"O fanatismo é a morte da conversa. Não se consegue tagarelar com um candidato a mártir". Cioran.
quarta-feira, 30 de julho de 2014
"Muita poesia nos convence do amor; um pouco de filosofia nos faz suspeitar dele"
Desilusionado
As pessoas vêm e vão... e se vão
não me perguntem para onde
elas vão assim como os amores
que vêm e vão para lugar algum
Amor? Palavra feia para se dizer
Na liquidez de nossos tempos...
Nesses tempos escorregadios...
Moeda cara para dar a qualquer um
desses transeuntes que vêm e vão
e se vão com pressa, sem deter-se por um instante
Tanto mais que de nada se aproximam
senão do túmulo
Essa pressa, essa urgência sempiterna
do ir-se me parece demasiado absurda
Que todo amor é uma invenção estou convencido
Mas o amor esquálido desses tempos de urgência
É a obra-prima de nossa condição miserável
É o signo que mimetiza a vacuidade do desejo de sentido
Para uma existência contingente e precária
A quem amei intensamente outrora
Já se casou e outra que eu dizia amar
engravidou...
"O amor excede as medidas da alma"
Isso me soa tão pueril,tão démodé
Embora tenha agradado alguns espíritos iludidos
Pobres mulheres que só sabem do amor
pelas palavras aveludadas, fagueiras
Do poeta que mente, que finge sentir dor
A dor que deveras não sente
Muita poesia nos convence do amor
Um pouco de filosofia nos faz suspeitar dele.
(BAR)
segunda-feira, 28 de julho de 2014
"Você é genuíno? ou apenas um ator? Um representante? ou o que é representado? - Enfim, não passa da imitação de um ator" (Friedrich Nietzsche)
Viver como
Nietzsche
“Fala o
desiludido – eu buscava grandes homens, e sempre achei os macacos de seu ideal”.
(Crepúsculo dos
Ídolos)
Comecemos, pois. Em princípio, preciso
esclarecer o significado pretendido com o título deste texto, dado
que esse título autoriza mais de um sentido (possivelmente, muitos). Viver como Nietzsche é viver como uma pessoa conciliada com o real, com a vida. É esse o sentido que
pretendo fique, desde já, realçado com a escolha linguística que fiz. Há outro sentido que ilumina o realce do
primeiro e que me parece também pertinente. Viver como Nietzsche é viver e perceber o mundo sob o olhar da
suspeita. Não suponho que todos sejam capazes de tal experiência contínua e decisiva; pois que, nas sociedades ocidentais, muitos são ainda os decadentes. Cesso de talhar as palavras, pois que não quero torná-las pontiagudas demais. Não quero parecer que me encontro em alguma condição privilegiada, inacessível aos que se interessam por ler-me.
Se o leitor me consentir, inicialmente, que um
tal viver, se não é inacessível, ao menos demanda certo labor de um corpo que não se pensa mais como distinto do espírito, de um corpo, aliás, que nega que exista uma tal substância, então posso eu prosseguir com o curso de minhas reflexões.
A produção deste texto é
motivada pela necessidade de retornar a Nietzsche, a fim de lhe fixar o lugar
de excelência que lhe cabe na incisiva transmutação em meu olhar-sentir o mundo, a existência e a
mim mesmo como Dasein (para usar um
conceito apropriado de Heidegger).
Em algum lugar, escrevi que a filosofia – e,
por consequência, o ateísmo – fez reconciliar-me com o
mundo. A leitura de Nietzsche é que me sugeriu essa forma de compreender-me
como um renascido dos fracos e decadentes. Quem, em algum momento, leu
Nietzsche ou a respeito de sua filosofia sabe alguma coisa concordará na afirmação de que Nietzsche procurou reconciliar
o homem com o real. Sua filosofia é seu esforço de tornar o homem reconciliado
com a vida e suas forças (dela) no aqui e agora do mundo.
Com vistas a ilustrar o que se deu comigo,
depois que passei pela leitura cirúrgica de Nietzsche,
tome-se o seguinte passo de um texto meu, escrito há 4 ou 5 anos. O título que encabeça esse texto é A Aurora do Renascimento em Deus. Escusa dizer
que, àquela altura, ainda estava aferrado à crença em Deus. Uma nota sobre as
condições de produção desse texto é
necessária. Ele se reúne a outros
tantos textos que compõem uma coletânea
de escritos vazados numa linguagem efusivamente místico-religiosa que me acalentou durante um longo período em que vivi entrevado numa liricamente produtiva
depressão.
“Muitas vezes, sinto-me sufocado pelo mundo.
Certo dia, quando imerso num profundo desespero, vociferei a irreprimível
insatisfação de estar encarnado e irremediavelmente contido nesse mundo. Não
aceitava a insensibilidade alheia, a indiferença das pessoas, especialmente das
jovens moças a que entregava os filhos líricos de meu coração. Muitos foram
rejeitados, abandonados, ignorados pela estreiteza e a vacuidade do coração
delas.
Meus poemas
eram sopros de anelo cálido e efervescente que minha alma lançava aos Céus,
para que Deus me desse beber do cálice do Amor Bendito. E meus poemas não
cessavam de nascer, embebidos num pessimismo nefasto.
Algumas
tempestades foram necessárias, para que minha alma gozasse da beleza dos dias
de um céu azul cristalino e ensolarado. Sempre neguei a matéria, o corpo
passível de corrosão, que será consumido pela terra faminta de protoplasmas e
citoplasmas. Sou homem, decerto, mas não sou um corpo com alma, mas uma alma
com corpo. Esse invólucro é temporário; há de extirpar-se como extinguíveis são
as pragas que assolam o milharal.
Como seja eu
pura alma em ebulição lírica, desejo incessantemente transcender; busco,
mediante a palavra, alcançar universos supra-sensíveis, aos quais o acesso só é
possível pela reflexão e introspecção.
Pasme-se,
leitor, como também fiquei atônito, ao ler este passo de Huberto Rodhen, em Em Comunhão com Deus,
à página 43:
“Para que o
homem possa ingressar nesse mundo grandioso do “espírito”, é necessário que
transcenda as fronteiras dos “sentidos” e do “intelecto” “.
Há milhares de
anos, a vida do homem se estabeleceu no céu dos sentidos e do intelecto.
Libertar-se dessa atmosfera de racionalidade e imediatismo é necessário para
que o homem logre alcançar as regiões supra-sensíveis e supra-intelectivas. O
prelúdio para a experiência real do mundo invisível aos olhos do corpo, mas
visível aos olhos da alma, é a fé.”
(BAR)
Como não pretendo me deter na análise deste excerto, porquanto sua leitura é suficiente para tornar possível a apreensão pelo leitor da representação de um ethos que contrasta claramente com o ethos de que é expressão o próximo
excerto que vou referir. Ethos, desde
Aristóteles, ainda que nele encerre também um sentido moral, significa
“imagem de si”. E é o lógos ou o discurso o lugar que
engendra o ethos. Com base no
conceito de ethos, poder-se-ia ver,
pela análise, que a imagem de si construída pelo sujeito do
texto acima é a de um indivíduo em claro conflito com o mundo e
aprisionado nas ilusões de uma tradição judaico-cristã e platônica à luz da qual ele
experiencia a si mesmo e sua relação com o mundo. Mas a
tarefa de interpretação deixo ao encargo do leitor.
Considere-se, agora, este outro texto, escrito mais recentemente, do qual se
depreende um outro ethos- um ethos cirurgicamente modificado pela
leitura de Nietzsche e, de modo geral, pela imersão aturada
na literatura filosófica.
“A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito.
Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o
seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as
suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta
o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os
deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O
Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus
pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas
noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram
limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito
tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma
cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste
espírito niilista que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a
indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci.
Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil,
para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).”
(BAR)
Esse fragmento foi colhido do texto, publicado
neste blog, em 11 de março de 2013, cujo título é reencontrando-me. O referido fragmento
já inicia com a declaração da transformação cirúrgica empreendida pela filosofia no sujeito que se constrói no curso do discurso. Em seguida, evoca o legado de Nietzsche, cuja
filosofia foi determinante do salto de reconciliação com o mundo dado por esse eu então afetado ou
renascido. No texto, esse eu afetado se reencontra com a imagem-de-eu de
outrora, ciente, no entanto, de que sua
condição atual é tão imagética quanto o fora no tempo para
o qual se reporta. Esse “eu” já não se crê como substância; sabe-se como um sintoma de um corpo, ou um
feixe de representações, sensações, sentimentos de um cérebro. Sabe que, outrora, era um ídolo em cuja centralidade concentrava todas as fraquezas da vida. Que o
leitor ausente tire as conclusões que lhe forem mais coerentes, eu
consinto, contanto que não se convença delas apressadamente. Já tarda o momento de me
ocupar com a exposição da contribuição do pensamento de Nietzsche. Retomo suas demolidoras marteladas
filosofantes, com o propósito de elucidar de que modo se nos
aproveita o viver como Nietzsche.
1. Nietzsche
e a filosofia do martelo
Nietzsche inaugurou a época do que viria a ser
chamado de desconstrução da metafísica e da
religião. Se assumirmos que o materialismo
é a filosofia que sustenta serem ilusórias todas as formas
de transcendência, serem ilusórios todos os nossos ideais e serem
nossos valores produtos inconscientes de certas realidades materiais, deveremos
aceitar, forçosamente, que Nietzsche fora o verdadeiro fundador do materialismo
contemporâneo (Ferry, 2008).
Nietzsche desenvolveu uma crítica radical do que ele chamou de ‘ídolos’, a saber, todos os ideais
que puseram em movimento a atividade filosófica, religiosa e política durante séculos. Nietzsche foi o desconstrutor, aquele que, nas
suas próprias palavras, “filosofava a marteladas” (Ferry, 2008).
Embora se tenha reconhecido como um herdeiro
das Luzes, sua crítica ácida
continuou o que as Luzes não levou adiante. O espírito crítico das Luzes insurgiu-se contra a
religião e a metafísica, denunciando suas ilusões. Todavia, não levou adiante sua empresa; e passou a
exigir e a adotar novos ídolos, quais sejam: a Razão, a Verdade, a Democracia, a República, a Liberdade,
etc. Esses ídolos ocuparam o lugar deixado pelo mundo inteligível de Platão e pelo paraíso dos cristãos. Posteriormente, àqueles ídolos se reuniram outros como o Socialismo, o Anarquismo, o Comunismo,
o Cientificismo, o Patriotismo, etc.
Nietzsche tão logo se apercebeu de
que esses ídolos laicos ainda mantinham intacta a estrutura do além em detrimento
do mundo real do aqui em baixo. Em Vencer
os medos (2008), o filósofo Luc Ferry dá-nos a saber no que consistia o trabalho do espírito crítico para Nietzsche.
“O
espírito crítico
tem, portanto, de voltar a trabalhar e continuar criticando o que as próprias Luzes, por uma espécie de inconseqüência, por falta de
radicalidade, deixaram subsistir das antigas formas religiosas” (p. 73).
Quando Nietzsche declarou “Deus está morto”, não reconheceu tão-somente a morte dos ídolos que o homem fabricou, mas também
a do Homem do humanismo. Todos os seus ídolos, ou seja, todos
os seus ideais mantinham a estrutura fundamental da religião e, por isso, deviam ser demolidos.
Nietzsche fez “tabula rasa” da tradição ocidental (mais especificamente, dos valores dessa tradição), levando a termo uma empresa que Descartes e as Luzes, antes dele,
tinham já iniciado. Sucedeu, contudo, que tanto Descartes quanto as Luzes
deixaram inacabado o trabalho.
2.
Nietzsche – o contrário de um niilista
Não pretendo fazer
incursão na discussão sobre se Nietzsche desenvolveu ou não um pensamento que poderia ser filiado à esteira do pensamento
niilista. O que me ocupará é a tarefa de mostrar o que Nietzsche
entendia por niilismo, para, assim, situá-lo como o contrário de um niilista, tal como nós o entendemos hoje.
Comecemos por notar o seguinte: na medida em que Nietzsche insurgiu-se
contra todos os ídolos da cultura
ocidental, Nietzsche dispensou uma crítica severa ao
niilismo que constitui o cerne dessa cultura.
À luz do nosso entendimento atual do termo niilismo, Nietzsche pode parecer-nos um
partidário do niilismo, visto que se dedicou a demolir todo um universo de
valores sobre os quais o homem ocidental ancorou até então sua vida. A pós-modernidade, que, àquela altura,
Nietzsche viria a inaugurar, pode ser caracterizada como o período profundamente marcado pela perda do universo de referência axiológico que orientava a vida do homem. No entanto, o niilismo, para
Nietzsche, significava algo totalmente contrário ao que significa
para o senso comum hoje. Para nós, um niilista é aquele que não defende nenhum valor, que não tem ideal. Para
Nietzsche, ao contrário, niilista é justamente aquele homem
que vive aferrado a “convicções empedernidas” e excessivamente
morais. Niilista, segundo Nietzsche, seria aquele que tem ideais, sejam eles
religiosos, metafísicos ou laicos, humanistas ou
materialistas. Cabe, aqui, frisar que Nietzsche não
rejeitava apenas os ideias metafísico-religiosos, mas
todos os tipos de ideais, inclusive os gestados pela mentalidade laica e
cientificista.
Ora, segundo a perspectiva nietzschiana, os
ideais – os ídolos – são não só irreais, como também mantenedores da estrutura metafísico-religiosa do além. Essa estrutura aniquila o real. Esses ideais
foram inventados pelos seres humanos a fim de revestir de sentido a sua vida, e
também a fim de consolá-los na experiência de sua finitude;
sob muitos aspectos, por isso, esses ideais negam a vida como ela é.
O idealismo é, portanto, para Nietzsche, um
niilismo, se entendermos por idealismo uma atitude de negação do real em nome do ideal. Toda tentativa de melhorar o que existe em
nome de um futuro próspero, em que se dará a realização do homem, ou em nome de um sentido
velado, de um projeto superior, é um niilismo. É contra
esse niilismo que se erige a crítica de Nietzsche. É esse niilismo que tem de ser negado, se intentamos resgatar o real do
peso da moral do ressentimento à qual ele sucumbiu. Trata-se – evocando as
palavras de Sponville – de lamentar um pouco menos, de esperar um pouco menos
para amar um pouco mais. O desespero de Nietzsche, o desespero de Sponville não é o desespero do qual tenta incessantemente fugir o homem decadente;
é um desespero afirmativo do real, porque é a própria ausência
de qualquer esperança. Para amar o real, o presente, é preciso livrar-se das
esperanças que nos põem sob o domínio da tirania do futuro. Amar o real, dirá Nietzsche, é amá-lo como presença tal como nos é dada. É o que ele chama de amor fati,
que é o amor pelo que existe, que é a “inocência do devir”, uma inocência que
se conquista no momento em que nos libertamos do peso das paixões tristes que nos mantêm atados ao passado e das nostalgias e das
culpas (Ferry, p. 80). Nietzsche retoma aqui a sabedoria dos antigos e anuncia
a necessidade de nos libertarmos da tirania do futuro e das ilusões da esperança (ib.id.).
