A questão de Deus: uma questão filosófica
Um manifesto contra a imperícia intelectual
“A metafísica é platônica de cima a baixo”
(Heidegger)
No bojo da tessitura argumentativa deste
texto, situam-se dois objetivos basilares que devem ser considerados
necessariamente articulados. O primeiro objetivo consiste em replicar aos que
supõem a questão de Deus deve ser colocada à margem dos debates filosóficos
“sérios” que essa questão perpassa, ainda que de modo extremamente complexo e
mesmo que seja para rejeitá-la enquanto tal, toda a história da filosofia. O
segundo objetivo toca à tentativa de demonstrar as significações atribuídas a
ela pelos filósofos gregos, em particular pelos filósofos pré-socráticos, por
Platão e Aristóteles. Como sejam muitos os filósofos chamados “pré-socráticos”
e como eu não possa dar a conhecer o que cada um deles nos legou a respeito da
questão de Deus, o tratamento dispensado por esses filósofos à questão de Deus
será apresentado de modo bastante esquemático. O esquematismo com que apresento
a problemática se faz necessário em função da natureza deste texto e do tempo
de que disponho para produzi-lo; mas esse esquematismo não acarretará qualquer
prejuízo para o plano global suposto pela produção deste trabalho, qual
seja, o de aclarar o lugar que a questão de Deus ocupa na história da
filosofia. Ademais, tal esquematismo não me impedirá de tomar como
arquétipo do pensamento grego arcaico sobre Deus a doutrina do apeíron de
Anaximandro. A escolha por apresentá-la reside nas consequências que acarretou
na história do pensamento e, de modo especial, ao desenvolvimento de uma
teologia negativa que influenciou significativamente o pensamento cristão.
A ideia de que a questão de Deus está na raiz das especulações
filosóficas, desenvolvidas ao longo de toda a sua história, é atestada na
apresentação do livro Os filósofos e a questão de Deus (2006),
onde lemos o que se segue:
“Este livro tem por objeto inaugurar uma
interrogação sobre o lugar da questão de Deus na história da filosofia. Não se
trata, portanto, de enfrentar diretamente a questão de Deus ou do divino, mas
de elucidar as significações que a filosofia, em sua história antiga, medieval,
moderna e contemporânea, atribui a essa questão. Essa interrogação não é
exclusivamente histórica, é também filosófica: desde sua origem, a
filosofia teve que determinar sua relação com um discurso sobre o divino, a
teologia. Durante todo um período de sua história, ela chegou a
considerar a teologia a parte mais elevada de seu saber. O exame da reação dos
filósofos à questão de Deus envolve, por conseguinte, a própria significação da
filosofia. Entre a afirmação e a negação de Deus, sua determinação como
transcendente ou como imanente, sua cognoscibilidade ou não, decide-se uma
orientação que abrange a gnosiologia e a ontologia, assim como a moral e a
política. Nossa época é a da morte filosófica de Deus? De qualquer modo, é
certo que essa questão, como quer que se responda a ela, é decisiva para toda a
filosofia contemporânea (grifo meu, p. 9).
O percurso de minha investigação compreende as seguintes etapas:
1) recuperarei a relação da filosofia, quando de seu surgimento, com a religião
e com o mito; 2) assinalarei o escopo da investigação pré-socrática e, de modo
esquemático, esclarecerei a compreensão pré-socrática de Deus; 3) darei a
conhecer como o divino ou Deus foi pensado por Platão e por Aristóteles.
Ao cabo de meu empreendimento analítico, espero tornar convincente
a tese de que constitui miopia filosófica pretender rechaçar a questão de Deus
do domínio da discussão filosófica.
