existe, descobre-se enquanto existente, surge no mundo, e somente, em uma dada situação em que se encontra no mundo, se define, ou seja, se autodetermina, escolhe o que quer ser. Originalmente, ou seja, por ocasião de seu aparecimento do mundo, sem qualquer razão de ser, marcado profundamente pela contingência, o indivíduo humano não é nada; é pura indeterminação. Não há nada, a priori, que defina o homem, nem essência, nem natureza humana, nem programa genético, nada que lhe determine um modo de ser inalterável para sempre. O homem, existindo na tarefa de si mesmo, enquanto projeto, em face de suas possibilidades de realizar-se, escolhe a sua essência. A sua essência, portanto, segundo Sartre, resulta de seus atos. O homem nada mais é do que aquilo que projeta ser.
Se, como pretende Sartre, “no homem a existência precede a essência”, segue-se daí que ele será aquilo que fizer daquilo que os outros fizeram dele. Não há lugar para desculpas. A liberdade é a essência do homem, a única coisa da qual ele não pode escapar. Ao contrário dos outros entes (em-si), o homem não é predeterminado. Por exemplo, a semente de uma planta traz em potência tudo aquilo que ela será em seu desenvolvimento normal. Os animais nascem equipados com um programa genético (seus instintos) que os prepara para todas as ações de sua vida. A andorinha é pré-programada por natureza para confeccionar seu ninho. Ainda que, hoje, mais do que no tempo de Sartre, ouçamos falar nas influências que sobre nós exerce nosso código genético, tais influências não são fortes o bastante para suprimir nossa liberdade – diria um existencialista. É preciso dizer, contra os teóricos marxistas e outros partidários do determinismo, que a liberdade, na perspectiva sob a qual considera os existencialistas, em especial, Sartre, é um fato ontológico. Aos seus críticos, que entendiam que, em vários momentos da história, os homens precisam lutar pela sua liberdade, argumento este que suscita a ideia de que a liberdade é algo que o homem pode deixar de ter, porque, segundo esses críticos, ele nem sempre a possuiu (donde a necessidade de reconquistá-la em certos momentos da história), Sartre objeta que, se o homem não é originalmente livre, não poderíamos conceber o que é sua libertação. Demais, devemos notar, em favor da perspectiva de Sartre, e contra os partidários do determinismo, que o que caracteriza fundamentalmente a existência do homem é o poder quem ele tem de desnaturação, de desarrancamento em relação a qualquer instância limitadora fixada pela natureza. Sartre não poderia concordar com os freudianos na hipótese de que há uma estrutura de pulsões (inconsciente) a governar a totalidade da vida psíquica do homem, levando-os a agir à revelia deles.
Vou-me debruçar sobre o problema da liberdade, não sem antes acrescentar que, para Sartre, somente o homem existe, enquanto uma “pedra”, por exemplo, é. O homem é pura liberdade. O essencial a respeito do tema da liberdade, em Sartre, deve ser já anunciado: a liberdade, tal como a pensa Sartre, é “liberdade para”, e não liberdade de. Caso pensássemos a liberdade como “liberdade de”, poderíamos concluir que Sartre estaria ignorando as condições concretas em que vive o homem e que limitam suas possibilidades de escolha; mas tal conclusão seria equivocada, ao menos não seria fiel ao pensamento sartreano. Sartre não ignorava os limites impostos pelas condições sócio-históricas da existência humana, sobretudo se levarmos em conta o fato de que ele veio a se aproximar do marxismo, muito embora não o poupando de críticas no tocante a seu forte determinismo e materialismo.
Está claro que, para Sartre, o indivíduo, surge no mundo em dadas condições sócio-históricas. O homem está no mundo sempre em situação. Sua existência é uma tarefa que ele tem de levar a efeito num tempo e lugar determinados. Por isso, Sartre não ignorava que houvesse situações-limite, tais como guerra, o sofrimento, a morte, em face das quais o homem se conscientiza de seus próprios limites, das limitações impostas pela realidade à simples realização de sua existência. Sartre utilizou o conceito de facticidade para dar conta desse problema. A facticidade recobre o nosso passado, nossa constituição biológica, nossas posses, as condições sociais em que estamos inseridos, nossa língua, nossas aptidões, etc. Há, contudo, - cabe acrescentar - uma região semântica contígua, no conceito de facticidade, que compreende a presença absurda e constatada das coisas que estão aí sem necessidade. Assim, a minha consciência se apreende a si mesma como fato; ela é, em sua contingência, absurda, pois que carece de qualquer necessidade. As coisas estão aí sem necessidade e eu me encontro entre elas.
Insisto, contudo, que do reconhecimento do que Sartre designa como facticidade não resulta que o homem deixe de ser livre – e absolutamente livre, porquanto a radicalidade com que Sartre pensa o problema da existência humana consiste em tomar a liberdade como um pressuposto ontológico para qualquer projeto emancipador da humanidade. O homem não perde sua liberdade, enquanto sua condição ontológica, porque se vê ameaçado em momentos de crise. Sartre não admite que a liberdade seja algo a ser mensurado relativamente a tal ou qual circunstância; o homem é absolutamente livre. Essa absolutidade da liberdade se realiza como escolha que homem faz de si mesmo, isto é, ele escolhe aquilo que quer ser: um cidadão obediente ao Estado ditatorial ou um revolucionário aspirante ao regime democrático? A liberdade é absoluta porque o homem é o ente verdadeiramente existente, jamais predeterminado como um “em-si”, portanto, capaz de transcender a si mesmo. A liberdade capacita o homem a decidir sobre sua própria vida, escolhendo seu próprio modo de vivê-la e se responsabilizando por essa escolha. Sartre não ignorava o peso que tem sobre o homem a liberdade: ser verdadeiramente livre é ser totalmente responsável.
Na medida em que a liberdade tem caráter universal no homem, ao assumi-la, o indivíduo o faz para si e para todos os outros homens. Ao escolher para si, ele também está escolhendo para os demais homens. Em outras palavras, ao escolher um modo de ser, de viver, ao decidir sobre que curso de ação tomar, está escolhendo o que lhe parece universal, geral. A sua escolha modifica as condições em que o outro deverá fazer sua escolha. Ademais, quando escolhe, o indivíduo atribui ao mundo um significado que transcende um simples ato de uma decisão individual.
Se a liberdade se define como escolha, e se a liberdade é escolha, é o homem que escolhe todos os valores; é a liberdade o fundamento de todos os valores. O homem, em sua liberdade, é o fundamento sem fundamento de todos os valores. Nesse sentido, o existencialismo, segundo crê Sartre, promove a defesa do homem.


