segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Sou filho do cansaço - Poema


                                               




O meu cansaço

Sou filho do cansaço
Sinto-me cansado de tudo e de todos
É assim mesmo indefinível
Este cansaço de tudo que não tem nome
De todos que não identifico

Meu cansaço é deste tempo (deste passatempo)
Desta hora, deste instante inapreensível
Meu cansaço flerta com este desencanto
Que sinto como canto retumbante no corpo
E traz à alma convulsões de notas fúnebres
E deste desencanto o cansaço não se discerne

Meu cansaço é cansaço do excesso
E das rasuras de uma geração epidérmica
Que não cessa de arranhar a superfície do verbo
E se contenta com palavrear o mais do mesmo

Meu cansaço é do palavrório
Da lava de mediocridade que grassa
E deserda os espíritos notáveis
De suas forças instintivas

Meu cansaço é um cansaço de poesia
Que se tematiza para virar pretexto
De uma expressão desencantada
Meu desencanto é um canto cansado
Inaudível, ininteligível, de morte

Sinto-me cansado de mim e de meu passado
Do que fui, do que sou, do que não serei
Cansado deste sol, deste céu, destas estrelas
Que costumo diariamente ignorar
Porque tenho de viver a arrastar
Esse cansaço até a hora derradeira
Em que de mim nem desencanto sobrará
Senão um testemunho grosseiro
De um cansaço ósseo
De uma ossada vencida pelo cansaço.
E só dele nada mais restará
Se em cinzas convertida
E ao vento lançada.

(BAR)


"A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes" (Karl Marx )

                           
                         

                                                                                      


                                   Uma filosofia da práxis
                             Marxismo e materialismo histórico


1. Karl Marx


Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, nascido em Trier, proveniente de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra exerceu grande influência em sua época e um significativo impacto na formação do pensamento social e político contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu quando da ocasião em que entrou em contato com a obra dos economistas ingleses Adam Smith e David Ricardo e rompeu com o hegelismo e com a tradição idealista da filosofia alemã. Malgrado essa ruptura, o pensamento de Marx deve muito à filosofia de Hegel e ao materialismo de Feuerbach no qual foi buscar o conceito de alienação. Marx reconheceu em Feuerbach o mérito de ter superado a dialética idealista de Hegel, mas lhe censurou a incapacidade de analisar adequadamente a autoconsciência e suas projeções religiosas num quadro de referência que abrigasse a influência determinante de forças econômicas e sociais fundamentais. Para Marx, todo o materialismo ao longo da história do pensamento, inclusive o de Feuerbach, apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis. O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo – tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo, porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.
De Hegel Marx tomou emprestado o conceito de dialética; no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo dialético, que assenta na proposição segundo a qual a contradição que move a história não é a contradição do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, mas a contradição que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais. Essa contradição, de acordo com Marx, tem um nome. Chama-se luta de classes.  Os indivíduos só formam uma classe porque se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe; do contrário, eles continuariam a se enfrentar uns aos outros com hostilidade em termos de competência. O sujeito da história não é o Espírito, consoante pensava Hegel, mas as classes sociais em luta. A história passa, então, a ser concebida não mais como história das realizações do Espírito, mas a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.
Foi, portanto, a partir tanto da ruptura com a tradição idealista hegeliana, na esteira da qual o real era compreendido a partir da ideia, quanto da revisão crítica do materialismo intuitivo de Feuerbach, cujo problema fundamental foi não considerar a práxis histórica, que se desenvolveu o chamado materialismo histórico, termo de que fez uso Engels (posteriormente Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Marx. Antes de considerar, em linhas gerais, esse método, cumpre dar a conhecer quem foi Friedrich Engels, principal colaborador e amigo íntimo de Marx.


2. Friedrich Engels

Engels (1820-1895) também era alemão e também sofreu influência do hegelismo. Tendo estudado na Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos “jovens hegelianos”. Engels não foi só um colaborador teórico de Marx, mas também seu amigo mais íntimo, tendo-o assistido, inclusive, financeiramente. Ambos escreveram quase sempre juntos, o que torna difícil distinguir, entre as principais teses do marxismo, quais são as ideias de Marx e quais são as de Engels.
Admite-se, contudo, que o materialismo histórico é um produto típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no desenvolvimento da filosofia marxista.


3. Materialismo histórico

Impõe-se-me esclarecer agora o materialismo histórico. Esse método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.
A dimensão histórica do materialismo repousa, portanto, sobre o fato de ele assumir a perspectiva  segundo a qual a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. É preciso, no entanto, salientar que só relativamente as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas também por fatores ideais.
O materialismo histórico se opõe a toda forma idealista de pensamento, ou seja, a toda forma de pensamento que pretende dar primado teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao “Espírito”, tomados esses conceitos como realidade primeira, em detrimento das relações sociais, particularmente as relações sociais de produção. À luz desse método de análise e de interpretação do real, a natureza humana e as formas históricas das sociedades são consideradas relativamente às relações de trabalho concretas, diversas e mutáveis. Por conseguinte, não admite que o “Espírito” possa ser pensado como o “Sujeito” da história ou o princípio organizador da totalidade social.
A dimensão histórica do materialismo repousa sobre a assunção de que a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. O materialismo histórico vê a História à luz da articulação de duas dimensões, a saber, a da superestrutura e a da infraestrutura, uma das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a realidade primeira. A ideia de materialismo, neste quadro de referência, sublinha o fato de se conceber a infraestrutura, a dimensão material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a formação da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral.
Não obstante, é sempre importante ter em conta o fato de que a infraestrutura, embora determine, em última instância, a superestrutura, não é o domínio exclusivamente determinante. Destarte, a produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.


