terça-feira, 17 de março de 2015

"O que para o indivíduo é o sono, a morte é para a vontade como coisa em si" (Schopenhauer)

             

                      



            A indestrutibilidade do querer-viver
          A metafísica da morte segundo Schopenhauer


Não intento submeter a uma análise acurada a metafísica schopenhaueriana da morte. Por conseguinte, os problemas suscitados pela abordagem que Schopenhauer faz da morte no quadro de sua metafísica estão, forçosamente, fora do escopo desta exposição. Meu objetivo é, deveras, cerceado: estou interessado apenas em passar em revista, em linhas gerais, o tratamento dispensado por Schopenhaeur ao tema da morte à luz de sua metafísica, em cujo cerne está o conceito de Vontade.
Principio minhas considerações com o seguinte excerto que penso ser uma síntese da doutrina metafísica da morte, em Schopenhauer:

“O fim da pessoa é tão real quanto era o seu começo, e no mesmo sentido em que não éramos antes do nascimento, não seremos mais depois da morte. Entretanto, a morte não pode suprimir aquilo que foi posto pelo nascimento, ela não pode arrebatar, portanto, aquilo pelo que, antes de tudo, o nascimento foi possível. Nesse sentido, nascido e desnacido é uma bela expressão. Ora, todo conhecimento empírico não fornece mais que meros fenômenos: só estes são, por isso, atingido pelos acidentes temporais do nascimento e da morte, mas não é atingido aquilo que aparece neles, o ser-em-si. Para este, a oposição criada pelo cérebro entre o nascimento e a morte não existe: ela não tem mais sentido, nenhuma significação”. (OMVR, p. 59, ênfase minha).


Detenho-me a analisar o trecho, por etapas. Tome-se, então, a primeira parte:

“O fim da pessoa é tão real quanto era o seu começo, e no mesmo sentido em que não éramos antes do nascimento, não seremos mais depois da morte.”

Nesse primeiro momento, Schopenhauer reconhece como certa a morte da pessoa e igualmente certo o fato de que sua existência transcorre entre dois “nadas”: uma infinidade de tempo precedeu ao aparecimento da pessoa (ou seja, ao seu nascimento), e outra infinidade de tempo se seguirá à sua morte. A essa verdade, Schopenhauer contrapõe outra pretensa verdade. Considerando-se o que se segue,


“Entretanto, a morte não pode suprimir aquilo que foi posto pelo nascimento, ela não pode arrebatar, portanto, aquilo pelo que, antes de tudo, o nascimento foi possível.”




é necessário esclarecer o que foi posto pelo nascimento. Cada ser vivo encerra em si um querer-viver. Ao nascer, cada ser traz em si esse querer-viver. É esse querer-viver que é posto pelo nascimento. Esse querer-viver não é aniquilado pela morte. Esse querer-viver é a coisa-em-si, a expressão da própria Vontade. A Vontade é a condição de possibilidade para o próprio nascimento. Em tempo, vou elucidar o que é a Vontade, para Schopenhauer. Prossigamos, considerando o próximo fragmento:


“Ora, todo conhecimento empírico não fornece mais que meros fenômenos: só estes são, por isso, atingido pelos acidentes temporais do nascimento e da morte, mas não é atingido aquilo que aparece neles, o ser-em-si. Para este, a oposição criada pelo cérebro entre o nascimento e a morte não existe: ela não tem mais sentido, nenhuma significação”.


Schopenhauer segue Kant, ao sustentar que ao conhecimento só são dados os fenômenos e não a coisa-em-si. O nascimento e a morte recobrem apenas os fenômenos, mas jamais o ser-em-si. O ser-em-si jamais é atingido pelo nascimento e pela morte.
O que é a Vontade, pois? Em primeiro lugar, não é a vontade individual. A Vontade, em Schopenhauer, é um princípio metafísico. A Vontade é a coisa-em-si, é um princípio indestrutível; é o fundo sobre o qual repousa o corpo e junto deste a consciência (a consciência não existe sem o corpo). Esse princípio, a Vontade ou a coisa-em-si, se manifesta à consciência como vontade, mas o conhecimento não pode ir além da manifestação da vontade, de modo que a vontade em sua essência íntima permanece desconhecida. Acrescente-se que a Vontade é uma vontade cega, é inconsciente, uma simples tendência. E o mundo é a objetivação da Vontade. A Vontade – enfatize-se – é a coisa-em-si, é a substância do fenômeno. O homem é o fenômeno mais perfeito da Vontade.
Essa Vontade não se extingue com a morte e, na medida em que ela produz o corpo, que é imagem da vontade, ela representa no homem o que nele há de imperecível. Portanto, o que morre é o corpo, a consciência, o intelecto; em suma, a individualidade. Mas a vontade de vida (o querer-viver) que existe no indivíduo, e também no gênero, é indestrutível. Por isso, Schopenhauer pode corroborar o que observou Spinoza: “nos sentimos e nos experienciamos como eternos”.
Schopenhauer afirma terem errado os filósofos que viram no intelecto o princípio metafísico, indestrutível e eterno do homem. Esse princípio está exclusivamente na vontade, que é inteiramente diferente do intelecto. O próprio Schopenhauer advertiu seu leitor de que o cerne de sua doutrina consiste na diferenciação entre intelecto e vontade. A vontade é unicamente primitiva. Acompanhemos Schopenhauer no seguinte passo:

“Sendo a vontade a coisa-em-si, a substância, a essência do mundo; e a vida, o mundo visível, o fenômeno, não sendo mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista em nós, não devemos preocuparmo-nos com nossa existência nem mesmo diante da morte” (p. 32)


Ponderemos sobre esse trecho. A Vontade, diz Schopenhauer, é a coisa-em-si ou a essência do mundo. A vida, o mundo acessível à experiência sensível, o fenômeno são espelhos da Vontade. São objetivação da Vontade. A vida se sustenta num querer-viver, que é a manifestação da Vontade em cada ser vivo.
A esta altura, gostaria de ressaltar a influência do bramanismo e do budismo no pensamento schopenhaueriano. Por um lado, em consonância com essas duas sabedorias orientais, Schopenhauer argumenta que o ser mesmo do homem é indestrutível e indissociável da totalidade do mundo. Por outro lado, admite ele que precedeu ao nascimento uma existência que se prolonga após a morte. Não há, portanto, um começo e um fim para o ser em si do homem. O meu ser verdadeiro é indestrutível; ele não se identifica com o meu eu, que é temporário e perecível. Nosso ser verdadeiro, dirá Schopenhauer, não é atingido pela morte, está a salvo da morte.
Na esteira do platonismo, Schopenhauer distingue entre o mundo dos fenômenos, com suas formas, que são o tempo e o espaço, as quais são princípio de individuação, e o mundo das coisas em si – mundo independente daquelas formas. O tempo e o espaço são princípio de individuação, porque, seguindo de perto Kant, Schopenhauer nega-lhes uma existência absoluta. Schopenhauer os pensa como formas do conhecimento que temos de nossa existência, de nossa natureza e de todas as coisas.
Com base na distinção entre o mundo dos fenômenos e o mundo das coisas em si, Schopenhauer argumenta que a morte só é o destino do indivíduo humano quando se considera o mundo fenomênico. Nesse mundo, o indivíduo morre, mas o gênero humano permanece infinitamente. Por outro lado, no mundo das coisas em si, a diferença entre o indivíduo e o gênero se esvaece, “e todos os dois são imediatamente uma só e única coisa”.
A vontade de vida existe tanto no indivíduo quanto no gênero, de sorte que a permanência da espécie espelha a indestrutibilidade do indivíduo. A morte, sustenta Schopenhauer, jamais atinge o indivíduo em seu querer-viver, que é o íntimo do seu ser. Somente o corpo, junto da consciência individual, os quais se ligam ao fenômeno, desaparece.
Parece, contudo, que a doutrina de Schopenhauer falha na tentativa de oferecer uma consolação filosófica em face do medo que o homem tem da morte. Ela parece falhar porquanto ignora o valor atribuído pelo homem, um animal metafísico, a sua individualidade. Ao homem não parece contentar a ideia de que apenas seu ser verdadeiro permanecerá após a morte quando o que se dissipará é sua individualidade que lhe é tão cara.
Para encerrar, é preciso reconhecer que a capacidade de reflexão, o advento da razão se fizeram acompanhar da necessidade metafísica, do questionamento do homem sobre a existência de todas as coisas e sobre sua própria existência. A morte, numa conexão necessária com a razão, acarretou o surgimento da religião e da filosofia, implícita aí a possibilidade tanto de cegueira quanto de lucidez. Toda uma tradição sapiencial mostra que não é da razão que decorre o medo da morte; pelo contrário, pelo bom uso da razão, o homem pode libertar-se do medo da morte. Esse medo da morte encontra sua origem em outro lugar. Devemos reconhecê-la na dimensão imortal de nosso ser (no querer-viver). De fato, o apego à vida decorre de um querer cego, do nosso ser mais profundo. Por conseguinte, é a dimensão imortal de nosso ser que torna a morte temível, e é justamente a dimensão mortal (intelecto) que faz com que não a temamos.



