sábado, 28 de fevereiro de 2015

"O desafio da modernidade é viver sem ilusões, sem se tornar desiludido." (Gramsci)

                                
                                      


O prazer de ler Gramsci:
O LUGAR DOS PROFESSORES DE PORTUGUÊS

Numa sociedade estratificada, como a nossa, a conquista do consentimento e da hegemonia decorre de um trabalho discursivo cuidadosamente pensado e elaborado por instituições que sustentam uma estrutura ideológica da sociedade. No Brasil, constituem exemplos dessas instituições a imprensa, a Igreja e a escola. É por meio do DISCURSO que se constrói o consentimento. Por isso, o conceito de hegemonia, desenvolvido por Gramsci, é especialmente importante para os analistas do discurso.
Pelo discurso, muitas mulheres incorporam a ideologia patriarcal e sexista contrária aos seus interesses, e muitos trabalhadores assumem a ideologia burguesa também desfavorável às suas aspirações.
Naturalmente, o consentimento tem de ser conquistado sem que pareça ser uma dominação: ele precisa aparecer como algo espontâneo. Gramsci entendia que o consentimento e a perpetuação da relação de dominação são conquistados por meio do discurso, o qual se estrutura por dispositivos que recriam e põem em circulação continuamente pressuposições ideológicas, que são tomadas como naturais e pertencentes ao senso comum.
A hegemonia - a saber, o poder de uma classe economicamente dominante sobre a sociedade como um todo, nunca é estável. É por ser um fenômeno instável que ela pode ser questionada e transformada. Sua instabilidade atrai o interesse dos analistas do discurso, cujos trabalhos se produzem com vistas a contribuir para a transformação das estruturas de poder.
Ler Gramsci é aprender que o sistema educacional não deve apenas formar trabalhadores em busca de emprego ou intelectuais pequeno-burgueses que sejam subservientes à administração do Estado. Gramsci nos leva a pensar uma escola que articule o ensino técnico-científico com o saber humanístico.
Que nossos professores e estudantes se beneficiem de uma formação que ultrapasse a formação técnica é o que devemos pretender. Os professores, uma vez experimentados nos estudos do discurso, poderão e deverão dedicar-se a desenvolver em seus alunos o senso crítico, e não mais limitar-se - como tem sido hábito - a prepará-los para o vestibular ou para o ENEM. Gramsci advogava que o ensino deve promover a superação do senso comum, que, para Dijk, é uma forma de ideologia. Somente superando o senso comum, estarão eles prevenidos contra a naturalização dos discursos. O senso crítico é indispensável para que os indivíduos façam escolhas conscientes e, assim, possam adotar concepções de mundo que não lhes sejam ideologicamente desfavoráveis.

(BAR)


"A gaveta da alegria está cheia de ficar vazia" (Alice Ruiz)

                  

                           Soledad
                 Sobre lembranças intempestivas

“A verdade deste texto só pode ser apreendida naquilo de que ele é um sintoma” (BAR)


Acordou com um desgosto familiar que lhe embarcara em pensamentos ingenuamente criativos e sintomáticos da noite anterior, plena de imaginações. Sonhou o sonho que realizou seus mais recentes desejos. Mas acordou com a insatisfação conclusiva, edificada nos escombros da vigília. Quando já não se pode mais experienciar as alegrias juvenis, porque já se contam no corpo e se cumulam no espírito os vincos de uma idade que irremediavelmente avança, não restam senão lembranças sempre infiéis, pois que nada mais são que distorções, reconfigurações, reconstituições, reinterpretações de alegrias já então transformadas nas memórias que delas se formam. As alegrias de hoje – pensa ele conclusivamente – não têm o viço e a gratuidade que tinham na aurora de sua juventude. Hoje, as alegrias se compreendem como efeitos da liberação de serotonina e endorfina. Quando se avança nos trinta, as alegrias advindas trazem na superfície (porque carecem de profundidade) o carimbo de sua validade. Elas já se experienciam, portanto, formalmente modificadas. O saber assassina a fertilidade que se vivera nos tempos idos. A vida se vai enfraquecendo à medida que se engorda o saber. As preocupações com o amanhã oprimem com uma força desconhecida pelos tempos em que elas podiam dar lugar a alegrias enérgicas e libidinosamente desocupadas da impermanência de suas manifestações. Nisso reside uma recompensa que a idade adulta nos proíbe.
Ele está convencido de que, naqueles tempos, os encontros com os amigos, os flertes inconsequentes, a anarquia das sensações prazenteiras que reivindicavam o gozo irrestrito e incontrolável e que já se esperavam para aquelas ocasiões em que o divertimento não era pensado e problematizado como fuga à angústia de nossa precária condição humana, garantiam alegrias que carreavam promessas dançantes que, como as vagas de um mar revoltoso, agitavam, nos espíritos ávidos de embalos, festas cujas lembranças ficavam a pulsar estonteantemente no dia seguinte.  
Toda a sua rememoração é ofensiva ao passado que se lhe afigura em estilhaços de vivências que, no instante mesmo em que as reconstrói na memória, já estão modificadas ou infectadas por seus sentimentos. Por isso, ele está convencido de que está enganado a respeito da espessura vivaz e sempiternamente prazenteira dessas vivências. As alegrias que ele admira hoje, por sua consistência, nas relações da juventude que da vida deseja costumeiramente reter o melhor, não passam de reflexos do jogo de suas próprias interpretações e sentimentos que não fazem senão lhe fornecer daquelas alegrias uma imagem translúcida que lhe estorva a visão de que, afinal, mesmo os jardins floridos estão repletos de espinhos. Que o sonho reparador desta noite vindoura possa remoçar-lhe a face de seu desencanto!



