O uso e a gramática
Desfazendo alguns equívocos
Ontem, numa aula de filosofia, por
motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma
“superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade
da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que,
àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que
fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”,
dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas
preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A
professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda
sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi,
nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também
os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”;
eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente
equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A
vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um
correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu
conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de
“supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma
verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como
recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A
língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de
substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos.
São exemplos de formações em “-idade”: raridade,
honestidade, sinceridade. Tais formas derivam,
respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é
extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo
do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se
acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é
suprimida. Mas modificações desse tipo são
sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação
“superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também
não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/
(na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos
o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém
examinar.
Sem
mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo
“-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas
“feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/,
/sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma
fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade],
presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com
as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o
sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”,
“capacidade”. Veja-se
que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma
forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de
escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas
formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade”
decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas
derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em
“-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o
adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde
não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.
Que
os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato
inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são
linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição
linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas,
essa intuição está impregnada de
pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a
estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é
patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra,
como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e
“preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de
escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se
ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista,
se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum
de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá
a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema
gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se
articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as
duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo
sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa,
muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com
variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os
mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não
necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma,
que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo
“pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que
não são linguistas de formação: a sistematicidade
da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida
como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que
é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes
implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com
ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante
dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a
“estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a
estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras,
quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e
histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a
língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e
de regras - uma gramática.
No
entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade
social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou
inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido
por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível
a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao
produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso
engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes
de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”,
não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja
existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que
significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em
constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de
gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que
não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos
abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos
dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que
descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se
identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de
análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem
ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e
complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma
atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado
de regras gramaticais e sociais.
Pois
bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades.
Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões
linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e
a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se
constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por
um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais
constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões
claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões
suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe
da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”,
tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o
complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele
também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”,
produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem
variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento
intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No
extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante
nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher,
tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre
eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de
coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a
possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e
você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal
construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A
despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível
previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os
exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os
casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que
significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que
são simplesmente o tipo de coisa que nenhum
falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de
sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo
(cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo
“gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de
português, são manifestações de sua competência linguística, de seu
conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português.
Ninguém ensina isso a ele.
O
exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de
padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os
estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais
formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta
ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das
virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não
sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo
uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação
de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente
possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma
restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns
exemplos.
Tomem-se
as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português.
Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas
formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção”
e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção
de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção”
e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao
tempo, modo, às pessoas envolvidas, etc.
Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que
desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não
ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de
sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema
da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras
morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso,
dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação”
não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras.
Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade,
evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há
especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos
que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um
deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as
formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem”
especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades
coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar.
Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso
resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de
“jornalista” e “jornaleiro”.
Já,
na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo
processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é
“leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo
simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma
derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O
sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a
partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento;
encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma
restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede
a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância,
fixada pelo uso.
A
título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:
1o
equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no
uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente.
O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade
de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas
como “livração” e “desfeliz” só fere as
sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e
“infeliz”.
2o
equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz
respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de
uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em
relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.
3o
equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades
não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio
morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas,
são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas
existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências
previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é
produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser
abstraída do uso em condições teóricas.
Observação final
Outro
equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar
a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é
parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na
verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de
que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A
Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de
seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a
existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções
teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então.