quinta-feira, 12 de março de 2015

A marcação de plural no sintagma nominal - "Olha os caderno novo que eu ganhei"

                
                                   


                          Um caso de variação linguística
                      A marcação de plural no sintagma nominal


“A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”

(Maurizio Gnerre)


O tema deste texto recobre um fenômeno linguístico do qual se ocupa, com especial interesse, a sociolinguística. Tenciono dar a saber e discutir um caso de variação linguística a partir da análise da manifestação de concordância no interior do sintagma nominal.
Inicialmente, contudo, considerarei alguns conceitos sociolinguísticos pressupostos pela análise. Antes de apresentá-los, refiro um passo do linguista Marcos Bagno (2011), com o qual, na sua Gramática Pedagógica do Portuguêsnos adverte que a reação à mudança linguística é uma característica comum a todas as culturas humanas.


“A reação à mudança linguística é um traço universal das culturas humanas. A língua está de tal forma entranhada em cada um de nós que imaginar que ela um dia deixará de ser o que é se revela uma ideia insuportável, uma noção capaz de causar, em muitas pessoas, mesmo que inconscientemente, um medo quase semelhante ao medo de morrer. Porque a mudança da língua é, de fato, a morte da língua tal como uma geração de falantes a conhece (muito embora a língua esteja também, a todo instante, além de morrendo, renascendo) (...)”. (Bagno, 2011, p. 116)


Malgrado o exagero com que chega a comparar o medo da morte com o medo de uma suposta depravação da língua, Bagno permite-nos dizer que, se a reação à mudança linguística é um fato universal atestado em todas as sociedades, a variação e a mudança linguísticas também o são. Nenhuma língua natural permanece inalterável ao longo do tempo. Todas as línguas do mundo são perpassadas, essencialmente, pela diversidade de usos. Variação e mudança são fenômenos inerentes à realidade linguística. As línguas são dinâmicas, porque dinâmicas são as sociedades em que elas são usadas; as línguas variam e mudam, porque também variam e mudam as sociedades das quais aquelas são a base fundamental. A mesma ideia pode expressar-se na observação de que as línguas são fenômenos históricos, instituições culturais. Ora, nem a história, nem as culturas humanas permanecem inalteráveis. As línguas, portanto, não só acompanham as transformações histórico-culturais (também sociais, políticas, econômicas...), como também as expressam.
sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e se ocupa com o uso social da língua no interior das comunidades de fala. A sociolinguística concentra sua atenção na correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais que influenciam o uso da língua. Ela se situa no espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, procurando dar conta, de modo especial, das ocorrências linguísticas concretas que comportam um caráter heterogêneo.



1. A noção de “erro” linguístico



Do ponto de vista sociolingüístico, o que, vulgarmente, se chama de “erro linguístico” baseia-se numa avaliação negativa que, não sendo de ordem linguística, é estritamente calcada sobre o valor social atribuído ao falante, considerando sua classe socioeconômica, seu grau de escolarização, seus antecedentes geográficos, sua maior ou menor participação nas esferas de poder, seu sexo, sua cor de pele e outros preconceitos culturais e socioeconômicos.
O suposto “erro” linguístico desencadeia, infelizmente, uma série de avaliações negativas sobre o falante e supõe uma cadeia de causas e consequências que, por ser de natureza ideológica, é, necessariamente, falsa: quem fala errado, pensa errado, age errado, não é estimável e confiável, etc.
Uma lição elementar da sociolinguística é que não há variação linguística sem alguma avaliação social. Numa sociedade tão fortemente hierarquizada como a sociedade brasileira, todos os valores culturais e bens simbólicos se situam também em escalas hierárquicas que se organizam segundo valorações como “bom”, “ruim”, “certo”, “errado”, “feio”, “bonito”, etc. A língua é o bem simbólico mais importante de uma sociedade, e seu uso, portanto, é submetido àquelas escalas hierárquicas de valoração.
Não menos importante é levar em consideração o fato de que, entre as formas de uso valoradas como “erradas”, há formas que se consideram mais “erradas” do que outras. A medida da gravidade desses “erros” é inversamente proporcional à escala de prestígio social: quanto menos prestigiado socialmente é o usuário da língua; quanto menor é seu nível socioeconômico, maior é a gravidade atribuída aos supostos “erros” de sua fala.
Não custa insistir em que as valorações positivas ou negativas que recaem sobre os usos linguísticos assentam em pressupostos, orientados ideologicamente, sobre a origem sócio-cultural e econômica dos falantes. Ademais, a classificação das variedades linguísticas em “certas” e “erradas” se faz com base em critérios políticos e ideológicos. Quem detém o poder dispõe das condições pelas quais pode impor (e impõe) a sua variedade linguística como aquela pela qual se deve pautar o comportamento linguístico de todos os membros da sociedade.
Como toda seleção implica exclusão, todas as demais variedades linguísticas dos grupos dominados serão tomadas como variedades “erradas”, “imperfeitas”, “inadequadas” e serão designadas com termos que carreiam grande teor de pejoratividade.
Destarte, quando os linguistas observam que não há usos linguísticos “certos” e “errados” em si, estão chamando a atenção para o fato de que “certo” e “errado” não são defeitos das formas linguísticas, mas efeitos da valoração socioideológica a que não só elas são submetidas, como também, mormente, seus usuários. Quem discrimina o modo de falar de alguém está discriminando, na realidade, a pessoa que fala e, por extensão, a classe social a que ela pertence. Por isso, o preconceito linguístico é, fundamentalmente, um preconceito social.




1.1. Heterogeneidade e unidade na língua


Todas as sociedades são constituídas por segmentos que atuam como forças em direção à mudança ou em direção à conservação do status quo. Os segmentos dominantes social, política, econômica e ideologicamente adotam a segunda direção: estão interessados na conservação do status quo. A língua, na medida em que é uma realidade social, encontra-se, permanentemente, suscetível à pressão dessas duas forças: uma que impulsiona a variação e a mudança; outra que pressiona no sentido de manter a unidade, refreando a variação. Há, portanto, uma tensão constante e interação entre essas duas forças antagônicas, donde resulta que as línguas exibem inovações, conservando, contudo, sua coesão interna.
A noção de comunidade linguística é dependente da convergência de padrões estruturais e estilísticos. Portanto, a comunidade linguística deve sua existência ao impulso que conduz à manutenção da unidade.
A variação ocorre em consonância com as propriedades sistêmicas da língua e se efetua porque é contextualizada e regular. Todas as línguas mantêm-se numa espécie de equilíbrio instável, porque, de um lado, exibem, fundamentalmente, uma pluralidade de usos, uma diversidade de formas de expressão que se realizam segundo padrões regulares; de outro lado, conservam padrões, que, por não variarem, se dizem categóricos, e que contribuem para produzir a coesão interna do sistema linguístico, sem a qual não haveria possibilidade de intercomunicação entre os falantes de comunidades de fala diferentes. Além disso, insisto em que a variação é ordenada, ela se submete a regras previstas pela gramática da língua.




1.2. Sistematicidade, legitimidade e estigmatização


Do ponto de vista da ciência linguística, todos os usos linguísticos são legítimos e se prestam à previsibilidade, em que pese às variações estilísticas.
É importante reconhecer que todos os padrões linguísticos se prestam à avaliação social, que pode ser positiva ou negativa, o que os torna indicadores do tipo de inserção social do falante. As formas que recebem maior valor social são aquelas que se fazem acompanhar de um alto grau de monitoramento e de letramento. Às formas de maior prestígio se associam maior sensibilidade, percepção e planejamento linguístico.
Não se ignore o fato de que a diversidade linguística se distribui num continuum. Assim, os falantes adquirem primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e gradativo, vão apropriando-se de registros mais formais, que se aproximam das variedades de maior prestígio.
Todas as línguas, portanto, apresentam variantes mais prestigiadas do que outras. E entre as formas desprestigiadas, algumas são mais estigmatizadas do que outras, em virtude da classe social de seus usuários, os quais já são alvo de estigmatização em termos socioeconômicos e culturais.



