sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"Uma coisa que convence, nem por isso é mais verdadeira: é somente convincente" (Nietzsche)

                   
                     


                                Pré-disposições filosóficas
                                                    O contrário de um ressentido


Que me censurem os que, por ventura, dentre meus familiares e amigos próximos que me são, de resto, distantes, venham a se ocupar com a leitura deste texto; que me repreendam de devassar regiões tão íntimas que, se vistas à luz do senso comum, deveriam permanecer encobertas. Que me censurem, pois; mas que não deixem de compreender-me a partir de um lugar que é próprio da filosofia, onde a liberdade de pensar com profundidade a vida, o mundo, em sua universalidade, deve suplantar qualquer gesto de censura ou medo do preconceito.
Em Ecce Homo, Nietzsche escrevera: “Eu mesmo não sou ainda atual; alguns nascem póstumos”. Com essa fórmula, ele reconhecia, em seu tempo, que muitos o ignoravam ou não o compreendiam. Mas ele vaticinou o surgimento, no futuro, de institutos que se destinariam a estudar a sua obra. E hoje, em diversos meios do mundo acadêmico, sente-se fortemente a atualidade de Nietzsche.
Que alternativa resta para quem, desde o nascimento, foi cinzelado pelo sofrimento que, cirurgicamente lembrado no corpo, moldaria indelevelmente sua personalidade e caráter? Uma observação se impõe urgente aqui: o caráter, em psicologia, embora seja compreendido como sinônimo de personalidade, dela se distingue por encerrar um significado mais restrito. Destarte, o caráter recobre apenas aqueles aspectos da personalidade que constituem o ego e que, quando manifestos, distinguem uma pessoa da outra. A personalidade, por seu turno, recobre a totalidade dos impulsos, afetos, talentos, comportamento social e reações, tomados em sua organização global. Como sejam inúmeras as definições propostas para o termo personalidade, na literatura especializada, considere-se suficiente, para fins desta exposição, a definição que dela nos dá Freud: a personalidade é a integração do id, ego e superego. Em face do caráter, conceito mais restrito, a personalidade é um conceito mais lato, porquanto abriga também os fenômenos que são comuns a todas as pessoas.
Que resta a esta pessoa, familiarizada com o transtorno depressivo que lhe enraizou no espírito tristeza, desânimo e pessimismo, os quais oscilam, de tempo em tempo, em termos de intensidade e persistência e cuja dinâmica parece prender-se a conteúdos recalcados? Que lhe resta, finalmente, quando descobre, contando vinte e sete anos, que as agruras da primeira infância lhe legaram um mal insidioso? Diria até que terrível, àquela altura, não tanto por seus impactos fisiológicos danosos (reversíveis com o tratamento atual); mas por seus efeitos psíquicos perturbadores. O sangue de um desgraçado que, talvez, jaza sob a terra, possibilitando-me a sobrevida, fez-me engrossar a fileira dos “condenados”, à época; e promoveu-me, enfim, a hospedeiro de dois males: de um dos quais me curei, não pela vontade de algum deus, segundo ainda creem meus familiares – crença, aliás, que me é afrontosa e indecente- mas pelos esforços do homem, único ser capaz de combater as forças destrutivas da ordem natural.
Quando se me revelou a verdade desta que seria minha dificultosa condição, desde então, eu fora tragado por uma depressão da qual viria a emergir não sem o amor de meus pais, irmão e madrinha, em especial, que foram sobremaneira diligentes, não sem o apoio de meus familiares, não sem a competência de minha psiquiatra, não sem as doses diárias do antidepressivo, que se faziam acompanhar das doses, também diárias, dos anti-retrorivais, não sem o aturado exercício da leitura e da escrita, e não sem a continuada dedicação aos estudos, àquela altura, de doutoramento.
Felizmente, o destino me poupou de um fardo igualmente terrível: não leguei a ninguém o meu infortúnio, pois que não conhecia ainda as venturas e desventuras da experiência sexual. Os ares atuais são mais frescos; mais amenos, e minha condição clínica reconduziu-me a vida à normalidade. Ostento saúde e força ativa. É necessário, então, avançar e ultrapassar essa atmosfera depressiva, decadente, que pode parece solicitar comiseração, circunstância esta aviltante e adversa à proposta deste texto.
A leitura filosófica já estava entre as atividades que preenchiam a agenda de meu cotidiano; e o que eu chamo de libertação do flagelo da fé e do despotismo da tradição judaico-cristã, que concorreu com meu interesse pela doutrina budista, cujo caráter realista, quando confrontado com a indecente mentalidade religiosa com a qual me familiarizei desde a infância, foi logo reconhecido por mim: no budismo, o reconhecimento do vínculo inerente entre viver e sofrer não se dobra a qualquer tentativa de justificar o sofrimento.
A ruptura com a tradição religiosa do cristianismo se deu sem resistências, pois que a leitura filosófica lhe ia iluminando o caminho. As circunstâncias que, em parte, explicam a ruptura lhe conferiram uma virulenta expressão discursiva, em seus inícios. Nada mais natural quando se sente a necessidade de instaurar um lugar de oposição a uma velha concepção de mundo e afirmação de uma forma outra de sentir e ver (pensar) o mundo. Escusa dizer que, àquela altura, participavam de minhas relações sociais pessoas que supunham estava eu navegando por mares de rebeldia, em meio a tempestades tenebrosas, de resto, passageiras; para essas pessoas, tratava-se de uma fase de rebeldia típica de quem não foi suficientemente forte para continuar crendo no “amor divino” mesmo em face das aflições e do absurdo que as acompanha.
Para a mentalidade que se forma pelo insistente trabalho das forças doutrinárias religiosas, os fortes são aqueles que perseveram na fé, apesar das intempéries, dos cataclismos da existência. O que estava em jogo, em última análise, é a determinação do significado de “força” e de “ser forte”. De minha perspectiva, ia-se tornando evidente que permanecer preso aos grilhões da fé não era sinal de força, mas de fraqueza (e veremos a razão disso).
Dois filósofos, cujo pensamento já estava acostumado a frequentar, antes mesmo de dar-se a fatídica descoberta e a alegre ruptura, contribuíram decisivamente para que eu suplantasse as tentações do ressentimento e não me desviasse para o caminho dos decadentes – ressentimento e decadência deverão ser bem entendidos à luz da crítica demolidora à tradição socrático-platônica e cristã que Nietzsche levaria a efeito.

1. Sobre o sofrimento do mundo

Que o leitor, desde já, seja prevenido contra uma má e deturpada interpretação: de minha inclinação à filosofia pessimista de Schopenhauer não se segue que do meu horizonte existencial estejam definitivamente excluídas as possibilidades de experiência de alegria e satisfação momentâneas. Igualmente importante é preveni-lo, leitor incauto, contra a crença de que a adoção da perspectiva schopenhauriana da existência conduz, necessariamente, ao desespero, se por desespero entendermos um mal-estar profundo decorrente de nossa consciência de que se destruíram as fundações que mantinham sólida a existência.
Não estou interessado em me deter muito na filosofia de Schopenhauer, já que o grande salto de que se deve dar aqui um testemunho verdadeiro é o que a filosofia de Nietzsche me permitiu dar. Todavia, alguns trechos de Schopenhauer servirão aqui não só para pavimentar o terreno pelo qual transitei até fazer o referido salto, mas também para assinalar alguns pontos da doutrina schopenhaueriana que são como tijolos da edificação de uma visão de mundo que, afinando-se com a minha intuição primaveril segundo a qual o sofrimento tece as malhas da existência, dispensa as exigências para justificá-la . Começarei por referir alguns trechos de Schopenhauer, colhidos da obra Parerga e Paralipomena, que se topam no capítulo destinado à exposição de sua doutrina do sofrimento do mundo:

“O sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento, e se não fosse assim, nossa existência seria o maior dos contra-sensos, pois é um absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, mas o mesmo não ocorre com nossa receptividade para o prazer, que tem limites estreitos. É a infelicidade em geral que é a regra, embora a infelicidade individual apareça como exceção” (p.113)



Escuso-me de fazer uma análise cuidadosa do referido trecho. Bastar-me-á notar as seguintes ideias articuladas por Schopenhauer: a) a existência tende (dirige-se, encaminha-se) para o sofrimento; b) a dor é infinita e nasce da necessidade essencial à vida, de modo que a essência da vida é dor; c) antecipando uma tese que viria a ser endossada e desenvolvida por Freud, Schopenhauer afirma que somos suscetíveis mais à dor e poucas são as possibilidades de experiência de prazer, o qual, poderíamos acrescentar, é sempre fugidio; d) a infelicidade em geral é a norma da vida. Nesse elenco de ideias, já se deixam ver, pelo menos para os já iniciados, os rastros da influência budista no pensamento schopenhaueriano. Atentemos para o trecho seguinte:

“A história mostra-nos que a vida dos povos, e ali encontra apenas guerras e rebeliões para nos narrar, os anos de paz nos parecem tão-somente breves pausas, entre atos, aqui e ali. Igualmente a vida do indivíduo é uma luta contínua com a necessidade e o tédio, e não apenas no sentido metafórico. Por toda parte, o homem encontra oposição, vive continuamente em luta, e morre segurando suas armas” (p. 114)


Esse trecho, somado ao anterior, já nos permite compor a afinação do tom pessimista de que se impregna a filosofia schopenhauriana. Devemos, no entanto, nos prevenir contra a conclusão de que não há espaço, na sua cosmovisão, para um mundo onde seja possível a experiência de felicidade. Schopenhauer admite sê-lo, se bem que a felicidade de que nos fala será sempre uma felicidade negativa que se expressa na tentativa de evitar a dor, no que ele acompanha de perto a tradição ética que remonta a Aristóteles passando pelo epicurismo.
O próximo passo patenteia-nos um momento de sua crítica à visão de mundo cristã.

“Suponhamos que o ato da procriação não fosse uma necessidade e nem viesse junto com prazer, mas fosse um assunto de pura reflexão racional: será que nesse caso a humanidade continuaria a existir? Ou, pelo contrário, cada um teria a compaixão suficiente para não impor, com tanta frieza, o fardo da existência a geração seguinte? Pois o mundo constitui o inferno, e os homens dividem-se em dois grupos: de um lado ficam os atormentados, e de outro os demônios. Neste ponto, só porque exprimo as coisas tais como elas são, terei de ouvir de novo que minha filosofia é desesperadora, preferindo, as pessoas, que eu dissesse que Deus fez tudo segundo o melhor. Que essas pessoas, então, se dirijam à igreja, e deixem os filósofos em paz. Ou, pelo menos, que não exijam que os filósofos disponham suas doutrinas de forma a corresponder aos seus anseios. Isso quem faz são os filosofastros e os trapaceiros, aos quais podem-se encomendar doutrinas conforme ao gosto” (p.122).



Particularmente importante é a sua objeção à pretensa teodiceia de Leibniz:

“Ainda que a demonstração feita por Leibniz de que, de todos os mundos possíveis, este é o melhor, fosse correta, ela não forneceria uma teodiceia. O criador não criou apenas o mundo, mas também a própria possibilidade: dessa forma, deveria ter disposto essa possibilidade de maneira a permitir um mundo melhor” (p.123)


Schopenhauer ilustra bem o que, na opinião de Luc Ferry, é uma adequada definição de filosofia: “uma doutrina de salvação sem Deus”. Em Vencer os medos (2008), o autor observa que, embora a filosofia incorpore a reflexão e a argumentação como momentos de sua atividade, ela não se reduz a esses momentos, que são seus meios de realização e não seus fins. Ferry, nesse livro, proporá e desenvolverá a definição de filosofia como doutrina de salvação sem Deus – definição que diz ser extensiva a toda a filosofia. Consoante defende o autor, “[a filosofia] é a grande concorrente das religiões – aliás, é a única atividade do espírito que cumpre esse papel” (p. 125).
Antes de prosseguir, parece-me necessário esclarecer em que medida podemos deixar as páginas de Schopenhauer sem experimentar um amargo sentimento de desespero. Desde que reconheçamos que, ao fim e ao cabo, não é razoável atribuir a causa do desespero à filosofia de Schopenhauer, que segundo ele mesmo mantém, não faz senão desvelar o mundo tal como é essencialmente, devemos, pois,  encontrá-la na inconsistência entre nosso desejo e o modo como o mundo é verdadeiramente . Em outros termos, o desespero é, na verdade, consequência do fato de que a verdade a respeito do mundo contraria o modo como nos habituamos a desejar que ele fosse. O desespero resulta do peso destrutivo que a verdade desvelada sobre o mundo tem sobre nossa crença ilusória a respeito dele.

2. O meu encontro com a filosofia de Nietzsche

Se meu encontro com o pensamento de Schopenhauer animou-me algumas de minhas convicções viscerais sobre a essência da vida, elas mesmas gestadas em minhas experiências sensível-corporais com o meu sofrimento próprio e dos outros, tão cedo acostumados a frequentar as salas de cirurgia em hospital, meu encontro com a filosofia de Nietzsche pôs-me no curso contrário ao de um ressentido e decadente – curso este a que a filosofia de Schopenhauer nos encaminha, segundo a interpretação do próprio Nietzsche.
É verdade que Nietzsche é tributário da filosofia schopenhaueriana, mas igualmente é verdade que Nietzsche viu em Schopenhauer um continuador de uma tradição niilista que remonta ao teísmo cristão. Em que sentido é o que devemo-nos esforçar por compreender.
Em primeiro lugar, Nietzsche notou que o fato de filósofos como Schopenhauer afirmarem filosoficamente seu ateísmo não significou, contudo, que eles renunciassem ao ideal dos valores superiores. Nietzsche notou também que os últimos metafísicos, entre os quais está Schopenhauer, em especial, continuaram a procurar no ideal a “realidade” verdadeira, a coisa-em-si kantiana, em face da qual o resto é reduzido à aparência.
Nietzsche, não sem razão, denuncia em Schopenhauer a preservação do dogma segundo o qual o nosso mundo das aparências, por não expressar claramente aquele ideal, não poderia ser verdadeiro. No curso de uma tradição metafísica socrático-platônica, Schopenhauer foi acusado de ter endossado a opinião de que o mundo das aparências tem como causa o mundo metafísico. Há, no entanto, - Nietzsche não deixará de perceber, o que nem por isso livra Schopenhauer da co-responsabilidade por dar continuidade àquela tradição metafísica, - uma especificidade na doutrina metafísica de Schopenhauer. Ele imaginou o fundo metafísico como uma “vontade má e cega”, antítese do ideal, que é como ele se manifesta no mundo das aparências.
Se investigada até suas últimas consequências, a doutrina de Schopenhauer acarretaria um enfraquecimento da vida, que se expressa na forma de desespero e ódio à própria vida. Contra essa tradição que congregou forças reativas que, enfraquecendo a vida, conduzem consequentemente ao desespero e ao ódio a ela, Nietzsche desenvolverá seu princípio da Vontade de Potência e, de modo geral, um pensamento obstinadamente afirmativo da vida. Em linhas gerais, a fim de atender os propósitos desta exposição, vou apresentar a crítica à qual Nietzsche submeteu o cristianismo.
Devo especialmente a essa crítica de Nietzsche o não ter sucumbido à condição de ressentido e a possibilidade de, em que pese as intempéries da sorte, animarem em mim os instintos afirmadores da existência, o que me permitiu reconciliar-me com o mundo em tudo que nele há de dor e sofrimento injustificável.
Nietzsche afirmou que “a vida acaba onde o reino de Deus começa”. Assim, o filósofo alemão expôs a negação de que é expressão a ilusão religiosa. Para ele, a religião é uma espécie de revolta contra a natureza, e o sobrenatural, não sendo um além do natural, é, pelo contrário, sua negação e a destruição dos melhores instintos.
Ser cristão é, para Nietzsche, o mesmo que ser niilista, já que, ao atribuir ao mundo imaginário o valor de verdade, o cristão retira do verdadeiro mundo que habitamos o seu valor. Na medida em que ele, cristão, se torna um amigo de Deus, torna-se, consequentemente, um inimigo do mundo. Mas só é inimigo do mundo no sentido de que, ao afirmar a Deus, nega o verdadeiro mundo em proveito de um mundo imaginário situado no horizonte da transcendência.
Nietzsche vê, portanto, como vingança a promessa cristã de uma vida de delícias no reino dos céus. O cristão estaria, desse modo, se contentando com fantasmagorias e, por conseguinte, desprezando e aviltando o mundo tal como existe de fato.
A ilusão cristã se torna, na crítica nietzschiana, patente: toma-se como verdadeiro o mundo ilusório e considera-se como aparente o único mundo que existe. A “morte de Deus” se situa, pois, nesse contexto, sendo então um momento singular da história do homem, em que aquilo que se mantinha encoberto pela máscara do niilismo religioso tornou-se abruptamente manifesto.
O homem sadio, em seus instintos mais profundos, é aquele que nega o mundo de suas venerações e deixa fluir os instintos fortes. Tal é então o modo como se aceita a vida como ela é e como ela é afirmada, a despeito de suas contrariedades, segundo se nos relevam à luz de um exame racional.
O homem sadio, reconciliado com o mundo, é aquele que não busca um sentido além do próprio ato imanente de viver. A questão que nos propõe Nietzsche é, então, o que faremos diante do vazio deixado pela demolição do significado transcendente de que se revestia a existência: ou nos acovardamos e nos satisfazemos com esperanças vãs, ou, autenticamente, escolhemos viver a vida em toda a sua plenitude, empregando, para tanto, toda a saúde do espírito e as forças ativas instintutivas.
O que há de problemático na religião, segundo a interpretação nietzschiana, é menos o fato de sua visão de mundo assentar em ficções do que o tipo de ficções que dá sustentabilidade ao seu edifício metafísico.
O discurso religioso é o único que reivindica uma origem além-mundo. A investigação genealógica desenvolvida por Nietzsche não cessará de criticar, em seu caminho, as ilusões religiosas. Na mira dessa crítica, que visava, fundamentalmente, a transvalorar todos os valores em que se fundamenta o mundo ocidental, está a estrutura ficcional em que se baseia o conhecimento humano.
Cumpre considerar, brevemente, o conceito de vontade de potência, a fim de elucidá-lo, visto que ele constitui o cerne da filosofia nietzschiana afirmadora da vida. A vontade de potência não se reduz à vontade de dominar. É ela vontade de posse total da existência e de si mesmo. É esforço por vencer a fatalidade, o aniquilamento, que se expressa, em última instância, na morte. É vontade de mais, pois que cria o possível.
Para Nietzsche, não há nada de substancial: nem eu, nem consciência psicológica e moral, nem objeto, nem verdade. O instante é inteiramente o que é: potência.
E assim se me abriu a possibilidade de escapar ao desespero, de não ceder ao peso do ressentimento, de não me deixar seduzir pelas tendências que enfraquecem a vida, tomando, ao contrário, um curso outro, que, sem me desviar da universalidade do sofrimento, que constitui a essência da vida, levou-me a aquiescer a ela e a aceitar minha co-presença com o único mundo verdadeiramente existente.
Ponho termo a este texto, com o seguinte excerto do comentador Mario Ferreira dos Santos, extraído de Vontade de Potência (2011).  A filosofia de Nietzsche reconduz o homem à terra. É uma filosofia da terra, do mundo que, através dela, se afirma como mundo heraclitiano, estruturado pela luta dos contrários. É nesse mundo que deve surgir o homem forte, regenerado, revigorado, o além-do-homem, o homem livre e senhor de sua vontade.