4.  Marxismo

Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política, considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e Friedrich Engels.
O próprio termo marxismo, assim compreendido, dá margem à tendência de distinguir o pensamento de Marx do pensamento de seu amigo e colaborador Engels. É possível também identificar diversas formas de marxismo, seja em razão das diferentes interpretações do pensamento desses autores, seja em razão de juízos de valor com base nos quais haveria um marxismo que se deve aceitar e outro que se deve rejeitar.

Doravante, descerei a pormenores sobre os conceitos da doutrina marxista. Começarei por esclarecer o método dialético de Marx; em seguida, apresentarei e definirei os conceitos de modo de produção e meios de produção; posteriormente, serão contemplados, nesta ordem, os conceitos de ideologia, trabalho e valor, mercadoria, mais-valia, fetichismo de mercadoria, alienação  e práxis. Na sexta seção deste trabalho, vou apresentar, em linhas gerais, a visão de Engels sobre o Estado, situando-a no lugar de confronto com a visão hegeliana de Estado. Na sétima e última seção, apresento, também em linhas gerais, a dialética de Hegel, tendo em vista sua influência no pensamento de Marx.


5.  A dialética marxista

5.1. Modo de produção e meios de produção

Desde já, urge frisar que a dialética de Marx é a antítese da dialética de Hegel. A dialética de Marx se pretende crítica e revolucionária; ela se apresenta numa forma “racional” e não, como a de Hegel, mistificada. A dialética marxista está calcada sobre concepção de realidade como uma totalidade complexa e marcada por contradições. Ela rejeita as abstrações dos economistas clássicos, que, conquanto acreditassem haver uma oposição fundamental entre o consumo e a produção, não se aperceberam de que essa oposição era apenas aparente e de que, em essência, o consumo e a produção são indissociáveis.
Se, por um lado, Hegel transformou em sujeito autônomo a ideia, entendida como o demiurgo do real, o qual se reduziu a uma manifestação daquela; por outro lado, para Marx, a ideia ou o ideal não é nada mais que o material transposto e traduzido na consciência do homem. Por conseguinte, o motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de produção e reprodução da existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de trabalho e não-proprietários (trabalhadores assalariados, escravos, etc.).
A matéria de que fala Marx é, portanto, a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como eles pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens.
De acordo com essa perspectiva, o sujeito da história não é o Espírito (Hegel), mas as classes sociais em luta. As classes sociais não são ideias, mas relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas de propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas. As classes sociais também são determinadas pelo modo como os homens, em suas condições materiais de existência, representam para si mesmos o significado daquelas instituições, mediante sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. Esses sistemas de ideias cuja função é mascarar o significado real de suas relações sociais materialmente determinadas são chamados de ideologia. Antes de considerar o conceito de ideologia, necessário é dar a conhecer o significado dos conceitos de modo de produção e meios de produção.
Modo de produção designa a relação determinada que as forças produtivas e as relações sociais mantêm entre si. As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. No momento em que desenvolvem novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e, mudando seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam também todas as relações sociais. O modo de produção, portanto, na visão histórica da dialética marxista, determina a forma das relações sociais. Os meios de produção, a seu turno, recobrem o conjunto de ferramentas, instrumentos, terra, maquinaria indispensáveis ao processo de trabalho e que constitui a propriedade do capitalista.
Na dialética materialista, a produção é imediatamente consumo; e o consumo, imediatamente produção. Um é imediatamente o oposto do outro.


5.2. Ideologia

Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária à dominação de classe. Por ilusão, deve-se entender abstração e inversão. A abstração é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que se presta à classificação, à ordenação, sem que nunca nos indaguemos como tal realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, ou seja, porque produzida por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Por inversão deve-se entender o fato de se tomar o resultado de um processo como se fosse o seu começo, de se tomar os efeitos pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Assim, a ideologia, porque é abstração e inversão, permanece sempre no plano imediato do aparecer. Em suma, a ideologia, segundo Marx, é o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Por influência da ideologia, a relação entre o real e a ideia aparece para a consciência de modo invertido: não mais o real justifica a ideia, mas, ao contrário, a ideia é que explica o real.


