sexta-feira, 31 de julho de 2015

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz." (Epicuro)

                 
                        


                  Epicurismo e sua ética hedonista[1]

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo enquanto velho, porque ninguém é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz"
(Epicuro - Carta a Meneceu)


1. O prazer (hedoné)

O epicursismo[4] é a doutrina filosófica, cujo fundador foi o filósofo grego atomista Epicuro (341-270 a.C.), nascido em Samos, e que preconiza, no âmbito da moral, ser o bem o prazer, isto é, a satisfação de nossos desejos e impulsos de forma moderada. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários.
Segundo Epicuro, o prazer é o soberano bem; e a dor, o soberano mal. A busca do prazer deve levar à ataraxia[5], isto é, ao estado de impertubabilidade da alma, pela supressão da dor. O prazer é o começo e o fim da vida feliz; e o prazer e a dor ensinam-nos o que devemos procurar e o que é necessário que evitemos. O bem viver, na visão de Epicuro, consiste em saber gerir bem os prazeres.
O prazer é o princípio da vida feliz, porquanto é o primeiro bem conforme à natureza e, por isso, é com base nele que usufruímos ou rejeitamos as coisas, em consonância com a sensação. O prazer é o fim, porque é desejado por si mesmo; é o prazer o bem que dá sentido a todos os bens.
A ética epicurista funda-se sobre a regra que consiste na busca do prazer e na necessidade de escapar a toda dor do corpo e a toda perturbação da alma. O caminho pelo qual alcançamos a eudaimonia, a vida feliz, envolve duas exigências: a ausência de dor e a ausência de perturbação na alma.
O prazer é o sumo bem, pois que a ele todos os seres vivos tendem, desde o nascimento. Todos os seres vivos buscam o prazer e se esforçam para escapar à dor por meio de uma inclinação natural. O prazer é um estado que envolve a carne[6] e é reclamado por ela. É necessário libertar a carne do sofrimento, a fim de que o prazer seja alcançado. Ao prazer se subordinam todos os valores e todos os bens espirituais. O prazer não é um estado passageiro ou fugaz, mas um estado permanente que supõe o equilíbrio das partes do corpo; é o estado que experimenta um corpo com saúde.
Uma vez que o prazer deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis) e que sua busca é conforme à nossa natureza, todo prazer é rigorosamente físico, de sorte que os prazeres espirituais também o são, sobretudo porque, no epicurismo, a alma é dotada de corporeidade, conforme atesta o seguinte fragmento de Epicuro:

A alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda estrutura corporal, muito semelhante a um sopro que contenha uma mistura de calor, semelhante um pouco a um e um pouco a outro, e também muito diferente deles pela sutileza das partículas, e também por este lado capaz de sentir-se mais em harmonia com o resto do organismo.[7]


Do trecho supracitado, não é custoso depreender que a física epicurista não admite a separação entre alma e corpo. Não só a alma é corpórea, como também há uma integralidade da alma com o corpo. A alma permeia toda a estrutura corporal. A alma traz em si a causa principal das sensações, mas estas não seriam possíveis se não estivessem integradas ao resto do organismo. Dessa integração resulta que, deteriorando o corpo, a alma também se dissolve.
Que as considerações precedentes não nos induzam a um erro que, de todo modo, parece ter-se consagrado na posteridade, qual seja, o que decorre da crença de que Epicuro pense ser todo e qualquer prazer um bem. O excerto a seguir, conquanto encerre o postulado básico da ética epicurista, suscitando-nos a crença verdadeira de que a vida feliz depende da busca do prazer, nem por isso deixa de nos advertir de que essa busca envolve um critério.

Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz.[8]


Epicuro proíbe-nos de escolher todo e qualquer prazer, porque há prazeres pelos quais sofremos “maiores pesares”[9]. É necessário distinguir entre o prazer estável ou em repouso e o prazer em movimento. Os prazeres em movimento podem ser bons, como os que se experimentam na saciedade da sede e da fome, na proteção contra o frio, etc. Sucede, todavia, que esses prazeres precisam ser renovados, porque eles são movidos por carências que não cessamos de sofrer. Como, continuamente, sentimos fome, sede e frio, continuamente necessitamos do prazer sobrevindo à supressão dessas sensações.
Por outro lado, o prazer em repouso, porquanto não decorre de carências, é sempre experimentado sem a afecção prévia da dor, do sofrimento ou da perda. Por conseguinte, o verdadeiro prazer reside na serenidade ou tranquilidade da alma e do corpo.
No fragmento seguinte, colhido de Carta a Meneceu (2002, p. 39), Epicuro não só rejeita a possibilidade de escolher qualquer prazer, mas também nos lembra que, não raro, preferimos certos sofrimentos aos prazeres, sempre que àqueles sobrevêm prazeres maiores.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém efeitos os mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem sempre ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal, ao contrário, um mal como se fosse um bem. (grifo nosso).


Esse trecho reclama alguns comentários, os quais, elucidando-o, assentam o terreno em que se situará o objeto de nossas próximas considerações. Urge notar, em primeiro lugar, que a natureza é sempre a medida para a determinação do que é bom e do que é mau. Os prazeres são um bem, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a ele; a dor, por seu turno, é um mal, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a esquivar-se dela. Não obstante, a qualidade dos prazeres pode variar segundo as circunstâncias, o que nos demanda a capacidade de avaliação que nos orienta na escolha daqueles prazeres que não carreiam dor futura. Analogamente, ainda que dores e sofrimentos sejam, naturalmente, um mal, ocasiões há em que devemos escolher suportá-los, se, após ponderação, ficarmos convencidos de que isso nos acarretará maiores prazeres.
Acresce-se, em segundo lugar, que, muitas vezes, deixamo-nos seduzir por coisas que se apresentam como um bem, perdendo de vista o mal maior que dele se seguirá. Isso se dá por nos deixarmos ceder à credulidade, à superstição e à ignorância. Cumpre-nos, na próxima seção, mostrar como a alma avalia os prazeres.

2. A avaliação dos prazeres pela distinção entre os desejos

Segundo Epicuro, a alma avalia os prazeres distinguindo, entre os desejos, aqueles que são naturais daqueles que, não sendo naturais, estão calcados sobre vãs opiniões. Acresça-se que, entre os desejos naturais, há os que são necessários à felicidade; outros, à própria vida; e os que, embora naturais, não são necessários para atingir as duas finalidades.
Constituem desejos naturais e necessários uma alimentação sóbria, uma habitação, uma veste que nos proteja contra o frio ou o calor, etc. Por outro lado, são desejos naturais não necessários os que variam os prazeres mediante a variedade da alimentação, da bebida, do vestuário, etc. Segundo Epicuro, tais desejos podem tornar-se imoderados muito facilmente, donde se segue a necessidade de disciplina constante para moderá-los. Por isso, a felicidade e a bem-aventurança dependem da ausência de dor e da moderação nos afetos. Epicuro é explícito ao rejeitar estar na posse das riquezas e na abundância das coisas, ou mesmo na obtenção de cargos e do poder, a felicidade; e igualmente claro é ao advertir os “incautos”, que insistiam em distorcer sua doutrina, de que eles estavam equivocados. Pode-se ler sobre as referidas rejeição e advertência no que se segue:

Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-se aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.[10]