“(...) Um mundo de perfeições não conhece vitórias. Um mundo de perfeições não conhece felicidade. O homem, em vez de queixar-se, de amaldiçoar a vida, de pregar que esta terra é um vale de lágrimas, deveria, primeiramente, aprender a amá-la. Amor fati, sua fórmula para os homens. Amor do destino, seja qualquer for. Amar o mundo, a “terra dos homens”, porque os homens sempre a amaram. Nunca a terra criou “o amargo desespero de viver”. Mas as crenças religiosas ensinaram o homem a amaldiçoar a terra. A religião não deve afastar o homem do mundo. Este é a terra dos homens. A religião deve ensinar-lhes o aceno de amor. E para amar o mundo é preciso amar o destino. E por amor ao destino é preciso vencer a si mesmo. Vencer cada uma de suas batalhas e cada uma de suas derrotas, com um gesto de desdém e de maldade. Maldade e não malignidade, porque esta é atributo dos “bons”, porque quase sempre os bons são malignos. O homem deve conhecer a maldade daquele que se obstina, daquele que quer, daquele que tem de vencer. E grande é o gesto do vitorioso que poupa o vencido. Isso é nietzschiano. O homem deve vencer cada uma de suas derrotas e suplantar os empecilhos e os obstáculos. E somente nessa hora os homens poderão contemplar o mundo com um olhar gotheano cheio de amor e boa vontade para com seus semelhantes, porque nossa hora já não mais se conhecerá o domínio dos ressentimentos” (p. 72-73).





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, cultivando a terra, fazem viver os outros" (Voltaire)

                    



                                Em cena, a política
                       Iluminando o lugar do debate

O Dicionário Básico de Filosofia (2008), de Japiassú & Marcondes, registra, no verbete política, o seguinte:

 

 

“Tudo aquilo que diz respeito aos cidadãos e ao governo da cidade, aos negócios públicos. A filosofia política é assim a análise filosófica da relação entre os cidadãos e a sociedade, as formas de poder e as condições em que este se exerce, os sistemas de governo, e a natureza, a validade e a justificação das decisões políticas” (p. 220).

 

 

 

 

Este texto vem a lume num período em que os eleitores brasileiros vão às urnas para eleger o próximo Presidente da República. Este texto é a minha tentativa despretensiosa de sinalizar para um lugar outro a que deveria ser encaminhado o debate político na esfera pública. Na esfera pública brasileira, a despeito do crescente interesse popular por inserir a política entre as questões que costumam estar na ordem do dia, o debate político torna-se seriamente reduzido a tentativas de provar quem é o “melhor” candidato (supostamente aquele que está com a razão, caso em que, raramente, acontece de se levar em conta que a política não é uma questão de “ter razão”, mas de desejo), quem dentre os candidatos que disputam um cargo público é o menos corrupto, qual é o partido político mais bem credenciado para governar. Nesse último caso, especialmente, a polarização direita e esquerda, que está na base da polêmica política, leva muitos a crerem que quem quer que defenda um candidato da direita, por exemplo, está necessariamente sendo contrário à esquerda, e vice-versa.

Neste texto, intento pensar sobre política a partir de outro lugar, qual seja, do lugar da teorização filosófica e acadêmica da política. Para tanto, evocarei dois nomes de peso de nossa tradição filosófica: Platão, que nos legou uma das grandes obras de filosofia destinadas a tratar da política – A República; e Aristóteles que, distanciando-se de seu mestre, também quando se ocupou da questão da “vida boa”, escreveu o também clássico Política. O tratamento que pretendo dispensar ao tema da política não ficará circunscrito, no entanto, ao exame dessas duas perspectivas. Situando a discussão no horizonte da modernidade, vou-me debruçar também sobre o modo como se estruturam as relações entre os cidadãos e o governo, para o que contemplarei, entre outras questões, a natureza e a atuação do Estado moderno e seus objetivos.  

 

 

 

 

 

1. Ética e política na Grécia Antiga

 

 

 


              Todo processo político é marcado, fundamentalmente, por um fato: a existência de oposição. Stuart Mill, que testemunhou as grandes transformações ocorridas tanto na sociedade, na política, quanto na economia de seu país, a Inglaterra, sustentava que, por meio da política, toda a sociedade precisa enfrentar uma questão fundamental: quais são os critérios que devem presidir à alocação da riqueza e dos valores socialmente produzidos? Dado que essa riqueza e esses valores são finitos, a insatisfação segue-se daí previsivelmente, em qualquer decisão política. É indispensável, para o que se seguirá, reter a concepção de política como um processo perpassado, necessariamente, por oposição, por conflitos; como tal, o domínio do político é um domínio polêmico, por excelência; é o domínio sócio-histórico que, viabilizando a coexistência dos homens em comunidades, convoca-os ao enfrentamento de questões que devem ser conduzidas para a satisfação do bem comum.

A ética e a política, tal como as pensamos hoje, surgiram nas cidades gregas, entre os séculos VI e IV antes da era comum. Em grego, ethos se diz “costumes”; e política origina-se do termo grego polis, que significa “cidade”. É claro que costumes e cidades são mais antigos do que sugere a etimologia dessas palavras. Mas ética e política, entre os gregos, tiveram um significado peculiar, que viria a marcar indelevelmente nossas formas de pensar.

Convém fazer alguma consideração sobre as condições sócio-históricas da Grécia em seus períodos arcaico e clássico, antes de descer a pormenores sobre o pensamento político platônico e aristotélico.