5.3.  Trabalho e valor

A condição sine qua non da história é a satisfação das necessidades. Para satisfazê-las, os homens constroem os meios necessários. Atingindo o seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificar a natureza pelo trabalho, os homens modificam, pelo trabalho, a si mesmos. Numa primeira aproximação, o conceito de práxis, no interior da teoria marxista, recobre a relação dialética entre o homem, o trabalho e a natureza. Retomarei esse conceito na seção seguinte. Por ora, descerei a considerações sobre os conceitos de trabalho e valor.
Todo processo de trabalho produz um valor, que é, inicialmente, um valor de uso, ou seja, algo útil à vida humana, passível de ser trocado por outro valor de uso (por exemplo, uma camisa por um sapato). Assim, a utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca é, por seu turno, uma forma que a mercadoria assume enquanto relação quantitativa, isto é, enquanto proporção na qual se dá a troca entre os valores de uso. Ele surge com a divisão social do trabalho e como tal tende a eliminar a dimensão de utilidade do produto do trabalho e a reduzir o próprio trabalho a uma dimensão abstrata, indiferenciada.
O valor de troca do produto do trabalho não reside no objeto produzido, tampouco na sua utilidade. Na relação de troca, esse valor aparece como independente do valor de uso. O que torna possível a troca não é a utilidade, mas o fato de os objetos serem produtos do trabalho. A fim de dilucidar a distinção entre esses dois conceitos, é imperioso considerar a gênese da mercadoria.
O que é a mercadoria? A mercadoria não é a coisa em si, mas um valor. Como valor de uso, vale por sua utilidade; como valor de troca, vale pelo preço no mercado. O valor de troca comanda o valor de uso.
Acontece que o valor de troca não é determinado pelo preço como aparece à primeira vista. O valor da mercadoria não é fixado no momento em que ela entra em circulação no mercado e é consumida. Seu valor é produzido em outro momento e se forma pela quantidade de tempo de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo gasto diretamente na fabricação da mercadoria, mas inclui também o tempo para produzir as máquinas, o tempo para extrair e transportar a matéria-prima, etc. Esses tempos são tempos de trabalho da sociedade.
O preço da mercadoria também encerra o salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa mercadoria, pagamento que é chamado de custo de produção e que é o suficientemente necessário para que ele se alimente, se aloje, se vista, se transporte e se reproduza, gerando filhos para o mesmo trabalho de produzir mercadorias. A mercadoria é, portanto, trabalho social concentrado e não uma coisa.
A mercadoria, enquanto problema teórico, demanda um pouco mais de atenção. Situando-a no modo de produção capitalista, deve-se dizer que o dinheiro também é uma mercadoria. Cada modo de produção (antigo, escravagista, asiático, feudal e capitalista) é constituído pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção a elas relacionadas e cujo epicentro é um determinado tipo de propriedade dos meios de produção. O modo de produção capitalista se caracteriza pela separação entre o trabalho livre e a propriedade dos meios de produção, separação que se acompanha da produção da mais-valia (conceito a que destinarei uma seção mais adiante) e da formação do próprio capital. Nesse contexto, surgem as novas classes sociais e as formas de relação entre elas: o proletariado, expropriado dos meios de produção (inclusive da terra) que, para viver, precisa vender sua força de trabalho, que não é senão uma mercadoria; e o capitalista, proprietário dos meios de produção e dono do capital. Retomarei o tema da mercadoria, quando me debruçar sobre o conceito de fetichismo da mercadoria.
Convém, agora, definir o termo capital. O capital se constitui com a condição de o possuidor do dinheiro poder trocá-lo pela capacidade de trabalho de outrem, que é mercadoria. Portanto, é necessário que a capacidade de trabalho seja colocada à venda, como mercadoria, no processo de circulação, para que o dinheiro se transforme em capital.
Para sobreviver, o proletário precisa vender sua força de trabalho, a qual passa a ser encarada, na relação antagônica e desigual entre proletariado e burguesia, um valor de troca, uma mercadoria. No domínio do aparecer social, o salário do trabalhador se apresenta como valor de seu trabalho, isto é, como uma certa quantia de dinheiro paga por uma quantidade de trabalho equivalente. Deveras, o que se dá não é isso; e para entendermos o que se passa nessa relação – que, conforme veremos, é de expropriação do proletário pelo capitalista- , devemos compreender o conceito de mais-valia, tema de nossa próxima subseção.


5.4. Mais-valia

No circuito capitalista do dinheiro, cuja configuração supõe a relação dinheiro-mercadoria-dinheiro, a mercadoria comprada é a força de trabalho, a única mercadoria cujo consumo produz um outro valor de uso (o produto do trabalho). A diferença entre o valor da força de trabalho e o valor do produto do trabalho constitui a mais-valia, sem a qual não existiria o capitalismo.
A mais-valia corresponde a uma certa quantidade de trabalho excedente não-pago. A mais-valia é o lucro do capitalista. Para os trabalhadores, essa quantidade de trabalho não remunerado apresenta-se como o mais-trabalho que suplanta a quantidade de trabalho imediatamente necessária à manutenção da condição vital deles. A acumulação da mais-valia está na origem do capital. Graças à mais-valia, a mercadoria não é um valor de uso ou um valor de troca qualquer, mas um valor capitalista (eis a síntese dialética). Dialeticamente, o valor de uso se apresenta como a tese, o valor de troca como a antítese e, finalmente, o valor capitalista é a síntese.