Há que considerar, finalmente, os desejos não naturais e não necessários, que surgem de nossas vãs opiniões. Assim, acreditamos que o prazer se acha na riqueza ostensiva, na fama, na glória, na posse de poder. Para Epicuro, essa crença errônea se acompanha do medo e da perturbação: aquele que ostenta sua riqueza teme perdê-la; aquele que não a possui teme não conseguir obtê-la. No primeiro caso, o indivíduo se perturba com a possibilidade de se ver privado do prazer que acredita estar na posse da riqueza; no segundo caso, perturba-se por não conseguir usufruir o prazer que acredita haver nessa posse.
Consoante mantém Epicuro, a frugalidade dos desejos naturais necessários garante nossa independência, nossa autarcía (autossuficiência); por outro lado, a intemperança dos prazeres que decorrem da vã opinião não só nos impede a autossuficiência, como também nos torna prisioneiros da perturbação. Os desejos naturais e necessários nos livram da dor; os desejos naturais e não necessários, embora nos livrem da dor, podem acarretar danos. Finalmente, os desejos inaturais e não necessários são aqueles que não nos livram da dor e podem ainda nos causar prejuízos. Não há desejos inaturais e necessários, porquanto “inatural” e “necessário” são atributos mutuamente excludentes.
Para Epicuro, devemos ceder a um desejo que nos conduz à tranquilidade, estado sobre o qual repousa a felicidade, e devemos renunciar a um desejo que não nos permite fruir esse estado de tranquilidade. Ainda no que diz respeito aos desejos, é notável o fato de a doutrina epicurista antecipar aquilo que se tornaria um postulado da psicanálise freudiana: a insaciabilidade do desejo.
A experiência comum basta para nos assegurar de que o prazer obtido diminui gradualmente à proporção que nos acostumamos a ele. O termo científico para caracterizar essa experiência é adaptação hedônica. É no momento exato em que nos acostumamos a algo prazeroso que ele deixa de ser prazeroso. Ao estado de insatisfação em que nos encontramos, porque acostumados ao que é agradável, segue-se um novo desejo que demanda satisfação. Mas não tarda para que este estado de satisfação obtido ceda lugar à nova insatisfação, a que se segue outro desejo que reclama satisfação, e o processo se dá ad infinitum. Schopenhauer via aí uma trama que torna impossível a experiência de uma felicidade positiva e duradoura, porque nos vemos sempre suscetível à alternância entre o desejo, ao qual precede uma carência, a satisfação – no entanto, sempre temporária – e o tédio, no qual o prazer está destinado a se converter. O movimento desejo-satisfação (prazer)-tédio é cíclico, de modo que jamais atingimos a satisfação plena de nossos desejos, visto que, continuamente, somos lançados ao estágio inicial do ciclo: estamos permanentemente desejando e continuamente insatisfeitos.
Em  O mal-estar na cultura (2010), Freud soube bem reconhecer que, a despeito de o funcionamento psíquico ser comandado pelo que chama de programa do princípio de prazer, por força do qual somos impulsionados a buscar o prazer e desejamos permanecer nesse estado indefinidamente, toda permanência anelada não é mais que “uma sensação tépida de bem-estar” (p. 63). Após considerar só ser possível experienciar a felicidade como fenômeno episódico, escreve Freud, patenteando que seu pensamento se alinha com o ensinamento epicurista[11]:

Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio de prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado.[12]


Parece claro que Freud está de acordo com o fato de que só nos é possível experienciar uma felicidade do tipo negativo, a saber, o estado em que não experimentamos dor (ou desprazer), em que não nos encontramos infelizes.
Retomemos, por algum instante, a contribuição de Schopenhauer, com vistas a assinalar que, a par da influência inconteste da mística hinduísta e budista em seu pensamento, influência de que os trechos que citaremos não deixam de dar testemunho, claros nos parecem também os traços da concepção epicurista sobre a felicidade. Pelo menos ao se ocupar dela, em sua obra A arte de ser feliz (2001), Schopenhauer demonstra sua afinidade com o pensamento epicurista no tratamento das condições para a vida feliz[13]. Senão, vejamos:


O meio mais seguro de não se tornar muito infeliz consiste em não desejar ser muito feliz, portanto em reduzir as próprias pretensões a um nível bastante moderado no que diz respeito a prazeres, posses, categorias, honra, etc., pois a aspiração à felicidade e a luta para conquistá-la por si só já atraem grandes desventuras. A moderação, por sua vez, é sábia e aconselhável, porque é facílimo ser muito infeliz, enquanto ser muito feliz não apenas é difícil, como também é totalmente impossível.[14]