1. A origem
da filosofia: sua relação com o mito e a religião
Se podemos hesitar entre acolher a posição de Hegel, segundo a
qual a filosofia grega surge em ruptura com a religião, e acolher a posição do
helenista Conford, para quem a ideia de ruptura com a religião não se sustenta,
não devemos hesitar sobre o fato de que ao desenvolvimento da filosofia
precederam as explicações mítico-religiosas sobre a origem e a ordem do mundo
com base na ação de um deus ou de um rei mago
Todavia, afinal, o que é o mito? Essa é a primeira questão que
gostaria de esclarecer, em linhas gerais. O mito é uma narrativa mágica ou
maravilhosa da origem das coisas a partir da ação ordenadora de um Deus. A
estrutura narrativa do mito encerra analogias, metáforas e parábolas. O mito
cumpre funções sociais. Ele busca resolver, no âmbito imaginário, os conflitos
e antagonismos que permeiam a estrutura social. A solução oferecida pelo mito é
sempre imaginária e atende à necessidade de preservar a vida em comum.
Por seu turno, a filosofia nasce como uma racionalização e
laicização da narrativa mítica. A filosofia retoma as questões colocadas pelo
mito e as retrabalha numa linguagem racional, isto é, confere uma explicação
racional à origem e à ordem do mundo. Destarte, a origem e a ordem do mundo
passam a ser encaradas como naturais. Se, no mito, elas eram seres divinos
(Urano, Gaia, Oceano); no tratamento filosófico, tornam-se realidades materiais
e naturais: o céu, a terra e o mar.
É preciso ter em mente, no entanto, que os elementos naturais
continuam a ser vistos como divinos, na filosofia nascente. Eles não são
antropomórficos, mas são divinos, na medida em que são superiores à natureza
gerada por eles e superiores aos homens que os conhecem através da razão. São,
ademais, divinos porque eternos ou imortais, e também porque dotados de poder
absoluto de gerar e regular toda a natureza.
Os mitos afirmam uma cosmogonia, a qual se esteia na questão: como
do caos surgiu o mundo ordenado, isto é, o cosmo? As cosmogonias procuram
responder a essa pergunta mediante a genealogia dos seres. Na cosmogonia, os
elementos naturais são personificados e a origem de todas as coisas e da ordem
do mundo se explica por referência às relações sexuais entre esses elementos
personificados. A cosmogonia se difere da teogonia, porque esta narra, através
das relações sexuais entre os deuses, o nascimento de todos os deuses, heróis,
homens e coisas do mundo natural.
Os primeiros filósofos não fazem cosmogonia, mas cosmologia.
Portanto, a filosofia nascente assume a forma de uma cosmologia. Os primeiros
filósofos despersonalizaram os elementos naturais, deixaram de pensá-los como
deuses individualizados, para tratá-los como forças impessoais, naturais,
ativas, animadas, imperecíveis, ainda que divinas. O que é, então, cosmologia?
Por cosmologia entende-se a explicação da ordem do mundo, do universo com base num
princípio originário determinante e racional, o qual é a origem e a causa das
coisas e de sua ordenação.
Para os antigos, essa ordem, ou seja, o cosmo, era chamado de
“divino”. Mas aqui cabe advertir que esse divino em nada se assemelha com o
Deus pessoal judaico-cristão. O divino se confunde com a própria ordem do
mundo, é imanente ao mundo, ao cosmo. Pela theoria, pode-se, como acreditavam
os estóicos, contemplar o que é divino no universo. Por isso, a tarefa primeira
da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais importante, mais
significativo.
Os antigos estavam convencidos de que, quando estudamos a física,
a astronomia, a biologia, nos damos conta de que a totalidade do universo é
“benfeita”. Assim, o cosmo é justo e belo. Dizer que a estrutura do cosmo é
divina significa dizer também que é perfeita e racional, ou seja, conforme o
lógos. O divino de que nos falam os estóicos, por exemplo, é imanente ao mundo,
ou seja, não é outra coisa senão a estrutura harmoniosa do cosmo. É justamente
porque a natureza é completamente harmoniosa que ela vai servir, em alguma
medida, de modelo para a conduta dos homens. Será preciso, portanto, imitá-la
em tudo. Esse preceito se estenderá do plano estético, passando pela arte, ao
plano da moral e ao da política. Aos olhos dos estóicos, a justiça dependia do
ajustar-se ao cosmos; juntar-se ao cosmos era a palavra de ordem de toda ação
justa, o princípio da moral e da política. Ora, justiça é fundamentalmente
justeza, donde a necessidade de ajustar-se à ordem harmoniosa e boa que a theoria acaba
por revelar.