1.2. Período arcaico

 

No tangente ao período arcaico, a sua notabilidade se deve à criação da pólis. Doravante, é nas condições históricas da pólis que a civilização grega se desenvolverá. A pólis é uma comunidade politicamente autônoma, uma cidade-estado. A existência da pólis estava em estrita dependência da existência de um local onde se localizassem os edifícios públicos e religiosos e onde se pudessem realizar as reuniões dos cidadãos, a ágora. Não havia relação necessária entre a urbanização e o desenvolvimento da pólis.

Atendo-nos ao desenvolvimento da pólis, faz-se mister pontuar que a pólis se identifica com os cidadãos. É nesse período que a democracia e a escravidão passam a constituir duas ideias que se articulam de modo indissociável. A consolidação da democracia, seu próprio desenvolvimento dependia da escravidão. A força do trabalho escravo substituía o cidadão no exercício direto das atividades econômicas (trabalho no campo, essencialmente), o qual pôde dedicar-se às tarefas políticas.

O desenvolvimento da pólis e da noção de democracia engendrou mudanças radicais na legislação. Nesse tocante, cumpre observar a importância da codificação das leis. As leis se tornaram públicas e não mais monopólio de uma aristocracia que se serviam delas como bem entendesse. Por outro lado, o crescimento demográfico acarretou a insuficiência de terras: eram muitas pessoas e poucas terras para abrigá-las. Os gregos também tiveram de lidar com a insuficiência de alimentos que garantissem o sustento de uma população em crescimento. A solução encontrada para esse problema foi a colonização.

Desde já, note-se que a questão que norteava a filosofia política clássica toma forma verbal no seguinte enunciado: qual é a melhor forma de governo? Para o pensamento antigo, tratava-se de uma questão vital, pois que dizia respeito ao valor próprio de uma determinada forma de organização política. A finalidade da pólis – a cidade – não se cingia a garantir a sobrevivência, o bem-estar material, mas, sobretudo, a liberdade política, o “bem viver”, isto é, o viver de acordo com os valores de uma comunidade virtuosa e justa.

No mundo ateniense, onde a forma de articulação das relações políticas era determinada pela inserção do indivíduo, enquanto membro da “cidade”, na comunidade de homens livres, o governo da maioria ou a soberania popular eram questões extremamente importantes. Não se ignore que, na realidade, a maioria compreendia, paradoxalmente, apenas os cidadãos reconhecidos politicamente como tais, de modo que desse grupo estavam excluídos todos aqueles que se dedicavam às atividades de reprodução material. A igualdade política, em tais circunstâncias, determinava-se não só pela relação do cidadão com a totalidade da qual ele fazia parte, mas também pela desigualdade social sobre a qual essa relação estava apoiada.

A ágora ou a “praça pública” era, de fato, um lugar de encontro, de reunião, de discussão e de ações políticas – um espaço em que as decisões que tocavam à coletividade eram tomadas no confronto de opiniões e pelo exercício do voto. Novamente, aqui cumpre notar que do exercício da cidadania, do qual fazia parte o direito ao voto, estavam excluídos as mulheres, as crianças e os escravos. A democracia grega, com efeito, era restrita aos homens livres.

O mundo do trabalho situava-se à margem do processo de deliberação pública, restrito aos cidadãos. Havia uma divisão bem marcada entre o social e o político sob a forma da escravidão. Mesmo que ferindo as sensibilidades modernas que a julgam inaceitável, a escravidão, na antiguidade grega, tinha um estatuto jurídico (e veremos que dela dependia a própria instituição da democracia) justificado por uma relação de forças estabelecida na guerra. Para os atenienses, a escravidão não contrariava os princípios políticos e morais com base nos quais se organizava a cidade.

Nesse contexto democrático, o político está intrinsecamente ligado ao moral. Quando os gregos ventilavam a questão sobre a virtude, estavam, forçosamente, se perguntando sobre a melhor forma de organização política.

Uma vez que estejamos interessados também em compreender as condições sócio-históricas em que se desenvolveu a democracia grega, vale iluminar o que distancia a nossa experiência democrática, ou seja, a experiência moderna de democracia e a experiência democrática grega. Quando volvemos olhares para a dimensão sócio-política da modernidade, percebemos, sem muito custo, a vinculação da democracia ao Estado moderno. A palavra democracia assume então, com frequência, a forma adjetivada em expressões como “Estado democrático”. A existência de tal expressão linguística é já sintomática da perda de significação prática da própria democracia, entre nós. A democracia deixa de ser o ‘lugar’ público do processo de identificação da sociedade consigo para servir a uma nova forma de organização política. O Estado moderno, com efeito, passa a cumprir o papel de organização da sociedade a partir de um novo lugar: o Estado cria o mecanismo que, autonomizando-se relativamente ao espaço público dos cidadãos, passa a existir independentemente desse espaço e a controlar a sociedade do lugar da ‘exterioridade’. Em outras palavras, o Estado controla a sociedade a partir de fora.

O sentido de democracia, nesse contexto, se altera sensivelmente, porquanto é a própria democracia que é experienciada não mais como forma de organização da pólis, mas forma de governo possível do Estado. O Estado moderno irrompe na história como um fenômeno político que acaba por tornar a democracia uma forma de legitimação do seu próprio (dele Estado) poder.

A transferência do processo democrático público que, outrora, se configurava pela tomada de decisões e que dava forma à comunidade, para um centro de poder que se apresenta acima da sociedade, acarretou uma reorganização política das relações humanas, que culminou na transformação dos conceitos de espaço público ou governo da maioria. Assim é que as categorias de filosofia política clássica já não aproveitavam à análise de um fenômeno político que podia assumir muitas formas aparentes, sem alterar sua significação essencial. A democracia mesma passou a significar uma mera aparência de participação política, muito embora o seu sentido originário suponha uma efetiva participação dos indivíduos nos assuntos públicos.

O Estado moderno criou uma entidade política que se sobrepôs às noções oriundas das “instituições antigas”, que, por muito tempo, forneceram as categorias que orientavam o nosso modo de pensar o político. Na modernidade, o Estado somos nós: instituiu-se um processo de organização da sociedade numa forma de governo autônomo. Além disso, o Estado passou a designar o aparelho que, valendo-se de mecanismos próprios, governa a sociedade de uma posição que lhe é exterior. Se da ideia “o Estado somos nós”, ainda se deduz a correspondência com a noção clássica “formas de governo”, da ideia de Estado como aparelho moderno de governo, estruturado por uma máquina administrativa centralizadora, se depreende uma nova articulação do social pelo político e do político pelo social.

Em última instância, é a própria liberdade política, liberdade de intervenção na esfera política que será, negativamente, afetada por essa nova forma de articulação, dado o surgimento de uma forma estatal de organização do espaço público que, destinada a regular os conflitos sociais e o bem comum, vai reduzir a possibilidade igualmente dada a cada cidadão de participação nos assuntos coletivos.

 

 


           1.3. Período clássico

 

O período clássico é caracterizado como o apogeu da civilização grega. A estrutura da pólis e a democracia já estavam maximamente desenvolvidas; também as artes, a política e a filosofia vicejavam. Não obstante, o desenvolvimento da Grécia não ocorria sem desigualdades. A estrutura sócio-política de Atenas compreendia diversos “estados-ethnos”, cujo território era maior do que todas as póleis juntas. Estado-ethnos eram estados sem centro urbano; a pólis, ao contrário, é o estado com centro urbano.

Atenas foi considerada a pólis por excelência, muito embora existissem muitas póleis e entre elas diferentes níveis de desenvolvimento. A sociedade de Atenas compunha-se de três segmentos: os cidadãos atenienses, os “metecos” (estrangeiros) e os escravos. É preciso lembrar que em Atenas, bem como em outras póleis gregas, o cidadão era frequentemente identificado com a própria cidade, o que suscita a questão: o que fazia de um homem cidadão? Essa é uma questão bastante cara para nós, quando considerados os objetivos determinados para esta exposição.

O fundamento da cidadania era a riqueza proveniente da terra. Essa ligação entre cidadania e propriedade fundiária não foi atestada somente em Atenas, mas também em inúmeras cidades gregas. É preciso sublinhar que, durante todo o século V, a democracia foi se abrindo cada vez mais para os cidadãos, de sorte que se tornou possível a inclusão efetiva nesta categoria de todos os atenienses, inclusive os que não tinham terra.

A democracia grega era direta e não representativa – nem todos tinham, no entanto, acesso igualmente aos cargos públicos. A democracia nunca significou eliminação das desigualdades socioeconômicas e políticas. Havia uma elite intelectual e política, cuja riqueza material provinha essencialmente da posse de bens fundiários. Essas famílias ricas ocupavam os mais elevados cargos públicos, tinham terras lavradas por escravos, viviam na cidade, dedicando-se à política, à filosofia e à ginástica. Destaquem-se, pois, a importância da escravidão e do ócio para o desenvolvimento da filosofia.