(BAR)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Os pontos de vista formal e semântico em Linguística

                 
                           

             Análise formal e Análise semântica
                          na descrição gramatical


Linguistas são aqueles que se dedicam ao estudo científico da linguagem. Parte de seu trabalho consiste em explicitar a gramática de uma língua – gramática que constitui, necessariamente, um modelo teórico, isto é, uma hipótese sobre como essa língua se organiza estruturalmente de modo a permitir a expressão e a compreensão de sentidos. Assim entendida, a gramática constitui um modelo descritivo-explicativo da estrutura e do funcionamento de uma dada língua.
Tendo em vista o exposto, no trabalho de produção de modelos de gramática, as unidades da língua podem ser descritas sob dois pontos de vista: o formal e o semântico. Quando buscamos descrever as unidades linguísticas do ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar um conjunto de aspectos do qual está excluída qualquer referência a noções recobertas pelo domínio da semântica. Analisar uma unidade linguística do ponto de vista formal significa considerar relações internas ou externas a ela, em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e paradigmático, sem aludir a qualquer aspecto da dimensão significativa dessa unidade. Por outro lado, analisar uma unidade linguística semanticamente é considerar aspectos de sua natureza significativa. Vamos esclarecer como se opera a análise segundo esses dois pontos de vista, tomando-se, para tanto, a palavra lealdade.
Convém dizer que a forma, que é sinônimo de estrutura, de um constituinte linguístico é resultado da combinação de suas unidades na cadeia sintagmática. Assim, a forma da palavra lealdade resulta da combinação da base (radical) “leal” com o sufixo “-dade” (cf. leal + dade = lealdade (forma)). A explicitação da forma de uma unidade linguística supõe a divisão dessa unidade em unidades menores por meio da análise da totalidade da construção. Tomando-se, portanto, a palavra lealdade, pode-se considerar, do ponto de vista formal, seus elementos e características fonológicas (fonemas, sílabas, acento). Dir-se-á, por exemplo, que lealdade é uma palavra polissílaba, que sua estrutura silábica é CV-VC-CV-CV (C = consoante; V = vogal), que seu acento tônico recai sobre a penúltima sílaba e que, por isso, se trata de uma palavra paroxítona. Note-se que não se faz qualquer referência ao significado da palavra “lealdade”, mas se especifica informações que tocam à sua estrutura fônica.
No domínio morfológico, submeter a palavra lealdade à análise formal é procurar identificar os elementos que entram a fazer parte de sua estrutura. Por exemplo, lealdade é formada da combinação do radical “leal” (que é uma forma livre na língua) com o sufixo “-dade” (forma presa). Na tradição gramatical, essas duas unidades mínimas dotadas de significado chamam-se morfemas. Todavia, o ponto de vista formal proíbe-nos de levar em conta qualquer aspecto significativo ligado a essas mínimas unidades. Quando limitamos a análise ao ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar a constituição da forma de uma dada unidade linguística, seja ela uma palavra, seja um sintagma, seja uma frase.
No domínio sintático, pode-se dizer que a palavra lealdade ocupa a posição de núcleo de um SN (sintagma nominal), que se deixa antepor de um determinante, como um artigo (cf. a lealdade), um pronome demonstrativo (cf. essa lealdade), um pronome indefinido (cf. alguma lealdade), etc. Novamente aqui o ponto de vista formal circunscreve a análise às relações entre as unidades linguísticas indispensáveis à constituição da estrutura. Por exemplo, dado o sintagma nominal “a lealdade do cachorro”, diremos que sua estrutura resulta da combinação de um núcleo “lealdade” com um determinante externo “a” e com um SP (sintagma preposicional) “de cachorro”  que se acha encaixado no SN:

                       

A análise formal contempla também aspectos de concordância e possíveis correspondências sintáticas em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e paradigmático. Por exemplo, do ponto de vista formal, distinguem-se as funções de “lealdade” nas construções “A lealdade do cachorro nos comove” e “Nós apreciamos lealdade” pela posição ocupada pela palavra “lealdade” na frase. Na primeira frase, ela ocupa a posição à esquerda do verbo. É núcleo de um sintagma nominal que preenche a posição típica do sujeito. Como tal, governa a relação de concordância, isto é, o núcleo “lealdade”, que é um substantivo que se apresenta no singular, obriga o verbo a assumir a forma de terceira pessoa do singular, para, assim, atualizar a relação de concordância. Na segunda frase, “lealdade” ocupa a posição à esquerda do verbo (apreciar). Não toma parte na relação de concordância, já que ela é, agora, governada pela unidade “nós” (sujeito) que se acha na posição à esquerda do verbo. A distinção formal da função sintática de “lealdade” pode também apelar para a comuta com uma forma pronominal. Em “A lealdade do cachorro nos comove”, todo o conjunto “a lealdade do cachorro” pode ser comutado com o pronome “ela” (cf. ela (a lealdade do cachorro) nos comove). Por outro lado, em “Nós apreciamos lealdade”, pelo menos em uma das variedades da língua, usamos o clítico “a”: “Nós a apreciamos”. Nas variedades desprestigiadas, pode-se encontrar o pronome “ela” na posição pós-verbal em que figura “lealdade” (cf. Nós apreciamos ela). Nesse caso, a distinção entre as funções sintáticas desempenhadas por “lealdade” se faz não só pela observação da posição ocupada por esse vocábulo na estrutura oracional, mas também se apóia na relação de concordância centrada no verbo. Assim é que o “ela” que se topa depois do verbo não toma parte da relação de concordância; por outro lado, o “ela” que se acha à esquerda do verbo (na posição típica do sujeito), governa a relação de concordância. Vejam-se outros dois exemplos abaixo:

(1) O espetáculo não agradou a Marcos.
(2) Maria não confia em Marcos.