                                  PARTE II


4. O Existencialismo e as duas polêmicas

A seção que encabeça esta segunda parte dará início ao nosso estudo sobre a posição existencialista de Abbagnano, em seu livro Introdução ao Existencialismo (2006). Escusa dizer que uma proposta de leitura que pretendesse cobrir todo o trabalho de Abbagnano demandaria tempo e espaço maiores do que a já grande quantidade de tempo e espaço que o exercício de escritura deste texto tem exigido. O fio condutor que levou a efeito os encadeamentos de reflexões ao longo de todo este texto é o problema da questão do ser, agora posicionado como problematicidade originária da existência. Abbagnano, antes de lançar-se na discussão dessa problematicidade, identifica duas polêmicas a partir das quais o existencialismo se estabeleceu.
A primeira polêmica em que o existencialismo está implicado é contra o que Abbagnano chama consideração objetivista; a segunda polêmica é contra a consideração subjetivista. Vejamos no que consiste cada uma delas, começando pela polêmica contra a consideração objetivista.
Com ter assumido o existencialismo diversas formas, observa Abbagnano que todas elas se orientam por uma inspiração fundamental que lhes é comum, qual seja, todas elas mantêm que a existência é a busca do ser na qual o homem individual está diretamente engajado. Essa definição de existência implica uma concepção de filosofia que alija de seu domínio qualquer tentativa de reduzi-la a um sistema teórico de compreensão do mundo que se constitui e se mantém como tal, em uma indiferença à existência concreta de quem filosofa.

“A filosofia não é inquirição teórica sobre um ser ao qual a inquirição resulte indiferente e ao qual ela se mantenha alheia. A filosofia é a busca que o indivíduo faz do ser que lhe é próprio e é, por esse motivo e ao mesmo tempo, decisão a respeito desse ser”. (p. 41).


O excerto supracitado suscita duas considerações. Deve-se sublinhar, em primeiro lugar, que a filosofia deve ser uma experiência ou uma atividade na qual se engaja o indivíduo em sua existência concreta. Estando o indivíduo existencialmente engajado nessa atividade, tem ele em vista a tarefa de constituição de seu ser. Evidentemente, essa tarefa não se impõe ao indivíduo de fora, mas só pode realizar-se a partir de uma decisão dele mesmo. A filosofia como busca é incompatível com qualquer concepção dela como produto acabado de uma atividade – concepção esta estatizante, esterilizante. A filosofia não é aquilo que se fez e que se dá numa totalidade sistêmica completa, após um esforço reflexivo. A busca em que consiste a filosofia - por ser a busca do ser que é próprio ao indivíduo - jamais se completa, jamais se interrompe, enquanto o indivíduo se ocupa de sua tarefa de existir. A filosofia como busca é concebida em seu movimento incessante, em sua dinâmica, em seu trajeto ao longo do qual o indivíduo é o ente agentivo dessa busca.
A segunda consideração toca ao sentido do ser. Veremos, no decorrer desta segunda parte, que continuamos sem saber verdadeiramente o que é o ser; todavia, se relermos atentamente o trecho referido mais acima, parecer-nos-á lícito concluir que o ser de que se trata é o ser próprio do indivíduo, isto é, a essência do ente. Mas – lembremos – essa essência em vista de cuja constituição o indivíduo empreende uma busca, que é filosófica, não lhe está fixada de antemão, ideia esta suficientemente clara a partir das considerações alhures.
Abbagnano lembra o inconveniente que há em se pretender conhecer o homem e sua existência objetivamente “assim como se conhece qualquer uma das coisas do mundo” (ib.id.). A polêmica do existencialismo contra a consideração objetivista consiste na assunção dessa pretensão. Resulta daí um problema que consiste em ignorar o fato de que a busca de seu ser na qual o indivíduo está engajado não é suscetível de equivalência com a separação entre o eu e o mundo requerida pelo conhecimento. Se, no conhecimento, eu e mundo já estão constituídos em sua separação, tal não ocorre na busca do ser em que está engajado o indivíduo. Nessa busca, apresenta-se o problema de sua própria constituição. Assim, esclarece-nos Abbagnano,