1.3. Variação linguística: variantes e variáveis

A variação linguística, conforme deve ter ficado claro, é um fenômeno universal. A variação se manifesta por meio de formas linguísticas alternativas denominadas de variantes.
Variantes são, portanto, grosso modo, as diversas formas alternativas de se dizer a mesma coisa. Essas formas alternativas constituem um fenômeno variável.
Existem variáveis dependentes sempre que o uso das variantes for influenciado por variáveis, quer de natureza interna à língua, quer de natureza social (externa). Essas variáveis ou grupo de fatores que podem ser de natureza estrutural (interna à língua) ou de natureza social chamam-se variáveis independentes. Elas exercem pressão sobre os usos acarretando o aumento ou a diminuição de ocorrência das variantes.
Cumpre enfatizar que as variáveis recobrem tanto o fenômeno em variação quanto o grupo de fatores. Esses grupos de fatores são parâmetros reguladores dos fenômenos variáveis e condicionam positiva ou negativamente o uso das formas variantes.



2. A marcação de plural no sintagma nominal

2.1. O Sintagma nominal: definição e estrutura



sintagma nominal  é um constituinte oracional formado, necessariamente, de um substantivo ou palavra suscetível de ocupar a posição própria do substantivo, que é a de núcleo do sintagma nominal.  Doravante, usarei a abreviação SN para representar o sintagma nominal. Todo SN é, portanto, uma unidade significativa da oração e terá como núcleo uma palavra de natureza morfológica substantiva. O SN pode constituir-se de seu núcleo apenas, ou pode, além do núcleo, encerrar outras unidades articuladas a ele. Vejam-se dois exemplos que ilustram as duas formas de estruturação do SN: em (1), com apenas o núcleo; em (2), com elementos articulados ao núcleo.

(1) São Paulo é a maior cidade brasileira.
       SN
     núcleo


(2) Este meu anel de ouro.
            Núcleo

Em (2), toda a unidade “Este meu anel de ouro” corresponde ao sintagma nominal, cujo núcleo é “anel”. A esse núcleo, se acham articulados os elementos “este”, “meu” e “de ouro”. Em (1), a extensão do SN se reduz ao seu núcleo.

As unidades que se articulam ao núcleo do SN cumprem a função sintática de determinantes ou de modificadores. Os determinantes se dispõem à esquerda do núcleo; e os modificadores podem prender-se à esquerda (no caso dos adjetivos que admitem anteposição ao substantivo), mas, frequentemente, se articulam à direita do núcelo.
Considerem-se os exemplos abaixo (o asterisco marca a inaceitabilidade da construção e a interrogação a dúvida quanto à sua aceitabilidade):

(3) Este meu anel dourado
   * Este meu dourado anel

(4) Este excelente artigo histórico
  * Este excelente histórico artigo

(5) Os três meninos simpáticos
    Os três simpáticos meninos  (?)



Urge definir os determinantes e os predicadores. Começo por responder à questão: o que são determinantes? A função sintática dos determinantes é desempenhada por unidades que se articulam à esquerda do substantivo, quer para identificar sua referência tendo em vista a situação espaço-temporal, quer para fixar-lhe o estatuto informacional, quer ainda para delimitar seu número. O grupo dos determinantes abriga: os artigos (definidos e indefinidos), os pronomes possessivosdemonstrativosindefinidos e os numerais ordinais e cardinais. Nesse grupo, também devemos incluir o pronome relativo “cujo”, que não nos interessará na presente discussão.
A classe dos determinantes é sintático e semanticamente heterogênea. Veja-se, a título de exemplificação, o comportamento semântico-pragmático do artigo definido e do pronome demonstrativo, nos sintagmas nominais destacados, nas frases abaixo:



(6) Dois homens encapuzados roubaram uma joalheria, mas os bandidos foram presos assim que deixaram o local.

(7) Nunca mais vi aquela moça que conheci naquela festa.


Em (6), o sintagma “os bandidos” comporta uma informação já dada, ou seja, faz remissão ao segmento “dois homens encapuzados”, anteriormente expresso. O artigo definido cumpre aí a função de indicar que a informação veiculada no sintagma que introduz é já conhecida do interlocutor/leitor. Por ocasião da leitura, o leitor constrói um modelo textual, que é uma representação mental que toma forma com base no texto e que funciona como uma memória partilhada e publicamente alimentada pelo próprio texto. Assim, uma vez introduzido no modelo textual do leitor um referente (ainda não mencionado), este passa a ter o estatuto “ativo”, porque sob o foco da memória de trabalho, é o que sucede em (6). A introdução do referente “dois homens encapuzados” torna-o passível de reativação, situação que se dá com a introdução do sintagma encetado pelo artigo definido “os bandidos”. O primeiro referente introduzido passa a preencher um “nódulo” no modelo conceitual do mundo textual construído. Nesse sentido, o artigo definido, que preenche a função sintática de determinante do SN “os bandidos”, é índice de identificabilidade do referente, ou seja, ele marca o estatuto informacional do referente como “identificável” ou acessível no modelo textual. Esse estatuto é garantido pelo compartilhamento de conhecimentos entre o locutor e o seu interlocutor. Em suma, o artigo definido é usado, sistematicamente, em sintagmas nominais que fazem remissão anafórica, ou seja, que devem ser interpretados em dependência com algum segmento anteriormente expresso no texto. Esses sintagmas introduzidos por artigo definido comportam, então, informação velha ou dada (isto é, já conhecida, ou acessível a partir de um segmento precedente, ou mesmo inferível a partir dos contextos sociocognitivos partilhados).
Em (7), o demonstrativo “aquele” é um dêitico memorial ou recognitivo, visto que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a um tipo de conhecimento experiencial e socioculturalmente compartilhado (Roncarati, 2010, p. 65). Em outras palavras, o uso do demonstrativo recognitivo pressupõe a seguinte condição: o interlocutor deve compartilhar com o locutor algum tipo de conhecimento calcado na experiência que, em última instância, é de base sociocultural. A compreensão do sintagma encetado por esse demonstrativo depende de que o interlocutor possa acessar em sua memória o saber a respeito do referente categorizado.
Necessário será identificar as posições ocupadas pelos determinantes relativamente ao núcleo do SN. Como podem ocorrer mais de três elementos à esquerda do núcleo, a posição 1 será ocupado pelo elemento mais afastado do núcleo; e a posição quatro, pelo elemento mais próximo. As posições 2 e 3 seguem a ordem numérica. Assim, temos



(8) Todos os últimos bons alunos foram aprovados no vestibular.
     P1   P2   P3    P4




A identificação das posições será importante quando da investigação do fenômeno de concordância no interior do SN. Considere-se, agora, a função de modificador.
No interior do SN, o modificador é o adjetivo ou um substantivo que preencha a função do adjetivo. A função de predicador pode também ser desempenhada por um grupo formado de preposição (em geral, “de”) e substantivo. Esse grupo é um sintagma preposicional (SP) encaixado no SN. Chamamos modificadores, portanto, as unidades que, articuladas ao núcleo de um SN, lhe acrescentam um ingrediente semântico. Semanticamente, os modificadores qualificam ou classificam o referente designado pelo substantivo que preenche a posição de núcleo do SN. Seguem-se os exemplos abaixo, nos quais se destacaram as duas formas de manifestação do modificador nominal: em (9), na forma de adjetivo; em (10), na forma de SP (sintagma preposicional).



(9) O anel dourado.

(10) O seu trabalho de história.



2.2. A marcação do plural no SN

Principalmente a partir de 1980, foram produzidos muitos estudos sobre a concordância de número no SN. Esses estudos apontam uma significativa variedade de padrões de concordância, não só em função do diversificado número de unidades que podem preencher o sintagma nominal, como também em função de fatores linguísticos e societários condicionantes.
Com vistas a examinar a questão, vou-me ater apenas às três primeiras, se bem que dispensarei especial atenção à primeira e à segunda, dentre as cinco variáveis consideradas pelos estudos. Essas cinco variáveis são as que se demonstraram mais relevantes na marcação do plural no SN. Seguem-se as variáveis:

1) alterações morfofonológicas decorrentes do mecanismo de flexão;
2) estruturação do SN;
3) características dos falantes (sexo, idade, nível de escolarização, origem urbana ou rural);
4) tipos de registro (formal ou informal);
5) modalidade da língua (falada ou escrita).