A filosofia, portanto, ao nascer como cosmologia, se pretende uma
explicação racional, fundamentada no discurso e no pensamento que buscam
explicar a origem e a ordem do mundo, a saber, da totalidade da realidade, do
ser.
A partir do século VIII a.C., a fé religiosa desenvolve-se na
Grécia arcaica por intermédio dos cantores rapsodos. No período homérico, havia
uma família olímpica de deuses que se apresentava em forma antropomórfica.
Esses deuses eram representados com características humanas, eram dotados de virtudes
e vícios; eram ciumentos, invejosos e habituados a contendas. As epopeias
homéricas contribuíram decisivamente para a construção da unidade cultural e
religiosa dos gregos. Todavia, também produziram um efeito adverso, na medida
em que tornaram o céu olímpico dos deuses questionável para a própria crença
religiosa e fizeram despertar o questionamento filosófico.
Por volta dessa mesma época, desenvolveu-se a literatura
mitológica que narra a procedência dos deuses e do devir do mundo. Nesse
período, destaca-se Hesíodo (700
a.C.), um dos poetas mais antigos
da Grécia, a quem coube reunir antigos mitos sobre a genealogia dos deuses, os
quais se apresentavam de modo antropomórfico, à semelhança do que ocorria em
Homero.
Com o século VI a.C., permearam a Grécia formas de culto órficas,
dionisíacas e outras, oriundas do norte da Trácia. A essas formas de culto,
acrescentem-se as doutrinas secretas de origem oriental. A poesia órfica, em
particular, gozou de grande prestígio e se propagou facilmente, muitas vezes,
de forma anônima. Essas doutrinas teogônico-cosmogônicas foram, parcialmente,
fundidas e fantasticamente ampliadas numa literatura mitológica ostentosa, cujo
representante principal foi Ferécides de Siros (VI a.C).
2. Os primeiros filósofos e a questão de Deus
Os primeiros filósofos, conhecidos na historiografia filosófica,
como pré-socráticos, estavam interessados na determinação da arkhé,
o primeiro princípio absoluto de tudo que existe. A arkhé vem e está antes de
tudo, no começo e no fim de tudo. É ela o fundo imortal e imutável da ordem do
mundo; ela faz surgir todas as coisas e as governa.
Os primeiros filósofos, chamados também de naturalistas, se
admiravam da perpétua instabilidade das coisas, bem como de sua aparição,
desaparição, nascimento, geração e corrupção. Eles estavam, sobremaneira,
interessados em investigar a totalidade que compreende tudo que é, ou seja,
a phýsis. São muito variados os significados do
conceito de phýsis; mas, para o que se seguirá, basta compreender a phýsis como
o fundo originário de todas as coisas, ou como a força que as faz nascer,
desenvolver-se e renovar-se incessantemente. A phýsis torna visível a arkhé
invisível.
O período pré-socrático, que caracteriza o nascimento da
filosofia, se estende do século VI a.C ao início do século IV a.C.
Passarei a enquadrar a questão de Deus nesse período de modo
resumido. Posteriormente, tomo para caso ilustrativo da concepção de deus no
interior da filosofia nascente o legado de Anaximandro.
2.1. A questão de Deus para os pré-socráticos
Havia, entre os primeiros filósofos, um interesse contínuo por
ultrapassar a crença primitiva nos deuses. Segue-se daí o desenvolvimento de um
conceito de deus mais elevado. Por exemplo, em Xenófanes, encontramos a
concepção de deus como um e todo, um deus que é inteiramente
visão, inteiramente pensamento. O princípio originário seria, pois, esse deus.