A maioria dos cidadãos constituía-se de artesãos, donos de uma pequena oficina onde eles próprios trabalhavam junto de escravos. A democracia ateniense produziu as condições necessárias ao aumento de cidadãos proprietários de terras em fins do século IV. Isso não significava a inexistência de cidadãos pobres, que vendiam sua força de trabalho. Esses cidadãos formavam a frota naval de Atenas ou participavam das colônias militares atenienses no exterior. No século V, somente um terço dos cidadãos atenienses viviam na cidade.

Duas circunstâncias merecem nota no contexto democrático grego. Em primeiro lugar, nenhum imposto recaía diretamente sobre as atividades dos cidadãos. Os gregos consideravam degradante o pagamento de taxas ao Estado. Em segundo lugar, os cidadãos mais ricos revertiam parte de sua fortuna em benefício da comunidade.

A despeito de, em certas ocasiões, a democracia grega abrir-se para um maior número de atenienses, ela se fechou cada vez mais para os metecos (estrangeiros) e escravos. Somente os filhos de pai e mãe atenienses gozavam do estatuto de cidadão.

Era grande o preconceito contra o trabalho manual. Ele não era aceito como forma digna de se obter sustento. No entanto, a democracia favoreceu a aprovação de leis que protegiam o trabalhador manual e lhe conferiram certa dignidade enquanto trabalhador, desde que quem executasse o trabalho fosse um cidadão.

O meteco, tanto quanto o escravo, era um elemento indispensável na constituição da pólis, mas, ao contrário deste, o meteco era um homem livre. É claro que sua condição de estrangeiro o marginalizavam relativamente à esfera de atuação do Estado. Os metecos eram gregos de outras regiões ou bárbaros. Como não tivessem direito a nenhum tipo de propriedade, estavam excluídos da cidadania.

Cumpre, finalmente, salientar que a noção de democracia era indissociável da noção de escravo; e a noção de cidadão, inseparável da noção de escravo. Todo cidadão, em Atenas, tinha, pelo menos, um ou dois escravos (p.46). Os escravos se ocupam de todas as tarefas, junto de trabalhadores livres e metecos; mas havia uma atividade que se considerava demasiado degradante para ser exercida por um cidadão livre – da mineração; por isso dela tinham de se ocupar equipes de escravos.

É, portanto, na Atenas do período clássico que devemos situar o desenvolvimento do pensamento de Platão e Aristóteles.

 

 

 1.4. A República de Platão

 

A República, tematizando o problema da justiça, é, sem dúvida, um marco do pensamento filosófico e político em toda a história do ocidente. Nela, política e ética se articulam. A República busca determinar como deveria ser a cidade ideal. Em cena, Sócrates se dedica a demonstrar a insustentabilidade da tentativa tradicional de definir a justiça como “dar a cada um o que lhe é devido”, quando Trasímaco, uma das personagens do diálogo, interrompendo Sócrates, apresenta a seguinte definição de justiça: a justiça é a lei do mais forte.

Subjacente a essa definição está um pressuposto, qual seja, o de que justo é seguir a lei. Como a lei é feita pelo mais forte e em seu benefício, a justiça não existe e é apenas um interesse particular transformado em lei.

A Trasímaco, Sócrates objeta que sempre haveria a possibilidade de o legislador errar e fazer uma lei que contrariasse seu interesse, de sorte que a definição se tornaria inválida. Todavia, Trasímaco continua relutante. Ele sustenta que, quando o legislador legisla contra seus interesses, ele não o faz enquanto legislador.

Não convencido, Sócrates nota que é preciso ir além da aparência, para buscar o que a coisa é em si mesma. No exemplo em questão, trata-se, pois, definir a justiça em si mesma e não nas formas como ela aparece.

Para Sócrates, a verdadeira definição da justiça deve revelar a essência da justiça. O leitor pode imaginar quão difícil é essa tarefa. Em todo caso, avancemos.

Na polis, a justiça promove a união e a harmonia; a injustiça, por seu turno, tem o efeito naturalmente contrário. Assim, para Platão, a justiça é uma virtude; é boa, é útil; a injustiça é um vício, é má, é nociva. O que é preciso reter é que Platão propõe que se deixe de considerar, nessa discussão, este ou aquele homem justo, esta ou aquela lei ou constituição justas, ou seja, sempre pessoas ou coisas particulares. É necessário que se pense, por abstração, no que seria a Cidade justa em geral. A partir dessa perspectiva da Cidade justa, ideal, é que se poderia definir a justiça em si e distinguir o que é justo do que apenas parece justo.

Na descrição do modelo de Cidade justa, vão-se determinando quais são as funções necessárias à melhor forma de vida da Cidade. No texto da República, encontramos discriminada a função daqueles que trabalham para manter a Cidade, a daqueles que a governam, a daqueles que se encarregam de sua proteção, de modo que uma Cidade seria justa se os que dela participam concorrem segundo suas aptidões.  Tais aptidões se colocariam a serviço da harmonia da polis. Destarte, aqueles cuja principal virtude fosse a temperança trabalhariam; aqueles que exibissem a virtude da coragem, especialmente, seriam os guardiões da Cidade; e os que fossem dotados de uma acentuada virtude de sabedoria (os filósofos) governariam.

É verdade que a Cidade descrita por Platão não corresponde a nenhuma cidade existente que conhecemos. No entanto, já podemos compreender, tendo em conta o que se expôs até aqui, como se deve distinguir o que apenas parece ser justo do que é verdadeiramente justo.

 



           1.4.1 A alegoria da Caverna

 

Tendo em vista o estabelecimento da verdade, Platão generaliza o tratamento que vinha dando à questão da justiça. Para tanto, ele lança mão da famosa Alegoria da Caverna, com a qual nos pede que imaginemos pessoas vivendo acorrentadas numa caverna fracamente iluminada por uma fogueira. Essas pessoas, imobilizadas, viradas para a parede, só viriam as confusas sombras projetadas pelas coisas que passavam atrás de si. Como essas pessoas só conhecessem essas sombras, sem nunca terem visto as próprias coisas, elas tomam as sombras pela realidade. Platão prossegue imaginando que um dessas pessoas consiga, com dificuldade, libertar-se e sair da caverna. Num primeiro momento, ela ficaria completamente cega pela luz do Sol; mas, à medida que suas vistas se acostumassem à claridade, ela conseguiria ver claramente as coisas e, assim, entenderia o que elas são realmente. Essas coisas é que são reais, ao passo que as sombras projetadas na parede da caverna não passavam de simulacros, aparências das próprias coisas.

Entusiasmado com a descoberta, essa pessoa sente-se impelida a voltar à caverna para contar a todos os demais prisioneiros o que viu. Mas, ao contrário do que esperava, ninguém acredita no que conta ela e ainda zombam dela. Os que permaneceram na caverna continuam a acreditar que as sombras constituem a verdadeira realidade.

Em síntese, da Alegoria da Caverna podemos colher a seguinte lição: só podemos conhecer a verdade quando ultrapassamos o domínio das aparências sensíveis para, num movimento ascendente, contemplar os arquétipos ou as Ideias eternas e imutáveis que constituem o mundo inteligível, este que é dotado de mais realidade que o mundo sensível, onde nós habitamos. É necessário omitir alguns pormenores da escalada de conhecimento rumo à contemplação da Forma do Bem, ponto de irradiação da luz para todo o campo das Formas Perfeitas. Extrapola o escopo deste estudo o aprofundamento desse tema.

Só há, de fato, conhecimento, segundo Platão, quando se alcança a realidade imutável da qual participam as coisas sensíveis, as quais são o que são em virtude dessa participação. Mas essas coisas sensíveis são cópias imperfeitas das Formas Perfeitas verdadeiramente existentes no mundo inteligível, cujo acesso não é possível senão pelo pensamento, pelo raciocínio.

Assim, a beleza dos corpos é tão mais intensa quanto mais participam do Belo em si, cujo conhecimento nos permite determinar o que é belo. Não me interessa aqui me demorar nos desdobramentos dessa doutrina platônica. Mas cumpre esclarecer como essa concepção da realidade e do conhecimento se conecta com a questão da Cidade justa.