Do ponto de vista formal, pode-se fazer ver que os constituintes “a Marcos” e “em Marcos” comportam-se de modo diferente. É verdade que ambos estão pospostos ao verbo e estão encetados de preposição, ainda que em (1) figure a preposição “a”, exigida pela valência do verbo “agradar” e em (2) figure a preposição “em”, exigida pela valência do verbo “confiar”. Sucede, contudo, que apenas “a Marcos” é passível de comutação com “lhe”. Trata-se de um fenômeno sistemático em português, apontado em minha dissertação de mestrado: os complementos encetados por “a” (e também “para”, preposição que se acha em flutuação com “a” com verbos que denotam ‘transferência de alguma coisa’ ou ‘deslocamento de uma coisa no espaço’) comutam com “lhe”. Por outro lado, “em Marcos” não admite a comutação com “lhe” (cf. * Maria lhe confia). Não devemos confundir o uso do verbo “confiar” na construção “confiar em”, à qual se associa o significado ‘ter confiança’, com o uso de “confiar” na construção “confiar a”, à qual se associa o significado ‘entregar aos cuidados de’ (cf. Confiei ao advogado meus documentos). A condição de possibilidade para a comuta com “lhe” é a ocorrência da preposição “a”. A possibilidade ou não de comuta com “lhe” levou alguns gramáticos, entre os quais Rocha Lima, a distinguir dois tipos de complemento verbal: o objeto direto, cujas características formais é ser introduzido pela preposição “a” (ou para) e ser comutável com “lhe”; e o complemento relativo, que é encetado por qualquer preposição (inclusive “a”), mas que não é comutável com “lhe”. A tradição escolar de ensino de língua portuguesa não leva em conta essa distinção, embora se trate de uma distinção formal (possivelmente  também semântica) que, exigindo ou não outra nomenclatura, deveria ser estudada como um aspecto estrutural e funcional da gramática do português. A importância de considerá-la reside em que é um aspecto do conhecimento linguístico intuitivo do falante nativo de língua portuguesa. Qualquer falante nativo de português reconhece que, dada a estrutura X DEPENDE DE Y, a variável “Y” é substituída por “dele” ou “disso” (cf. Você não depende dele/ disso), mas não por “lhe” (cf. * Você não lhe depende). Por outro lado, o reconhecimento da referida distinção formal aponta para outro fato, por vezes, ignorado: há casos em que, a despeito da ocorrência de um complemento introduzido por uma preposição diferente de “a”, o “lhe” pode figurar na posição do complemento, pelo menos nas variedades desprestigiadas. Por exemplo, na construção “João bateu no irmão”, é usual, nas variedades desprestigiadas do português, a ocorrência de “lhe” preenchendo a função de “no irmão”: “João lhe bateu”.
Na construção “Maria não confia em Marcos”, o constituinte “em Marcos” é substituído pela forma “nele”. Novamente, não fazemos qualquer referência a aspectos semânticos quando limitamos a análise gramatical ao ponto de vista formal. Veja-se também que as funções desempenhadas pelo constituinte “de Marcos”, nas orações seguintes, se diferem, do ponto de vista formal, pela posição que ele ocupa na cadeia sintagmática: (a) Maria gosta de Marcos; (b) O chapéu de Marcos é marrom. Em (a), “de Marcos” dispõe-se junto ao verbo, à esquerda dele; em (b), integra um SN, articulando-se a um núcleo nominal (um substantivo). Esse SN dispõe-se à esquerda do verbo, ocupando a posição típica do sujeito. Em parte, é por isso que chamamos “de Marcos”, em (a), de “objeto direto” ou “complemento direto”; e em (b), de “adjunto adnominal”.
Note-se, de passagem, que a distinção tradicional entre as funções de “complemento nominal” e “adjunto adnominal”, que, do ponto de vista formal, não parece justificar-se, se esteia em critérios semânticos. Senão, vejamos. Considerem-se as orações abaixo:

(3) A casa de Saquarema é muito boa.
(4) A divulgação da notícia desagradou aos policiais.
(5) A fala do professor Elias emocionou a todos.


Tanto em (3) quanto em (4) e em (5) figuram grifados SP encetados da preposição “de”. Esses SP se prendem a um núcleo nominal. A tradição gramatical distingue entre duas funções com base em critérios semânticos. Em (3) e (5), o SP ‘de__SN’ cumpre a função de adjunto adnominal. Em (3), porque se prende a um substantivo concreto para especificar ou classificar seu referente. Em (5), porque se liga a um substantivo abstrato que designa ‘ato ou evento’ em relação ao qual o constituinte ‘de__SN’ representa o AGENTE. Trata-se de uma função semântica. Entendemos que em “A fala do professor Elias”, “do professor Elias” desempenha a função de AGENTE, daquele que fala. Por outro lado, em (4), “da notícia”, prendendo-se a um substantivo abstrato que designa também o evento, cumpre a função de PACIENTE ou OBJETO. Dessa vez, entendemos que “da notícia” é a coisa que é divulgada.
A distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal não se limita à referência a esses aspectos semânticos. Outros mais são levados em conta. O complemento nominal, segundo reza a tradição, completa o significado de um substantivo abstrato que designa ação, evento ou mesmo qualidade. Assim, em “A amizade de Bianca é importante para mim”, o constituinte “de Bianca” é um complemento nominal simplesmente porque se liga a uma qualidade que encontro em Bianca. Implícita aqui está a suposição da natureza transitiva de substantivos que designam ‘evento, ‘ação’ e ‘qualidade’. O substantivo “amizade” prevê, em sua semântica, uma estrutura relacional, formalizável como  “AMIZADE de X por Y”, em que X e Y são complementos nominais.
A distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal, na medida em que se apóia, basicamente, em aspectos semânticos, traz mais problemas do que os resolve. É claro, poderíamos dizer, que em “A amizade de Bianca”, “de Bianca” não representa o AGENTE, mas também não designa o PACIENTE. Poder-se-ia ver em Bianca a FONTE de uma relação FONTE-PACIENTE. Ora, tanto Bianca quanto “eu” somos EXPERIENCIADORES da relação de amizade. A experiência de amizade, quando representada na estrutura AMIZADE de X por Y, encerra uma relação entre uma entidade X que é a FONTE (donde se origina a amizade) e o PACIENTE (que é, de certo modo, “afetado” pela amizade). A descrição semântica não é determinante para a distinção entre duas funções que, formalmente, não se diferenciam.
Não há dúvida de que alguns substantivos, os chamados abstratos que denotam ‘ato’, ‘processo’ ou ‘atividade’, são do tipo transitivo, como “divulgação”, “apresentação”, “atualização”, etc. (claramente, por força de sua base verbal). Tais substantivos preveem uma estrutura relacional, a qual compreende dois termos que se articulam ao núcleo: APRESENTAÇÃO de X por Y. As posições de X e Y são ocupadas pelos constituintes ‘de__SN’ e “por__SN”. Ora, esses constituintes são integrantes da estrutura prevista pela semântica desse nome. Não há razão para atribuir duas funções distintas com base na observação, de cunho semântico, de que um representa a coisa que é objeto de apresentação; e o outro, a pessoa que apresenta. Ambos são complementos do nome, ou melhor,  argumentos do nome.
A tradição gramatical reza que muitos adjetivos e advérbios em “-mente” selecionam complementos nominais. Todo complemento nominal é encabeçado de uma preposição exigida pela forma nominal a que ele se articula. Por exemplo, o adjetivo “acessível” seleciona um complemento encetado da preposição “a” (cf. O espetáculo é acessível a todos). O advérbio “contrariamente” também seleciona um complemento introduzido por “a” (cf. Agiu contrariamente à minha sugestão).
Tomando-se novamente a palavra lealdade, pode-se estudá-la, finalmente, do ponto de vista semântico. Nesse caso, consideram-se seu significado denotativo, seus possíveis significados conotativos, suas restrições de seleção, etc. Por exemplo, “lealdade” parece selecionar, para a posição ‘de__SN’ (a lealdade de X), um substantivo que designa animal, como “cão” (cf. A lealdade do cão). Por outro lado, usamos “fidelidade” para se referir a seres humanos. Ademais, “lealdade” designa uma qualidade abstraída de entes, ao passo que “casa” designa um ente concreto, uma substância.
O verbo “voar”, por sua vez, seleciona para a posição de sujeito um substantivo que comporta a propriedade [+ voável]. Em outros termos, é parte da análise semântica do verbo “voar” a informação de que esta forma faz restrição de seleção quanto ao tipo semântico de substantivo passível de ocupar a função de sujeito. Ora, “voar” seleciona sujeitos como “avião” e “águia”,  que comportam o traço sêmico [+ voável], mas recusa a ocorrência de formas como “árvore” e “casa”, que não comportam tal traço.
Quando se define o objeto direto como “termo que completa o significado de um verbo transitivo direto”, está-se fazendo referência ao aspecto semântico dessa função sintática. Quando se define o agente da passiva como o termo que designa o agente de uma construção na voz passiva, está-se referindo a um aspecto semântico dessa função sintática.
Pode-se  discriminar os planos sintático e semântico na análise da seguinte oração abaixo:

 (6) Maria   entregou    a mochila    ao seu colega.

Do ponto de vista formal, temos um sujeito “Maria”, que se define como o termo com o qual o verbo concorda. O sujeito se dispõe á esquerda do verbo. Ele é representado por um substantivo. Temos um complemento verbal “a mochila”, que se dispõe à direita do verbo. Esse complemento é desprovido de preposição e é passível de substituição pelo clítico “a” (cf. Maria a entregou ao seu colega). Temos também um complemento verbal introduzido da preposição “a”, exigida pela valência do verbo “entregar”. Esse complemento é comutável com “lhe”. A comutação com “lhe” é uma propriedade formal que contribui para distinguir esse complemento do complemento anterior, desprovido de preposição.
Quando consideramos a estrutura relacional do verbo ENTREGAR, formalizável como X ENTREGAR Y a Z, concluímos que a variável X indica a posição que deve ser ocupada pelo sujeito, termo que governa a relação de concordância centrada no verbo. As variáveis Y e Z situam-se fora do escopo da concordância; não obstante, indicam que os termos que as substituem estão também subordinados ao verbo. Formalmente, a subordinação ao verbo se dá de modo diferente: o constituinte correspondente a Y se subordina ao verbo sem o intermédio da preposição; Z, por seu turno, prevê um termo que se liga ao verbo por meio de uma preposição necessária.
Do ponto de vista semântico, pode-se dizer que X corresponde ao AGENTE da ação de “entregar”; Y, ao OBJETO da ação; e Z, ao BENEFICIÁRIO da ação. O verbo entregar inclui-se na classe dos verbos que denotam a ideia de ‘transferência de uma coisa para’.
Os pontos de vista formal e semântico não se excluem na análise gramatical; mas devem estar articulados entre si. É preciso, contudo, atentar para a recomendação do linguista Mario Perini, em sua Gramática Descritiva do Português (2004),



“Os dois aspectos, o formal e o semântico estão presentes na palavra reloginhos, mas precisam ser separados na descrição. Essa separação é fundamental quando se estuda a gramática, porque a relação que existe entre as formas gramaticais e o significado que elas veiculam é extremamente complexa e indireta. Na verdade, a explicitação dessa relação é um dos objetivos primordiais da análise linguística – e por isso mesmo é essencial descrever os dois aspectos separadamente, para depois colocá-los em confronto” (p. 38).

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"Se queres a verdadeira liberdade, deves fazer-te servo da filosofia." (Epicuro)

              
              

           A questão de Deus: uma questão filosófica
                Um manifesto contra a imperícia intelectual


“A metafísica é platônica de cima a baixo” (Heidegger)


No bojo da tessitura argumentativa deste texto, situam-se dois objetivos basilares que devem ser considerados necessariamente articulados. O primeiro objetivo consiste em replicar aos que supõem a questão de Deus deve ser colocada à margem dos debates filosóficos “sérios” que essa questão perpassa, ainda que de modo extremamente complexo e mesmo que seja para rejeitá-la enquanto tal, toda a história da filosofia. O segundo objetivo toca à tentativa de demonstrar as significações atribuídas a ela pelos filósofos gregos, em particular pelos filósofos pré-socráticos, por Platão e Aristóteles. Como sejam muitos os filósofos chamados “pré-socráticos” e como eu não possa dar a conhecer o que cada um deles nos legou a respeito da questão de Deus, o tratamento dispensado por esses filósofos à questão de Deus será apresentado de modo bastante esquemático. O esquematismo com que apresento a problemática se faz necessário em função da natureza deste texto e do tempo de que disponho para produzi-lo; mas esse esquematismo não acarretará qualquer prejuízo para o plano global suposto pela produção deste trabalho, qual seja, o de aclarar o lugar que a questão de Deus ocupa na história da filosofia. Ademais, tal esquematismo não me impedirá de tomar como arquétipo do pensamento grego arcaico sobre Deus a doutrina do apeíron de Anaximandro. A escolha por apresentá-la reside nas consequências que acarretou na história do pensamento e, de modo especial, ao desenvolvimento de uma teologia negativa que influenciou significativamente o pensamento cristão.
A ideia de que a questão de Deus está na raiz das especulações filosóficas, desenvolvidas ao longo de toda a sua história, é atestada na apresentação do livro Os filósofos e a questão de Deus (2006), onde lemos o que se segue:

“Este livro tem por objeto inaugurar uma interrogação sobre o lugar da questão de Deus na história da filosofia. Não se trata, portanto, de enfrentar diretamente a questão de Deus ou do divino, mas de elucidar as significações que a filosofia, em sua história antiga, medieval, moderna e contemporânea, atribui a essa questão. Essa interrogação não é exclusivamente histórica, é também filosófica: desde sua origem, a filosofia teve que determinar sua relação com um discurso sobre o divino, a teologia. Durante todo um período de sua história, ela chegou a considerar a teologia a parte mais elevada de seu saber. O exame da reação dos filósofos à questão de Deus envolve, por conseguinte, a própria significação da filosofia. Entre a afirmação e a negação de Deus, sua determinação como transcendente ou como imanente, sua cognoscibilidade ou não, decide-se uma orientação que abrange a gnosiologia e a ontologia, assim como a moral e a política. Nossa época é a da morte filosófica de Deus? De qualquer modo, é certo que essa questão, como quer que se responda a ela, é decisiva para toda a filosofia contemporânea (grifo meu, p. 9).



O percurso de minha investigação compreende as seguintes etapas: 1) recuperarei a relação da filosofia, quando de seu surgimento, com a religião e com o mito; 2) assinalarei o escopo da investigação pré-socrática e, de modo esquemático, esclarecerei a compreensão pré-socrática de Deus; 3) darei a conhecer como o divino ou Deus foi pensado por Platão e por Aristóteles.
Ao cabo de meu empreendimento analítico, espero tornar convincente a tese de que constitui miopia filosófica pretender rechaçar a questão de Deus do domínio da discussão filosófica.


1. A origem da filosofia: sua relação com o mito e a religião

Se podemos hesitar entre acolher a posição de Hegel, segundo a qual a filosofia grega surge em ruptura com a religião, e acolher a posição do helenista Conford, para quem a ideia de ruptura com a religião não se sustenta, não devemos hesitar sobre o fato de que ao desenvolvimento da filosofia precederam as explicações mítico-religiosas sobre a origem e a ordem do mundo com base na ação de um deus ou de um rei mago
Todavia, afinal, o que é o mito? Essa é a primeira questão que gostaria de esclarecer, em linhas gerais. O mito é uma narrativa mágica ou maravilhosa da origem das coisas a partir da ação ordenadora de um Deus. A estrutura narrativa do mito encerra analogias, metáforas e parábolas. O mito cumpre funções sociais. Ele busca resolver, no âmbito imaginário, os conflitos e antagonismos que permeiam a estrutura social. A solução oferecida pelo mito é sempre imaginária e atende à necessidade de preservar a vida em comum.
Por seu turno, a filosofia nasce como uma racionalização e laicização da narrativa mítica. A filosofia retoma as questões colocadas pelo mito e as retrabalha numa linguagem racional, isto é, confere uma explicação racional à origem e à ordem do mundo. Destarte, a origem e a ordem do mundo passam a ser encaradas como naturais. Se, no mito, elas eram seres divinos (Urano, Gaia, Oceano); no tratamento filosófico, tornam-se realidades materiais e naturais: o céu, a terra e o mar.
É preciso ter em mente, no entanto, que os elementos naturais continuam a ser vistos como divinos, na filosofia nascente. Eles não são antropomórficos, mas são divinos, na medida em que são superiores à natureza gerada por eles e superiores aos homens que os conhecem através da razão. São, ademais, divinos porque eternos ou imortais, e também porque dotados de poder absoluto de gerar e regular toda a natureza.
Os mitos afirmam uma cosmogonia, a qual se esteia na questão: como do caos surgiu o mundo ordenado, isto é, o cosmo? As cosmogonias procuram responder a essa pergunta mediante a genealogia dos seres. Na cosmogonia, os elementos naturais são personificados e a origem de todas as coisas e da ordem do mundo se explica por referência às relações sexuais entre esses elementos personificados. A cosmogonia se difere da teogonia, porque esta narra, através das relações sexuais entre os deuses, o nascimento de todos os deuses, heróis, homens e coisas do mundo natural.
 Os primeiros filósofos não fazem cosmogonia, mas cosmologia. Portanto, a filosofia nascente assume a forma de uma cosmologia. Os primeiros filósofos despersonalizaram os elementos naturais, deixaram de pensá-los como deuses individualizados, para tratá-los como forças impessoais, naturais, ativas, animadas, imperecíveis, ainda que divinas. O que é, então, cosmologia? Por cosmologia entende-se a explicação da ordem do mundo, do universo com base num princípio originário determinante e racional, o qual é a origem e a causa das coisas e de sua ordenação.
Para os antigos, essa ordem, ou seja, o cosmo, era chamado de “divino”. Mas aqui cabe advertir que esse divino em nada se assemelha com o Deus pessoal judaico-cristão. O divino se confunde com a própria ordem do mundo, é imanente ao mundo, ao cosmo. Pela theoria, pode-se, como acreditavam os estóicos, contemplar o que é divino no universo. Por isso, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais importante, mais significativo.
Os antigos estavam convencidos de que, quando estudamos a física, a astronomia, a biologia, nos damos conta de que a totalidade do universo é “benfeita”. Assim, o cosmo é justo e belo. Dizer que a estrutura do cosmo é divina significa dizer também que é perfeita e racional, ou seja, conforme o lógos. O divino de que nos falam os estóicos, por exemplo, é imanente ao mundo, ou seja, não é outra coisa senão a estrutura harmoniosa do cosmo. É justamente porque a natureza é completamente harmoniosa que ela vai servir, em alguma medida, de modelo para a conduta dos homens. Será preciso, portanto, imitá-la em tudo. Esse preceito se estenderá do plano estético, passando pela arte, ao plano da moral e ao da política. Aos olhos dos estóicos, a justiça dependia do ajustar-se ao cosmos; juntar-se ao cosmos era a palavra de ordem de toda ação justa, o princípio da moral e da política. Ora, justiça é fundamentalmente justeza, donde a necessidade de ajustar-se à ordem harmoniosa e boa que a theoria acaba por revelar.
A filosofia, portanto, ao nascer como cosmologia, se pretende uma explicação racional, fundamentada no discurso e no pensamento que buscam explicar a origem e a ordem do mundo, a saber, da totalidade da realidade, do ser.
A partir do século VIII a.C., a fé religiosa desenvolve-se na Grécia arcaica por intermédio dos cantores rapsodos. No período homérico, havia uma família olímpica de deuses que se apresentava em forma antropomórfica. Esses deuses eram representados com características humanas, eram dotados de virtudes e vícios; eram ciumentos, invejosos e habituados a contendas. As epopeias homéricas contribuíram decisivamente para a construção da unidade cultural e religiosa dos gregos. Todavia, também produziram um efeito adverso, na medida em que tornaram o céu olímpico dos deuses questionável para a própria crença religiosa e fizeram despertar o questionamento filosófico.
Por volta dessa mesma época, desenvolveu-se a literatura mitológica que narra a procedência dos deuses e do devir do mundo. Nesse período, destaca-se Hesíodo (700 a.C.), um dos poetas mais antigos da Grécia, a quem coube reunir antigos mitos sobre a genealogia dos deuses, os quais se apresentavam de modo antropomórfico, à semelhança do que ocorria em Homero.
Com o século VI a.C., permearam a Grécia formas de culto órficas, dionisíacas e outras, oriundas do norte da Trácia. A essas formas de culto, acrescentem-se as doutrinas secretas de origem oriental. A poesia órfica, em particular, gozou de grande prestígio e se propagou facilmente, muitas vezes, de forma anônima. Essas doutrinas teogônico-cosmogônicas foram, parcialmente, fundidas e fantasticamente ampliadas numa literatura mitológica ostentosa, cujo representante principal foi Ferécides de Siros (VI a.C).