Nietzsche se apresentava como um imoralista, ou
mesmo como o Anticristo. Se isso repugna às sensibilidades forjadas em nossa
tradição moral de base judaico-cristã, é que essa
repugnância é sintoma de uma enviesada compreensão de
Nietzsche. Não era Jesus o alvo da corrosiva crítica nietzschiana, mas
a Igreja, o sacerdote, o cristianismo.
O filósofo de Röcken procurou afastar os perigos do niilismo, situando-se “além do bem
e do mal”. Em sua própria vida, não deixou de distinguir entre formas de vida doentias, nocivas,
atrofiadas, astênicas, em suma, “ruins”, e formas de vida mais vivas, mais
generosas, mais afirmativas e alegres (Ferry, p. 75).
3. O homem
dionisíaco
O conceito de dionisíaco constitui o pilar que sustenta o pensamento de Nietzsche em O nascimento da tragédia (1872). O
dionisíaco reúne o conhecimento da dimensão trágica da vida à fruição alegre e robusta dela (vida). Com
esse conceito, Nietzsche se opôs ao pessimismo shcopenhauriano. Ao contrário de Schopenhauer, Nietzsche buscou uma justificação da vida, uma afirmação da vida sem concessão, em que pese seus aspectos mais terríveis e
pungentes. O amor fati é uma espécie
de convocação de Nietzsche a que amemos a vida mesmo naquilo que ela tem de mais
doloroso. É neste momento em que atingimos o ápice do viver como
Nietzsche. Seria possível continuar amando a vida mesmo
depois das mais incisivas e pungentes cicatrizes? É possível amá-la mesmo quando ela é sentida como uma doença que contraímos sem qualquer responsabilidade no contágio?
Precisemos bem o ‘lugar’ donde essas questões se enunciam, pois
que Nietzsche não está sugerindo
que amemos a vida por um decreto de uma autoridade heteronômica (de Deus, por
exemplo). O homem de Nietzsche, ou melhor, o homem dionisíaco, é um homem desesperado, no sentido de que ele não nutre esperanças, ilusões, não espera viver a eternidade num além-mundo.
O dionisíaco não é apenas o conceito que orienta a filosofia de Nietzsche; é,
provavelmente, o único conceito que atravessa toda a sua
obra. No seu O nascimento da tragédia,
Nietzsche objetivou, fundamentalmente, construir uma filosofia trágica da existência. Essa filosofia se apresenta como uma alternativa ao
cristianismo que culpa o mundo desde o surgimento do primeiro homem.
Na figura do deus grego de origem oriental Dionísio, Nietzsche viu o contraponto ao cristianismo que tanto influenciou
a sua infância. Sem pretender deslindar toda a temática dionisíaca, quero, no entanto, frisar a
seguinte ideia fulcral, e a partir dela precisar quem é o homem dionisíaco: o trágico é apresentado em Nietzsche, sob a perspectiva de uma filosofia
pessimista e estética. Todavia, trata-se do pessimismo dos fortes, como tal, de
um pessimismo que não nega a vida. Esse pessimismo trágico aceita a existência e a sua dolorosa verdade dionisíaca: a morte e o sofrimento.
A alegria, de acordo com essa perspectiva, deve
ser encontrada não na harmonia; mas na dissonância. O
mundo trágico é um mundo sem redenção. Nietzsche teve a
coragem de ligar o pessimismo ao instinto de vida. Longe de significar
fraqueza, seu pessimismo afirma a força da vida, a robustez da vida. Segundo
Nietzsche, o pessimismo é fonte de alegria.
Em suma, o homem dionisíaco é sinônimo de homem trágico. Ele é uma
resposta ao pessimismo de Schopenhauer, que enfraquece a vida. O trágico, em Nietzsche, é o que
nos permite viver. O homem trágico vê a vida cheia
de alegria e de poder, a despeito – o que não nos deixa de
impressionar – da mutabilidade fenomênica de suas formas. É devido ao sofrimento inerente à vida que o homem dionisíaco a afirma. Numa passagem que me parece suficientemente elucidativa,
em O nascimento da tragédia (2007)
Nietzsche anuncia a que se opõe a sua (contra)doutrina dionisíaca:
“A
moral não
seria uma “vontade de negação
da vida”, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência,
apequenamento, difamação,
um começo do fim? E, em consequência, o perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como
um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma
contra-doutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã.
Como denominá-la?
Na qualidade de filólogo
e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do
Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca (ênfase no original, p. 18)”.
Compreende-se, quando se atenta para o excerto
acima, pois, que homem dionisíaco é o oposto do homem cristão; é o próprio anticristo, porque não busca um além que nega a vida.
Esse homem dionisíaco não encara o
sofrimento como a via crúcis para ir ao encontro da eternidade
no colo acolhedor de Deus. O sofrimento não é, para ele, um pedágio que se paga no aqui para permanecer fiéis à travessia para a
eternidade.
Na concepção trágica de Nietzsche, a vida se estrutura pela dissonância prazer/dor. A
vida se apresenta como vida sem redenção, que não oferece escapatória, e da qual também não se espera escapar. É esta a vida eterna, o eterno retorno
da vida, de que fala Nietzsche em seu Crepúsculo dos Ídolos. Nessa obra, encontramos a definição do pensamento dionisíaco, com cuja apresentação ponho termo a este
texto, com a certeza de que o que se silencio fala mais (produz mais sentidos)
do que aquilo a que dei uma materialidade verbal.
“Aquiescência
à vida, até em seus problemas mais afastados e mais árduos; o querer-viver
sacrificando alegremente os seus tipos mais realizados para a sua própria e inesgotável fecundidade – é tudo
isto o que chamei dionisíaco”.
sexta-feira, 18 de julho de 2014
"A religião é comparável a uma neurose da infância" (Sigmund Freud)
Psicanálise e
religião
A visão
freudiana
Minha imersão no universo
da filosofia se deu sem muito esforço, sem trauma, sem aridez. Não posso evitar
o clichê: foi naturalmente que me percebi seduzido pela filosofia, não como
saber acadêmico, um saber engessado que é sinônimo de erudição, mas como
exercício de existência; como prática de aprender a viver e a morrer. Minha
imersão na filosofia foi uma consequência natural do amor ao saber, da
dedicação incessante à leitura, ao aprendizado que daí decorre naturalmente. A
filosofia conciliou-me com a vida, com a sua aridez e dureza. Mas não se
enganem: não espero tanto assim da filosofia; apenas que ela me acompanhe e eu
a ela, que, em seu exercício, eu continue aprendendo com ela, sem medo dos
erros e dos equívocos a que todo pensador está inevitavelmente exposto. Errar
quando pensamos não é razão de vergonha; mas de humildade, é errando em nossos
raciocínios que buscamos aperfeiçoá-los. A filosofia, para mim, não é um cânone
para pensar "corretamente", mas um caminho para pensar com liberdade,
com honestidade, pouco importa por que caminhos retos ou tortuosos trafegarão
os pensamentos. A filosofia é um exercício de autotranscendência, que deve ser
assumido por cada um que mantém para com ele uma abertura. Abrir-se à filosofia
é insuflar todo o espírito, o corpo, o coração de uma potência de existir. E a
alegria do filósofo reside onde o homem da rua só vê inquietação e tristeza: na solidão dos pensamentos. É aí que
mora a alegria do filósofo.
(BAR)
É com
uma débil frustração que me debruço sobre a
escrita deste texto, pois que, antes de iniciá-la, detive-me, por algum tempo,
a procurar um texto que havia escrito, outrora, que versava, em parte, sobre o
tema que desenvolverei aqui. Pretendia recuperar algumas ideias que externei
naquele texto. Embora eu o tenha preservado em sua versão impressa, custa-me
agora encontrá-lo.
