sábado, 26 de setembro de 2015

"Conheci algumas poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal." (BAR)

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                                       Granjeio filosófico

Uma única chance para que eu pudesse contar-me, dizer-lhe a que venho – sou uma história ínfima na imensidão de um universo escuro e indiferente... Não tenho eu qualquer pretensão de ser lembrado pela História... A minha insignificante história já me é demasiado pesada... (por que quereria eu ser co-responsável pela marcha de tão terrível História?) Para o ser humano, a vida se decide no instante, pois todo instante reclama-lhe a liberdade, um ato (que pode ser seu último)... num instante, se descortina ou se eclipsa seu horizonte de possíveis... cada instante é, no entanto,  um novo horizonte de possíveis... Entre dois nadas – o passado e o futuro – se faz a vida em seu contínuo desfazimento; vida é desfazimento (quantas perdas! Quantos desenlaces! Quantas contínuas, pequenas e comuns mortes!); o real? É o próprio presente.

Disseram que você é uma pessoa legal, mas não foi por isso que decidi solicitar-lhe uma “amizade virtual” (que, em pouquíssimo tempo, se torna um número esquecido entre outros). Conheci algumas poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal. Os ilegais são os que vivem à margem das tendências sistemáticas, das forças domesticadoras, dos automatismos massificadores; são os que não se deixam arrastar pela marcha, com seus passos compassados em seu movimento sincronicamente arregimentado – marcha em que todos são como todos, em que todos ignoram a todos; marcha para a qual o único caminho é a congênita indiferença humana. Dizem que os ilegais são transgressores, conturbadores da ordem política, criminosos; tais como eu os entendo no presente contexto, porém, eles são criadores, tanto na esfera pública, quanto na privada; criam a si mesmos, criam como artistas a vida, assumindo-se como verdadeiramente livres, a despeito de, neste ato criador, aprofundarem sua solidão (e não é na solidão que se experiencia a verdadeira liberdade?).
A legalidade do amor condenou-o a este estado de entorpecimento contagioso de seus praticantes, que não se percebem como reprodutores de uma ordem à qual raramente fazem resistência. Não vê como se comportam os amantes? Eles se escorregam por seus corpos (amores líquidos, fluidos, escorregadios; gozos intensos, efêmeros, vadios). Todos os amantes começam a se amar na legalidade (seguem os mesmos scripts, as mesmas normas); mas rapidamente se cansam, se entediam um do outro. A legalidade os esteriliza; tornam-se infecundos e se apressam por buscar as mesmas formas de divertimentos conformadas com a legalidade. Todo amor, em seus tempos germinais, é legal; todos os amantes são legais; prometem um ao outro viver fielmente na legalidade pela qual se pauta a relação. Em pouco tempo, a legalidade os torna cansativos um para o outro. Amar na ilegalidade não é entregar-se a traições, a concupiscências; é dar à relação as condições para seus gestos espontâneos, é dar seu sentido de autonomia em declarada resistência à heteronomia pela qual as relações humanas são continuamente adestradas. Se quiser, um dia, amar profundamente e ser amada, deixe de crer no amor; não há nenhum sentido salvífico nele; nenhuma profundidade. Só podemos amar o amor não crendo mais nele, aliviando-o dos aguilhões das nossas fantasias; libertando-o – se preferir- dos grilhões das ilusões que sobre ele produzimos. Amá-lo na ilegalidade; só assim amaremos em sua fecundidade (se houver alguma...).


Não pode imaginar quão custoso me é escrever-lhe isto. Hoje, como de costume, fiquei ocupado com os livros. Mas a leitura não transcorria sem alguma inquietação. Pressinto o abismo mais próximo de mim. Apesar disso, tenho de escolher (estou, como todo ser humano sartreano, “condenado a ser livre”). Extravagâncias! Desmesuras! Excrescências! Ímpetos vãos! Hábitos comuns quando me deixo seduzir pela astúcia da linguagem e por sua irresistível nudez que me desregula os estados de espírito. A vaidade de todas as coisas humanas me assombra, embora me seja tão familiar. Sinto-me, agora, o mais tolo dos homens que se conservam sobre a terra; quiçá, esteja a rir-se de mim. Contudo, tendo ainda trinta e três anos, posso permitir-me ser pateticamente esquisito. Insisto nesta minha tolice íntima para perguntar-lhe se me daria o privilégio de conhecê-la pessoalmente. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O caso da "superfluicidade" - considerações morfológicas

                      

                     


                            O uso e a gramática
                                  Desfazendo alguns equívocos

Ontem, numa aula de filosofia, por motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma “superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que, àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”, dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi, nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”; eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de “supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos. São exemplos de formações em “-idade”: raridade, honestidade, sinceridade. Tais formas derivam, respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é suprimida. Mas modificações desse tipo são  sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação “superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/ (na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém examinar.
Sem mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo “-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas “feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/, /sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade], presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”, “capacidade. Veja-se que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade” decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em “-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.