Esse deus é imóvel, embora capaz de mover o universo por meio da força de seu
espírito. Isso aludi ao Primeiro Motor Imóvel, do qual tratarei mais adiante,
que Aristóteles identifica com deus.
Pensando a oposição imanência/transcendência, os primeiros
filósofos conceberam um deus do mundo, um poder divino mais alto que governa
esse mundo. Esse deus domina o mundo e dota de sentido o acontecimento do
mundo. Não se trata – é preciso frisar – de um deus rigorosamente
transcendente; trata-se de um deus cósmico. Insistirei nesse ponto ao longo do
texto.
Na medida em que estou interessado em objetar àqueles que
acreditam ser a questão de Deus marginal comparativamente às demais questões de
que se ocupa a filosofia, procurarei articular os seguintes conjuntos de
ideias, os quais apontam para a conclusão em sentido contrário.
O primeiro conjunto se identifica pela expressão um deus
do mundo. Ora, a investigação da natureza, levada a efeito pelos filósofos
pré-socráticos, carreia em seu bojo a questão de um princípio divino. Mas esse
deus se situa no quadro de uma explicação da ordem natural. Esse deus é um deus
do cosmos, um deus que atua ordenando e constituindo o mundo.
Do primeiro conjunto passa-se para o segundo conjunto, que toca à
concepção de um deus do pensamento. Esse deus já não é mais o deus
do mito, mas um deus do pensamento racional. Sua existência, no entanto, não
tem de ser provada. Esta impõe-se ao pensamento. A questão que decorre daí diz
respeito ao como se deve pensar o divino. Esse deus do pensamento é também,
conforme se pode inferir do que já se expôs no parágrafo anterior, um deus do
mundo.
O terceiro conjunto patenteia que esse deus não é autor de
mandamentos, se bem que o homem esteja intimamente vinculado à ordem divina
(ordem natural). O dever moral não provém de um deus transcendente, mas é lei
natural. Tampouco se trata de um deus para o qual se dirigem orações (esse deus
não é passível de adoração religiosa). Novamente, trata-se de um deus do
pensamento filosófico, que não substituiu os deuses da crença religiosa.
O quarto conjunto de ideias se assenta na não-sepração entre
sujeito e objeto. Na Grécia arcaica, sujeito e objeto ainda não estavam
separados, de modo que esse deus não é um deus da interioridade subjetiva. O
homem está vinculado a essa ordem divina, como disse, e seu pensamento
participa da razão (lógos) do mundo, razão esta que ele experiencia como poder
divino.
É somente com a sofística, culminando com Sócrates, que se
desenvolverá uma reflexão sobre o pensamento e a vontade próprios. Com
Sócrates, surge uma nova concepção de divino (daimon), que se lhe dirige para a
interioridade e lhe dá recomendações.
2.2. O apeiron: o divino em Anaximandro
Anaximandro de Mileto (610-545
a.C.) teria sido, provavelmente,
preceptor de Tales. A Anaximandro se atribui o primeiro escrito filosófico,
intitulado de Sobre a Natureza. Dessa obra restou um único
enunciado, que se traduz como se segue:
“O princípio
originário das coisas existentes é ilimitado (apeiron). De onde, porém,
consiste a geração dos seres, é também para onde ocorre a corrupção segundo a
obrigação; pois eles pagam uns aos outros castigos justos e penitências por
suas injustiças segundo a ordenação do tempo”.
Também a Anaximandro se atribui o mérito de ter sido o primeiro a,
explicitamente, perguntar sobre o princípio originário (arkhé), não só como
começo temporal, mas sobretudo como princípio a partir do qual tudo é gerado e
ao qual tudo retorna, quando se corrompe, ou seja, princípio ontologicamente
subjacente e sustentador.
Esse princípio é o princípio de tudo que é, princípio, portanto,
dos entes. Anaximandro o chama apeiron, que significa o
ilimitado. Também encontramos para esse termo os significados correlatos
o indefinido, o indeterminado. Destarte,
esse princípio de todas as coisas não é nem a água (Tales) nem qualquer outro
elemento que se nomeia, mas um ilimitado, que difere, em essência, de qualquer
outro elemento, e que gera todos os céus e mundos nele contidos. Esse princípio
originário não pode ser um elemento determinado, mas deve ser anterior a todas
as coisas e a todos os elementos determinados. Ele tem de ser plenamente
indeterminado e ilimitado.