5.5.  Fetichismo da mercadoria

O conceito de fetichismo da mercadoria prende-se intimamente ao conceito de alienação; mas desses conceitos tratarei em seções separadas.
Em vez de a mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se derivasse de um dom natural das coisas. As coisas-mercadoria começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria. A mercadoria passa a ter vida própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sozinha.
O fetichismo da mercadoria desdobra-se, por conseguinte, em dois momentos. O primeiro momento do fetichismo é o fato de a mercadoria ser um fetiche, uma coisa que existe em si e por si mesma. O segundo momento diz respeito ao fato de a mercadoria, à semelhança do fetiche religioso, exercer poder sobre seus crentes ou adoradores, dominando-os como uma força estranha. O mundo transforma-se numa grande fantasmagoria.


5.6. Alienação

Retomando-se a ideia de que a mercadoria exerce um poder sobre os homens e os domina como uma força estranha, tornar-se-á mais fácil compreender o conceito de alienação. A alienação é a condição em que se encontram tanto os trabalhadores como a própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles, trabalhadores,  e o produto do seu trabalho. O trabalho, no modo de produção capitalista, é trabalho alienado. Vejamos o porquê.
A alienação é, segundo Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se trabalho forçado, o homem e a natureza se separam completamente, e os trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. É preciso sublinhar este fato, que caracteriza fundamentalmente a condição de alienação: o trabalhador não se reconhece mais no produto de seu trabalho. Segundo Marx, porém, a alienação não aparece apenas no resultado, mas também no interior da própria atividade produtiva. Assim, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, ele não pertence à sua essência. O trabalhador não se afirma em seu trabalha, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado: a de um trabalhador que, negando-se no trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz, mortificado. Tudo o que, na verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade, o trabalho) aparece na sociedade burguesa e na sua economia como esvaziamento e alienação.
No contexto da luta de classes, as ideologias funcionam como o cimento da sociedade, na medida em que produzem um senso comum que serve para mascarar a luta de classes. A classe que exerce o poder material ou o domínio material numa dada época também exerce o domínio espiritual. As ideologias, forjadas pelas classes dominantes, têm como função básica ocultar as condições de dominação vigente, mas também podem servir como um conjunto de referências para a tomada de consciência. A produção das ideologias é indissociável do processo de vida real, ou seja, do processo de produção material da vida real. A produção das ideias, das representações, da consciência está, em primeiro lugar, entrelaçada com a atividade material e com as relações dos homens.
O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalho, mas do proprietário das condições do trabalho. Constituem três os fatores que tornam as atividades humanas acontecimentos independentes dos homens: alienação, reificação e fetichismo. Esses fatores estão na base de um processo fantástico pelo qual as atividades humanas começam a realizar-se como se fossem autônomas ou independentes dos homens, passando, assim, a dirigir e comandar suas vidas, sem que eles possam exercer sobre elas controle.
Por fim, cumpre dizer que as ideias originam-se da atividade material, mas essas ideias representam o modo como a realidade das condições materiais aparece na experiência imediata dos homens.


5.7. Práxis

Vimos que a práxis pode ser definida, num primeiro momento, como a relação dialética entre homem, trabalho e natureza. Na práxis, o homem modifica a natureza por meio do trabalho e, no trabalho, modifica a si mesmo. Há, contudo, outro significado de práxis cuja elucidação se faz necessária. Quando consideramos a práxis na sua relação com a filosofia marxista, isto é, quando a situamos no interior do quadro teórico-metodológico do marxismo, a práxis é uma compreensão teórica da realidade, é sua explicação e transformação. A práxis constitui, portanto, o elemento vital da constituição do marxismo. Apresenta-se como núcleo do pensamento de Marx.
Relembremos aqui a famosa passagem de Marx – “O que os filósofos fizeram até o momento foi interpretar o mundo; o que interessa, porém, é transformá-lo”, a fim de que entendamos a práxis como crítica e a filosofia que subjaz a ela como crítica do real. A filosofia não tem em si o poder de transformar o real; por isso, precisa realizar-se por meio da práxis. A passagem da crítica ao real, ou seja, do plano teórico ao prático, é a revolução. A práxis é uma atividade transformadora e emancipadora. Nesse sentido, o marxismo se apresenta como uma filosofia da ação, uma filosofia da práxis.


6. O Estado

Segundo Engels, o Estado constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses da classe dominante. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade privada.
Na visão de Engels, o Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, tornou-se independente dela, tanto mais se foi convertendo em um instrumento de poder de uma determinada classe sobre outra. O Estado está a serviço das classes dominantes, na medida em que lhes serve de instrumento para o estabelecimento e legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do Estado para instaurar sua dominação e para garantir seus privilégios.