“O conhecimento sempre apresenta uma situação polarizada na qual o objeto se distingue e se opõe ao sujeito; ele supõe a totalidade da qual sujeito e objeto fazem parte em sua polarização correlativa. Mas, por sua vez, essa totalidade – o mundo – não pode ser objeto de conhecimento. A razão de haver um mundo e de eu, no ato de conhecer, me enraizar nele -, é um problema ao qual o conhecimento dá origem, mas não pode resolver” (ib.id.)


Numa perspectiva existencialista, admite-se a absurdidade desse estado em que o eu encontra-se enraizado no mundo. Epistemologicamente, conhecer supõe a separação entre um sujeito cognoscente e o mundo cognoscível. Essa separação está pressuposta no ato de conhecer. Aquele que conhece sabe que conhece alguma coisa e, no ato de conhecer, intui que a coisa que conhece é algo fora de si, que lhe vem ao encontro. Mas a razão de existir um mundo e de eu, enquanto existente, encontrar-me nele não pode ser explicada no ato de conhecer. O conhecimento, portanto, é reconhecimento da alteridade entre o mundo e o eu, mas não dá conta do porquê há um mundo onde “eu” me enraízo.
Abbagnano conclui que o ser, a cuja busca se consagra o homem em sua existência, não é um objeto cuja natureza ele deve limitar-se a indagar e conhecer. O ser, ou melhor, a busca do ser é uma escolha por cuja realização o indivíduo se decide.
O homem que pretende conhecer objetivamente o ser é um homem indiferente à problematicidade da constituição do próprio problema; por outro lado, o homem que considera existencialmente o problema implicado na busca do ser é um homem interessado, que precisa decidir-se.
A segunda polêmica do existencialismo é contra a consideração subjetivista. O existencialismo também rejeita a consideração subjetivista do ser. De acordo com essa perspectiva, o ser é imanente ao sujeito.

“Por essa imanência, o sujeito se universaliza e se despersonaliza; um sujeito ao qual todo o ser seja imanente é uma razão ou um pensamento universal no qual está plenamente resolvida a existência do indivíduo concreto”. (p. 42).

O que se elimina, na consideração subjetivista do ser, é a individualidade particular e seu destino. Não ser uma pessoa é perder aquilo que nos individualiza, que nos torna singular; mais ainda, é nos desenraizar da problematicidade de nossa existência concreta. Se somos reduzidos a uma razão despersonalizada ou a um pensamento universal, deixamos de ser um existente. O problema do homem verdadeiramente existente é privado de todo o significado.
A questão o que é o ser? só vale para a existência e na existência do indivíduo. Ao subsumir o ser na racionalidade, suprime-se a possibilidade de um problema do ser. Ocorre que, conforme veremos mais adiante, a indeterminação fundamental da relação com o ser é marcada pela instabilidade. O ser reduzido à racionalidade anula essa instabilidade, porque o ser submetido à estrutura da razão é um ser visto como configuração rigorosa e necessária, atravessado por uma conexão obrigatória de determinações e momentos. Não só a questão sobre o ser deixa de ter lugar, nessa perspectiva, como também o próprio indivíduo perde sua consistência, dado que foi subsumido pelo pensamento universal. Com a pergunta sobre o ser, a consideração subjetivista suprime o fundamento de toda pergunta, de toda busca, de toda indeterminação, qual seja, toda a existência concreta.
O que se suprime é justamente a concretude de onde parte o existencialismo. O existencialismo começa sua investigação tendo como escopo o eu individualmente existente, eu mesmo enquanto busco e pergunto. À luz da perspectiva existencialista, filosofar é decisão que diz respeito à minha atitude, à minha relação real e concreta com o ser. O existencialismo rejeita a imanência do ser na subjetividade. O indivíduo só existe na medida em que transcende a si mesmo e move-se para o ser. Naturalmente, o mover-se para o ser implica a não imanência do ser à subjetividade que o indivíduo encarna.


4.1.  O que é a existência, segundo Abbagnano?

Cite-se Abbagnano:

A existência é, antes de tudo, a constituição de uma relação entre mim e o ser; mas essa relação se estabelece exatamente no ato no qual procedo para além de mim, no qual me limito para me ultrapassar” . (p. 43).