Que os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas, essa  intuição está impregnada de pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra, como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e “preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista, se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa, muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma, que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo “pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que não são linguistas de formação: a sistematicidade da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a “estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras, quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e de regras - uma gramática.
No entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”, não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado de regras gramaticais e sociais.
Pois bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades. Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”, tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”, produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher, tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que são simplesmente o tipo de coisa que nenhum falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo (cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo “gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de português, são manifestações de sua competência linguística, de seu conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português. Ninguém ensina isso a ele.
O exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns exemplos.
Tomem-se as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português. Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção” e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção” e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao tempo, modo,  às pessoas envolvidas, etc. Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso, dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação” não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras. Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade, evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem” especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar. Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de “jornalista” e “jornaleiro”.
Já, na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é “leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento; encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância, fixada pelo uso.
A título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:

1o equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente. O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas como “livração” e “desfeliz” só  fere as sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e “infeliz”.

2o equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.

3o equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas, são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser abstraída do uso em condições teóricas.

Observação final



Outro equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então. 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

"(...) a minha "humanidade" consiste não em simpatizar com os outros homens, mas em suportar sua proximidade...A minha humanidade é uma vitória contínua sobre mim mesmo" (Nietzsche - Por que sou tão sábio)

         
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            O ressentimento no pensamento de Nietzsche
                                
                            Apontamentos para pesquisa


Esta é uma das poucas vezes em que compus um texto teórico tão rápido. A brevidade deste texto atende ao objetivo principal para cuja satisfação ele foi escrito: fornecer apontamentos sobre a significação do conceito de ressentimento no pensamento de Nietzsche. Ao reunir, aqui, estes apontamentos, espero contribuir para minhas próprias pesquisas futuras e para as de estudantes de filosofia interessados em se tornar legítimos leitores de Nietzsche, a saber, leitores capazes de ter a mesma experiência que a dele, condição esta para a compreensão do modo de ser do filósofo que, aliás, queria leitores pensantes, autônomos e livres e tinha horror a angariar discípulos.

Na filosofia de Nietzsche, o ressentimento corresponde a um problema fisiológico, a saber, à falta de forças de um organismo cansado para reagir às intempéries da vida e que não consegue digerir os sentimentos ruins que produz. Da fraqueza que gera tais sentimentos e da presença deles no interior desse organismo resulta uma desordem psíquica que o impede de viver efetivamente o presente. Justamente por acarretar uma desordem psíquica, o ressentimento é, a rigor, um fenômeno fisiopsicológico, tendo em conta o fato de que, em Nietzsche, psicologia não recobre um domínio estranho ao corpo.
Embora se apresente como um fenômeno fisiopsicológico, o ressentimento não está desvinculado de momentos fundamentais da filosofia de Nietzsche, em que ele desenvolve sua crítica à cultura, à moral ou às configurações políticas de seu tempo, tais como a democracia, o socialismo ou o anarquismo.
É necessário atentar para os diferentes acentos de significação com que se apresenta o conceito de ressentimento nos diversos trabalhos nietzschianos. Por exemplo, em Crepúsculo dos Ídolos, o ressentimento é entendido como vingança e é relacionado à justiça, à semelhança da forma como se apresentara em A Genealogia da Moral. Na primeira obra referida, os cristãos, os socialistas e os anarquistas são considerados como representantes do espírito de vingança, mormente porque seus ideais de justiça e sociedade se fundamentam na noção de “direitos iguais”, e porque também esses ideais envolvem a ideia de culpa, expressa na forma do enunciado “alguém tem de ser culpado pelo fato de o sofredor sentir-se mal”. Destarte, a justiça equivale à vingança contra todo aquele que faz (o sofredor) sofrer.
Em Ecce Homo, por seu turno, Nietzsche retoma o ressentimento ressaltando os seus aspectos fisiológicos e pessoais. Aqui o ressentimento é o próprio “estar doente”; é uma doença. Lê-se, nessa obra, no capítulo Por que sou tão sábio “o ressentimento é a coisa proibida por excelência a todo doente, aquilo que lhe faz mais mal; desgraçadamente, é também aquilo para o qual mais naturalmente se inclina” (2007, p. 45)
Em A Genealogia da Moral, o ressentimento assume dois significados claros, que discrimino abaixo:

1o signficado:  O ressentimento é compreendido como um problema do homem individual, fraco, incapaz de reagir em face das adversidades da vida e de digerir o veneno produzido pela sua vingança não realizada;

2o signficado: O ressentimento se apresenta como um problema social, porque toca a uma concepção de justiça e a um modo de intervenção social. Nesse caso, situado no domínio da moral, o ressentimento corresponde a uma vontade de poder, que opera em vista do domínio sobre as demais vontades de poder e que efetivamente se tornou vitoriosa na cultura ocidental.

Por fim, levando a cabo estes apontamentos, na terceira dissertação de A Genealogia da Moral, o ressentimento se liga ao sofrimento interior do homem e sua causa envolve fatores fisiológicos. Consoante Nietzsche, é o sacerdote ascético o responsável por modificar “a direção do ressentimento”. O sacerdote lança mão da concepção segundo a qual o sofrimento humano é uma espécie de punição para conter o rebanho e mantê-lo amansado. È o ideal ascético, portanto, que aparece como o modus operandi da moral do ressentimento, de acordo com a qual o próprio sofredor apresenta-se como culpado de seu sofrimento, disso resultando ser ele – o próprio sofredor – o alvo de sua própria sede de vingança. Ressalte-se que é o sacerdote ascético que se vale de estratégias destinadas a impedir que o ressentimento (o sofrimento) se amplie – pois que seu aumento poderia redundar na perda de seu rebanho, ou, num sentido diverso, o aumento da tensão no interior do homem poderia levá-lo a elevar-se através de sua doença, circunstâncias estas que, segundo Nietzsche, não interessam à interpretação religiosa. Ora, deve-se ficar claro que a interpretação religiosa pretende que aquele tipo de homem fraco, totalmente oposto ao ideal nietzschiano de homem suficientemente forte para superar o ressentimento, permaneça incapaz de tornar-se forte o suficiente para superar tal estado de envenenamento (isto é, o ressentimento).



terça-feira, 22 de setembro de 2015

Poema - "... Em nenhum amor, existe repouso" (Nietzsche)


                                                 


Profanação do amor


Não poder amar-te como outrora
A isto chamo a verdadeira saúde!
Oh! Prímula de minha primavera doente!
Meu ser é pleno de filosofia!
“...E há quem ainda acredite na profundidade da filosofia”
“Pouco a pouco nos enfadamos do que
possuímos seguramente...”

Minha lucidez é um cemitério
Onde em covas fundas ignotos jazem
os amores meus de asas cortadas
“(...) nem a mais bela paisagem estará certa
de nosso amor, após passarmos três meses nela”

Quão risíveis me parecem agora os amantes!
Quão vãs estas empresas engenhosas de Eros!
Faustas -  creem, posto que malfadadas!
Quão deploráveis as multidões de apaixonados!
- Suas marionetes.
Cobiçosos os amantes insaciáveis se cansam
E teimam em viver na ignorância das maquinações
Deste Intermediário, astuto a mendigar consolações

Eros quer possuir, subsiste da propriedade
Exímio capitalista! Engorda com o emagrecimento
de seus operários expropriados.
Mas a Lucidez – esta doença contagiosa (mal incurável)
A Lucidez – esta metamorfose demoníaca
que solapa a Inocência
A Lucidez – esta fissura fisiológica irrecuperável
Que nos desnuda a Dor inerente a Existir
A Lucidez, enfim, me despossuiu
Lúcido, pois, (en)fadado por (de) Eros
Curei-me dos estados doentios
Do ressentimento que me fazia desaprovar a Vida!
“Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo”
E enfadado de mim mesmo, cultivo a fecundidade
de minha terra-solidão – Meu Exílio,
onde sou verdadeiramente livre.
Onde Eros – filho da Intemperança
Primogênito da Loucura!
Não ousa mais combalir-me
Lançando suas perturbações

“(...) Em nenhum amor, existe repouso.”


(BAR)