Malgrado o pessimismo característico que atravessa profundamente o pensamento schopenhaueriano e que nos acautela do inconveniente na pretensão de ler Schopenhauer à luz do horizonte hermenêutico epicurista, sem matizar aqui e ali a medida da influência epicurista sobre seu pensamento, é clara sua anuência à regra da moderação dos desejos e dos prazeres. Essa anuência o aproxima do pensamento não só epicurista, mas dos gregos de um modo geral. Seu pessimismo exacerbado explica por que Schopenhauer realça muito mais as possibilidades de dor e sofrimento do que as de felicidade, no que ele se demonstra herdeiro da sabedoria oriental, sem, contudo, silenciar o pessimismo do pensamento grego.
A tese schopenhaueriana em A arte de ser feliz constitui um sinal evidente da influência epicurista: toda felicidade positiva é quimérica, enquanto a dor é real.[15] Por isso, embora acredite que a verdadeira satisfação é impossível e que, por extensão, a felicidade positiva seja irrealizável para o homem, a ele é possível uma felicidade negativa, que consiste em evitar a dor. Cumpre, aconselha Schopenhauer, “não desejar ser muito feliz, a fim de não se tornar muito infeliz”[16].
A efetividade da dor é o postulado central de toda metafísica schopenhaueriana e reaparece como elemento orientador de seu exame sobre a felicidade. No trecho abaixo, Schopenhauer assume a posição epicurista e a radicaliza, pelo menos sob o segundo dois aspectos seguintes: 1) para ele, o prazer é negativo – caso em que anui a um genuíno epicurismo, posto que não use a expressão “prazer verdadeiro” para referir-se ao prazer negativo; 2) embora ele não pareça admitir a possibilidade de discriminar a qualidade dos prazeres de acordo com as circunstâncias, aconselha-nos a abstenção dos prazeres como meio de assegurar a ausência maior de dor. Nesse último caso, Schopenhauer parece sugerir que uma vida que se obstine na busca de prazeres e alegrias poderá arrastar-se para um turbilhão de dores e sofrimentos que só se poderiam evitar abstendo-se daquela busca. É lícito supor que, para Schopenhauer, nessa abstenção de prazeres e alegrias, que leva a uma ausência maior de dor, reside o verdadeiro prazer e a única felicidade possível.


Justamente porque na vida a dor é predominante, enquanto os prazeres são negativos, quem faz da razão o fio condutor da própria ação e, portanto, reflete sobre as consequências e o futuro de tudo aquilo que se propõe fazer, muitas vezes deverá aplicar o sustine et abstine e sacrificar os prazeres e as alegrias para assegurar a maior ausência possível de dor em toda a vida.[17]


Schopenhauer não poderia ser mais grego, ao apelar para a necessidade de empregar a razão na condução da ação. Nesse apelo, ele deixa entrever um coro de vozes que, fazendo eco à tradição socrática, encontra herdeiros ao longo da história do pensamento filosófico.[18] No entanto, para Schopenhauer, uma ausência de dor que seja tanto mais confortante quanto verdadeira só se obtém à custa da abstenção dos prazeres, posição esta a que um epicurista muito provavelmente não anuiria.[19] Ademais, em consonância com o seu pessimismo e a despeito de aceitar o postulado da razão como meio de conduzir a ação, Schopenhauer nos adverte de que a razão não nos promete em troca uma existência “não marcada por muitas dores”[20]
Como não seja da alçada desse trabalho o ocupar-se com a discussão sobre a medida da consonância do pensamento schopenhaueriano com o pensamento epicurista, cingir-nos-emos a dizer (esperamos sem grande equívoco) que, sustentando articuladas entre si as teses: 1) todo projeto de vida deve pautar-se pela intenção de evitar a dor; 2) a única forma possível de felicidade é a de uma felicidade negativa -, o tratamento schopenhaueriano da questão da vida feliz se filia à tradição epicurista, ainda que se possa esperar, muito em virtude do teor de seu pessimismo, uma divergência em um ou outro momento. Conjugando ainda as duas teses referidas com o postulado segundo o qual “viver é sofrer”, que constitui a primeira das quatro Nobres Verdades budistas, Schopenhauer constrói uma doutrina que só nos promete a experiência de um estado relativamente menos doloroso. Uma vez atinjamos a compreensão dessa verdade schopenhauriana, poderemos desfrutar o bem-estar que a vida nos concede.