A universalidade não é a da imanência do ser à minha razão, do que resultaria uma razão universal. A universalidade é a da relação do eu concreto com o ser. Essa universalidade, então, funda a individualidade e não a suprime. Nas palavras de Abbagnano, “a universalidade é o alcance e a direção de meu movimento existencial, que busca o ser e se relaciona com ele: não é a imanência do ser à minha razão” (ib.id.).
Em ambas as perspectivas anteriormente examinadas, inviabiliza-se o problema do ser e, com a inviabilização desse problema, a concretude, a individualidade, a existência do homem são alijadas. Enfatize-se, com Abbagnano, que “a existência não pode receber luzes do conhecimento ou da razão, antes pode dar luzes a eles”.
Do que se expôs até aqui não se deve depreender que as considerações objetivista e subjetivista devam ser rejeitadas totalmente, porquanto isso significaria renunciar ao entendimento da existência, significaria privar “a realização da existência de toda referência ao conhecimento e ao pensamento”. (ib.id.). Ocorre que a existência autêntica só pode realizar-se na sua relação com o conhecimento e com o pensamento.
Consoante Abbagnano, um dos problemas da doutrina de Japers consiste em conservar a polaridade entre a razão e a existência, “mesmo que ele entenda por razão não a razão do idealismo, mas uma razão transcendente e esclarecedora do fundo escuro da existência” (p. 44).
Veremos qual será o caminho tomado por Abbagnano, em tempo. O problema começa, no entanto, a ganhar contornos de esclarecimento no momento em que ele nega que a razão possa ser um polo da existência. Ora, se é assim, o que significa verdadeiramente entender a existência, já que ela não dá guarida à razão?

“Entender a existência significa realizá-la autenticamente, e tal realização significa realização consigo mesma. O entendimento do existir que o filosofar exige e busca e que é justamente o filosofar, não se põe como um polo da existência, mas como o ato compreensivo e final da existência, como sua totalidade autêntica” (ib.id.).


Façamos um gesto de interpretação. Entender a existência não é um ato de intelecção, não é um ato que se faz com o concurso da razão discursiva que articula conceitos e proposições para dele extrair conclusões de acordo com princípios lógicos. Entender a existência é um ato compreensivo enquanto eu a realizo e a assumo em sua totalidade. Em face da existência, filosofar não é uma atividade que se vale de conceitos, articulados em juízos, que, por sua vez, se encadeiam em raciocínios destinados a apreendê-la. É claro que filosofar reclama o entendimento da existência, mas, segundo a interpretação de Abbagnano, esta não se presta a ser um objeto de exame racional segundo os quadros de uma lógica silogística. Se o entendimento não constitui uma dimensão da existência, a filosofia deve realizá-lo como ato compreensivo de um indivíduo totalmente engajado nessa realização.


4.2. As três posições do existencialismo

“Se a existência é relação com o ser, eu que existo devo enfrentar o problema do ser, devo buscar o ser. Existo enquanto tendo para o ser, sou enquanto me relaciono com o ser. Porque existo, saio do nada para mover-se rumo ao ser, mas se alcançasse o ser e fosse o ser, cessaria de existir, porque o existir é busca ou o problema do ser”. (p. 44).


O que Abbagnano expõe no excerto acima são “os pontos basilares de todo existencialismo”.(ib.id.). Ele passará à consideração das três vias que se abrem para a determinação da atitude existencialista. Uma dessas vias – a terceira apresentada – será a dele mesmo Abbagnano. Antes de dar a conhecer essas três posições, deter-nos-emos na significação do conceito de “ser” no trecho citado.
Em primeiro lugar, existir não é o mesmo que ser. Lembremos o que nos ensinam Heidegger e Sartre: eu nada sou de antemão. Eu não possuo o ser. A minha existência me retira do nada e enquanto estou existindo – esta é minha tarefa – movo-me rumo ao ser. Portanto, existindo, eu tenho em vista o ser; existir e ser, para o homem, não é a mesma coisa. Mas o problema do ser permanece – não sei o que é o ser. O próprio existir consiste em instaurar a minha relação com o problema do ser. Ou ainda, como lemos no fragmento há pouco citado, o existir é o problema do ser.
Concentremos nossa atenção no momento em que o autor nos diz que, se alcançássemos o ser, deixaríamos de existir. Talvez, se tomarmos como exemplo a condição de um cadáver, a incomensurabilidade entre ser e existir se torne clara, segundo a forma como eu compreendo a exposição de Abbagnano. Dizemos que a pessoa que morre deixa de existir, mas o que ainda resta na morte dela é alguma coisa – é um cadáver. Na condição de coisa, o cadáver “é”. A posse do ser, nesse sentido (sentido que parece autorizado pelo de Abbagnano), retira o indivíduo do tempo; ele deixa de existir, pois existir é busca do ser – uma busca à qual é inerente a incompletude enquanto busca. O existente que pretendesse possuir o ser suprimiria a incompletude que a caracteriza como tal; por isso deixaria de existir. Tornar-se um em-si é tornar-se encerrado em si mesmo, é tornar-se uma totalidade fechada, opaca. Uma existência plena, completa é uma antítese; porque existir é necessariamente estar fendido, incompleto sempre em vias de realização; existir é um projetar-se num “entre” que corta dois nada, num entre que separa duas infinidades por meio de um sucessão de instantes em cada um dos quais o indivíduo apreende-se como lançado na tarefa imperiosa de escolher ser a partir de uma indeterminação absoluta.  
Abbagnano apresentar-nos-á sua posição existencialista  em contraste com duas outras posições que tratará de rejeitar. Segundo autor, a primeira posição, atribuída a Heidegger, considera como fundamento do existir, entendido como relação com o ser, o fato de o ser separar-se do nada. Nesse horizonte hermenêutico, é a separação do nada ou o próprio nada que determina a natureza da existência. Para Abbagnano, a existência jamais se separa do nada simplesmente porque ela jamais se identifica com o ser, donde resulta que ela se definiria pela impossibilidade de não ser o nada. Ora, vê-se que, não podendo deixar de ser o nada, a definição do problema, qual seja, o da relação com o ser, se anula. A existência nunca poderá problematizar-se como relação com o ser, porquanto, em Heidegger, segundo a leitura de Abbagnano, ela desembocaria no nada inevitavelmente.
Na segunda posição, atribuída a Jaspers, o autor aponta para o problema da pretensão de a existência identificar-se com o ser. Ocorre que a existência jamais pode possuir o ser, de modo que também aqui se suprime o problema da relação da existência com o ser: a existência se definiria pela impossibilidade de ser a relação com o ser.
A terceira posição, que é a do próprio Abbagnano, mantém que a existência consiste na relação com o ser e se define pela possibilidade de ser a relação com o ser. Notemos que se conserva a relação como traço fundamental da existência: existir é relação com o ser. Nesse caso, eu, enquanto existente, preciso me confrontar com o problema do ser, devo projetar-me na busca do ser.
Acompanhemos Abbagnano na consolidação de sua perspectiva existencialista:

“Reposicionada sobre sua verdadeira base de possibilidade da relação com o ser, a existência encontra em si mesma seu significado positivo e auto-suficiente. Ela não se nega realizando-se, mas se afirma exatamente naquilo que é, ou seja, em sua essência ou natureza de relação. E a relação em que ela consiste é, no ato de sua realização, reconduzida a sua problematicidade fundamental. A problematicidade da relação com ser vem a consistir em si mesma e a insistir em si mesma, realizando-se como problematicidade, como pura possibilidade de uma relação possível” (p. 45).



A conservação da problematicidade da relação com o ser redunda, em última instância, na possibilidade de se pensar a indeterminação e a liberdade, então negadas nas duas outras posições criticadas por Abbagnano. Para o autor, as posições existencialistas de Heidegger e de Jaspers limitam a decisão e a escolha existenciais ao que já está decidido e escolhido. Elas tolhem de liberdade o compromisso existencial. O destino do homem e seu caráter de fidelidade livre são alijados em função da aceitação do fato. Finalmente, fica impossibilitada toda normatividade e toda avaliação.


4.3. A existência como relação com o ser

Escreve Abbagnano:

“A existência não tem outro modo de se realizar propriamente senão como possibilidade da relação com o ser, isto é, como problematicidade originária, transcendental dessa relação. A existência não é abandonada ou lançada rumo ao ser ou lançada rumo ao ser, de modo que ela não possa reconhecer senão a impossibilidade de ligar-se ao ser ou de separar-se do nada. A existência se põe na relação com o ser reconhecendo-se como pura possibilidade dessa relação e permanecendo fiel à problematicidade de sua estrutura”. (p. 46, grifo meu).


A existência não deve ter em seu horizonte o nada de onde parte. Ela deve ocupar-se de si mesma e realizar a relação consigo. Porque é relação com o ser, a existência só se reconhece como tal relação. A problematicidade dessa relação impede que a existência se projete para aquilo que não é ela mesma. Ademais, essa problematicidade confere à existência sua substância.
Na passagem abaixo, Abbagnano não só introduz a ideia de substância como problematicidade originária (tema que, no entanto, só desenvolverá adiante), como retoma o desacordo com as outras duas posições existencialistas por ele rejeitadas:

“(...) a substância da existência deve ser reconhecida em sua problematicidade originária como relação com o ser. E a substância a reconfirma em sua liberdade ineliminável, absoluta. Se a existência se define por referência ao nada [posição heideggeriana], todas as suas possibilidades são igualmente inconsistentes e insignificantes diante da única impossibilidade que a constitui propriamente: a impossibilidade de separar-se do nada. Se a existência se define com referência ao ser [posição Jaspersiana], todas as suas possibilidades são igualmente inconsistentes e insignificantes diante de sua única e própria impossibilidade: a de ligar-se ao ser. Em ambos os casos, as possibilidades nas quais ela se instaura são todas equivalentes em sua insignificância e lhe são oferecidas em sua indiferença; a tal indiferença também não se subtrai a única impossibilidade à qual a escolha se deve reduzir”. (p. 47).