2. Os primeiros filósofos e a questão de Deus

Os primeiros filósofos, conhecidos na historiografia filosófica, como pré-socráticos, estavam interessados na determinação da arkhé, o primeiro princípio absoluto de tudo que existe. A arkhé vem e está antes de tudo, no começo e no fim de tudo. É ela o fundo imortal e imutável da ordem do mundo; ela faz surgir todas as coisas e as governa.
Os primeiros filósofos, chamados também de naturalistas, se admiravam da perpétua instabilidade das coisas, bem como de sua aparição, desaparição, nascimento, geração e corrupção. Eles estavam, sobremaneira, interessados em investigar a totalidade que compreende tudo que é, ou seja, a phýsis. São muito variados os significados do conceito de phýsis; mas, para o que se seguirá, basta compreender a phýsis como o fundo originário de todas as coisas, ou como a força que as faz nascer, desenvolver-se e renovar-se incessantemente. A phýsis torna visível a arkhé invisível.
O período pré-socrático, que caracteriza o nascimento da filosofia, se estende do século VI a.C ao início do século IV a.C.
Passarei a enquadrar a questão de Deus nesse período de modo resumido. Posteriormente, tomo para caso ilustrativo da concepção de deus no interior da filosofia nascente o legado de Anaximandro.

2.1. A questão de Deus para os pré-socráticos

Havia, entre os primeiros filósofos, um interesse contínuo por ultrapassar a crença primitiva nos deuses. Segue-se daí o desenvolvimento de um conceito de deus mais elevado. Por exemplo, em Xenófanes, encontramos a concepção de deus como um e todo, um deus que é inteiramente visão, inteiramente pensamento. O princípio originário seria, pois, esse deus. Esse deus é imóvel, embora capaz de mover o universo por meio da força de seu espírito. Isso aludi ao Primeiro Motor Imóvel, do qual tratarei mais adiante, que Aristóteles identifica com deus.
Pensando a oposição imanência/transcendência, os primeiros filósofos conceberam um deus do mundo, um poder divino mais alto que governa esse mundo. Esse deus domina o mundo e dota de sentido o acontecimento do mundo. Não se trata – é preciso frisar – de um deus rigorosamente transcendente; trata-se de um deus cósmico. Insistirei nesse ponto ao longo do texto.
Na medida em que estou interessado em objetar àqueles que acreditam ser a questão de Deus marginal comparativamente às demais questões de que se ocupa a filosofia, procurarei articular os seguintes conjuntos de ideias, os quais apontam para a conclusão em sentido contrário.
O primeiro conjunto se identifica pela expressão um deus do mundo. Ora, a investigação da natureza, levada a efeito pelos filósofos pré-socráticos, carreia em seu bojo a questão de um princípio divino. Mas esse deus se situa no quadro de uma explicação da ordem natural. Esse deus é um deus do cosmos, um deus que atua ordenando e constituindo o mundo.
Do primeiro conjunto passa-se para o segundo conjunto, que toca à concepção de um deus do pensamento. Esse deus já não é mais o deus do mito, mas um deus do pensamento racional. Sua existência, no entanto, não tem de ser provada. Esta impõe-se ao pensamento. A questão que decorre daí diz respeito ao como se deve pensar o divino. Esse deus do pensamento é também, conforme se pode inferir do que já se expôs no parágrafo anterior, um deus do mundo.
O terceiro conjunto patenteia que esse deus não é autor de mandamentos, se bem que o homem esteja intimamente vinculado à ordem divina (ordem natural). O dever moral não provém de um deus transcendente, mas é lei natural. Tampouco se trata de um deus para o qual se dirigem orações (esse deus não é passível de adoração religiosa). Novamente, trata-se de um deus do pensamento filosófico, que não substituiu os deuses da crença religiosa.
O quarto conjunto de ideias se assenta na não-sepração entre sujeito e objeto. Na Grécia arcaica, sujeito e objeto ainda não estavam separados, de modo que esse deus não é um deus da interioridade subjetiva. O homem está vinculado a essa ordem divina, como disse, e seu pensamento participa da razão (lógos) do mundo, razão esta que ele experiencia como poder divino.
É somente com a sofística, culminando com Sócrates, que se desenvolverá uma reflexão sobre o pensamento e a vontade próprios. Com Sócrates, surge uma nova concepção de divino (daimon), que se lhe dirige para a interioridade e lhe dá recomendações.

2.2. O apeiron: o divino em Anaximandro

Anaximandro de Mileto (610-545 a.C.) teria sido, provavelmente, preceptor de Tales. A Anaximandro se atribui o primeiro escrito filosófico, intitulado de Sobre a Natureza. Dessa obra restou um único enunciado, que se traduz como se segue:

“O princípio originário das coisas existentes é ilimitado (apeiron). De onde, porém, consiste a geração dos seres, é também para onde ocorre a corrupção segundo a obrigação; pois eles pagam uns aos outros castigos justos e penitências por suas injustiças segundo a ordenação do tempo”.