Afirmo, no entanto, ser uma débil frustração,
porque ela se acompanhou de um indiscernível contentamento quando de minha
redescoberta da quantidade de textos que estão arquivados em meu computador.
Esses textos foram compilados em apostilas e muitos dos quais remontam a
experiências intelectuais vividas há quase dez anos. Agradou-me entrever a
mudança atravessada por meu espírito nas verbalizações em que ele deu
testemunho de si. Ao revisitar esses textos, apreendo uma imagem de meu eu
bastante distinta da imagem deste meu eu atual. O meu eu de outrora nutria
algumas ilusões a respeito do mundo e de si mesmo, tomando-as como verdades
para si. O meu eu atual não é, contudo, menos iludido, apenas tem consciência
de que a ilusão é parte do real. Esse meu eu atual sabe que não existe enquanto
substância. Ele nada é senão projeções imaginárias de um cérebro que, lhe
conferindo uma substancialidade, o faz acreditar ser algo distinto do corpo ou,
pelo menos, uma entidade que possui um corpo, embora reconheça que não pode
existir independentemente do corpo. Muita tinta já correu para dar conta do
valor de verdade de proposições como “eu tenho um corpo” e “eu sou meu corpo”.
No primeiro caso, supõe-se a independência do “eu” em relação ao corpo,
afirmando ser o “eu” uma substância que possui um corpo (outra substância). No
segundo caso, estabelece-se uma relação de identidade entre o “eu” e o “corpo”,
muito embora não se explique como esse corpo é capaz de asseverar essa
identidade sem que se suponha justamente a inexistência dessa identidade, isto
é, sem que se suponha um eu que, no ato de afirmar, coloque o corpo como objeto
para si. Em outras palavras, afirmar que “eu sou meu corpo” parece complicar
mais do que esclarecer o problema da relação mente-corpo que, em última
análise, é o problema, ainda muito pouco compreendido, nas neurociências, da
consciência, não só do que ela é, mas da possibilidade mesma de sua existência.
Nossa intuição natural ou espontânea leva-nos a pensarmo-nos como “eu”
irredutível ao corpo. Nós não escapamos dessa ilusão. Percebemo-nos como um
“eu” singular, distinto, sentimo-nos como um “eu” que não se reduz ao corpo
que, no entanto, é tomado como uma máquina “habitada” por esse “eu” (isso nos
encaminha a questão denominada de “o fantasma na máquina”, que é uma crítica
que o filósofo Gilbert Ryle fez do dualismo cartesiano).
Não me sinto suficientemente capaz
de discutir, por ora, esta questão, nem tenho a pretensão de fazê-lo. Este
texto é produto de algumas horas de pesquisa sobre a teoria psicanalítica de
Freud, e sua produção e divulgação atendem ao meu interesse de apresentar, com
o esmero que a tarefa demanda, como Freud explicava o fenômeno religioso a
partir do aparato de conceitos e teorias psicanalíticas que desenvolvera. Não
farei incursão imediata nessa questão, porque me parece indispensável situar o
leitor na teoria psicanalítica de Freud. O que se seguirá, portanto, é a
exposição dos pressupostos e conceitos de que se constitui essa teoria.
Procurarei elucidá-la de modo mais didático possível.
1.
O Desejo humano
Este é um hábito que incorporei: entretenho-me
com meus próprios pensamentos, abandono-me à corrente impetuosa de palavras e
fico a navegar em pensamentos, oscilando entre ideias serenas e crenças
arrebatadoras. Consumo muitas horas do dia, buscando, muita vez, com
esforço árduo, arranjar alguns pensamentos no papel, travando com a língua um
embate que somente os poetas parecem capazes de vencer, uma vez que todo bom
poeta força as palavras a testemunharem a ausência de formas de expressão,
quando a linguagem teima em impor-nos ao pensamento os limites dela.
Gostaria de principiar este texto,
convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos,
estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas
com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas
pessoas não sabem o que desejam? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus
próprios sentimentos? Antes, porém, de despender esforços para desenvolver
essas questões, refiro um trecho, muito esclarecedor, de um artigo do psiquiatra
Fábio Herrmann, que se topa num livrinho da série primeiros passos, da companhia Círculo do livro. O artigo data de
1989. Nele, lemos o seguinte:
“(....) os homens divertem-se demais com os
próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que
podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e o que é pior, quando pequenos
e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e
contentar-se algum tempo com isso (...)
(pp. 53-54)
Quando preguei meus olhos nesse
excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os
homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se
alimentar. Sou um deles. Durante horas, detenho-me a escrever e não faço as
refeições habituais do dia. Ao que
parece, a razão, se, por um lado, atraindo o fascínio dos filósofos e
cientistas durante séculos, nos confere um lugar especial na filogenia das
espécies; por outro lado, torna-nos seres estúpidos – certamente, estranhos -,
na medida em que oferece aos nossos impulsos primários substitutos de espécie
vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Agora, convido o leitor a se deter
a pensar no mundo que se agiganta, quando, seja através da janela, seja pelas
imagens da televisão, seja nas viagens que realizamos, seja na azáfama da vida
moderna nas grandes cidades, olhamos para ele. Nesse mundo, encontramos um
universo de práticas, incontáveis construções, instituições (Leis, informações
em cascatas, tecnologias, comércio, indústrias, centros de finanças, etc.).
Olhemos para esse mundo incessantemente transformado, domesticado pela ação
humana. Confrontemos os espaços desérticos e inóspitos à sobrevivência,
abandonados pelo poder político, terras onde só germinam doenças, só grassam a
pobreza e a miséria, com os grandes espaços urbanos, que são concretizações da
ideia de progresso e civilização (melhor seria dizer, ideal de progresso e
civilização), com seus edifícios suntuosos e designe moderno, com escolas,
universidades, museus e hospitais. Agora, surpreendemo-nos: esse mundo,
fabricado segundo o desejo e a vontade humanos, domesticado pelas ações
humanas, construído e degradado continuamente pelos próprios homens, esse
mundo, que representa bem o desejo humano, é negado pelos próprios homens, que
se irritam ao reconhecer que sua obra exprime bem o seu desejo. Estranho?
Os homens acreditam, assim, que não tendo humanizado e domesticado o mundo
completa e satisfatoriamente, a obra que construíram – o mundo – não é produto
de suas ações e que ainda falta uma grande parte para ser domesticada.
Estranho? Freud nos explica.
A psicanálise nos ensina que os
homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que
querem. Nosso verdadeiro desejo, como veremos, permanece inconsciente, conquanto
se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Refiro as palavras de Herrmann,
que sintetizam bem o que me parece ser a eterna incoerência humana:
“(...) O mundo edificado por nossa cultura
humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado
desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real
começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez
mais absurdo para si mesmo”(ib.id.).
Conforme veremos, a psicanálise se
ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem,
apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com
esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trata de
psicanálise é suficiente para nos levar à compreensão de que a consciência
humana é determinada pelos impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é
determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não
dominamos e das quais não estamos conscientes.
2.
Os fundamentos da Psicanálise
A teoria psicanalítica de Freud
baseia-se em dois pressupostos gerais:
a) a sexualidade infantil cumpre
um papel fundamental na formação da personalidade;
b) motivos e conflitos
inconscientes estão não só na base da formação da personalidade, como também
explicam os pensamentos e as ações dos indivíduos.