2.3. Alterações morfofonológicas e estruturação do SN


A classe de palavra e sua posição na estrutura do SN são variáveis importantes para o estabelecimento de padrões de concordância nominal. Não menos importante para a compreensão do referido fenômeno é considerar o princípio de saliência fônica, que se caracteriza pela maior ou menor identidade entre as formas singular e plural nos vocábulos.
Com base no princípio de saliência fônica, observou-se que as formas menos marcadas fonologicamente, ou seja, aquelas em que a diferença fônica entre singular e plural repousa apenas na presença do morfema de número [s], seriam mais suscetíveis de não apresentar a marca de número. Por outro lado, as formas mais marcadas para o plural tenderiam a apresentar a ocorrência da marca de plural. Considerem-se os seguintes exemplos que ilustram essa condicionante fonológica para a marcação de plural no SN:

(11) Ela levou os menino pra escola.

(12) Desenhou uns corações no caderno.




Em (11) e (12), destacou-se em negrito o núcleo do SN. Em (11), a marca de plural foi cancelada no núcleo (aparecendo apenas no determinante), em virtude de a marcação de plural no substantivo “menino” ser menos saliente, ou seja, essa marcação se faz apenas com o acréscimo da desinência de número [s]. Nesse caso, a tendência é pluralizar apenas o determinante e deixar no singular o núcleo do SN. Em (12), tanto o determinante quanto o substantivo núcleo foram pluralizados, porque, nesse caso, há maior saliência fônica na marcação de plural no substantivo, dado o fato de formas terminadas em “ão”, muita vez, sofrerem uma mudança morfofonológica maior quando flexionadas para o plural. No caso da palavra “coração”, o plural modifica a configuração fonológica da última sílaba “-ção”, que passa para “-ções”. O princípio de saliência fônica mostra que, nesse caso, quando se marca o plural, o que se ouve é outra configuração fonêmica.
Outro princípio, igualmente relevante, que tem sido levado em consideração por diversos estudos é o do paralelismo formal. Reza esse princípio que marcas acarretam marcas, e ausência de marca (marca-zero) leva à ausência de marca.
Assim, estando presente o morfema de plural [s], ele poderia condicionar a presença dessa marca nos demais elementos do SN. Analogamente, a ausência da marca num elemento do SN acarretaria a ausência da marca nos demais elementos. Senão, vejamos:

(13) TodoS  oS meuS livroS são novos.
                   Sintagma nominal

(14) Comprei oS livro didático.



O exemplo (13) ilustra a situação em que a presença da desinência [s] em todos os determinantes acarreta a sua presença no núcleo do SN “livros”. Esse é o padrão de flexão adotado pelos falantes das variedades de prestígio da língua, nas quais a marcação de plural se faz por redundância: marca-se o plural em todos os determinantes passíveis de flexão, o que leva a necessidade de pluralizar também o núcleo do SN. No exemplo (14), entretanto, ainda que a marca de plural ocorre no determinante, ela é cancelada no núcleo, o que implica seu cancelamento no modificador também. Os falantes que seguem esse padrão de concordância nominal não sentem a necessidade de operar com o princípio de redundância; eles apenas sinalizam que o SN está no plural marcando com [s] o primeiro elemento do sintagma. É importante dizer que eles não erram; apenas seguem outra regra ou padrão.
Conquanto variáveis como tonicidade do item no singularcontexto fonológico subsequente possam ser consideradas na compreensão da variabilidade dos padrões de concordância no SN, as que foram anteriormente mencionadas têm se demonstrado mais relevantes.
Voltarei a considerar aspectos estruturais do SN que se apresentam como fatores importantes na marcação de plural em seu interior. Agora, no entanto, refiro o resultado de um estudo que levou em conta variáveis sociais.





2.4. Variáveis sociais

Quando se consideram as variáveis sociais, é notável que, no Brasil, sobressaia o nível de escolaridade do falante, que é um marcador de sua classe social.
Almeida (1997) e Brandão & Almeida (1999), desenvolvendo pesquisas que coletavam registros de fala de indivíduos analfabetos com baixo nível de escolaridade (tendo no máximo a quarta série do ensino fundamental), em zonas rurais do Rio de Janeiro, constataram que chega a 87% a frequência com que se dá o cancelamento da marca de plural no núcleo do SN. Por outro lado, o cancelamento dessa marca nos determinantes e modificadores é menor: 4% naqueles; 21% nestes.
É necessário certo cuidado na interpretação desses dados, pois que uma série de condicionamentos se entrecruzam, do que resultam diferentes combinações de itens marcados/ não-marcados quanto ao número.

2.5. Revisitando aspectos estruturais

Volvendo olhares para a estruturação do SN novamente, é necessário considerar, em primeiro lugar, a complexidade da estruturação do SN, o qual pode se constituir de mais de três elementos suscetíveis de flexão, chegando a cinco, como se pode ver em (15):

(15) Todos os nossos últimos bons alunos ingressaram em universidades públicas.

No corpus de Almeida, figuram SNs com apenas dois elementos. Sendo estruturalmente mais simples, esses SNs ou apresentam todos os seus elementos flexionáveis com marca de plural, ou apenas o primeiro deles. Ressalte-se, todavia, que, uma vez ocorrendo o numeral no SN, é sistemático o cancelamento da marca de plural no núcleo. Os exemplos (16), (17) e (18), a seguir, ilustram casos de SN com um elemento apenas articulado ao núcleo ou com um numeral:

(16) As espadas são de ouro.

(17) A gente pesca em outraS lagoa.

(18) Ele tem três barco.

Os SNs que exibem mais de dois elementos, quer encerrem três, quer encerrem quatro, são, deveras, mais interessantes. A variedade dos padrões demanda nossa atenção.
Atendo-me aos elementos que se topam à esquerda do núcleo, há que destacar os seguintes padrões de concordância nominal:

a) havendo um e apenas um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento recebe a marca de plural. O núcleo, por sua vez, pode recebê-la ou não.

(19) As espinhas miúdas.
(20) Uns barco novo.

(21) Aquelas onda perigosa.

É claro que (19) ilustra o padrão que governa a concordância nominal nas variedades de prestígio da língua. Nas variedades de menor prestígio, o padrão é outro: marca-se o plural apenas no determinante, deixando no singular o núcleo.

b) ocorrendo dois constituintes pré-nucleares flexionáveis, o que ocupa a posição 1 recebe a marca, e o que ocupa a posição 2 pode recebê-la ou não:

(22) Todos os prato
(23) Todos esses dia.
(24) As própria rede.

Nos três exemplos, o núcleo é mantido no singular. A despeito da variabilidade da macação de plural nos determinantes, via de regra, a marca de plural aparece sempre no primeiro elemento. Pode-se estipular uma regra que parece estar sendo seguida, que se formaliza como: havendo dois determinantes flexionáveis no SN, é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento. Note-se que a marca [s] pode ser cancelada no segundo elemento, como mostra o exemplo (24).

c) se o elemento pré-nuclerar se acha na posição 3, o cancelamento da marca é a norma.

(25) Os dois melhor mês.

Em (25), há três elementos antes do núcleo, e a regra parece prever o cancelamento da marca [s] apenas no terceiro elemento, o que ocupa a posição 3, a mais próxima do núcleo.

Quando se consideram os modificadores que se dispõem à direita do núcleo, ou seja, os elementos pós-nucleares, o padrão é o cancelamento da marca de número no modificador. Vejamos os exemplos abaixo:

(26) Uns barco novo.

(27) Umas nuvens cinzenta.

(28) Uns vinte ano passado.

Esses casos também ilustram a variabilidade comum à marcação de plural no interior do SN. Note-se que todos os determinantes aparecem no plural. Essa é uma regra que já vimos: havendo um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento é pluralizado. O núcleo, conforme vimos também, pode ou não receber a marca de plural: em (26) e (28), ele não apresenta a marca; apenas em (27), apresenta-a. Como, no entanto, estamos levando em consideração o que ocorre com o modificador, ou seja, com o adjetivo posposto ao núcleo do SN, inferimos daí que os falantes parecem estar seguindo um padrão bastante regular: o cancelamento sistemático da marca de plural no modificador pós-nuclear.
Cumpre ainda observar que a ocorrência de um numeral em qualquer das posições pré-nucleares é condição para o cancelamento de plural no elemento seguinte, conforme atestam os seguintes exemplos:


(29) Esses três tipo.

(30) Três outro garoto.