Também a Anaximandro se atribui o mérito de ter sido o primeiro a, explicitamente, perguntar sobre o princípio originário (arkhé), não só como começo temporal, mas sobretudo como princípio a partir do qual tudo é gerado e ao qual tudo retorna, quando se corrompe, ou seja, princípio ontologicamente subjacente e sustentador.
Esse princípio é o princípio de tudo que é, princípio, portanto, dos entes. Anaximandro o chama apeiron, que significa o ilimitado. Também encontramos para esse termo os significados correlatos o indefinido, o indeterminado. Destarte, esse princípio de todas as coisas não é nem a água (Tales) nem qualquer outro elemento que se nomeia, mas um ilimitado, que difere, em essência, de qualquer outro elemento, e que gera todos os céus e mundos nele contidos. Esse princípio originário não pode ser um elemento determinado, mas deve ser anterior a todas as coisas e a todos os elementos determinados. Ele tem de ser plenamente indeterminado e ilimitado.
Não constitui tarefa fácil saber se Anaximandro consideraria o apeiron um deus ou divino. Para os meus propósitos, o que é mais importante é assinalar o modo como se deu a recepção da doutrina de Anaximandro. Considere-se, a seguir, a influência dessa doutrina na história do pensamento.


2.3. A recepção da doutrina de Anaximandro

A doutrina de Anaximandro suscita questões que não poderiam e não foram ignoradas pela posteridade. Uma delas consiste em nos convidar a pensar no fato de que os filósofos gregos do período arcaico relutavam em denominar “deus” (ho theos) o princípio originário supremo.
No mundo imaginário, deus reúne-se a outros deuses, ainda que se tratasse do deus supremo. Esse deus continuava submetido à pluralidade e à imanência. Por conseguinte, os primeiros filósofos preferiram caracterizar como princípio primeiro o “divino”. Esse princípio é a quintessência do divino. Destarte, o apeiron, enquanto divino mesmo, deve ser concebido como acima da pluralidade dos deuses singulares da religião.
Mais tarde, Heráclito, assim como Platão, seguido por Aristóteles, chamará esse princípio primeiro de o único deus. Esse deus será pensado como distinto da pluralidade dos deuses e como a divindade verdadeira.
O apeiron de Anaximandro exerceu grande influência na história do pensamento. Os Padres da Igreja cristã, indiferentes ao que realmente significava o termo na filosofia de Anaximandro, não hesitaram em lhe conferir o significado de infinito. Esses Pais da Igreja declararam ser Deus a infinidade absoluta e verdadeira; em outros termos, identificou Deus com o apeiron.
Anaximandro também influenciou, com sua doutrina do ilimitado, a ideia de Deus como o inominável e o inefável. Chamo a atenção do leitor para o fato de que a teologia cristã é demasiado devedora do contato com a produção filosófica grega. Na teologia negativa, que caracterizou o pensamento neoplatônico de Plotino, de Proclo e de outros, a influência de Anaximandro é notável. Destarte, nunca se pode dizer, no quadro dessa teologia negativa, de Deus o que ele é; somente o que ele não é, dado que ele está além de tudo que se pode dizer dele.
A teologia negativa influenciará, sobremaneira, o pensamento cristão e levará à constituição da doutrina clássica da analogia (de que São Tomás é um representante notável). Mas essa doutrina jamais conseguirá suprimir o elemento negativo do inefável e do incompreensível herdado da teologia negativa. Também a teologia mística será influenciada pela teologia negativa.
Em suma, encontramos já em Anaximandro a consideração de problemas fundamentais, tais como a) a questão do primeiro princípio de todo ser; b) a questão da geração e corrupção; c) da unidade e pluralidade; d) da culpa e da expiação; e) do mistério infinito e impronunciável de Deus. Esses problemas carrearão consequências para toda a história do pensamento e sinalizarão a pergunta sobre Deus.


3. A questão de Deus em Platão

A ideia de deus aparece em vários momentos ao longo da obra de Platão. No livro 10 da República, deus é a origem de todas as Ideias. Deus é concebido como o escultor originário, ou o formador do mundo (demiurgo). De sua atuação surgem as outras Ideias.
Também a Ideia do Bem foi chamada de Deus. Assim, Platão enuncia a alteridade do ser inteligível em face das coisas materiais e sensíveis e a alteridade do primeiro fundamento do ser em face de todo singular concreto.
No Timeu, deus se apresenta como aquele que dotou o mundo de alma, de modo a torná-lo “um ser animado e dotado de razão”.
Voltando à República, Platão se refere a uma figura demiúrgica purificada, o Phytourgos, que identifica com o autor da natureza. Ele é o autor último, fabricante da Natureza. Se o Demiurgo é um intelecto que contempla o modelo fornecido pelas Formas, o Phytourgos, por seu turno, nada contempla, apenas confere o ser, que será, posteriormente, reproduzido na cópia sensível e imperfeita.
A teologia platônica fornece exemplos de figuras mitológicas purificadas. Quer consideremos o Intelecto real do Filebo, quer consideremos o Demiurgo do Timeu, o Artesão do Sofista, todas essas figuras dão forma a sua doutrina da eficiência e servem para identificar o “deus” com a força que produz a phýsis.
Para os fins a cuja satisfação me proponho, é importante patentear o modo como a teologia platônica foi recebida pela tradição.
Lembremos, para tanto, que, segundo a interpretação tradicionalmente dominante, as Ideias existem enquanto essências em si mesmas. Donde se segue a questão: essas Ideias já não seriam concebidas como pensamento de um espírito pensante, ou seja, de um deus mesmo? Tal é a interpretação predominante no neoplatonismo e que encontraria abrigo cedo na Academia platônica.
Plotino, por exemplo, veria as Ideias como pensamento da razão (nous), mas não do uno originário divino. Elas são pensamento da primeira emanação do princípio originário divino. No pensamento neoplatônico cristão de Santo Agostinho, as Ideias também se tornam pensamento, mas agora pensamento de Deus mesmo. Para Agostinho, as Ideias são Ideias eternas no espírito de Deus. É desse modo que a doutrina das Ideias de Platão será interpretada pelo pensamento cristão e o moldará.
No começo da Idade Moderna, elas se tornarão ideias inatas do espírito humano, com Descartes, e continuarão a servir de modelo para as Ideias da razão pura de Kant.
No tocante à doutrina de deus em Platão, sem embargo de sua problematicidade, ela encerra a concepção de um ser supremo que é a plenitude do verdadeiro, do Bem e do Belo, a quintessência de toda perfeição. Ademais, é dessa plenitude que deriva toda a ordem e toda a beleza do mundo, bem como todas as normas da ação humana boa.
Esse deus é um ser espiritual e racionalmente atuante. Mas ele não é o criador do mundo, somente seu ordenador e condutor (demiurgo). É preciso enfatizar que esse deus é objeto de desejo e de todo amor ao supremo e ao belo. É assim que o pensamento platônico determinará a busca e o anseio por deus, até mesmo a união mística com ele, em todos os tempos na história humana.