Não constitui tarefa fácil saber se Anaximandro consideraria o apeiron
um deus ou divino. Para os meus propósitos, o que é mais importante é assinalar
o modo como se deu a recepção da doutrina de Anaximandro. Considere-se, a
seguir, a influência dessa doutrina na história do pensamento.
2.3. A recepção da doutrina de Anaximandro
A doutrina de Anaximandro suscita questões que não poderiam e não
foram ignoradas pela posteridade. Uma delas consiste em nos convidar a pensar
no fato de que os filósofos gregos do período arcaico relutavam em denominar
“deus” (ho theos) o princípio originário supremo.
No mundo imaginário, deus reúne-se a outros deuses, ainda que se
tratasse do deus supremo. Esse deus continuava submetido à pluralidade e à
imanência. Por conseguinte, os primeiros filósofos preferiram caracterizar como
princípio primeiro o “divino”. Esse princípio é a quintessência do divino.
Destarte, o apeiron, enquanto divino mesmo, deve ser concebido como
acima da pluralidade dos deuses singulares da religião.
Mais tarde, Heráclito, assim como Platão, seguido por Aristóteles,
chamará esse princípio primeiro de o único deus. Esse deus será
pensado como distinto da pluralidade dos deuses e como a divindade verdadeira.
O apeiron de Anaximandro exerceu grande influência na história do
pensamento. Os Padres da Igreja cristã, indiferentes ao que realmente
significava o termo na filosofia de Anaximandro, não hesitaram em lhe conferir
o significado de infinito. Esses Pais da Igreja declararam ser Deus
a infinidade absoluta e verdadeira; em outros termos, identificou Deus com o apeiron.
Anaximandro também influenciou, com sua doutrina do ilimitado, a
ideia de Deus como o inominável e o inefável. Chamo a atenção do leitor para o
fato de que a teologia cristã é demasiado devedora do contato com a produção
filosófica grega. Na teologia negativa, que caracterizou o pensamento
neoplatônico de Plotino, de Proclo e de outros, a influência de Anaximandro é
notável. Destarte, nunca se pode dizer, no quadro dessa teologia negativa, de
Deus o que ele é; somente o que ele não é, dado que ele está além de tudo que
se pode dizer dele.
A teologia negativa influenciará, sobremaneira, o pensamento
cristão e levará à constituição da doutrina clássica da analogia (de que São
Tomás é um representante notável). Mas essa doutrina jamais conseguirá suprimir
o elemento negativo do inefável e do incompreensível herdado da teologia
negativa. Também a teologia mística será influenciada pela teologia negativa.
Em suma, encontramos já em Anaximandro a consideração de problemas
fundamentais, tais como a) a questão do primeiro princípio de todo ser; b) a
questão da geração e corrupção; c) da unidade e pluralidade; d) da culpa e da
expiação; e) do mistério infinito e impronunciável de Deus. Esses problemas
carrearão consequências para toda a história do pensamento e sinalizarão a
pergunta sobre Deus.
3. A questão
de Deus em Platão
A ideia de deus aparece em vários momentos ao longo da obra de
Platão. No livro 10 da República, deus é a origem de todas as
Ideias. Deus é concebido como o escultor originário, ou o formador do mundo
(demiurgo). De sua atuação surgem as outras Ideias.
Também a Ideia do Bem foi chamada de Deus. Assim, Platão enuncia a
alteridade do ser inteligível em face das coisas materiais e sensíveis e a
alteridade do primeiro fundamento do ser em face de todo singular concreto.
No Timeu, deus se apresenta como aquele que dotou o
mundo de alma, de modo a torná-lo “um ser animado e dotado de razão”.