3. A relação necessária do prazer com a virtude

Não obstante Epicuro aderir à experiência de um prazer positivo, que se alcança pelos sentidos, que envolve a corporeidade do vivido[21], um epicurismo, em sua forma radical, sem jamais desprezar os prazeres do corpo, aspira à experiência de prazeres negativos, razão por que leva uma vida ascética. A ética epicurista se pauta por uma lógica severa, nesse sentido: somos felizes quando experienciamos a tranquilidade; só estamos tranqüilos quando livres da dor; e só ficamos livres da dor quando todos os nossos desejos estão realizados; e nossos desejos só podem ser satisfeitos caso sejam moderados.
Do exposto, segue-se que o epicurismo nunca é uma permissão para o excesso de indulgência; mas, ao contrário, é sempre um compromisso com a austeridade. Seus princípios éticos prescrevem disciplina e discernimento. O maior prazer ou o prazer verdadeiro se acha na ausência duradoura de dor.
Distanciando-se dos estóicos, para os quais prazer e virtude deviam ser mantidos em esferas separadas, em função do fato de acreditarem que os homens maus e infelizes também gozam de prazeres, os epicuristas advogavam que a virtude é um meio para o prazer. No epicurismo, o prazer é o único motivo para a ação, visto que é o único padrão pelo qual se pode julgar a equidade da conduta. Destarte, uma ação é moral se ela produzir mais prazer do que dor; e imoral, se produzir mais dor que prazer. Disso resulta que nossos julgamentos éticos não devem apoiar-se nas ações em si (está certo fazer X?), tampouco nas suas consequências para os outros. Nossos julgamentos devem levar em conta apenas as emoções que uma ação produzirá em nós (se fizermos X, nos sentiremos bem?). Evidentemente, o padrão ético é sempre relativo, quer às pessoas que executam uma ação, quer às circunstâncias em que o fazem.
No sistema ético epicurista, à luz do qual a virtude está intimamente ligada ao prazer, ela jamais é considerada em si mesma. Assim, dirão os epicuristas, somos virtuosos não porque, necessariamente, apreciamos a virtude, ou porque a virtude em si mesma é algo admirável, mas porque desejamos o prazer que ela proporciona. Para um epicurista, portanto, toda virtude, necessariamente, acarreta prazer. Onde há virtude há prazer e também felicidade.
Podemos compreender por que o epicurista pensa ser o prazer o único motivo para a ação virtuosa, considerando os dois casos seguintes. No primeiro caso, diz-se que ser corajoso é virtuoso, mas, dirá o epicurista, aquele que é corajoso, que exibe coragem, não o faz por estimar a coragem, mas em vista de viver sem ansiedade. No segundo caso, e de modo semelhante, quem é moderado não o é porque valoriza a moderação, mas porque lhe é cara a paz de espírito que a moderação lhe acarreta.
Cumpre também lembrar que tanto para os antigos gregos quanto para os antigos romanos, a moderação era um traço de caráter de amplo alcance: a força para agir moderadamente era extensiva a todos os tipos de situação; logo, moderação, para eles, era semanticamente muito mais extenso do que nosso uso moderno do termo, deveras estrito.
Em suma, Epicuro sustenta a superioridade dos prazeres negativos, que são estáticos (implicam inatividade) e se caracterizam pela ausência de perturbação da alma e do corpo. Esses prazeres são considerados completos. A felicidade não se alcança na busca do prazer cinético ilimitado[22], que consiste em satisfazer continuamente determinados desejos, mas na busca do prazer estático limitado, a saber, a ausência de dor. Essa forma de prazer se caracteriza pela ausência de desejos que demandam satisfação. Assim, desde que todo desejo está satisfeito, não resta dor alguma, e o limiar de todo prazer possível se nos desvela sem obstáculos. De tudo que dissemos, pode-se, seguramente, concluir que a ética epicurista é uma terapêutica: a) estando o corpo em bom estado, mas a alma perturbada, o epicurista prescreve a correção das falsas opiniões acompanhada da supressão dos temores desencadeados por elas; b) estando o corpo em mau estado, mas a alma sadia, o epicurista prescreve a supressão da dor física pela formação de imagens mentais prazerosas relativamente ao passado, ou pela projeção positiva dessas imagens relativamente ao futuro.