7. A dialética de Hegel: um diálogo entre Hegel e Marx

Sem perder de vista a questão da concepção do Estado à luz do marxismo, tema que continuo a desenvolver nesta última seção, trago à baila como a dialética se desenvolveu no pensamento de Hegel, tendo sempre em vista o confronto com a dialética marxista.
Começo por notar que o termo dialética (diálogo, em grego, ou o pensamento e a palavra (logos) divididos em polos contraditórios), em Hegel, consiste num método de interpretação da História, à luz do qual ela é um processo temporal movido internamente pelas divisões ou negações (contradições), cujo sujeito é o Espírito como reflexão.
A dialética hegeliana é, portanto, uma dialética idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura), embora apareçam como fatos e coisas, são ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas produz ideias e é ideia.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é Espírito. O Espírito é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da história.
O que é o Estado, para Hegel? O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Segundo Hegel, somente no Estado o cidadão torna-se verdadeiramente real e somente nele define-se a existência social e moral dos homens. O Estado torna-se, assim, o Espírito Objetivo.
No idealismo hegeliano, o Estado é uma comunidade, mas difere da família e das classes sociais, porque não possui aparentemente nenhum interesse particular, mas, ao contrário, representa apenas os interesses comuns a todos. O Estado não é um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade concebida como Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política, por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito.
Engels, naturalmente, discordará de Hegel, sobretudo no tangente à ideia de que o Estado não tem interesse particular. E Marx, embora conserve o conceito de dialética, legado de Hegel, como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição, rompe com o pensamento de Hegel, ao demonstrar que a contradição não é a do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a contradição de sua exteriorização em obras com sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais, e essa contradição – reitero – chama-se luta de classes.

Hegel concebia a história como o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, como história das realizações do Espírito; Marx, ao contrário, rejeita essa visão idealista, insistindo em que a história é a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.

sábado, 8 de novembro de 2014

Poemas - Os bastidores de uma prosa amorosa


                                                   

                                                                      


Desesperadamente


Amemos! Não sem cuidado
Pois o amor dentre as coisas débeis
É deveras a mais frágil

Amemos como as crianças
Sem saber por que ou para que
Amemos sem razão e com gratuidade
Amemos à proporção de nossa saudade
Daqueles que jamais tornaremos a ver

Amemos como se amanhã fôssemos morrer
Amemos como se morre todos os dias
Amemos porque uma vida sem amor
É coisa terrível de suportar
Amemos desesperadamente
O desejo de amar

(BAR)



               Os bastidores de uma prosa amorosa
                                

Deixa-me dizer-te uma coisa.  Não acredites em tudo que escrevo; tão-só afia-te no que não consigo escrever, no que permanece no silêncio que se ouve por detrás das minhas palavras, ou no interstício entre elas; pois somente assim compreenderás que sou desmesura quando amo e que, quando não amo, quase sempre, componho um canto suplicante de amor fremente. Se te esforçares por auscultar o logos do meu silêncio, saberás que sou amante das horas solitárias, das sutilezas, do inapreensível e que, sendo eu indizível que se diz insistentemente, costumo dar corpo a ilusões ordinárias.
Se pretendes aprender alguma coisa com minhas palavras, ou mesmo se esperas delas algum conforto ou alento, advirto-te de três coisas: que nada posso ensinar, que minhas palavras podem até desesperar, e que nada delas é possível esperar senão uma embriaguez de desalento.
Também é imprudente pretender contemplar nelas alguma beleza que não seja a que se deixa entrever, a que gosta de esconder-se. Se há uma beleza suscetível de ser contemplada, nunca estará ela a descoberto. Sugiro que a procures no lugar próprio do não-dito, ou nas regiões do inefável, ou ainda no domínio daquilo que, se dizendo, se põe ao abrigo do silêncio inquisidor.
Por fim, se esperas de mim um amor que te aguarda na ante-sala da prosa ou no anfiteatro dos versos, desiste, pois que o amor que te devoto é amor de bastidores, onde improvisamos nossa história de enlace, onde não ensaiamos nosso romance, que é cotidianamente reinventado. O amor que te consagro é um canto que se deixa sentir nos recônditos do silêncio das palavras que, a cada vez enunciadas, inaugura o espetáculo do indizível.
Assim, deve ser o amor nesse grande teatro que é a existência, onde o trágico e o cômico se harmonizam para compor uma sonata candente: é esta um desejo de silêncio amoroso imperturbável que dá corpo, gozo e fôlego ao indizível.




Canto de desmesura


Eu canto a desmesura e nela repouso
A minha voz que se veste do indizível
Meu canto é um canto lírico de desgosto
Por ver no amor a realização do impossível

Quando amo sou excesso num instante
Sou eu o indizível que se diz insistentemente
Quando não amo entoo um canto suplicante
Que se faz sentir de amor fremente

E saberás, quando ouvi-lo, que sou amante
Das horas solitárias, das noites tempestuosas
Que dou corpo aos acenos intangíveis

De uma alma desassossegada e desejante
Dos encontros de dor, das ternuras amorosas
Que se cantam em versos imperecíveis


(BAR)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

"Há um mistério em mim que me desnuda, uma luz opalina que me ofusca" (BAR)

                    