Voltando à República, Platão se refere a uma figura
demiúrgica purificada, o Phytourgos, que identifica com o autor da
natureza. Ele é o autor último, fabricante da Natureza. Se o Demiurgo é um
intelecto que contempla o modelo fornecido pelas Formas, o Phytourgos, por seu
turno, nada contempla, apenas confere o ser, que será, posteriormente,
reproduzido na cópia sensível e imperfeita.
A teologia platônica fornece exemplos de figuras mitológicas
purificadas. Quer consideremos o Intelecto real do Filebo,
quer consideremos o Demiurgo do Timeu, o Artesão do Sofista,
todas essas figuras dão forma a sua doutrina da eficiência e servem para
identificar o “deus” com a força que produz a phýsis.
Para os fins a cuja satisfação me proponho, é importante patentear
o modo como a teologia platônica foi recebida pela tradição.
Lembremos, para tanto, que, segundo a interpretação
tradicionalmente dominante, as Ideias existem enquanto essências em si mesmas.
Donde se segue a questão: essas Ideias já não seriam concebidas como pensamento
de um espírito pensante, ou seja, de um deus mesmo? Tal é a interpretação predominante
no neoplatonismo e que encontraria abrigo cedo na Academia platônica.
Plotino, por exemplo, veria as Ideias como pensamento da razão
(nous), mas não do uno originário divino. Elas são pensamento da primeira
emanação do princípio originário divino. No pensamento neoplatônico cristão de
Santo Agostinho, as Ideias também se tornam pensamento, mas agora pensamento de
Deus mesmo. Para Agostinho, as Ideias são Ideias eternas no espírito de Deus. É
desse modo que a doutrina das Ideias de Platão será interpretada pelo
pensamento cristão e o moldará.
No começo da Idade Moderna, elas se tornarão ideias inatas do
espírito humano, com Descartes, e continuarão a servir de modelo para as Ideias
da razão pura de Kant.
No tocante à doutrina de deus em Platão, sem embargo de sua
problematicidade, ela encerra a concepção de um ser supremo que é a plenitude
do verdadeiro, do Bem e do Belo, a quintessência de toda perfeição. Ademais, é
dessa plenitude que deriva toda a ordem e toda a beleza do mundo, bem como
todas as normas da ação humana boa.
Esse deus é um ser espiritual e racionalmente atuante. Mas ele não
é o criador do mundo, somente seu ordenador e condutor (demiurgo). É preciso
enfatizar que esse deus é objeto de desejo e de todo amor ao supremo e ao belo.
É assim que o pensamento platônico determinará a busca e o anseio por deus, até
mesmo a união mística com ele, em todos os tempos na história humana.
4. A questão
de Deus em Aristóteles
Conquanto a metafísica não seja um termo aristotélico, foi
Aristóteles quem nos deu a saber quatro definições de metafísica. Antes, porém,
de enunciá-las, preciso notar que ele usou a expressão filosofia
primeira e teologia em oposição à filosofia segunda
ou a física.
A metafísica aristotélica é a ciência que se ocupa com as
realidades que estão além das físicas; ela se ocupa das realidades suprafísicas
e se opõe à física.
O estagirita define como se segue o escopo da metafísica: 1) a
metafísica indaga-se sobre as causas e os princípios primeiros ou supremos; 2)
indaga-se sobre o ser enquanto ser; c) indaga-se sobre a substância; d)
indaga-se sobre Deus e a substância supra-sensível.
Para Aristóteles, a metafísica é a ciência livre por excelência,
porquanto tem em si mesma o seu fim. Ainda que a questão de Deus figure na sua
ética, é no interior da metafísica que ela reivindica a atenção especulativa do
filósofo. Para o estagirita, o homem que se dedica à metafísica aproxima-se de
Deus e nisso reside a máxima felicidade do homem.
Em Aristóteles, Deus é pensado como o Primeiro Motor
Imóvel. Aqui já se nota um monoteísmo que se expressa na separação nítida
do Primeiro Motor de outros moventes. Esse Primeiro Motor Imóvel se situa num
plano totalmente diverso, de modo que de sua unicidade se deduz a unicidade do
mundo.