Novamente, afirmando a superioridade de sua posição sobre as outras duas por ele consideradas, Abbagnano pretende fazer-nos compreender que definir a existência em sua relação com o ser tem a vantagem de reintroduzir no âmago da existência a normatividade e a avaliação inescapáveis ao existente. Em outros termos, porque é relação com o ser, a existência precisa fundar e consolidar essa relação; trata-se para ela de uma exigência que se inscreve em sua estrutura como norma de sua constituição. Ademais, porque é relação com o ser, a existência não pode escapar a exigência de avaliar as possibilidades que se põem diante de si. Com Abbagnano, “devo escolher aquilo que me consolida e me reforça em minha relação com o ser, isto é, com aquilo que garante a possibilidade dessa relação” (ib.id.). Eu escolho ser, portanto, a problematicidade originária dessa relação. E, ao escolhê-la, estou sendo fiel à substância de minha existência. A substância de minha existência é a relação com o ser em sua problematicidade originária. A substância que é a minha é problemática em sua origem e ela se torna a norma de minha decisão – norma que me permite transcender à indiferença e à equivalência das possibilidades, norma que se apresenta como princípio de avaliação. Reitere-se que a substância (essência) de minha existência, segundo Abbagnano, é a problematicidade originária da relação com o ser. Essa problematicidade é transcendental porquanto é condição de possibilidade daquela relação. Essa problematicidade escapa tanto à predeterminação quanto à indiferença perante a necessidade de valorar.

“No entanto, minha existência não depende propriamente nem do nada nem do ser, mas da possibilidade de ser na qual me constituo: sua substância é, exatamente, o fundamento transcendental, a condição de possibilidade, ou seja, a problematicidade pela qual ela é aquilo que é. E meu dever será garantir e reforçar a possibilidade de meu ser, consolidando-a em sua condição transcendental, realizando-a em sua problemática originária e última”. (p. 48).


Resta evidente que esse dever não me é imposto por qualquer outra instância que me transcenda, que sobre mim exerça seu domínio. O dever, que é meu, eu mesmo mo imponho. Trata-se de um dever, em última análise, que reconheço como exigência inevitável da substância da estrutura de minha existência, isto é, da problematicidade originária da relação com o ser.


4.4 O problema do ser e a indeterminação do ser

Reencontramos o problema do ser que toma forma na questão: o que é o ser? Não devemos nos apoquentar por nos vermos reconduzidos a ele, visto que esse problema é originário não só no desenvolvimento da filosofia, mas, sobretudo, na constituição do existir. Dado que existo, tenho de me defrontar com a questão do ser. O excerto que se seguirá patenteia-nos a medida da dívida de Abbagnano para com o pensamento de Heidegger. Observe-se que o que se define aí é justamente o estatuto privilegiado de um ente específico, o homem. Vou-me debruçar sobre o exame do fragmento, abaixo transcrito:


“O problema: o que é o ser já define um estado do ser. Que ele se instaure e encontre lugar no ser – e não poderia se instaurar e encontrar lugar senão no ser – implica que há algo do ser – um ente – que está em uma relação de instabilidade com o próprio ser. O ente, que suscita o problema e é enquanto aquele problema, certamente está em relação com o ser, mas em uma relação que exclui a totalidade e a necessidade de ele possuir o ser. Ele é enquanto instaura e se constitui a si mesmo no suscitar e no constituir o problema – por isso está em relação com o ser, mas, enquanto é como problema e no problema, sua relação com o ser é instável e precária e exclui a firmeza e a estabilidade da posse (...)”. (ib.id. grifo meu).