                             O lusco-fusco do retorno



             Outrora minhas palavras eram tão densamente impregnadas de lirismo que, pesando sobre o papel, o dispersava, quer por fraqueza, quer por costume. Até que, um dia, intuí uma verdade subjetivamente sustentável: escrever é desnudar-me. E quem se dispusesse a ler-me contemplar-me-ia toda a alma nua. Certamente, essa nudez de que falo não garante o entendimento de qualquer contemplador, porque a nudez desvela profundezas, abismos impenetráveis aos espíritos habituados à superfície. Revisitando escritos antigos, compilados em apostilas, percebo-me, algumas vezes, aqui e ali, inteiramente derramado; outras vezes, em retalhos; outras ainda, repartido em escombros. Há alguns anos, era assim que me sentia, que me experimentava: retalhado. Leia atentamente, leitor ausente, este meu poema de outrora, a fim de que se ilumine o sentimento a que até aqui dei materialidade verbal:


De mim um pouco

Existe um pouco de mim que se perde nas entranhas das palavras...
... um pouco de mim que se dilui nas vísceras do tempo
Um pouco de mim que se derrama sobre o Céu ao encalço das estrelas
Aqueles diamantes que reluzem no breu ultrajante de minha ignorância

Existem resíduos de mim no coração de algumas moças...
Imagens translúcidas de um coração acostumado a fugas
Existe uma dose de mim no olhar dessas ilusões encarnadas
Uma dose entorpecente que as faz indiferentes ao meu sacrifício
Existem pedaços de mim espalhados no santuário feminil lascivo e cândido
Onde alguns homens se concentram...

Existem sombras de mim na existência intrigante de Deus...
E uma cruz em meu caminho, ao pé da qual dormem meus sonhos...
Sonhos crucificados, por altivos e imensos...
Existe uma voz em mim que não cala, uma voz enlouquecida...
A que indaga de Deus acerca das qualidades que o tornam soberano
Onipresente, Onisciente e Onipotente – tudo rima com ausente...
E a ausência de Deus é um pedaço de mim que se esvai...
... Que se esvai nos abismos de minha alma endoidecida...
Como disse o eminente filósofo alemão, “Deus está morto”
E a morte de Deus é a morte da eterna esperança humana:
A esperança de compreender e recriar o Amor.

Se Deus está morto – ou sempre esteve morto,
... Existem lembranças de mim enterradas em corações
Que pulsam numa cova funda...
Existe de mim um pouco que se dissipa em cada instante
E minha respiração denuncia minha morte
E estar vivo é simplesmente conseqüência do nascimento
E Deus, a existência, o infinito, o sonho e o Amor...
São fantasmas que nos assombram durante o sono da morte
Existe um eu de mim no outro de cada um...

Mas em mim só existe o vácuo de um cosmo imaginário...
E se lanço olhares sobre a bela jovem que me oferta atenção,
São todos furtivos, retraídos, silentes...
Porque existe de mim um pouco que é indigno, que é sofrível
Existe em mim a morte e a vida, num enlace anímico
E minha alma exala aromas indecifráveis, incompreensíveis, imperceptíveis
... Aromas de um túmulo de vida
E no útero da morte jaz a visceral razão para viver:
O Amor sempre esteve antes do homem: é uma ausência que o preenche,
Existe de mim poeiras de uma plenitude indizível do amor,
E este Amor nunca nascera, foi abortado no ventre dos Céus;
E minha alma é um aborto de um Deus que é morto.

De mim existem palavras amordaçadas, vozes acuadas... sobreviventes
Da lança do destino...
Existe de mim um pouco que não me suporta
Ou que me ama me agredindo...
E me quer vivo.

(BAR)

Não só de poemas foram feitos os retalhos de minha alma; também a costurei com prosas – prosas que, quiçá, agradem, mormente, os doutores da alma, sempre muito interessados por decifrar a linguagem simbólica do inconsciente, cujos sentidos, inacessíveis ao sujeito, se deixam apreender entre os desvãos das palavras. A minha prosa escrita fora um exercício de psicanálise. Dei-me (e dou-me) a conhecer com uma clareza obscura, iluminei-me (e ilumino-me) lançando sobre minha alma uma extensa faixa de sombra. A nudez é mais excitante no lusco-fusco. Toda nudez prontamente dada arrefece o desejo. Ela precisa dar-se escondendo-se, doar-se na medida mesma em que se recolhe. Recolhendo-se, a nudez conserva sua intimidade profunda, seu mistério.
Os que são pouco familiarizados com o legado da psicanálise tendem a reduzir as pessoas à sua fachada social; ignoram o fato de que cada indivíduo é um mistério em si e para si. O inconsciente é uma terra esquecida de nós. É a terra que nos é mais própria. É o relicário onde reside nosso assombro. “A mente – escrevi, certa vez – tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde residem os gritos de um “eu” encarcerado”. Não é escusável dizer que este fragmento resgato de um período em que eu vivia naufragado numa lancinante depressão. A depressão é este estado em que nos afundamos em nós mesmos. Mas pode ser – e o foi para mim – um estado enfermo de extensa, duradoura e profunda atividade intelectual e lírica. Quero frisar que a depressão pode servir para o autoconhecimento. Há dor, certamente, nesse estado patológico; uma dor funda, com ressonâncias somáticas. Mas, alguns dentre nós fazem dessa dor uma arte própria – não sem alguns estragos. Segue-se mais um poema daqueles tempos desditosamente exuberantes. Leia-o, leitor, enquanto me esforço por desentortar alguns pensamentos e pavimentar mais alguns caminhos verbais; pois que não é tempo ainda de por termo a este texto.