[4] De um lado, o epicurista situa a felicidade no prazer; de outro lado, para o estóico, a felicidade consiste na exigência do bem segundo a razão. Essa exigência do bem ultrapassa o interesse individual. Comum aos epicuristas e aos estóicos é a pretensão de atingir a ataraxia (estado de tranquilidade ou impertubabilidade da alma). A ética estóica combina serenidade autossuficiente e benevolente, estado este que leva o sábio a uma indiferença em relação à pobreza, à dor, à morte, com a promoção de uma ordem política e civil que espelhe a ordem do cosmo. O estóico celebra a apatia, que se caracteriza por ser um estado de ausência de sentimentos baseados em crenças erradas, ou seja, de sentimentos que nos levem a não conferir à virtude o seu devido papel. A rigor, apatia é ausência de paixões; é não ter ou experimentar sofrimento. Daí ser ela um estado em que somos indiferentes aos reveses da vida.
[5] Os epicuristas advogavam que a ataraxia pode ser alcançada pela busca dos prazeres “tranquilos” e pela satisfação dos desejos naturais. É necessário renunciar aos desejos supérfluos (ser rico, poderoso, etc.), cuja satisfação acarreta mais perturbação do que prazer. O sábio feliz se contenta com o estritamente necessário.
[6] “Carne” é o termo usado por Epicuro (ele escreve “a voz da carne diz”) para designar o sujeito da dor e do prazer, isto é, o indivíduo. Nesse sentido, a carne não é uma parte anatômica do corpo, nem é separada da alma. Não há prazer e sofrimento sem que se tenha consciência e sem que esse estado de consciência se reproduza na “carne” (Hadot, 2010, p. 170-171).
[7] EPICURO. Física. Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva et. al. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 16.
[8] Ibidem, p. 17.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Não menos notável é a influência que sobre seu pensamento exerceu a filosofia de Schopenhauer. O pessimismo à moda schopenhaueriana instila-se nas páginas freudianas. Prova-o sua crença na impossibilidade de podermos experienciar uma felicidade positiva.
[12] Idem.
[13] Essa afinidade com o pensamento epicurista não deve obnubilar a presença de traços do modo de vida (sabedoria) estóico em seu pensamento. Dão testemunho da influência estóica sobre o pensamento de Schopenhauer, os fragmentos seguintes tomados, respectivamente, da Máxima 18 e da 19. Na máxima 18, lemos: “as coisas que dizem respeito ao nosso bem-estar devem ser enfrentadas somente com a capacidade de julgar que opera com conceitos e in abstracto, ou seja, a partir de uma reflexão fria e austera (...)” (p. 55). Na máxima 19, topa-se o seguinte: “Não permitir a manifestação de grande júbilo ou grande lamento com relação a algum acontecimnto, uma vez que a mutabilidade de todas as coisas pode transformá-lo de um instante para outro; em vez disso, usufruir sempre o presente da maneira mais serena possível: isso é sabedoria de vida” (p. 55 et.seq.)
[14] Máxima 36, p. 83.
[15] Ibidem, p. 84.
[16] Ibidem, p. 82.
[17] Ibidem, p. 85.
[18] Dessa miríade de vozes, entre as quais estão as dos cínicos, dos epicuristas, dos estóicos, Aristóteles é, sem dúvida, uma figura notável, cuja contribuição é evocada, várias vezes, por Schopenhauer no texto da Arte de Ser Feliz.
[19] Um epicurista não nos pede a abstenção dos prazeres, mas orienta-nos a fruir deles de modo moderado. Ademais, Schopenhauer não faz distinção entre os prazeres, tal como o exige a ética epicurista. A ataraxia não é um estado de abstenção de prazeres, mas a realização da forma de prazer mais pleno, qual seja, a da ausência de dor e perturbação.
[20] SCHOPENHAUER, Arthur. Op.cit., p. 85.
[21] Apesar de anacrônico, no contexto de nossa discussão, o conceito de corporeidade, tal como concebido por Merleau-Ponty (1999), parece servir bem para descrever o corpo no epicurismo, isto é, corpo como uma estrutura experiencial vivida, ou o corpo como constituído de estruturas físicas e experienciais vividas. “A corporeidade do vivido” indica que nossa relação com o mundo é primeira e fundamentalmente relação que se estabelece com o corpo, que, à luz dessa perspectiva, é um agregado de aspectos físicos, psicológicos e espirituais. O prazer e o sofrimento são, essencialmente, afecções que compreendem a estrutura experiencial do corpo.
[22] O problema com os prazeres cinéticos ou em movimento é que eles jamais se perfazem e sua busca depende da satisfação temporária de desejos que são, por natureza, insaciáveis. Por isso, embora possam ser bons em si mesmos, tais prazeres não garantem a ataraxia, estado permanente e feliz ao qual a ética epicurista pretende conduzir o homem. 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Quando meus olhos fitaram os seus...