A palavra personalidade recobre aqui o padrão de pensar, sentir e agir
característico de cada indivíduo. Tendo em conta o significado de personalidade
que adoto, não exageramos em afirmar que toda a teoria psicanalítica de Freud
(provavelmente, toda a psicanálise que tem para com Freud, aí também, uma
grande dívida) tem como centro estruturante a hipótese do inconsciente. Em outras palavras, a psicanálise talvez não
existisse como tal sem a suposição de que a mente está, na maioria das vezes,
escondida.
A psicanálise reza que o que
chamamos de mente (que não deve ser confundida com psique) se estrutura em duas
“regiões”: uma consciente, que corresponde ao ego; e outra, maior, inconsciente,
que compreende pensamentos, desejos, sentimentos e lembranças. É verdade que,
entre a consciência e o inconsciente, Freud acreditava existir uma outra
“região” chamada de pré-consciente,
na qual ficam armazenados, temporariamente, alguns daqueles pensamentos que
podem ser acessados na percepção consciente.
Freud esteve principalmente
interessado em investigar a grande quantidade de paixões e pensamentos que,
segundo ele, nós recalcamos, ou
bloqueamos energicamente de modo a impedir o acesso deles à consciência, porque
eles seriam fonte de demasiada perturbação para nós. Mais adiante,
considerarei, com algum pormenor, o conceito de recalcamento.
Por ora, cumpre reter Freud
cuidava que, conquanto não estejamos conscientes destes pensamentos e
sentimentos que trazem em si uma carga perturbadora, eles exercem sobre nós uma
considerável ou demasiada influência. Nossos impulsos recalcados se
manifestariam, no entanto, sob formas disfarçadas. Por exemplo, o trabalho que
escolhemos, as crenças que alimentamos, nossos hábitos diários se apresentariam
como impulsos disfarçados. Em tempo, darei um exemplo que elucidará como se dá
essa operação de disfarce, ou o que Freud viria a chamar de retorno do recalcado, que é justamente o mecanismo psíquico pelo
qual os conteúdos recalcados reaparecem na consciência sob formas disfarçadas.
Notemos, desde já, que Freud era
um determinista. Nada para ele era acidental.
2.1..
Recalcamento
Com vistas a elucidar o conceito
de recalcamento, necessário será
explicar o modo como Freud entendia o funcionamento do psiquismo. Inicialmente,
é preciso dizer que a psique está em constante tensão. Dizendo com mais rigor,
a nossa vida psíquica se estrutura numa tensão da qual jamais se livra. É
claro, no entanto, que a psique buscará descarregar tanto quanto possível essa
tensão, sem jamais esgotá-la.
Na medida em que o psiquismo está
imerso na realidade exterior, é de esperar que ele sofra as influências dessa
realidade. Toda excitação é sempre de origem interna, quer se trate do impacto
provocado pela visão de um acidente violento de automóvel, quer se trate da
fome. Nos dois casos, há sempre uma excitação contínua do psiquismo. Sendo de
origem externa ou interna, a excitação provoca sempre uma marca psíquica, “à
semelhança de um selo impresso na cera” (Nasio, 1999, p.19).
Essa marca, essa ideia, essa
imagem que se imprimiu no psiquismo continua em excitação, de modo que o
psiquismo permanece constantemente excitado. A tensão resulta, portanto, dessa
estimulação ininterrupta do psiquismo, e o sujeito a experiencia dolorosamente,
não sem apelar à sua descarga.
O que Freud chama de desprazer é justamente essa tensão
penosa que o psiquismo busca, em vão, descarregar, sem, contudo, lograr êxito
verdadeiramente. Por isso, o estado de desprazer é constante, real e
irreversível. E o estado de prazer absoluto é sempre ilusório. O desprazer é o
aumento ou manutenção da tensão, ao passo que o prazer é a supressão dessa
tensão. É Nasio que, em seu O prazer de ler Freud (1999), nos esclarece
a respeito dessa condição irremediável de desprazer:
“Todavia, observamos que o estado de tensão
desprazeroso e pensoso não é outra coisa senão a chama vital de nossa atividade
mental; desprazer e tensão permanecem para sempre como sinônimo de vida”
(Nasio, 1999, p. 20).
No psiquismo, nunca há a extinção
total da tensão; e o prazer absoluto jamais é alcançado, porquanto a descarga
absoluta nunca se realiza.
Essa maneira de esclarecer o
funcionamento do psiquismo está calcada sobre o modelo neurológico do arco reflexo
com o qual se explica a relação do organismo com o mundo – relação esta que
envolve dois extremos: o da extremidade sensível, na qual o organismo percebe a
excitação, a saber, a injeção de uma dada quantidade de energia (por exemplo,
uma martelada que o paciente recebe no joelho num exame médico); e o da
extremidade motora, em que o organismo libera a energia recebida numa resposta
imediata do corpo. Nesse circuito, o sujeito recebe a energia, num dado
momento, e transforma-a em ação, em outro momento, reduzindo, assim, a tensão.
Mas lembremos que o psiquismo não pode funcionar do mesmo modo que o sistema
nervoso.
O psiquismo nunca consegue escoar
completamente a tensão. Ele reage à excitação por meio de uma metáfora da ação
(Nasio, p. 20), uma imagem, um pensamento ou uma fala, em suma, um
representante simbólico da ação. Uma vez compreendido como funciona o
psiquismo, ficará mais claro entender o que é o recalcamento. Cumpre dizer, pois, que o recalcamento é um dos mecanismos de defesa com que o ego se protege
contra a carga pesada da angústia que resulta da guerra interna entre as
demandas do id e as imposições do superego. A estrutura do psiquismo
demandará nossa atenção em outra seção deste texto.
O recalcamento é o mecanismo
pelo qual são afastados da consciência do sujeito pensamentos e sentimentos que
lhe causariam angústia. Segundo
Freud, o recalcamento constitui a base de todos os mecanismos de defesa. O
recalcamento explica por que não nos lembramos do desejo que nutríamos pelo
genitor do sexo oposto. Para Freud, o recalcamento é sempre incompleto. Os
impulsos recalcados se manifestam através dos sonhos e dos atos falhos.
Deve-se enfatizar a ideia de que o
impedimento da passagem dos conteúdos inconscientes para o pré-consciente
realizado pelo recalcamento nunca é completo. Alguns conteúdos inconscientes
irrompem na consciência, sob a forma disfarçada, surpreendendo o sujeito, que
não é capaz de explicar sua origem inconsciente. Esses conteúdos aparecem na
consciência, mas de modo incompreensível para o sujeito, que os experiencia
intensamente na forma de angústia.
Vejamos um exemplo, que tomamos a
Nasio (p. 26), do modo como o conteúdo recalcado pode aparecer sob a forma de
um disfarce. Uma jovem padece de uma fobia de aranhas. No nível da consciência,
ela experiencia uma angústia quando se depara com esse inseto que lhe é
ameaçador. No entanto, ela é incapaz de compreender que a aranha que lhe incita
tamanho temor é o substituto deformado de um aspecto do pai desejado, por
exemplo, suas mãos aveludadas. O que está acontecendo aí, segundo a
interpretação psicanalítica? A representação inconsciente do amor incestuoso
pelo pai rompe a barreira do recalcamento, manifestando-se sob a forma
disfarçada na representação consciente de angústia de aranhas.
Relacionemos esse exemplo à lógica
do funcionamento do psiquismo, já descrita. Essa forma deformada de
manifestação de um conteúdo inconsciente consegue descarregar certa quantidade
de energia pulsional. Essa descarga produz um prazer parcial e substitutivo.
Substitutivo porque faz as vezes de uma satisfação completa e imediata, que –
sabemos – é ideal.