Outros estudos, levando em conta o cruzamento de variáveis tais como distribuição dos constituintes do SN e o tipo de marcas precedentes, atestaram que os elementos pré-nucleares tendem a ser atualizados com a marca de número, e os constituintes nucleares e pós-nucleares tendem a não apresentar a marca, muitas vezes, de modo categórico e independentemente de haver ou não marcas formais e/ou semânticas anteriormente enunciadas.
Considerando-se tão-só a distribuição dos constituintes, isto é, a ordem em que ocorrem, o cancelamento de marca verificou-s em 6,5% dos casos nos elementos pré-nucleares, 82% nos nucleares e 89% nos pós-nucleares.
Os casos visitados, nesta exposição, não esgotam a complexidade do fenômeno de concordância no SN. Outras estruturas oracionais, em que figuram SNs, como as construções predicativas e passivas com “ser” tiveram de ser colocadas fora do escopo de minhas preocupações, dadas as limitações de espaço. Não obstante, os casos examinados aqui revelam que o mecanismo de concordância nas variedades desprestigiadas da língua é extremamente complexo; é mais complexo do que o padrão seguido pelos falantes cultos, que tendem a estender a marca de plural a todos os elementos flexionáveis do SN.
Tendo em vista tudo que foi exposto, é importante frisar que os falantes que não seguem a marcação de plural por redundância, a que se verifica nas variedades formais da língua, não estão cometendo erros, mas seguindo outros padrões. Nas variedades desprestigiadas da língua, a operação de concordância depende não só da noção de conjunto extensiva ao SN, mas também da noção de subconjuntos que do SN se infere. Assim, ao conjunto de elementos que se acham à esquerda do núcleo, aplica-se, normalmente, a marca de plural; aos que se acha à direita, essa marca não é aplicada.










                    

terça-feira, 10 de março de 2015

"O fato de viver deve ser colocado como uma espécie de conhecimento" (Aristóteles)


                                 


                   A Substância para Aristóteles e Spinoza
                         Um roteiro para estudos


Intróito

A filosofia, por si mesma e considerada em sua estrutura, é o ser na sua verdade, o ser que se eleva à manifestação da verdade, o ser que é verdade e expressão. A verdade pertence ao ser por identidade; e por identidade também o discurso sobre a verdade do ser pertence ao ser. A filosofia é o ser que se expressa em sua verdade. Fica, assim, assentada a inseparabilidade e identidade entre a filosofia e o ser. A palavra metafísica expressa essa inseparabilidade ou identidade entre a filosofia e o ser. Em decorrência disso, a filosofia é original e fundamentalmente metafísica.

Em princípio, previno o leitor de que este estudo não contempla o cotejo da metafísica aristotélica com a metafísica spinozista no que elas têm de contribuição para pensar a questão da substância. Meu intento é mais modesto. Busco oferecer um itinerário que, elucidando o modo como esses dois pensadores se ocuparam da questão da substância, motive e oriente estudos que visem a oferecer análises comparativas, que tornem patentes os pontos de aproximação e distanciamento entre os dois pensamentos no enquadramento da questão da substância.
Apresso-me, então, em iniciar o trabalho.

1. A ciência metafísica

De Aristóteles ( 384- 322 a.C) herdamos a distinção das ciências em três grandes domínios: a) ciências teoréticas, que visam ao saber por si mesmo; b) ciências práticas, que buscam o saber por meio do qual se possa alcançar a perfeição moral; e c) ciências poiéticas, que têm em vista o saber cuja finalidade é produzir determinados objetos.
Aristóteles atribuiu mais dignidade e valor às primeiras, chamadas teoréticas. Essas ciências se constituem da metafísica, da física (em cujo âmbito se insere a psicologia) e da matemática. É consabido, todavia, que o termo metafísica não é criação aristotélica. Reza a tradição que o termo surge por ocasião da edição das obras de Aristóteles feita por Andônico de Rodes, no século I. a.C.
Aristóteles usava, normalmente, a expressão filosofia primeira ou mesmo teologia em contraste com a filosofia segunda ou física. A posteridade veio a consagrar o termo metafísica, por ser considerado mais significativo.
Consoante sugere a estrutura mórfica do vocábulo meta-física (‘para além da física’), a metafísica aristotélica se ocupa das realidades que estão acima das físicas, das realidades suprafísicas, ou transfísicas.


1.2. O domínio da metafísica

Pertencem ao âmbito da metafísica aristotélica quatro tipos de preocupações: a) a metafísica se ocupa das causas e dos princípios primeiros ou supremos; b) investiga o ser enquanto ser; c) indaga a substância; d) investiga a questão de Deus e a substância supra-sensível.
A investigação metafísica teve seus precursores. Antes de Aristóteles, toda a tradição que se estende de Tales de Mileto a Platão desenvolveu um pensamento filosófico com preocupações, em última instância, metafísicas. Todos os filósofos monistas da natureza – os pré-socráticos – estavam preocupados em determinar uma causa ou princípio primeiro (a arché); e para alguns deles, essa causa ou princípio era de ordem metafísica;  claramente, nada tinha de “físico” ou “material”.  Entre aqueles, Parmênides, por exemplo, identificou esse princípio com o ser, o puro ser, que é condição de possibilidade da existência dos entes e de suas determinações. Platão, por seu turno, desenvolveu uma ontologia das Ideias muito elaborada, chamando ao mundo das Ideias ou das Formas Perfeitas a verdadeira realidade.
Podemos, desde já, numa primeira aproximação relativamente à problemática sobre a qual estas reflexões pretendem lançar alguma luz, definir a ousía ou a  substância como o ser fundamental ou o ser verdadeiro. Todavia, essa definição de substância, que figura aqui para situar o leitor na problemática que constitui o escopo deste texto, pressupõe a superação do monismo eleático e o compromisso com a demonstração de que existem muitos seres, diversas formas e diversos gêneros de realidade. Uma breve digressão se faz aqui necessária. Por gênero entende-se o conceito que engloba outros conceitos, relativamente aos quais possui maior extensão; por espécie, ao contrário, entende-se o termo que relativamente ao gênero possui menor extensão e, consequentemente, maior compreensão.
Urge enfatizar que a investigação sobre as causas e princípios primeiros conduz, necessariamente, à determinação de Deus. Deus é, pois, a causa e o princípio primeiro, por excelência. Por isso, a pesquisa aitiológica, isto é, a das primeiras causas e princípios desemboca estruturalmente na teologia.
Para Aristóteles, a questão “o que é a substância?” implica a questão “que tipos de substâncias existem?”. Aristóteles estava preocupado em determinar se existem somente as substâncias sensíveis ou se também existem as supra-sensíveis ou divinas. É daí que se segue o problema teológico.
É necessário compreender por que Aristóteles usou o termo teologia como equivalente de metafísica. Ora, quando se consideram as três primeiras preocupações recobertas pelo âmbito da metafísica, não parece difícil inferir que elas encaminham, necessariamente, a investigação para a dimensão teológica. A pesquisa sobre Deus não constitui apenas um momento da pesquisa metafísica, mas é o momento essencial e definitivo. Se não houvesse uma substância supra-sensível, afirma Aristóteles, não existiria a metafísica.
Em suma, a metafísica é a ciência livre por excelência, porquanto encontra em si mesma o seu fim.


2. As quatro causas

Nesta seção, cumpre examinar quais são as causas primeiras de que se ocupa a metafísica.
Aristóteles afirmou que essas causas devem ser, necessariamente, finitas em número. Quanto ao mundo do devir, elas se reduzem a quatro causas: a) causa formal; b) causa material; c) causa eficiente; d) causa final. Vale notar que “causa” ou “princípio”, para Aristóteles, significa o que funda, o que condiciona, o que estrutura.
A causa formal se identifica com a essência (forma, em Aristóteles, é sinônimo de essência); a causa material é a matéria. Essas duas causas constituem todas as coisas. Ou seja, todas as coisas são constituídas de forma e matéria. As causas formal e material explicam as coisas sob o ponto de vista de sua estaticidade, mas não as explicam quando as consideramos dinamicamente. Essas causas não dão conta das questões “como nasceu?”, “quem a gerou?”, “por que se desenvolve e cresce?”. Por isso, a resposta a essas questões suscita a necessidade de recorrer à causa eficiente ou motora e à causa final, o telos.
Abaixo, apresenta-se, para cada uma das quatro causas, a sua respectiva definição:

1) causa formal: constitui a forma ou essência das coisas. Por exemplo, é a alma nos animais, a estrutura para os diferentes objetos de arte. Em linguagem, quando se fala na forma de uma sentença está-se referindo à sua estrutura interna, que resulta da articulação de suas unidades constitutivas.

2) causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Por exemplo, a matéria dos animais é a carne e os ossos; a matéria da esfera de vidro é o vidro, e assim por diante.

3) causa eficiente ou motora: é aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas. Os pais são a causa eficiente dos filhos. A vontade é a causa eficiente de várias ações humanas.