A primeira dentre as várias questões que se poderia ventilar a partir da consideração do passo supramencionado é o que significa dizer que a questão do ser define um estado do ser. Não se diz “estado de ser”, mas “estado do ser”. O ser, tal como vem sendo pensado em sua obscuridade conceitual, é a tarefa própria do homem. O ser se coloca no horizonte de uma busca pela qual se decide o homem enquanto existente. Essa busca se dá no mundo que é, para Abbagnano, “uma determinação fundamental da estrutura do homem” (p. 31). O mundo é a totalidade da qual faz parte o homem. O mundo, porque determina o modo fundamental da estrutura do homem, o transcende e, ao transcendê-lo, leva-o a instaurar-se numa relação necessária com o ser e com os demais homens.
Volvemos nossa atenção para a ideia de que o problema do ser define um estado do ser. Tendo-a em conta, recuperemos a ideia subsequente (veja-se a citação), segundo a qual o problema do ser não pode instaurar-se senão no ser. A metáfora do ser como domínio locativo (“encontre lugar no ser”) suscita-nos uma ambiguidade: trata-se do ser próprio do homem ou do ser mais abstrato e geral como horizonte de acontecimento da presença de tudo que existe? Trata-se da essência do homem ou do ser como única realidade verdadeira e fundamental? Se, agora, lermos  também o que se segue no fragmento citado – “há algo do ser – um ente que está em uma relação com o próprio ser”, forçosamente reconhecemos duas ocorrências do vocábulo “ser”. A primeira ocorrência dirime a dúvida suscitada pelas questões sobre o significado do ser logo acima. Se, afinal, é algo do ser (que pertence ao ser), esse ente, que é o homem, é parte de uma realidade mais abstrata e fundamental (e mais ampla). Essa realidade abstrata, porque isolada pelo pensamento e porque fundamental, porque condição de possibilidade de aparecimento dos entes, constitui a totalidade do ‘haver’ mundo da qual o ente humano é uma parte (não qualquer parte, não uma parte como as outras). Espanto em face do acontecimento do haver, que é uma totalidade que tudo abarca e que me escapa sem que eu possa dela (me) escapar, porque, ao afirmar que sou, compreendo-me como inteiramente absorvido no espanto de ‘haver mundo’.
Voltemos a dispensar atenção ao fragmento citado. Ao fazê-lo, encontramo-nos novamente na dificuldade de decidir sobre que sentido produzir para a ocorrência do vocábulo “ser”. Porque a ambiguidade do ser se instaura novamente. O ente que está numa relação de instabilidade com o próprio ser encontra-se numa relação com seu ser mesmo ou com o ser abstrato e fundamental? A questão se expõe aqui a título de provocação, pois que se nos dermos o trabalho de prosseguir com a leitura do restante do fragmento, podemos resolver a ambiguidade do “ser” admitindo que o ente que se coloca o problema do ser é ele mesmo o problema. Ao instaurar o problema e reconhecer-se como o próprio problema, esse ente não pode pretender alcançar a posse – de resto, impossível -, do ser. Ele não só se reconhece como um “sintoma” da presença plena, isto é, do ser, tampouco se reconhece simplesmente como parte do mundo, ele deve reconhecer-se como o problema mesmo da relação com o ser. Não há mundo sem homem.[1] Se só há homem com o mundo, no mundo, só há mundo com o homem.
Porque impossibilitado de possuir o ser, a relação com o ser, que é originária na estrutura da existência desse ente que é o homem é sempre instável e precária. É nessa precariedade e instabilidade, no entanto, que o ser permanece como a possibilidade existencial desse ente.
Para lançar luzes sobre qualquer sombra de dúvida acerca do que significa ser para o ente humano, convém lermos o que se segue, sem perder de vista a problematicidade dessa busca do ser:

“Dúvida e certeza, expectativa e temor, ação e desespero são todos modos singulares e concretos do problema do ser porque são todos eles determinados pela instabilidade da relação entre o ente e o ser. A felicidade de um reencontro e de uma posse, tanto mais preciosa quanto mais exposta ao risco da perda, o amargor de uma derrota, a angústia de uma impossibilidade, a vitória e o desastre encerram igualmente o sentido profundo e total do problema do ser, da instabilidade da relação na qual o ente é com o ser, da propriedade de sua posse, do risco que ele implica. O problema do ser está não mais no encapsulamento conceitual e verbal das doutrinas filosóficas, mas no próprio ser constitutivo do ente em sua vida temporal, em sua limitação, em destino”. (p. 49).


O que se topa, em destaque, no excerto acima, faz esvaecer qualquer dúvida acerca da significação do conceito de ser, de cuja problematicidade Abbagnano se ocupa. Definitivamente, não se trata do ser parmenidiano ou platônico, nem do ser plotiniano, ou hegeliano. Não se trata de um problema atinente à indeterminação de sua conceituação. O problema do ser é fundamental na medida em que constitui o problema originário da constituição da existência do ente. Mas, ipso facto, o ser é o ser constitutivo do ente “em sua vida temporal, em sua limitação, em seu destino” (ib.id.).
Ser, para o ente humano, é sempre um mover-se na instabilidade da relação com o ser; é sempre estar exposto ao risco de perdas, de desfazimentos. A relação com o ser é um problema concreto para o ente humano, ao mesmo tempo em que é profundo porque a todo instante expõe o homem à precariedade da sua existência, ao peso que consiste em ter de assumi-la como seu dever.
Portanto, não há possibilidade outra para o homem de reportar-se ao ser senão como problema. O homem não pode alcançar a paz e a segurança da posse do ser; só pode pretender alcançá-la sob o risco de perdê-la a qualquer momento. Eu posso ser um pai de família, mas sob o risco de deixar de sê-lo a qualquer momento. Num dia, posso ver-me como um empresário bem-sucedido; noutro posso encontrar-me arruinado. O homem pode revoltar-se contra toda determinação; pode esforçar-se por fugir dela e lograr êxito nessa empresa; mas não pode – porque impossível – rebelar-se contra o problema da relação com o ser. Não há escapatória. O trágico de sua condição é ver-se obrigado a assumir aquela relação na precariedade que lhe é inerente, sem qualquer forma de apelação, sem encontrar esteios que sustentem os significados que vai construindo na ocupação com sua tarefa. A precariedade da relação com o ser é a precariedade de sua própria existência, já que existir é relação com o ser.
A próxima subseção, que precede à das considerações finais, abre-nos o horizonte do problema fundamental da existência: a relação com a indeterminação originária. A questão que ocupa Abbagnano e sobre a qual me debruçarei está, pois, delineada no seguinte excerto:

“O estado do homem definido pelo problema do ser é a indeterminação. A indeterminação é a própria problematicidade da relação entre o homem e o ser. Pela indeterminação, o ser é uma possibilidade para o homem”. (p.50).