No entanto, o monoteísmo parece superar-se quando Aristóteles
admite que as cinquenta e cinco substâncias motoras (as esferas celestes
individuais) são também substâncias imateriais eternas que independem do
Primeiro Motor. O Deus de Aristóteles não é o criador das cinquenta e cinco
inteligências motoras.
4.1. Deus e o mundo
Deus, ou o Primeiro Motor Imóvel, pensa e contempla a si mesmo.
Entanto, esse deus, certamente, não tem conhecimento da existência do mundo e
dos princípios universais do mundo. Aristóteles sustenta que ele é o princípio
supremo; é objeto de amor e de atração de todo o universo. Mas esse deus não
ama. Os indivíduos não são objeto de amor desse Deus. Deus não se ocupa de cada
indivíduo. Aristóteles pensa que cada um dos homens, cada uma das coisas tende
para Deus de modos vários, mas Deus, porque não pode conhecer, também não pode
amar nenhum homem individualmente.
Deus pensa o que há de mais excelente; mas, como o que há de mais
excelso é o próprio Deus, segue-se daí que Deus pensa a si mesmo. Para
Aristóteles, o Primeiro Motor Imóvel é também atividade contemplativa de si
mesmo; é pensamento de pensamento.
5. Conclusões
Em toda a filosofia grega pré-cristã, deus nunca é reconhecido
como o criador do mundo. Ele tão-somente é concebido como ordenador e formador
do mundo. É a razão do mundo, o demiurgo. Os gregos desconheciam o conceito de
Criação ex nihilo, de sorte que
deus forma um mundo a partir de uma matéria já existente.
Esse deus não é também o fundamento único e absoluto, uma vez que
existe a matéria como outro princípio necessário do mundo. É tão-só no
neoplatonismo que a matéria se tornará elemento que emana de um princípio
divino (Plotino). No entanto, ainda não haverá aqui um ato livre de criação; a
matéria é produto de uma emanação necessária.
O pensamento grego não formulou o conceito de deus como pessoa.
Aliás, o conceito de pessoa, tal como nós o entendemos, era desconhecido dos
gregos. Há, decerto, esboços que nos permitem entender Deus como ser racional,
como subjetivamente pensante, por exemplo, em Platão e em Aristóteles. Todavia,
não há sequer alusão a um ser dotado de vontade e ação livres. Berti (2006), em
um texto que se topa no livro Os filósofos e a questão de Deus, é
uma voz divergente, nesse tocante. Para ele, se o deus de Aristóteles é um ser
vivo eterno e feliz, no sentido grego da palavra theos, então ele
será um deus dotado de intelecto e vontade, muito embora, reconhece o
intérprete, que esse deus não é o Deus criador e providente da Bíblia.
Esse deus do pensamento filosófico não é um deus passível de
adoração religiosa. Ele é um deus do mundo, e não um deus do homem. Decerto, há
um esforço orientado para a união com Deus (Plotino), mas esse deus não é uma
pessoa a quem se pode rogar auxílio e a quem se pode adorar.
Os gregos rezavam para os antigos deuses de seu panteão, os quais
não foram substituídos pelo deus único da razão filosófica. O deus de
Platão e de Aristóteles, bem como os de seus predecessores, não é um deus
pessoal, tal como o Deus da tradição judaico-cristã, em virtude de não ser
passível de relação afetiva com o homem. Não é um Deus pessoal também porque
não é capaz de despertar confiança e bem-querer. Não é o Criador todo-poderoso
e Pai de amor.
Que não reste
dúvida sobre a importância da questão de Deus desde os primórdios da
filosofia e sobre o interesse filosófico que ela suscita até os nossos
dias . Essa questão se impunha aos primeiros filósofos em decorrência de sua
investigação sobre o primeiro princípio ou causa primeira do ser. Deus,
enquanto questão para o homem, se coloca, portanto, como o mais eminente e
originário desafio filosófico.