Platão advogará que as opiniões não conduzem ao conhecimento; as opiniões são aparências de um saber; não o verdadeiro saber. As opiniões pertencem ao mundo das coisas sensíveis e não nos permitem desvelar a essência das coisas. Por outro lado, o conhecimento é um processo ascendente que nos encaminha à realidade imutável, pela qual todas as coisas são o que são. A Cidade justa depende, portanto, do conhecimento do Bem em si e da Justiça em si. Os homens só serão justos e bons conhecendo o Bem e a Justiça em si, isto é, a Forma do Bem e a Forma da Justiça. Enquanto permanecem confundidos por aquilo que parece bom e justo, mudando continuamente de opinião, eles serão injustos e infelizes.

 



           1.5. A visão de Aristóteles

 

Platão nos ensinou que o conhecimento e a ética estão necessariamente ligados. Para Platão, se nos afastamos do bem e da justiça é porque ignoramos o que é realmente o Bem e a Justiça.

Aristóteles, por seu turno, discordará de seu mestre, Platão, e do mestre deste, Sócrates. Aristóteles negará que ética e conhecimento estejam necessariamente unidos, o que não significa que rejeitasse a necessidade de conhecer o que são os valores morais (virtudes) necessários ao bom convívio humano.

O que ensina, então, Aristóteles, a respeito da relação entre conhecimento e ética? Ele ensina que é necessário conhecer o que são as virtudes, mas também mantém que o conhecimento não é suficiente para que nos tornemos virtuosos.

Esclareça-se, pois, a ideia central do pensamento aristotélico, ao considerar a relação entre conhecimento e ética: o caráter de uma pessoa não é bom porque ela simplesmente conhece o que é a justiça ou a coragem, mas porque ela quer ou deseja agir em conformidade com o que seja a justiça ou a coragem.

Em primeiro lugar, a ética tem uma especificidade quando comparada com o conhecimento teórico. Em segundo lugar, a natureza humana comporta dois elementos: o irracional e o racional, que podem estar em conflito entre si. Aristóteles fará uma distinção que Platão não fez entre conhecimento teórico ou científico e conhecimento prático. Se o conhecimento teórico explica o que a coisa é, buscando determinar a causa dessa coisa (em Aristóteles, conhecer é conhecer pelas causas); o conhecimento prático, por seu turno, torna possível aos homens produzir ou agir no mundo. Por isso, ele é prático, pois se refere às nossas ações.

Para Aristóteles, portanto, tanto a ética quanto a política são conhecimentos práticos, já que se destinam a identificar o que de melhor podem realizar as ações humanas.

 

 

 

 

1.5.1. O homem é um animal político

 

Examinando o texto da Política, São Tomás entenderá que Aristóteles, ao enunciar que “o homem é um animal político”, quis dizer que faz parte da natureza do homem o viver na cidade, associando-se em comunidades: a família, a casa, a vila... Dentre essas comunidades, a pólis se destaca como a maior e a primeira, porque recobre a totalidade das demais.

Para Aristóteles, a comunidade política é, para o ser humano, o seu lugar natural, uma vez que, dotado de racionalidade e, consequentemente, da faculdade da linguagem verbal, pode manifestar mais do que sensação de prazer e sofrimento. Sendo ser de discurso e animal político, o homem percebe e manifesta o bem e o mal, o útil e o prejudicial, o justo e o injusto, razão pela qual o tipo de organização humana será superior àquelas comunidades cujas tarefas se restringem à reprodução, proteção e manutenção da vida, como os formigueiros e as colmeias.

Em suma, a cidade, na visão aristotélica, não será outra coisa senão a comunidade organizada segundo aqueles valores. Ela é a consequência natural da razão prática, isto é, naturalidade e necessidade de organizar-se em comunidade decorrem da atividade racional para refletir, ponderar, decidir e agir em conformidade com o parâmetro do que é verdadeiramente bom para nós e para os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Cumpre, finalmente, dizer, muito brevemente, que o supremo bem a que tende o homem é a eudaimonia, que se traduz, em português, por falta de uma palavra mais adequada, por felicidade. Mas, em Aristóteles, a felicidade não é um sentimento; é uma atividade. A eudaimonia consiste em viver de tal forma, que o que apraz nossa alma desiderativa seja aquilo que a atividade excelente de nossa alma racional afirme ser verdadeiramente bom e justo.

É a polis o lugar em que os seres humanos se realizam enquanto humanos, nem bestas, nem deuses. Nesse sentido, a felicidade para o homem, ou seja, a atividade do homem que realizou suas qualidades próprias de ser humano (racionalidade, linguagem, sociabilidade) só pode ser atingida no domínio da cidade.

 

 

1.5.2.  Condições políticas da ética

 

Notemos que, segundo Aristóteles, a ética tem condições políticas. Ao sustentar que este é o caso, Aristóteles faz ver a importância que desempenha a educação na aquisição dos hábitos que são as excelências ou virtudes cívicas.

Aristóteles chegou a preconizar a necessidade de uma escola pública acessível a todos os cidadãos. A necessidade de uma escola pública prende-se ao fato de que, na democracia temperada, que lhe parecia o melhor regime, a cidadania ativa, a saber, a participação efetiva nas instâncias do poder, deve ser direito de todos os cidadãos, independentemente de sua classe social, seu nível econômico ou sua idade.

A educação permitiria que os jovens, primeiramente governados, viessem a se tornar, mais tarde, governantes.

 

1.5.3. As condições éticas da política

 

A política, por seu turno, também tem suas condições éticas. É somente pela virtude dos cidadãos (justiça, amizade cívica, prudência) que se constituem verdadeiramente comunidades solidárias e diversificadas. A essa virtude devemos também o primado atribuído ao interesse geral sobre os interesses privados, a estabilidade das instituições, não obstante as inevitáveis discórdias, os riscos de sublevação e de revoluções.

Amizade, justiça e prudência se situam, portanto, no encontro entre o político e o ético. A amizade (philia) prima sobre as outras duas porque é ela que parece unir as cidades. A própria justiça deixa de ser necessária, se entre os cidadãos houver amizade. Aristóteles ainda sustenta que, no domínio privado, a justiça torna possíveis os vínculos de amizade em condições desiguais. O que conta é que o apego seja proporcional às vantagens recebidas.

No domínio público, a amizade reanima a preocupação com a justiça, que corre o risco de ser relegada em favor dos interesses egoísticos. O bom político, para Aristóteles, dispõe de sabedoria prática ou prudência, em virtude da qual sabe o que deve fazer numa ou noutra circunstância particular, e reconhece o momento oportuno para fazê-lo. Fica estabelecido, pois, o significado ético dessa sabedoria.

No tangente à justiça, ela integra todas as outras virtudes. A justiça se situa entre as virtudes éticas; por isso, é uma virtude dianoética, dado que está calcada sobre o cálculo de uma igualdade que pretende determinar as compensações e penas, ou a distribuição a cada um a parte que lhe é devida.

 

 

1.5.4.  Distinção entre ética e política

 

Ética e política são indispensáveis, mas não se identificam. Aristóteles também aqui nos convida a pensar a uni-pluralidade, ou seja, a unidade na pluralidade. Assim, as virtudes do homem de bem e as virtudes cívicas permanecem dissociadas. É possível alguém ser bom e honesto sem que seja bom cidadão ou um bom dirigente político.

Em primeiro lugar, é impossível que mesmo a melhor cidade se constitua inteiramente de pessoas de bem. Em segundo lugar, importa, na polis, que cada cidadão “cumpra corretamente a tarefa que lhe for designada”.

Se Aristóteles renuncia à ideia de unificar todas as virtudes, ele acede à ideia de que todas elas dão aos homens cumprir a sua tarefa de ser humano, de realizar-se enquanto homem.

 

 

2. O que é isto, a política?

 

Após termos examinado, não exaustivamente, como a questão da boa vida encontrou abrigo no pensamento político de Platão e Aristóteles, é forçoso deslocar a perspectiva sobre a política para pensá-la de modo mais geral no quadro de referência da modernidade.

Principiemos pela observação de que não restam dúvidas de que a política é uma referência permanente em todas as dimensões de nosso cotidiano, na medida em que este se estrutura como vida em sociedade. A política surge juntamente com a própria história, com o dinamismo de uma realidade que não cessa de se transformar, que continuamente se revela insuficiente e insatisfatória, e que não é fruto do acaso, mas resulta da atividade histórica dos próprios homens em sociedade. Homens que, portanto, têm todas as condições de interferir, de desarranjar e de dominar as estruturas da história. Entre o voto e a força das armas acha-se uma gama variada de formas de ação desenvolvidas historicamente, visando a resolver conflitos de interesses, condição esta que configura a atividade política em sua questão fundamental, qual seja, a de sua relação com o poder.