4. A questão de Deus em Aristóteles

Conquanto a metafísica não seja um termo aristotélico, foi Aristóteles quem nos deu a saber quatro definições de metafísica. Antes, porém, de enunciá-las, preciso notar que ele usou a expressão filosofia primeira e teologia em oposição à filosofia segunda ou a física.
A metafísica aristotélica é a ciência que se ocupa com as realidades que estão além das físicas; ela se ocupa das realidades suprafísicas e se opõe à física.
O estagirita define como se segue o escopo da metafísica: 1) a metafísica indaga-se sobre as causas e os princípios primeiros ou supremos; 2) indaga-se sobre o ser enquanto ser; c) indaga-se sobre a substância; d) indaga-se sobre Deus e a substância supra-sensível.
Para Aristóteles, a metafísica é a ciência livre por excelência, porquanto tem em si mesma o seu fim. Ainda que a questão de Deus figure na sua ética, é no interior da metafísica que ela reivindica a atenção especulativa do filósofo. Para o estagirita, o homem que se dedica à metafísica aproxima-se de Deus e nisso reside a máxima felicidade do homem.
Em Aristóteles, Deus é pensado como o Primeiro Motor Imóvel. Aqui já se nota um monoteísmo que se expressa na separação nítida do Primeiro Motor de outros moventes. Esse Primeiro Motor Imóvel se situa num plano totalmente diverso, de modo que de sua unicidade se deduz a unicidade do mundo.
No entanto, o monoteísmo parece superar-se quando Aristóteles admite que as cinquenta e cinco substâncias motoras (as esferas celestes individuais) são também substâncias imateriais eternas que independem do Primeiro Motor. O Deus de Aristóteles não é o criador das cinquenta e cinco inteligências motoras.

4.1. Deus e o mundo

Deus, ou o Primeiro Motor Imóvel, pensa e contempla a si mesmo. Entanto, esse deus, certamente, não tem conhecimento da existência do mundo e dos princípios universais do mundo. Aristóteles sustenta que ele é o princípio supremo; é objeto de amor e de atração de todo o universo. Mas esse deus não ama. Os indivíduos não são objeto de amor desse Deus. Deus não se ocupa de cada indivíduo. Aristóteles pensa que cada um dos homens, cada uma das coisas tende para Deus de modos vários, mas Deus, porque não pode conhecer, também não pode amar nenhum homem individualmente.
Deus pensa o que há de mais excelente; mas, como o que há de mais excelso é o próprio Deus, segue-se daí que Deus pensa a si mesmo. Para Aristóteles, o Primeiro Motor Imóvel é também atividade contemplativa de si mesmo; é pensamento de pensamento.

5. Conclusões

Em toda a filosofia grega pré-cristã, deus nunca é reconhecido como o criador do mundo. Ele tão-somente é concebido como ordenador e formador do mundo. É a razão do mundo, o demiurgo. Os gregos desconheciam o conceito de Criação ex nihilode sorte que deus forma um mundo a partir de uma matéria já existente.
Esse deus não é também o fundamento único e absoluto, uma vez que existe a matéria como outro princípio necessário do mundo. É tão-só no neoplatonismo que a matéria se tornará elemento que emana de um princípio divino (Plotino). No entanto, ainda não haverá aqui um ato livre de criação; a matéria é produto de uma emanação necessária.
O pensamento grego não formulou o conceito de deus como pessoa. Aliás, o conceito de pessoa, tal como nós o entendemos, era desconhecido dos gregos. Há, decerto, esboços que nos permitem entender Deus como ser racional, como subjetivamente pensante, por exemplo, em Platão e em Aristóteles. Todavia, não há sequer alusão a um ser dotado de vontade e ação livres. Berti (2006), em um texto que se topa no livro Os filósofos e a questão de Deus, é uma voz divergente, nesse tocante. Para ele, se o deus de Aristóteles é um ser vivo eterno e feliz, no sentido grego da palavra theos, então ele será um deus dotado de intelecto e vontade, muito embora, reconhece o intérprete, que esse deus não é o Deus criador e providente da Bíblia.
Esse deus do pensamento filosófico não é um deus passível de adoração religiosa. Ele é um deus do mundo, e não um deus do homem. Decerto, há um esforço orientado para a união com Deus (Plotino), mas esse deus não é uma pessoa a quem se pode rogar auxílio e a quem se pode adorar.
Os gregos rezavam para os antigos deuses de seu panteão, os quais não foram substituídos pelo deus único da razão filosófica. O deus de Platão  e de Aristóteles, bem como os de seus predecessores, não é um deus pessoal, tal como o Deus da tradição judaico-cristã, em virtude de não ser passível de relação afetiva com o homem. Não é um Deus pessoal também porque não é capaz de despertar confiança e bem-querer. Não é o Criador todo-poderoso e Pai de amor.


Que não reste dúvida sobre a importância da questão de Deus desde os primórdios da filosofia e sobre o interesse filosófico que ela suscita até os nossos dias . Essa questão se impunha aos primeiros filósofos em decorrência de sua investigação sobre o primeiro princípio ou causa primeira do ser. Deus, enquanto questão para o homem, se coloca, portanto, como o mais eminente e originário desafio filosófico.