De passagem, noto que, por movimento, Aristóteles não entendia apenas a transladação, mas também as transformações sofridas pelas coisas. O movimento era compreendido, portanto, também em termos de alteração, aumento e diminuição, geração e corrupção das coisas. Reale (2007) entende que a geração e a corrupção são recobertas pela categoria da mudança relativamente à substância. Mudança seria o termo genérico, e o movimento seria o termo para designar a alteração, o aumento/ diminuição e a translação. Sem pretender nos deter em controvérsia, com base no que nos ensina Chauí (2006, p.9), pode-se dizer que, para os gregos, entre os quais se situa, naturalmente, Aristóteles, movimento significa toda e qualquer alteração de uma realidade. Movimento envolve mudança, que pode ser qualitativa (uma semente que se torna árvore);  quantitativa (um corpo que aumenta de volume ou diminui); de lugar (a trajetória de uma flecha); ou em termos de geração ou corrupção (nascimento e perecimento das coisas e dos homens).

4) causa final: constitui o fim ou o escopo das coisas e das ações; é aquilo em função do qual uma coisa é ou advém. É o bem de cada coisa.

O ser e o devir das coisas exigem, em geral, essas quatro causas. Essas causas são imediatas; mas, além delas, são necessárias as causas ulteriores que se encontram no movimento dos céus, e a causa suprema do Primeiro Motor Imóvel.


3. Os múltiplos sentidos do ser

“O ser se diz em múltiplos sentidos”, escreveu Aristóteles. Sabemos, com base no que foi exposto, que a metafísica se define, para Aristóteles, como a ciência do ser ou ainda do “ser enquanto ser”. Faz-se necessário compreender, doravante, o que é o ser e o que é “o ser enquanto ser” no contexto do pensamento aristotélico.

O que é, pois, o ser?

Essa questão nos conduz de volta a Parmênides, especificamente, e ao eleatismo, de modo geral. Parmênides via o ser como absolutamente idêntico a si mesmo. Do ser só se pode dizer que ele é. Por isso, o ser se definia de modo unívoco, ou seja, o ser se entendia num único sentido. A univocidade do ser implica também a sua unidade.
O eleatismo, pelo trabalho de Zenão, Melisso e a Escola de Mégara, consagrou-se como uma doutrina do Ser-Uno que compreendia a totalidade do real. A compreensão no Ser-Uno da totalidade da realidade acarretou a imobilização do Todo. Todo movimento estava, portanto, excluído do Ser.
Aristóteles, por sua vez, identificou o erro que se acha na raiz da doutrina eleática. A partir daí, ele formulou seu princípio que consiste na originária multiplicidade de sentidos do ser. Eis a base de toda a sua ontologia. O ser não tem um sentido unívoco, mas polívoco. Veja-se, então, como Aristóteles, caracteriza o ser:

a) o ser não pode ser entendido univocamente, à maneira dos eleatas. Também não pode ser entendido como gênero transcendente ou universal substancial, tal como o compreenderam os platônicos;

b) o ser expressa originariamente uma multiplicidade de significados;

c) o ser não é um gênero ou uma espécie. É um conceito transgenérico, além de trans-específico, vale dizer, é mais amplo e mais específico do que o gênero e a espécie;

d) o ser não deixa de ter uma unidade. Todavia, essa unidade não é nem de espécie nem de gênero. O ser exprime diversos significados – já o dissemos -, mas todos os significados estão em uma relação precisa com um princípio idêntico ou uma realidade idêntica. Assim, as diversas coisas das quais dizemos “são” exprimem sentidos diferentes de ser, mas ao mesmo tempo todas implicam uma referência a algo que é uno;

e) Finalmente, esse algo que é uno é a substância.

Daí se conclui que aquilo que unifica o ser é a substância. A unidade dos vários significados de ser decorre do fato de serem expressos em relação à substância.
A ontologia aristotélica, conquanto se ocupe do estabelecimento e distinção dos vários significados do ser, não se reduz à fenomenologia, visto que todos os diferentes significados do ser implicam a referência fundamental à substância.
Vamos, agora, esclarecer o significado da fórmula “ser enquanto ser”. Ela não significa, na interpretação de Reale (2007, p. 36), que se toma o ser puro abstrato, unívoco, o ser em geral. Ora, uma vez que Aristóteles não pensava o ser como uma espécie, tampouco como gênero, “ser enquanto ser” só pode expressar a própria multiplicidade de significados de ser e a relação que há entre eles e que faz com que cada um deles seja ser. “O ser enquanto ser” é a substância e tudo mais que, de modos múltiplos, se refere à substância.
Antes de atacarmos a questão da substância, que até o momento foi apenas esboçada, convém passar em revista a tábua aristotélica dos significados do ser e sua estrutura.


3.1. A tábua aristotélica dos significados do ser

O que me cumpre apresentar, doravante, é quantos e quais são os significados do ser, estruturados por Aristóteles em uma “tábua”. Atente-se, portanto, para o elenco dos significados do ser, que se elucidam abaixo:

1) o ser se diz no sentido acidental, isto é, como ser acidental ou casual. Por exemplo, quando dizemos “o homem é poeta”, o “ser poeta” exprime um puro acidente, um puro acontecer.

2) Opondo-se ao ser acidental, há o ser por si. Nesse caso, indica-se o que é por si, isto é, essencialmente.
A substância é um exemplo de ens per se, segundo Aristóteles. Mas, além desta, todas as categorias - a substância, a qualidade, a quantidade, a relação, o agir, a paixão ou o padecer, o onde e o quando – são consideradas ser por si.

3) o ser é o verdadeiro e se contrapõe ao não-ser, que é falso. Trata-se de um ser que podemos chamar de “lógico”. O ser verdadeiro indica o ser do juízo verdadeiro, ao passo que o não-ser como falso sinaliza o ser do juízo falso. Esse ser é puramente mental; portanto, só subsiste na razão.

4) Por fim, há também o significado de ser enquanto potência e ato.

Segundo Japiassú & Danilo (2008, p. 222), potência se define em oposição recíproca a ato. A potência é o estado virtual de ser. O ato, por seu turno, é o fato de ser plenamente realizado. Assim, um ser em ato é plenamente realizado; por outro lado, um ser em potência encontra-se em estado de devir, de possibilidade de realizar-se, em estado de potencialidade. Por exemplo, a planta é o ato da semente (a semente que se realizou); por seu turno, a semente indica que a planta está em potência, porque, enquanto semente, ela, a planta, ainda não se realizou.
Vejamos mais um exemplo. Quem vê é tanto quem pode ver, quem tem a potência para ver, ou seja, a capacidade de ver, embora possa estar momentaneamente com os olhos fechados, quanto quem vê em ato,  quem realiza a capacidade da visão. É preciso assinalar que, segundo Aristóteles, o ser segundo a potência e o ser segundo o ato é extensivo a todos os significados de ser, já contemplados. Pode-se, assim, haver um ser acidental em potência ou em ato; um ser de um juízo verdadeiro ou falso em potência ou em ato, e assim por diante.
Resumidamente, são os seguintes os significados de ser, ordenados do mais forte ao mais fraco:

1) ser segundo as diferentes figuras de categoria;

2) ser segundo o ato e a potência;

3) ser como verdadeiro e falso;

4) ser como acidente ou ser fortuito.

Há que distinguir também os significados do não-ser, que são três:

1) não-ser segundo as diferentes figuras de categorias;

2) não-ser como potência;

3) não-ser como falso.

O ser acidental não apresenta um correlato não-ser, dado que, segundo Aristóteles, é por si “algo próximo ao não-ser” (Metafísica, E2, 1026 b21).
Totalizam dez as figuras de categorias propostas por Aristóteles. Elas não apresentam significados idênticos de ser, mas veiculam significados diferentes de ser.