 

 

2.1. A política e suas formas

 

A política é uma dimensão da existência do homem – este que, é, como vimos, por natureza, um “animal político” (Aristóteles) – sempre ligada ao Estado, ao poder, à participação, às ideologias, à violência (que assume muitas formas, inclusive a simbólica), sempre presente nos sindicatos, nos tribunais, na escola, na igreja, na sala de jantar ou na reunião partidária.

A política se manifesta, pois, como uma realidade multifacetada. Há, todavia, uma região semântica da palavra política a que comumente fazemos referência, em razão de sua negável importância: a esfera da política institucional. Assim, designam políticas todas as atividades relacionadas, de algum modo, à esfera institucional política, onde encontramos, por exemplo, um comício, um partido, o voto de um eleitor, o discurso de um vereador, etc.

É possível ainda alargar a extensão semântica da palavra política, a fim de que ela compreenda certas formas de se posicionar em face de questões de interesse social. Por exemplo, quando falamos da política da Igreja, não estamos nos referindo apenas às suas relações com as instituições políticas, mas ao fato de que existe na Igreja um posicionamento em relação a certas questões de importância social, como a miséria e a violência.

Do mesmo modo, a política dos sindicatos não recobre apenas a ideia de política sindical, desenvolvida pelo governo para os sindicatos, mas as questões que tocam à própria atividade do sindicato relativamente aos seus filiados e ao restante da sociedade.

Para tomar um último exemplo, a política feminista não compreende apenas as relações de suas representantes com o Estado, mas diz respeito aos homens e às mulheres em geral. Consoante nota Maar, em O que é política? (2006),

 

“As pessoas, no seu relacionamento cotidiano, desenvolvem políticas para alcançar seus objetivos nas relações de trabalho, de amor ou de lazer; dizer “Você precisa ser mais político” é completamente distinto de dizer “Você precisa se politizar mais”, isto é, “precisa ocupar-se mais da esfera política institucional” (p. 10).

 

 

O devir histórico que acarretou nossas complexas instituições políticas – a instituição de um Estado onipotente – impôs a politização geral da sociedade nas suas mais diversas esferas e micro-esferas. Todos somos instados a nos posicionar, diariamente, em face do Poder. Por outro lado, esse devir carreou a imposição de normas com as quais se baliza a própria aplicação da palavra política, de modo que nos sentimos forçados a determinar o que é e o que não é política. Disso resulta que o ser político do eleitor é mascarado, ao mesmo tempo em que se associa restritivamente a natureza política àquele que é eleito. Pode suceder ainda que se fixe para uma pessoa um lugar e um tempo apropriados ao exercício político (por exemplo, a hora das eleições ou a tribuna da Câmara dos Deputados).

 

 

2.2. A política como ação transformadora

 

Pode-se definir acertadamente a política como ação transformadora do real. Isso significa admitir que há várias orientações possíveis para a política, segundo satisfaça uma ou outra demanda. Todavia, apenas uma dessas orientações se efetiva na prática como a orientação dominante. Trata-se da orientação assumida pela atuação do Estado, o qual dispõe das condições para tanto.

É indispensável, aqui, esclarecer o que se entende por Estado. Em primeiro lugar, estamos nos referindo ao Estado moderno. Destarte, o Estado pode ser definido como uma estrutura jurídica e organizacional que se sobrepõe à sociedade e que se destina a manter a ordem no interior dessa sociedade. O Estado é um sistema de poder estruturado e encarna uma força pública que dispõe do monopólio de poder sobre determinada população em um determinado território.

Do ponto de vista do liberalismo, o Estado é uma estrutura de dominação, e essa estrutura de poder traduz-se em dois direitos básicos: o poder de estabelecer leis e o poder de tributar.

Particularmente nos interessará aqui a concepção marxista de Estado. Para o marxismo, o Estado é produto das contradições da sociedade que atinge certo grau de desenvolvimento e necessita, por isso, de um poder colocado aparentemente acima da sociedade para mantê-la dentro dos limites da ordem.

Segundo Engels, o Estado constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses das classes dominantes. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade privada. Na visão de Engels, o Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, torna-se independente dela, tanto mais que vai se convertendo em um instrumento de poder de uma classe, com o qual ela impõe seu domínio sobre outra.

O Estado, portanto, do ponto de vista marxista, está a serviço das classes dominantes, na medida em que lhes seve de instrumento para o estabelecimento e a legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do Estado para instaurar a sua dominação e assegurar seus privilégios.

Engels sustentou também que “os homens fazem a sua própria história, mas não segundo condições que eles mesmos escolheram”. Por conseguinte, a atividade dos homens é dependente de certas condições objetivas configuradas pelo desenvolvimento histórico. Os homens só se tornam agentes políticos, quando satisfeitas essas condições. Só podem interferir na história, quando essas condições se realizam.

Dois problemas se nos impõem à consideração, doravante: 1) a atividade que se desenvolve quando as condições para tanto são satisfeitas; 2) a atividade que se destina à constituição dessas condições.

 

 

 

2.3. A natureza e a atuação do Estado

 

A política que se segue da atuação do Estado só existe porque tem condições para tanto. É claro que o Estado não é o único a dispor dessas condições, mas o fato de que delas dispõe é suficientemente provado. Destarte, o Estado dispõe do poder de desvelar o objetivo de sua atividade política e de suas instituições.

Na medida em que ocupa essa posição privilegiada, qual seja, a da instância cujas possibilidades já estão comprovadas, o Estado e seu agente – o governo – tornam-se objeto principal da disputa de todas as orientações políticas, de todos os partidos, qur os de oposição, quer os de situação. Naturalmente,  os partidos da situação pretendem manter-se onde estão: no poder.

Convém sublinhar que a vida partidária é a condição mais importante para ocupar a direção do Estado – mais importante, inclusive, do que as instituições mediante as quais se realiza a política – forças armas, partidos, organizações religiosas, sindicais, etc.  – e a atividade que se realiza através delas.

A atividade política institucional do Estado consiste num conjunto de medidas que visam a atender as necessidades da vida social dos homens em sua história. Tais necessidades dizem respeito, por exemplo, à organização da vida coletiva e ao atendimento de objetivos comuns.

O desenvolvimento de uma estrutura de poder decorre do primado da coisa pública sobre os interesses individuais. Essa estrutura de poder é uma superestrutura que ordena e disciplina a base social a que corresponde. A superestrutura é a dimensão a que interessa sobremaneira a sua relação com a sociedade. Gramsci dirá que é essa relação que constitui o primeiro momento da superestrutura. Esse momento se impõe como a questão fulcral da política institucional.

Essa relação se reproduz na atividade institucional na forma de relações entre governantes e governados, representantes e representados, dominadores e dominados, administradores e contribuintes, “autoridades” e “população”, etc. Decerto, os atos do governo, dos tribunais, do parlamento são dotados de significado político; todavia, esse significado é extensivo à relação que essas instâncias mantêm com a sociedade dos que se submetem ao governo. Os meios da atividade política se alimentam das peculiaridades dessa relação. E essa relação expressa e revela a atividade política como acontecimento inerente a sua base (da relação). Tais meios devem ser levados em conta se o que está em jogo é a realização do desejo de ocupar o governo. São esses meios que permitem que seja dominante uma orientação política. Esses meios funcionam como dispositivos para a constituição do agente político.

O Estado, já o dissemos, é um agente comprovado. A fim de compreender como esses meios funcionam para constituir um agente político, cumpre considerar o modo como o Estado se relaciona com a sociedade. Essa relação – desde já, é preciso notar – se dá pelas armas ou pelos votos. Quando a relação se dá pela força de seus aparelhos repressivos (Althusser), ocorre a coerção, e o Estado se manifesta como agente da coerção, da imposição. Quando, por outro lado, a relação se estabelece mediante a prática de votos, o Estado torna-se um agente da persuasão , do consenso. Por conseguinte, a dominação pela força e o governo pelo convencimento são os meios da política. Quando há dominação pela força, verifica-se mais claramente a coerção; quando se dirige pelo convencimento ou pela persuasão, temos a hegemonia.