A quantidade de energia pulsional
que não transpõe a barreira do recalcamento continua represada no inconsciente,
a alimentar incessantemente a tensão penosa. É importante ver que essa descarga
é uma forma de prazer, ainda que seja percebida como sofrimento ou angústia,
como ilustra o caso da fobia de aranhas.
Na seção seguinte, desço a
considerações sobre o que constitui a coluna dorsal da psicanálise, a saber, o
conceito de inconsciente.
2.2.
Inconsciente
Freud conferiu ao conceito de inconsciente uma extensão sobremaneira
significativa, de tal modo que seu significado passou a recobrir não somente a
patologia neurótica, mas também todas as esferas da atividade propriamente
humana. Nenhuma de nossas ações, escolhas, tendências, desejos escapa à ação do
inconsciente, donde se segue que a fronteira, tão rigorosamente marcada pelo
saber psiquiátrico de outrora, entre o normal e o patológico, passou a inexistir.
O que nos ensina, essencialmente,
a psicanálise pode ser resumido na afirmação “o eu não é o senhor nem mesmo em
sua própria casa”. Existe, nos homens, uma força que atua à revelia deles
próprios, algo que motiva suas ações, seus comportamentos, sem que eles o
saibam. Essa “força” é o inconsciente, que faz os homens agir sem saber o que
fazem e por que o fazem.
O que é, então, o inconsciente? É
uma hipótese teórica, e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um
sistema lógico que, em teoria, opera em nossa mente. Esse sistema explica os
motivos que nos impelem a agir e a reagir de tal e qual modo. O inconsciente
constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou
pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como
fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente:
nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. A
interpretação psicanalítica visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia
ou ação.
Como é no inconsciente que estão,
além de nossos desejos recalcados, nossas
pulsões, não se pode tratar do inconsciente sem dizer alguma coisa sobre o
conceito de pulsão. As pulsões do inconsciente estão reprimidas, visto que a
sua manifestação, em geral, são contrárias às normas da boa educação e
civilização. Por exemplo, um desejo forte como o de pintar a sala de minha casa
com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição
social. Assim, tal desejo precisa ser censurado, para que não chegue à
consciência. Mas esse mesmo desejo censurado pode, por vezes, assumir formas
disfarçadas e, assim, tornar-se aceitável para os padrões impostos pela
sociedade.
2.3.
Pulsão
A palavra pulsão traduz mais adequadamente o significado do termo alemão trieb,
que a Edição Standard inglesa traduziu como instinct (instinto). Faz-se
mister dizer que Freud não define pulsão como instinto, conceito este que
designa, para ele, um comportamento próprio dos animais não-humanos determinado
pela hereditariedade e característico da espécie. O instinto é bem adaptado
para a relação dos animais com o meio em que vivem.
Freud não nega ao homem a
disposição biológica, mas lhe acrescenta a irredutibilidade da pulsão ao se
debruçar sobre a sexualidade humana. Importa, portanto, de início, frisar duas
coisas: 1) Freud não define pulsão como
instinto, de modo que quem pensa o termo pulsão, no interior da teoria
freudiana, como sinônimo de instinto incorre em erro primário; 2) Freud jamais usou o termo instinto, que só
aparece nas traduções de seus textos.
Feitas essas duas observações
importantes, continuemos notando que o conceito de pulsão é radicalmente novo e
serviu a Freud para abordar a sexualidade humana. Esse conceito lançou luzes
sobre o fenômeno da sexualidade humana, de sorte que, sem ele, esse fenômeno
permaneceria completamente enigmático.
Excederia os limites estabelecidos
para esta exposição o discorrer sobre o conceito de pulsão, patenteando seu
desdobramento na teoria freudiana. Cingir-me-ei a notar que o termo alemão trieb
, de uso corrente na variedade coloquial, recobre a ideia de impulsão. Ademais, pulsão compreende
também o que Freud chamou de estímulos
endógenos na sexualidade. O que se dá na sexualidade humana, notara Freud,
é algo completamente diverso do que ocorre no comportamento dos animais, o qual
é calcado sobre o mecanismo instintual.
A experiência clínica de escuta de
pacientes neuróticos, que estavam submetidos à análise, permitiu a Freud
elaborar sua teoria das pulsões, graças à qual concluiu que a sexualidade é
regida por uma lógica distinta daquela em que se pautam os instintos dos
animais.
Freud constatou um fato
irrecusável, qual seja, a universalidade das perversões sexuais em seus pacientes. Com base nos relatos de suas
pacientes histéricas, apercebeu-se de que eles revelavam uma sedução e um trauma infantil. Daí em diante, Freud
desenvolveu a ideia de “infantilismo da sexualidade”, pela revelação de
fantasias sexuais nessas pacientes. A noção de infantilismo da sexualidade
significa que a estrutura da sexualidade é essencialmente traumática, para todo
e qualquer sujeito. Posteriormente, coube a Lacan chamar àquele trauma de trauma de contingência, já que não
supõe a ocorrência, de fato, de um trauma sexual na infância do sujeito, mas
sim o fato de ser traumática a própria estrutura da sexualidade.
Freud distinguiu na vida psíquica
dos indivíduos duas espécies de pulsão: a pulsão
de vida e a pulsão de morte. É
delas, pois, que me ocuparei a seguir.
2.3.1.
Pulsão de vida (Eros) e Pulsão de morte (Tanatos)
No pensamento mítico, Eros
simboliza as atividades humanas que se ligam direta ou indiretamente à
sexualidade. Na primeira teoria geral das pulsões, elaborada por Freud, Eros
era sinônimo de libido ou princípio do prazer. Esse princípio é exclusivamente
formado pela energia sexual. Posteriormente, em sua teoria definitiva, Freud
tomou Eros como pulsão total de vida (autoconservação), da qual fazia parte o
fator sexual em contraste com a pulsão total de morte – Tanatos ou autodestruição.
Consoante advoga Freud, em sua
teoria final, Tanatos ou a pulsão de morte representa o conjunto de pulsões
agressivas que operam no ego e que visam à destruição da vida. Trata-se de uma
pulsão de negação e de regresso ao estado inorgânico, que se revela na
compulsão de repetição. Essa compulsão caracteriza o fato de o paciente em
tratamento repetir os acontecimentos recalcados, em sua vida, em vez de
recordá-los. Essa compulsão causa nele grande sofrimento. Segundo Freud, o
termo desta compulsão de repetição do ciclo normal da vida é a morte.
É importante salientar que a
teoria freudiana das pulsões foi-se desenvolvendo lentamente. Em seu bojo,
reside a dualidade entre o ego ou a pulsão de morte e o id (pulsões sexuais) ou
a pulsão de vida (Eros) como base dos conflitos emocionais produzidos no
indivíduo por função das finalidades opostas a que servem essas forças
primitivas e antagônicas.
Freud, inicialmente, estabeleceu a
dicotomia entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais; posteriormente,
distinguiu entre pulsões do ego e pulsões sexuais, chegando, por fim, mesmo sem
ver corroboradas essas distinções, a definir duas pulsões básicas de todo
comportamento humano – vale reiterar – a
pulsão de vida e a pulsão de morte. Isso
é o que as sabedorias antigas, expressas em mitos e doutrinas religiosas, em
sua linguagem própria, viram muito antes da teorização de Freud: a natureza
humana encerra o bem e o mal, forças criadoras e forças destrutivas, a luz e a
escuridão, o angélico e o maligno. Nem totalmente bom, nem totalmente mau, o
ser humano, a julgarmos pelo que nos ensina Freud e o que nos revelam as
sabedorias antigas, é dotado de uma natureza conflitual, atravessada por um
antagonismo constitutivo, por uma tensão que se inscreve no tecido mais
profundo de sua psique.