Pérola

Na clausura do devanear medonho,
Ser n’alma uma borboleta, ter vôo gracioso
Desperto!Um cemitério de pesar ruinoso
Onde tomba este nefasto sonho!

Sonho a alma tremular qual lábaro
Por que feneceram tantos honrados
E por uma nota árida voar um pássaro
No Inferno cadavérico de Tanatos!

Ah! Este mundo vesgo – Quão homicida!
- Este confessionário do silêncio inquisidor!
Não vê bradar minha alma, a Jaspe esquecida!
Que clama! Que ora! Que canta o Amor!

E num verso encerra todo o vasto vazio
Numa sílaba sibila dos Azevedos velada Dor!
Numa métrica aprisiona de Fagundes o martírio
Lança que n’alma lírica o Destino lhe varou!

Deixai, Quimera, que este viver nevoento
Entoe mais altivo o cântico do abandonado
Menino que a luz de Deus tem ofuscado
Que bebe mais doce o cálice do sofrimento!

Debalde, posto que o seio se tenha embebido
Em suores que lenço algum teria sorvido
Deito a encarcerar num novo verso infausto
                     (Amplidões!)
Que na concha de Afrodite ouço exausto!


(BAR)

Note-se que a palavra “Deus” figura neste poema. E ela é recorrente em muitos poemas que dão registro daquele tempo em que minha alma estava imersa em trevas luminosas. E deixe-me dizer algumas palavras acerca da fé. E falo da fé, hoje, na condição de ateu, que não renega um passado cirurgicamente marcado pela fé cristã. Tenho uma dívida lírica com a fé. É tempo de reconhecer-lhe o valor.
Quando se vive num país em que a maioria esmagadora da população professa uma fé em Deus, crê numa vida após a morte, tornar-se ateu, afirmando a inexistência de Deus e acreditando não haver transcendência alguma, nada semelhante a um além-mundo, é correr o risco de ver estremecida a socialização. Alguns ateus podem até tornar-se persona non grata. Por conseguinte, quiçá, se pretendemos angariar estima e aceitação em tal meio social, é conveniente afirmar o que a maioria afirma, acreditar no que a maioria acredita, e acreditar na existência do único Deus (dentre outros tantos postulantes ao cargo de deus verdadeiro). Como, há muito, me acostumei a viver na contramão, cuidei que, a despeito de o social moldar o individual, há sempre alguma margem de manobra para cada indivíduo; cuidei mais vantajoso fazer valer o primado do indivíduo sobre o social.
Retomemos, contudo, o tema da fé. Dizia eu que falaria da fé a partir do lugar de um ateu; não para desqualificá-la, mas para reconhecer-lhe o valor nas minhas experiências de escrita lírica de outrora. Eu experienciei a fé cristã com tudo aquilo que ela tem de paixão (entenda-se “sofrimento”). Vivi a fé com dor; mas dessa dor verti a poesia lírica, a poesia que buscava regiões transcendentes. O Amor cantado pela poesia era o Amor das Alturas, um Amor que transcendendo a matéria, venceria a morte. Vivi a experiência da fé na solidão mortuária. Devo, em grande medida, à fé a densidade de meu lirismo, o fervor da minha verve poética. No entanto, foi preciso superar a depressão, foi preciso reconciliar-me com a vida; foi preciso viver menos a fé poética e encarar a vida sem subterfúgios, com autonomia.
Neste momento em que estou a escrever este texto, para o que reinterpreto experiências passadas, posso delas dar testemunho sem as angústias que as marcaram tão intimamente.  Em retrospecto, apreendo-me como alguém que, embora cindido, nunca deixou de ser fiel a si mesmo. A experiência da escrita sempre me pareceu este gesto de fidelidade a mim mesmo. Mais um fragmento de outrora deste eu mesmo em retalhos:

Sem título...