Vejamos exemplos de um e outro caso. Recentemente, o Brasil testemunhou uma série de manifestações de rua que, em circunstâncias em que excediam os limites da ordem instituída pelo Estado, exigiram deste uma repressão por meio de sua política. Nesse caso, ficou patente a atuação dos mecanismos de coerção.  A política que reprime uma passeata pode fazê-lo pela censura. Por outro lado, quando o governo, a fim de angariar votos, faz promoção de seus atos, faz propaganda de suas realizações, ele está a visar a uma hegemonia. Trata-se, nesse caso, de uma força de direção calcada sobre a necessidade de convencimento, de produzir consenso.

Pode ainda suceder que setores da oposição, procurando ascender ao governo, por ocasião das eleições, apresentem-se como alternativas hegemônicas; se tomam das armas, escolhem fazer uso da coerção. A invasão dos EUA ao Iraque foi um ato de coerção.

Não se pode perder de vista o fato de que esses meios têm um espaço próprio no interior da superestrutura de poder. O espaço que ocuparão varia segundo a função a que sevem.

Recorde-se que a coerção e a hegemonia constituem dois momentos característicos da atividade política. É por meio desses dois momentos que é criada uma relação específica com a sociedade. A sociedade assumirá duas formas, cada qual fixada pelo modo como o Estado se relaciona com ela. Se por coerção, a sociedade assume a forma de sociedade política; se por hegemonia, temos a sociedade civil. Na sociedade política, se acham a administração pública, o Judiciário, o conjunto de leis, a censura, a polícia e as forças armadas, etc., e sua presença no cotidiano. Na sociedade civil, se topam partidos, as instituições de propaganda, as escolas, as empresas, os sindicatos, os movimentos sociais, a Igreja, etc.

Na sociedade política, predomina a atuação do governo; na sociedade civil, se acham, quase exclusivamente, as oposições. É por isso que a sociedade civil é, geralmente, vista como expressão das orientações políticas divergentes do governo.

O filósofo, educador e psicanalista Rubem Alves escreveu um conto, intitulado Os Ratos, no qual narra, endossando uma perspectiva marxista, o que é uma constante do desenvolvimento histórico: a persistência da propriedade privada e da luta que decorre pelo desejo de dispor dela, por exclusão dos outros. A história dá testemunho, frequentemente, de que governados e governantes trocam de papeis: dominados e dirigidos assumem o papel de dominadores e dirigentes.

Essas contradições constitutivas do tecido histórico, inerentes à natureza humana, suscetível à influência das paixões egoísticas, irão comprovar o significado político institucional dessas relações. Isso se dá porque, para adquirir significado político institucional, é preciso, antes de mais nada, que aquelas relações revistam-se de significado político. Ora, não só o governo e os deputados, senadores, vereadores, prefeitos são políticos; tampouco somente suas relações com os governados são relações políticas; políticos também são os governados, os representados. Também eles e suas relações são dotados de significado político.

Cabe, então, perguntar como se manifesta esse significado político? E mais: quais os meios necessários para que ele assuma a forma das relações que estão no bojo da disputa pelo poder institucional, o da coerção e o da hegemonia? Necessário será, doravante, contemplar os meios específicos de que se vale a sociedade de dominados e dirigidos, com vistas a instituir uma possibilidade de governo. Em tempo, necessário será também lançar olhares sobre os objetivos do Estado.

Por ora, intentando compreender de que meios se servem os governados, os dominados, comecemos por fazer ver o seguinte. Os agentes políticos constituem a sociedade mediante sua organização e mobilização tendo em vista os interesses sociais, os quais, por isso, se desenvolvem com objetivos políticos, porque em seu horizonte estão as relações políticas de coerção e hegemonia. Esses agentes políticos voltam sua atenção para essas relações com o propósito de transformar em direito suas reivindicações.

É nesse momento que urge atentar para uma contradição fundamental: os agentes representam interesses da sociedade, que não correspondem as demandas do Estado. Eles só são agentes porque se baseiam na estrutura social, e não na base da política institucional do Estado. Esses agentes atuam, de certo modo, independentemente do Estado, a não ser que precisem exibir eficiência no modo como se conduzem as relações que o Estado estabelece com a sociedade.

Os partidos que expressam claramente interesses sociais, os sindicatos, as associações profissionais não estabelecem suas condições objetivas enquanto assumem significado político na disputa pelo governo. Eles repousam em condições subjetivas, cotidianas, de mobilização e organização de seus filiados e militantes.

É assim que, por meio de seus interesses sociais, atribuem um significado político aos agentes que os constituem. Na democracia moderna, não é, por exemplo, o prefeito que doa uma parte de seu significado político ao eleitor, para que este exerça uma atividade política; é, ao contrário, o representado, o governado, o eleitor, que atribui ao representante, no caso, ao prefeito, o poder de representá-lo. Não é o governo que dá significado ao Congresso; mas este que confere àquele o direito de cuidar dos interesses sociais que representa.

 

 

 

“Os objetivos da política deixam o espaço confinado da disputa institucional, para adquirirem embasamento social. Não é o confronto com o Estado que está em primeiro plano, mas a capacidade de representação das demandas sociais. Por isto palavras de ordem, como “abaixo a ditadura” dão lugar a manifestações contra a carestia e o arrocho salarial, contra a legislação sindical e o desemprego, pelo atendimento de serviços básicos como saúde, educação, transporte, moradia, etc. (Maar, 2006, p. 52)

 

 

Do excerto referido acima, quando se consideram os objetivos da política, deve-se considerar, em nível imediato, a luta dos agentes que compõem a sociedade civil pelo atendimento de suas demandas sociais. Não se trata mais de atuar em confronto com o Estado, mas de se afirmarem enquanto agentes que bem representam os interesses coletivos, para cuja satisfação eles mobilizarão mecanismos que pressionem o Estado a fazê-lo.

 

 

2.4.  Os objetivos do Estado

 

Todos sabemos que é possível escolher entre vários partidos ou candidatos a cargos eletivos; mas não é possível, pelo menos para a grande maioria, escolher entre o pleno ócio e o trabalho. Aqui já se pode perceber o cerne da política institucional do Estado e de suas instâncias no governo – o Executivo, o Judiciário, o parlamento, a política. O Estado deve garantir uma liberdade no exercício da cidadania – o voto – e impor uma norma no nível da produção, qual seja, o trabalho.

Portanto, do ponto de vista do Estado, a finalidade específica da política institucional consiste na imposição de uma estrutura econômica à sociedade. No mundo atual, predomina a imposição de uma estrutura econômica capitalista, que se baseia em antagonismos de classes sociais: umas subsistem vendendo sua força de trabalho; outras compram os produtos desse trabalho. Umas são exploradas em benefício de outras.

A miséria não decorre da insuficiência na produção de alimentos no mundo; mas da imposição política de uma estrutura econômica que perpetua a miséria para poder explorar mais o trabalho dos miseráveis. Por meio da política institucional do Estado, os interesses particulares de uma classe se apresentam como objetivos políticos gerais da sociedade. Trata-se aqui de apreender o legado marxista, segundo o qual os interesses das classes dominantes aparecem, no domínio ideológico, como os interesses da sociedade como um todo.

O Estado exibe sua verdadeira face quando seu objetivo se apresenta como imposição de interesses de exploração econômica de uma maioria. A repressão não recai sobre todos os cidadãos; ela se pauta por certos critérios que não são políticos (já que, formalmente, todos os cidadãos são politicamente iguais), mas sociais. Esses critérios sociais definem os cidadãos como assalariados ou proprietários dos meios de produção, ou proletários ou burgueses. Esses critérios sociais só se explicam se os objetivos são também sociais, fora da esfera do Estado, ou seja, como formas de manutenção da estratificação social.

A relação que se estabelece entre governo e governados é a aparência política da relação social entre patrão e empregado, a qual assume a forma de uma relação de classes na sociedade.  Disso resulta que a atividade política institucional ancora-se, objetivamente, numa relação com a sociedade. É nessa relação que os meios de que se serve a atividade política do Estado se manifestam. O Estado os vê como forma de participação, representação e direção dos “cidadãos” indiscriminadamente. O que sucede na sociedade, porém, é que apenas uma parcela pequena desses cidadãos – em consonância com sua situação de classe – é efetivamente representada, efetivamente participa do Estado e reconhece no Estado um dirigente de seus interesses que aparecem, no domínio ideológico, como os interesses de toda a sociedade.

Meu propósito é que este texto possa ser complementado com outro texto, no qual deverei me ocupar com o desenvolvimento das ideias e conceitos recobertos pelo materialismo histórico de Marx e Engels.