3.2. As figuras de categorias

Segundo Aristóteles, as figuras de categorias (ou simplesmente categorias) se dizem ser não em sentido unívoco. No entanto, seus múltiplos significados supõem a referência a uma única e mesma coisa. Essa única e mesma coisa, a última realidade, é a substância.
Todavia, a questão sobre o que são as figuras de categorias continua em aberto. É necessário, portanto, esclarecê-la. Para tanto, retome-se a ideia de que o ser se diz em múltiplos sentidos. São múltiplos os significados de ser. A diversidade do significados de ser, no entanto, funda-se numa unidade.
As categorias também precisam apoiar-se sobre uma unidade, a despeito de serem diversos os seus significados, pois, senão, como poderiam reunir-se num único grupo? O que torna possível inseri-las num único grupo é o fato de elas apresentarem os significados primeiros e fundamentais do ser. Elas representam os significados nos quais se divide originalmente o ser; são elas as supremas divisões do ser. Aristóteles dirá que são os supremos gêneros do ser.
A verdade, no entanto, é que permanece insolúvel o problema que consiste em saber como Aristóteles chegou até as categorias e a sua tábua. É provável que o processo de dedução através do qual ele pôde propô-las tenha se servido das pesquisas lógicas, linguísticas e, sobretudo, da análise fenomenológica e ontológica. Mas esta é uma questão que não nos ocupará aqui.
Segue-se, pois, a tábua das categorias:

1.     Substância ou essência
2.     Qualidade
3.     Quantidade
4.     Relação
5.     Ação ou agir
6.     Paixão ou padecer
7.     Lugar ou onde
8.     Quando ou tempo
9.     Ter
10.     jazer

Excederia os limites desta exposição o pretender esclarecê-las uma a uma. Será bastante pontuar que todos os significados do ser pressupõem o ser das categorias. Assim, por exemplo, o ato e a potência assumem tantos significados diferentes quantos forem as categorias. Disso resulta que há uma forma de ser em ato e uma forma de ser em potência segundo a substância; uma forma de ser em ato e uma forma de ser em potência, segundo a qualidade, e assim sucessivamente.
Não menos importante é observar que as várias categorias não se equiparam em nível. Há uma diferença radical entre a substância e as demais categorias. Todos os significados de ser pressupõem o ser das categorias; e o ser das categorias depende completamente da primeira categoria, a saber, a da substância.
Está pavimentado, pois, o terreno em que podemos situar e explorar o problema, complexo, da substância. Passarei a tratar dele na próxima seção.


4. O problema da substância

Com vistas a lograr um entendimento o mais satisfatório possível da questão dos significados da substância na metafísica aristotélica, convém começar recuperando o que os seus predecessores disseram a respeito dela. Alguns viram a matéria sensível como a única substância. Platão, a seu turno, viu nos entes supra-sensíveis a verdadeira substância. O senso comum, em contrapartida, identificou a substância com as coisas concretas.
Aristóteles se debruçou sobre a questão com um propósito bem claro. Para ele, tratava-se de determinar que substâncias existem. Existiriam somente as sensíveis, como pretendia a solução dos naturalistas? Ou também existiriam as supra-sensíveis, como pretendiam os platônicos? É esta a questão última da metafísica aristotélica. É esta a questão por excelência que ocupou o Estagirita. Ele precisou empreender um retorno a Platão com vistas a decidir da validade ou não da doutrina dos Princípios e da teoria das Ideias.
Entanto, de imediato, o problema que ocupou Aristóteles era o da substância em geral. Que é a substância em geral? – esta é a questão que está na raiz de sua usiologia. Seria a matéria? Seria a forma? Seria o sínolo? (o sínolo é o composto de matéria e de forma).
Fique claro que só é possível determinar se só existe o sensível, ou se, além deste, existe o supra-sensível, depois que se resolver a questão sobre o que é a ousía em geral. E a razão disso é a seguinte. Se o exame encaminhasse a conclusão de que a ousía só é a matéria ou o sínolo de matéria e forma, seguir-se-ia daí que a questão da substância supra-sensível se esvaeceria. Mas, se a conclusão a que se chegasse fosse a de que a ousía é uma coisa diversa da matéria, então a questão do supra-sensível se imporia necessariamente.
Para tratar da substância em geral, Aristóteles partiu do que é incontestável: a existência das substâncias sensíveis. Estas são as únicas substâncias que conhecemos. Portanto, antes de decidir se existe uma substância supra-sensível e de tratar da substância em geral, era preciso tomar como ponto de partida a existência inegável das substâncias sensíveis.


4.1. A substância em geral

Tendo em vista tudo que se expôs acerca do sistema aristotélico, pode-se inferir que o Estagirita entendia a ousía segundo três significados diversos: 1) a forma; 2) a matéria e 3) o sínolo.
Cumpre-me dilucidar esses três significados à luz dos quais se compreende a substância em geral.

1) A substância é, num sentido, a forma.

A forma, para Aristóteles, não é extrínseca às coisas, não é a figura exterior das coisas. É a natureza íntima das coisas, é a essência íntima delas. Quando definimos as coisas, referimo-nos à sua forma ou essência, de modo que as coisas são cognoscíveis na sua essência.

2) A substância é, dentro de certos limites, a matéria de que se constituem as coisas.

É evidente que a matéria sem a forma seria indeterminada, mas, se a alma racional (a forma) não enformasse (dar forma a) um corpo (matéria), não haveria um homem. É nesse sentido que a matéria é também fundamental para a constituição das coisas e, portanto, é, num sentido restrito, a substância. Aristóteles dirá que a matéria só é substância num sentido impróprio.

3) O sínolo, que é o composto de forma e de matéria, é também substância

Ora, todas as coisas sensíveis podem ser consideradas na sua forma, na sua matéria, no seu todo. Mas é tão somente a título diverso que Aristóteles considera a forma, a matéria e o sínolo substância.

A substância em geral, para ele, deve apresentar as cinco características definidoras reunidas a seguir:

1ª) A substância não é inerente a outra coisa e não se predica de outra coisa, mas é substrato de inerência e de predicação de todos os outros modos de ser;

2ª) A substância só pode ser um ente que subsiste por si ou separadamente do resto e que é dotado de uma forma de subsistência autônoma;

3ª) Só é substância o que é algo determinado. Não é substância um atributo geral, nem algo universal ou abstrato;

4ª) A substância deve ser algo intrinsecamente unitário. Não deve ser constituída de partes, nem deve ser uma multiplicidade não-ordenada.

5ª) Finalmente, só é substância o que é em ato.

Um exame que pretendesse determinar qual dos três significados, anteriormente definidos, receberia a qualificação de substância, levar-nos-ia à conclusão de que a forma, e somente ela, é a substância por excelência.
Ora, a forma não deve tomar seu ser de outro e não se predica de outro (1). A forma pode separar-se, a princípio, da matéria, ou porque é ela que fornece seu ser à matéria, ou porque existem substâncias que apresentam apenas forma e não têm matéria (2). A forma é algo determinado e determinante (3). A forma é unidade por excelência; é princípio que confere unidade à matéria da qual é forma (4). Por fim, a forma é ato por excelência; é princípio que confere ato (5).
Para concluir, é importante ter em conta o fato de que a forma aristotélica não é o universal; não se confunde com as Formas platônicas que existiriam num mundo à parte do mundo das coisas sensíveis. A forma ou eidos é um princípio metafísico que estrutura a matéria. A substância é a forma pela qual a matéria recebe uma determinação, vale dizer, se torna uma determinada coisa.
É forçoso adiar para outra oportunidade a questão da substância supra-sensível. Aqui, limito-me a dizer que ela é a forma pura, privada absolutamente da matéria. A demonstração da existência da substância supra-sensível nos conduziria à postulação do Primeiro Motor Imóvel, ou seja, Deus – questão última para a qual encaminha a empresa metafísica, conforme dissemos no limiar deste texto. O Primeiro Motor Imóvel, ou Deus, é a substância imóvel, eterna e indivisível. É puro ato.

                 


O monismo substancialista de Spinoza

5. Só existe uma substância: Deus


Seu prenome, em português, é Bento, traduzido para o latim como Benedictus e para o hebraico como Baruch. Baruch Despinoza nasceu em Amsterdã, em 1632. Descendente de uma família judia, deixou Portugal, para fugir da Inquisição, chegando à Holanda, onde estudou filosofia judaica e teologia da Idade Média. Também se debruçou sobre os escritos da cabala e aprendeu grego e latim.
Spinoza se dedicou também a estudar a filosofia escolástica e se vinculou ao iluminismo então nascente na Holanda, razão por que se distanciou da ortodoxia judaica, tendo sido expulso da sinagoga em 1656.
Seu pensamento foi influenciado, de modo especial, pela filosofia de Descartes, passando por Malebranche.