Atualmente, o conceito dualista de
Eros e Tanatos constitui o alicerce da psicologia, e suas implicações para o
estudo da própria sociedade são bem reconhecidas, dado que é o amor a expressão
psicológica da pulsão de vida, que leva os homens a comportarem-se
cooperativamente, é o amor o impulso essencial da união, indispensável,
portanto, ao viver em sociedade. Por outro lado, a pulsão de morte, na medida
em que se expressa nas tendências negativas e destrutivas do ego, no ódio e na
aversão ao estabelecimento de boas relações, seja intrapisíquicas, seja sociais,
explica por que a paz e a harmonia social sempiterna só podem figurar no
horizonte humano como projeto para sempre irrealizável. É patente aqui o
pessimismo schopenhauriano que tanta influência exerceu sobre Freud.
3.1.
A constituição do aparelho psíquico
Concentrando nossa atenção no
estudo da personalidade, que foi definida no limiar deste texto, veremos,
doravante, que, para Freud, ela resulta de um conflito básico entre nossos
impulsos biológicos e agressivos, orientados para a busca do prazer, e o
conjunto de dispositivos sociais coercitivos destinados a controlá-los. No
curso de nossa socialização, nós internalizamos esses dispositivos coercitivos
na forma de leis, preceitos morais, regras, e, uma vez internalizados, eles
entram em conflito com aqueles impulsos originais.
Freud mantinha que a personalidade
é produto de nossos esforços por resolver esse conflito básico. A resolução
desse conflito dependia de que a satisfação fosse produzida sem que a culpa e a
punição sobreviessem a ela. Segundo Freud, os conflitos baseiam-se em três
instâncias que interagem entre si: o id,
o ego e o superego.
O id compreende o reservatório de energia psíquica inconsciente, que
se esforça constantemente por satisfazer os impulsos sexuais e agressivos
básicos. O id é regido pelo princípio do prazer e exige gratificação imediata.
O id é um substrato inteiramente inconsciente; dele provêm as pulsões. É a instância
original da psique; ao nascer, dizia Freud, o indivíduo todo é um id, que é
reorganizado à medida que o indivíduo é submetido aos processos formativos de
sua sociedade. A mente humana se estrutura de tal modo, que busca evitar o
desprazer; nossa vida psíquica rege-se pelo princípio do prazer; buscamos
experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca
pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo termo
libido. O id é um reservatório da
libido, portanto. A sexualidade humana não se restringe ao ato sexual, mas
compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em
qualquer parte do nosso corpo.
Os recém-nascidos que berram para
que suas necessidades sejam urgentemente satisfeitas constituem exemplos de
indivíduos dominados pelo id. Igualmente dominados pelo id são as pessoas que
preferem a satisfação no presente imediato em detrimento do sucesso e prazer no
futuro.
O ego, a seu turno, opera pelo princípio
da realidade. Isso significa dizer que ele busca satisfazer os desejos do
id tendo em conta as restrições que a realidade impõe a essa satisfação. O ego
buscará, assim, o prazer a longo prazo. O princípio da realidade está calcado
sobre a percepção sensorial e a motricidade. Ele rege a atividade do ego,
permitindo à psique estabelecer a distinção entre o mundo interior e o mundo
exterior.
Sendo a região “executiva” e
consciente da personalidade, o ego encerra nossos pensamentos, nossas
percepções, nossos julgamentos e nossas memórias parcialmente conscientes. O
ego é a instância mediadora entre as exigências do id e as imposições do superego e da realidade. Por isso, sua realidade fundamental é a
angústia. O ego, não podendo satisfazer completamente os desejos do id, que o
tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao
superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo,
para não ser aniquilado. O ego obedece, portanto, ao princípio da realidade, ou
seja, busca objetos que satisfaçam o id, sem transgredir as imposições do
superego.
O recurso pelo qual são oferecidos
ao id e ao superego substitutos para a sua satisfação é chamado de sublimação. Na sublimação, os desejos
inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada
positivamente: obras de arte, ciências, religião, filosofia, ações éticas,
política, etc.
O superego é a parte da personalidade que fornece os padrões para
nossos julgamentos morais. É uma espécie de juiz social, é a voz social da
censura e da repressão internalizada na psique. O superego baseia-se nas
censuras que a sociedade impõe ao indivíduo. Particularmente, o superego
representa a repressão sexual. O superego é a consciência moral e se manifesta
por meio de interdições e proibições a que se submetem os indivíduos nos
processos formativos da sua cultura. O superego forma-se entre os 4 e 5 anos e
o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é
fundamentalmente inconsciente. O superego força o ego a considerar não somente
o real, mas também o ideal.
O superego determina ao indivíduo
a forma de comportamento socialmente adequado. O superego luta pela perfeição,
julga as ações e produz sentimentos positivos de orgulho ou sentimentos
negativos de culpa. Uma pessoa que tenha desenvolvido um superego extremamente
forte, ainda que seja considerada virtuosa, vive oprimida pela culpa; por outro
lado, um superego fraco torna a pessoa indulgente e impiedosa.
A psicanálise reza que a origem de
muitas doenças psíquicas e distúrbios do comportamento está em nossa
sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade
infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os
primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o
prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de
prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo).
A segunda fase é a fase anal, na
qual a criança sente prazer na excreção e retenção das fezes. Nessa fase, os
objetos de prazer são massas de modelar, tintas, coisas cremosas. A terceira
fase é a fase fálica. Nessa fase, o
prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, o falo. O menino ou
a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se objeto de prazer do
menino; o pai, da menina.
É na terceira fase que surge um
fenômeno que irá determinar toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo. Supondo que o leitor
conheça a tragédia de Édipo Rei, passarei a esclarecer o que é o complexo de
Édipo. Esse complexo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe.
Posteriormente, Carl Jung chamará de complexo de Electra o desejo da menina
pelo pai. Em todo caso, o complexo de Édipo – reitere-se – determinará a totalidade
de nossa vida psíquica. A saúde de nossa vida mental dependerá do modo como
atravessamos essa fase. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro
complexo, chamado de complexo de
castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo (e
cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição do
desejo incestuoso pelos genitores.
É chegado o momento de dizer que
as produções de Freud foram alvo de grande controvérsia, muito embora tenham
atraído um grande número de admiradores e seguidores. Os chamados
neofreudianos, psicanalistas que seguiram, pioneiramente, de perto, as ideias
de Freud, acolheram as noções básicas de estrutura do id, do ego e do superego;
a importância do inconsciente; a formação da personalidade na infância; a
dinâmica da angústia e os mecanismos de defesa. Mas também se distanciaram de
Freud no tangente a duas questões importantes. Em primeiro lugar, esses
seguidores acreditavam que a mente consciente tinha um papel mais significativo
na interpretação da experiência e na relação com o ambiente. Em segundo lugar,
duvidavam da tese de Freud segundo a qual o sexo e a agressão deteriam o
monopólio das motivações. Por exemplo, Alfred Adler e Karen Horney, conquanto
concordassem com Freud no tocante à importância da infância no desenvolvimento
da personalidade e da sexualidade, não concordavam com ele na assunção de que
as tensões sociais e sexuais da infância fossem tão determinantes da formação
da personalidade. Horney chegou a afirmar que a angústia, decorrente de nosso
sentimento de desamparo, é causa de desejo de amor e de segurança. Ela também
critica Freud por ele supor que as mulheres têm um superego fraco e que elas
sofrem de “inveja do pênis”, ponderando sobre o que cuidava ser uma visão
machista da psicologia.