                      



                                              Um olhar
           Texto escrito num dia qualquer do ano de 2011

Um olhar, apenas. Mas um olhar cobiçoso, sedutor. Um olhar demorado, se bem que desviado para uma folha de papel. Logo, ele tornava. E era eu o alvo desse olhar. Esse olhar mirava-me, admirava-me. E eu me sentia irresistivelmente atraído por esse olhar, e eu retribuía o olhar. Um momento trivial da vida. Mas raramente com lirismo percebido...
Hoje em dia, dispensam-se os olhares; parte-se logo para beijos e colisões de corpos. Flertar é comportamento antiquado. O pessoal hoje fica. Não é que esse olhar me revelasse as regiões abissais e inebriantes da paixão ou os jardins floridos do amor. Não. Foi apenas um olhar.
Claro que não me basta o manter-se no nível do invólucro, da superfície corpórea; é preciso atingir as profundezas da alma. Mas foi apenas um olhar. De qualquer modo, o caminho para a alma passa pelo corpo, pelos gestos, pela voz, pelo olhar, pelo comportamento.
Então, fiquemos apenas com o olhar. Nada mais. Ainda que um olhar instantâneo, se bem que eu tenha sido alvo dele em outra ocasião. Nada muito significativo. Mas ontem, não. Ontem, esse olhar ficou, por algum momento, estacionado no meu. Senti-me inundado dele. Minha reação? A típica: olhei timidamente entusiasmado. Minha timidez impedia-me de dar um passo adiante. Ousar. Eu sei... não sei como agir nessas circunstâncias. Só sei agir depois, quando converso. Até dizer a primeira palavra, fico como eu estava: parado, apenas retribuindo o olhar. E ela me olhava e eu a olhava, e desviava o olhar e eu fazia o mesmo; em certo momento, ela desviou o seu e o meu ficou à deriva, sem terra firme onde se ancorar. E eu ainda a olhava e pensava: “e se...
Por que escrever sobre esse olhar? É que alguns olhares passaram por mim ao longo dos anos e eu não os notei (não os desnudei). E quem poderia garantir que em um deles não estivesse a satisfação de prazeres delicados? E quem poderia negar que um deles pudesse reservar-me a inspiração para compor novas páginas?
 Colher o dia, colher um olhar. Inspirar-se, animar-se, viver o instante, mesmo que ele não revele mais do que ele mesmo: uma presença que vivemos. Aquele olhar só me revelava o instante, apenas o instante irreproduzível; nele, não havia o futuro, nem ideais, nem projeções de um amor venturoso, nem projetos. Não havia promessas de eternidade, de longevidade, de felicidade abundante. Nele a brevidade bastava e ela encerrava uma única palavra: reciprocidade. Nossos olhares eram recíprocos, mas descompromissados. Aquele olhar trazia inteiro o presente e deixava o futuro suspenso. Nele não havia o futuro, a não-consciência, o não-existente. Nele só havia a vida inteira, só havia a consciência cheia de si. Nele, apenas a existência e toda a sua força libidinal. Mas notem: não era o olhar libidinoso, era a existência (a minha; talvez, a dela) mesma que se manifestava libidinal, ou seja, com toda sua energia para abranger o ser.
Era chegado o tempo de eu fazer minha palestra. Tive de ir... E ela ficou ali... E também ficaram os olhares com as suas hipóteses, com as suas promessas virtuais, com as suas possibilidades... com eles ficaram as dúvidas, os possíveis e os prováveis... A gratuidade do encontro de nossos olhares não resistiu à urgência da rotina e se perdeu no Tempo...
Mas foi apenas um olhar.

(BAR)