Se a condição do homem definida pela relação com o ser é a indeterminação, colhe-se daí que não há possibilidade de imanência do ser ao homem. O homem que se define como problema da relação com o ser jamais se encontra descansado no ser. O ser pode ser próprio do homem, mas nunca a título de estado de imobilidade. Nem o ser liga-se intimamente ao homem, nem este se deixa dominar pelo ser, porquanto há sempre a indeterminação constitutiva da relação entre o homem e o ser, de sorte que um e outro são sempre possibilidades efetivas, mas nunca realidades necessárias.
A indeterminação é a própria natureza do homem, porque e justamente porque o homem não tem natureza e porque a indeterminação é o problema da constituição da sua natureza.


4.5. A existência como relação com a indeterminação originária

É própria do homem a possibilidade de ser. Como possibilidade de ser, o homem encontra-se no estado de indeterminação. Só está nesse estado porque o homem foi indeterminação. Ele só se constitui na indeterminação, porquanto a indeterminação está no passado, já foi ultrapassada, transcendida.
Todavia, estar na indeterminação não é conservar-se na imobilidade; a indeterminação própria do homem supõe um movimento que consiste em um ir além dela. A ultrapassagem da indeterminação, o sair dela é o existir (existere). Novamente, a questão sobre o que é existir se impõe.

“O homem existe enquanto constituindo-se com o problema e no problema do ser, sai da indeterminação que ele implica e se desloca para reconhecê-la. O existir é o ato pelo qual o homem reconhece a indeterminação de sua natureza e, por isso, estabelece como sua natureza o problema do ser”. (p. 50).

Esse sair da indeterminação que define a essência do existir não é um lançar-se na indiferença a respeito dessa indeterminação originária. Existindo, isto é, ultrapassando a indeterminação, o homem reconhece-a como indeterminação de sua natureza e, por isso, pode estabelecer como sua natureza o problema da relação com o ser. Por conseguinte, “o existir só é uma ultrapassagem da indeterminação porque é um retorno a ela”. (ib.id.)
Transcender a indeterminação nunca é um “deixar para atrás”, um “negá-la absolutamente”. Ao existir, o homem instaura e constitui concretamente a indeterminação como ponto de onde parte e ponto a que chega. O existir é a instauração própria e autêntica do problema do ser, dado que é a constituição desse problema como natureza própria e originária do homem.
Da afirmação a indeterminação é a relação da problematicidade entre o homem e o ser segue-se que o existir é o fundamento dessa relação, sua problematicidade constitutiva. Como fundamento, existir fornece a razão de ser da relação. Da afirmação a indeterminação é o ser como possibilidade segue-se que o existir é o fundamento e a condição de tal possibilidade, é a possibilidade transcendental. Vê-se, pois, que a indeterminação e a possibilidade não são nada fora do existir, já que existir é o ato concreto de sua fundação, logo a condição necessária de seu ser mesmo. A indeterminação se realiza como tal somente no existir; só no existir ela se relaciona consigo. É também no existir que a problematicidade da relação entre o homem e o ser se relaciona consigo mesma. A existência constitui o homem em sua problematicidade originária.
A existência define o homem na indeterminação de sua natureza; e essa definição não se dá pela anulação dessa indeterminação. Ao instaurá-la, a existência a reconhece e a realiza até o fim.
Finalmente, devemos, então, remover qualquer embaraço que nos impeça de compreender claramente que, instaurando-se o problema do ser, a problematicidade originária, que é a indeterminação da natureza do homem, se realiza. Ela se realiza por um ato levado a efeito pelo homem. Ao realizá-la, o homem realiza-se a si mesmo, visto que, na origem, ele é aquela problematicidade.
A instauração do problema do ser nada mais é do que a própria constituição do homem. Insista-se em que a definição do problema do ser não é objeto de reflexão teórica, mas ato existencial, a saber, decisão. Sendo originariamente indeterminação, o homem escolhe ser si mesmo e se compromete em se realizar no horizonte de sua problematicidade originária, sendo nisso que consiste o ato existencial que instaurará a autenticidade da existência do próprio homem.


Considerações finais

Na medida em que pensa o homem concreto em sua problematicidade originária como indeterminação de sua própria natureza, o existencialismo põe-se, filosoficamente, a serviço do trabalho existencial, levado a efeito pelo próprio homem, de constituição de um modo de ser que lhe é próprio. O viver concreto, o envolvimento do homem com a lida cotidiana não ocupa uma instância apartada do discurso filosófico, já que a própria filosofia não é senão uma escolha existencial, um ato pelo qual se decide o homem que tem de assumir autenticamente o seu modo próprio de ser, a saber, como indeterminação originária. Que esse ato de conquista de si seja profundamente marcado pela instabilidade e precariedade não é razão suficiente para o dispensar fazê-lo com algumas luzes, donde a necessidade de o homem apropriar-se da filosofia como uma busca ao longo da qual se vai esclarecendo o fundo escuro de sua existência.






[1] O leitor poderá encontrar uma discussão sobre a inexistência do mundo sem o homem em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2014/04/a-linguagem-e-o-lugar-de.html