5.1. O método geométrico

Não há dúvida de que não houve, na história da filosofia, nenhum outro pensador que elaborasse e desenvolvesse um método geométrico tão rigoroso quanto Spinoza. Nesse sentido, avulta a influência de Descartes. Spinoza adotou o princípio que Descartes postulou em um capítulo das Meditações. Descartes pretendia desenvolver seus pensamentos ordenando-os rigorosamente segundo o método geométrico. Em Descartes, no entanto, isso foi apenas esboçado; sucedeu diferente no caso de Spinoza. O método geométrico dirigiu a integralidade de seu sistema. Spinoza foi herdeiro do ideal científico da geometria euclidiana.
Esposando o método euclidiano, Spinoza procedeu  à sua investigação, estabelecendo primeiro as definições dos conceitos fundamentais, dos quais fez derivar axiomas; com base nestes, os demais conhecimentos foram deduzidos rigorosamente, tomando a forma de proposições. Esse rigor spinozista na condução de seu pensamento é patente em seu principal trabalho –Ética.
O rigor de seu método não deve, contudo, nos escusar de observar criticamente que Spinoza pressupôs decisões fundamentais objetivas. Ele não se apoiou na experiência, mas partiu unicamente do pensamento racional puro, cujo desenvolvimento se deu de intelecções básicas evidentes para outros conhecimentos. Seu sistema é sustentado pelo pressuposto de um paralelismo entre pensamento e ser. O ontologicamente primeiro é necessariamente o primeiro conhecido. O que tem origem no ser deve ser dedutível de princípios que se encontram em nosso pensamento. Segue-se disso que toda a realidade se submete à necessidade lógico-matemática. Assim também, tudo que é aparentemente contingente se determina pela necessidade a priori; por isso, é logicamente dedutível. O conhecimento lógico-necessário constitui o quadro no interior do qual o acontecimento real, determinado por uma pluralidade de relações causais, se interpreta como um domínio de relação necessariamente lógica entre fundamnto e consequência. A relação real de causa e efeito se converte, no domínio do pensamento, em relação lógica entre fundamento e consequência.
Em tal quadro de referências, não há lugar para o acontecimento contingente e muito menos para a ação livre. A tudo subjaz uma determinação necessária. Isso levará Spinoza a deduzir, necessariamente, da essência de Deus o mundo e tudo que nele acontece. Essa operação dedutiva é análoga à que se verifica quando da essência do triângulo segue-se a soma dos seus ângulos.


5.2. O monismo substancial

É conhecida a quem quer que esteja familiarizado com o pensamento de Spinoza a asserção dele segundo a qual só existe uma única substância. Essa única substância, ele chama de Deus ou a Natureza. Seu argumento destinado a sustentar esse monismo substancial, embora não tenha convencido alguns de seus comentadores, foi formalizado do seguinte modo:

(a)   Há uma substância que tem todos os atributos.
(b)  Não pode haver duas substâncias que tenham um atributo em comum.
(c)   Não pode haver uma substância desprovida de atributos.

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(d) Não pode haver duas substâncias.

Embora válido, porque a premissa (c) parece verdadeira, esse argumento apresenta problemas. O principal deles é que a premissa (a) depende de uma versão especial do “argumento ontológico” em favor da existência de Deus. Essa versão especial do argumento é tão frágil quanto qualquer uma das outras versões do paralogismo.
Spinoza inferiu a existência de Deus – que não é o Deus pessoal, onipotente e infinitamente bom da tradição judaico-cristã – do fato de que Deus é uma substância. Spinoza acolheu, sem reservas, a ideia, consagrada pela tradição, de que a substância é algo cuja existência não depende de outra coisa. Ela existe por si mesma. Isso se assemelha à ideia de causa sui,  causa de si, que Spinoza interpretou a seu modo, a fim de lhe garantir um sentido. Ele não encarou a causa sui como autocausação da substância, mas a interpretou num sentido mais lógico do que propriamente causal. Segundo ele, a existência da substância deve ser explicada pela natureza da própria substância. Por conseguinte, Spinoza endossou a conclusão de que a essência da substância implica a sua existência. Logo, Deus, que é a única substância, “(...) consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente” (Ética, 2011, pp. 11, p. 19).
A conveniência exigida pela natureza do suporte de publicação deste texto impõe-me que eu limite a discussão sobre o tratamento dispensado por Spinoza à questão da substância aos conceitos fundamentais que se topam na obra Ética. Uma investigação mais detida da filosofia spinozista deverá aguardar estudos ulteriores que a tornem possível.
No limiar de sua Ética, Spinoza define a causa sui como “aquilo cuja essência inclui em si a existência, ou aquilo cuja natureza somente pode ser pensada enquanto existente” (I, Def. 1, p. 13). Causa sui significa, para Spinoza, o princípio divino supremo. Esse conceito tem uma longa e diversificada história. No entanto, ele foi usado, na maioria das vezes, em relação não a Deus, mas à liberdade humana. A causa de si não é autocausação, para Spinoza, mas designa a existência necessária e autofundante do existente absoluto (Deus).
Partindo de Descartes, Spinoza apresentou outras definições de substância, dos seus atributos e dos modos; porém o fez de uma forma nova. Por substância, ele entendeu “o que é em si e concebido por si, aquilo cujo conceito não necessita do conceito de outra coisa do qual deva ser formado”. Lembremos, neste momento, que Descartes definiu a substância como “algo que não necessita de outra coisa para existir”. Spinoza, a seu turno, dá a essa definição cartesiana de substância uma forma lógica, em cuja base está pressuposto o paralelismo entre ser e pensamento. Se é “em si” deve necessariamente ser concebido a priori a partir de si. No curso de seu pensamento, Spinoza esclarecerá que compreende o “ser em si” apenas no sentido de uma substância absoluta e divina.
Por atributo, Spinoza entende aquilo que o entendimento apreende de uma substância enquanto é constituinte da essência dessa substância. O atributo é, pois, uma característica da essência da substância. Destarte, Deus, a única substância necessariamente existente, possui atributos infinitos, dos quais, porém, só conhecemos o pensamento (cogitatio) e a extensão (extensio).
Ao dizer de Deus que tem atributos infinitos, Spinoza não deixa de ser pouco claro. Se estava querendo dizer que Deus ter infinitos atributos implica que tem todos os atributos, tal implicação não se sustenta, quando se considera o significado que nós atribuímos, normalmente, ao vocábulo “infinito”. Essa é uma questão que não nos interessará na presente discussão. Fica apenas aqui sugerida como um ponto de controvérsia entre os pesquisadores.
Quando Spinoza diz que dos atributos infinitos da substância divina só conhecemos o pensamento e a extensão, ele torna patente a influência que sobre seu pensamento exerceu Descartes, particularmente no momento em que este propôs a dicotomia da res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisa extensa). Mas essas duas substâncias foram interpretadas, na metafísica de Spinoza, como atributos da única substância existente, que é Deus. Spinoza pensou como atributos de uma única substância o que, na doutrina cartesiana, eram duas substâncias distintas.
modo, por sua vez, é a afecção da substância; é aquilo que existe em um outro. É um acidente enquanto inerente à substância. O modo deve ser concebido a partir da substância, que é o ontologicamente primeiro. Só há uma substância, e todas as coisas finitas são meros modos, afecções acidentais da substância. Destarte, o ens in se (ser em si) é concebido como ens a se (ser por si), assim como o ens in alio (ser em outro) é concebido como ens ab alio (ser de outro).
Todo contingente não existe substancialmente, mas apenas como modo da substância divina. Todas as coisas, incluindo nós, seres humanos, são modos de expressão e de desdobramento (ou emanação) de Deus (da Natureza ou Substância) no domínio da extensão (coisas corpóreas) ou do pensamento (seres espirituais), mas todos encerrados na única substância, que é Deus.
A unidade e a singularidade da substância de Deus que tudo sustenta e de onde tudo emana é o pensamento básico de Spinoza. Monismo substancialista, portanto: só há uma substância infinita. Esta substância é Deus enquanto causa de si.
Levo a cabo este texto, sugerindo que a Ética de Spinoza é, em última instância, um trabalho de inspiração religiosa. Parece bastante para prová-lo seu apelo a que os esforços humanos devam ser orientados para a união com Deus – união que se expressa na fórmula amor Dei intellectualis (o amor intelectual a Deus). Esse amor intelectual a Deus é um contentamento com a ideia de Deus como causa (não se confunde com o amor cristão a Deus). O amor intelectual a Deus é eterno, assim como o é o próprio Deus.

Summum mentis bonum est cognitio Dei – “o bem supremo da alma é o conhecimento de Deus”. É também a virtude suprema. É preciso, no entanto, enfatizar a ideia de que Spinoza só conserva a transcendência de Deus na medida em que afirma a infinidade de seus atributos, a qual nos é incognoscível. Mas esse Deus, quando considerado nos termos dos dois atributos que nos são cognoscíveis – o pensamento e a extensão -, é um Deus imanente ao mundo; é, decerto, o fundamento substancial do mundo, e não um Criador livre, nem um Deus vivo e pessoal, como o da tradição judaico-cristã. O Deus spinozista, a substância infinita e única é tão-só o princípio de consequências matemáticas necessárias.