Comumente, enceto meus textos com um título, que me ilumina os caminhos verbais que meu espírito crédulo e cândido dedica-se a construir. No entanto, este texto ficará sem título, porque se não me afigura a intenção que o motiva; muito menos seu conteúdo temático, que me é desconhecido. A cada segmento frásico detenho-me a pensar, tentando acomodar a maleabilidade e a abundância de minha alma à rigidez e estreiteza das formas de expressão verbal. Desista, leitor ignoto, se ousa construir a coerência deste texto, dado que ele não foi escrito para fazer sentido. Neste átimo, todo o meu ser foi invadido por um vendaval de desencanto; a insanidade verbal apossa-se de minhas emoções, tornando-as carentes, empobrecidas, desatinadas, adoecidas. São emoções indistintas os habitantes de minha alma, a qual se tem assemelhado a um cemitério, em cujas covas fundas jazem as ilusões de meu coração. No entanto, numa noite de céu tormentoso, as palavras veludas da esperança tornaram a encontrar os meus silêncios verbais. Convenci-me de que somente o AMOR, que, nestes dias decursos, tomei para objeto do pensamento reflexivo, porquanto creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas fracassadas, podia salvar-me do afogamento da depressão. As ideias de amor, que dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio lírico romântico. Aflorou, então, naquele terreno que abriga os restos mortais de meus desvarios de AMOR, uma bela pérola, cuja existência não é dada a conhecer a qualquer homem.
Senti-me grato por tamanho privilégio. As trevas de meu coração transverberaram a luz de dias promitentes... Mas o que era alegria fulgurante tornou-se um vazio opaco e oco, donde é possível ouvir o estrépito suplicante de meu ser por seu retorno.
Quiçá, sejam vãs estas palavras! Talvez, não sejam senão sintomas de uma doença que contaminou meu espírito quando de minha encarnação neste mundo inóspito, cujo absurdo parece ser a única verdade inabalável. Ler é minha fuga; quando repousado com um livro em minhas mãos, ignoro o mundo e sua conturbação desconcertante. É um estratagema eficaz; por muitos anos, bastante, mas agora insuficiente. Os livros só edificarão uma inteligência insigne, mas não proverão a carência de meu coração. Todavia, as palavras continuam sendo minhas fiéis amantes; posso sempre delas me servir para preencher as crateras de ilusões meteóricas que se abriram em minha alma.
Lembro ao leitor imaginário que este texto é, essencialmente, despropositado, ou melhor, é carecido de substância significativa; não comunica; tão só apela ao Desconhecido, cuja forma é inacessível ao espírito humano. Por isso, levarei a cabo este texto com algumas ideias de Freud, colhidas do livro O Mal-estar na cultura (2010). À página 60, lemos o seguinte:


“A vida, tal como nos é imposta, é muito árdua para nós, nos traz muitas dores, desilusões e tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos prescindir de lenitivos”.

Este passo de Freud remete-me à ideia de facticidade da fenomenologia de Sartre, conceito que recobre aquilo que não é necessário, que simplesmente é. As coisas estão diante de minha consciência e minha consciência tem de, inevitavelmente, apreender-se a si mesma como um fato entre tantos outros. Alhures, defini a importância da leitura em minha vida como o único meio de que me servia para viver num mundo que veio antes de mim; um mundo que se nos apresenta, sob o véu da ideologia, pronto, acabado, como um imenso anfiteatro onde encenamos as tragédias de nossas vidas.

Seja vazada em poemas, seja vazada em prosa, minha escritura – pelo menos a que se fez tão penetrante e cirurgicamente eficaz, outrora – é ela mesma testemunho do esforço por fazer conhecidas regiões ignotas de mim mesmo. Havia sim uma ilusão de transparência que eu perseguia com a atividade de escrita. Queria eu que me lessem para que me conhecessem para além da fachada social que, àquela altura, sofria os abalos de terremotos psíquicos.
O fluxo verbal estancou; a linguagem é sempre atravessada por uma insuficiência. Sentimos mais do que podemos dizer. As palavras são deficientes, quando se trata de dar conta da dimensão do simbolismo que constitui a totalidade do inconsciente. Ao longo da produção deste texto, alguns pensamentos que me visitaram instantes antes de me por a escrevê-lo se perderam em meio a outros que me foram assomando à consciência. Agora, eles jazem esquecidos. Há sempre algo de nós que se perde no dizer, porque as palavras jamais, sob hipótese alguma, conseguem apreender a totalidade do potencialmente enunciável. Há, no entanto, regiões de nós que ficam submersas; que se deixam entrever apenas aos espíritos argutos.
Ponho termo a este texto, referindo outro fragmento de um texto, cujo título Eu mesmo com o mundo, codifica um momento de minhas experiências de imersão em mim mesmo. Este texto é mais um retalho, um canto antigo que se faz ressoar.



As palavras transpiram silêncio; minha alma, ausência. Abro um livro de Mitologia Grega... No rosto da folha, estampa-se o título Vênus e Adônis... As palavras cheiram a experiências róseas... Há aromas doces que exalam daquelas páginas... Nas entranhas daquele livro, há palavras lascivas, que me exorcizam o medo do mundo... Minha alma, como uma nau embevecida é levada por espumas de palavras... Meu coração, como velas alçadas, é avistado no horizonte verbal onde os significados se vislumbram e onde o silêncio significa, atravessa toda palavra... Há um silêncio pulsante nas entranhas da linguagem... Fecho o livro, e me sobra o mundo.

“Como o ser humano um dia fez uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres”.
(Clarice Lispector)

Se toda a humanidade pudesse ser submetida à sede do espírito por esquadrinhar a realidade, distinguiríamos, ao cabo do trabalho, três espécies de seres humanos: os que existem; os que resistem; e os que vivem, em que pese à vida. Os que existem reconhecem a existência com o Outro ou através do Outro. Os que resistem se afligem; e os que vivem, cultuam a vida além da morte.