Carl Jung, discípulo de Freud,
também dissidente, contudo, concordou com Freud no tocante à influência
poderosa do inconsciente. No entanto, para Jung, o inconsciente compreende mais
do que nossos pensamentos e sentimentos recalcados. Ele advogava que somos
dotados de um inconsciente coletivo,
isto é, um reservatório comum de imagens produzidas em experiências universais
de nossa espécie. É suficiente dizer que o inconsciente coletivo fornece a
chave para o entendimento do porquê, em muitas pessoas, as experiências
espirituais são arraigadas. Ademais, o inconsciente coletivo permite explicar
por que indivíduos que vivem em culturas diferentes compartilham certos mitos e
imagens, tais como a figura da mãe como símbolo da nutrição.
Atualmente, a ideia de que o sexo
é a base da personalidade é rejeitada por uma grande maioria de terapeutas. Mas
a maioria ainda está de acordo com Freud na suposição de que uma grande
extensão de nossa vida mental é inconsciente. Essa maioria também anui à ideia
freudiana de que travamos uma luta incessante contra conflitos internos entre
nossos desejos, nossos medos e nossos valores; quase todos aceitam a ideia de
que a infância molda nossa personalidade e nossas formas de nos relacionar com
as outras pessoas.
4.
Freud e a questão da religião
Como Freud explicava o fenômeno
religioso? Vários escritos de Freud dão testemunho de que ele tinha uma vasta
cultura religiosa. Ele frequentou, durante seus anos escolares, a sinagoga,
onde estudou o Antigo Testamento. Seus textos demonstram que ele conhecia o
Novo Testamento cristão e religiões da Antiguidade Clássica.
É verdade que ele fora um ateu
empedernido, mas se dedicou apaixonadamente ao estudo da religião. Consagrou
cinco títulos de sua obra ao tema: Toem e Tabu (1912), Psicologia das
massas e análise do ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O
mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939).
Não vou resumir o que Freud expôs,
em cada um desses cinco livros, a respeito da religião; interessar-me-á,
contudo, dar a conhecer como Freud via a experiência religiosa de uma maneira
geral.
Num primeiro momento, convém reter
a ideia de que Freud via a experiência religiosa como parte de uma fantasia de
onipotência. Essa fantasia de onipotência seria provocada pelo desejo de
imortalidade, de absoluto, de transcendência. Segundo Freud, o homem nutre esse
desejo em face da frustração e da angústia desencadeadas pela realidade. Esse
desejo, de natureza interna, projeta-se para fora do homem, criando a religião.
Duas questões ocuparam Freud
durante o tempo em que esteve assaz interessado pelo tema da religião. Ei-las: para que serve a religião e que futuro ela
tem?
A primeira questão recebe um
tratamento aproximativo em Psicologia das massas e análise do ego (1921).
Nesse trabalho, Freud se ocupou do estudo do comportamento das massas e seu
processo de identificação com o líder. Freud relacionou essa identificação ao
processo de comunhão e identificação com Cristo na Igreja Católica.
Consoante Freud, o indivíduo busca
compensar as limitações impostas pela realidade ou pela vida social ao
princípio de prazer com a ilusão de sentir-se amado pelo líder. Essa
identificação cumprirá, na religião, uma dupla função compensadora: uma no
mundo aqui e agora; outra, na promessa de uma vida além-mundo. Também nesse
livro Freud enfocará a agressividade dirigida aos outros, aos que não pertencem
ao mesmo grupo ou seita.
Em sua obra O ego e o id
(1923), Freud se debruçará sobre o ideal do ego – o superego – e sustentará que
esse ideal é um substituto do primeiro desejo de um pai amado. Esse ideal
constitui o núcleo a partir do qual estão constituídas todas as religiões. Não
se ignore que a questão sobre o que está na origem da religião é extremamente
complexa e controversa, e as especulações de Freud, nesse tocante, muito
criticáveis. Mesmo em seu tempo, algumas de suas teorias sobre a evolução das
religiões estavam definitivamente superadas. É claro, por outro lado, que Freud
estava muito pouco preocupado com a verdade histórica de suas teorias sobre a
religião.
Tendo em vista essas ressalvas,
considerarei, sem pretender à exaustão, duas concepções gerais que Freud
desenvolveu sobre a religião: religião
como neurose obsessiva e religião
como ilusão infantil.
4.1.
Religião como neurose obsessiva e ilusão infantil
No cerne da visão freudiana da
religião como neurose obsessiva,
está a ideia de que as primeiras repressões que cada um de nós experienciou se
dão na primeira infância (período que se estende do zero ao cinco anos de
vida), quando nós, enquanto criança, devemos renunciar aos nossos desejos e
impulsos. A neurose se caracteriza pela fuga do adulto para o mundo infantil.
Os conflitos não resolvidos na infância encontram aí oportunidade de
reaparecimento.
Freud, então, via a religião como
regressão do adulto ao mundo ideal da criança. O complexo de Édipo desempenha
um papel fundamental nessa regressão. Lembremos que esse complexo ocorre, para
Freud, em meninos e meninas, entre os 4 e 6 anos de idade. A criança, no
momento em que nutre um desejo incestuoso pela mãe, vê o pai como um rival. O
amor que ela devota à mãe é dividido com o pai. A criança experimenta desejos
agressivos em relação ao pai e, não raro, esses desejos podem assumir a forma
de desejo de matá-lo. No entanto, ao mesmo tempo, a criança reconhece que
necessita do pai. Daí decorre o conflito entre amor e ódio, afeição e
hostilidade, admiração e medo, experienciado relativamente ao pai.
Sucede que esses desejos serão
transportados para o “porão” do inconsciente. À medida que se desenvolve, a
criança aprende o que é proibido e o que é permitido em seu meio cultural. Ela
internaliza esses preceitos e proibições por meio das práticas discursivas
engendradas em sua cultura. É assim que se forma o superego. O superego – reiteremos
– é essa região da psique que compreende as normas, os preceitos culturalmente
estabelecidos e transmitidos à criança pelo pai, e que é sentido na fase adulta
como censura.
Freud observa que o neurótico não
quer aceitar a dura realidade da vida e se nega a se relacionar com o mundo tal
como ele é. O neurótico, na realidade, não nega que a realidade é dura, áspera,
atroz; ele apenas não quer saber disso. Prefere viver como no sonho onde o que
o homem deseja pode manifestar-se de maneira inconsciente.
Agora, relacionemos o exposto até
aqui à questão da religião. Direi muito grosseiramente, e o leitor poderá acompanhar o desdobramento
do que aqui se seguirá lendo o livro Totem e Tabu – que a neurose,
segundo Freud, é como o mosteiro para o qual costumam se retirar os que se
iludiram da vida ou aqueles que se sentem debilitados demais para encará-la. Na
religião, o homem também foge da dura realidade da vida, encontrando
esconderijo num mundo ideal da infância. É por isso que a religião é ilusão,
segundo Freud. Para o pai da psicanálise, o fundamento último da religião é o
desamparo infantil do homem.
Na medida em que a religião é
considerada em sua dimensão cultural, Freud a verá como um aspecto neurótico da
cultura. Compreendamos essa ideia. Na vida cultural, os impulsos não
satisfeitos, dadas as exigências da cultura, são sublimados. Nesse processo de
sublimação, os impulsos egoístas se tornam úteis para a sociedade e satisfeitos
na fantasia. Assim, evita-se o sofrimento, e a sublimação acarreta a gratificação.
Dirá Freud que a arte, a religião, a ciência, a metafísica são, em última
análise, a manifestação da sublimação de pulsões mais primitivas. A religião
não seria outra coisa, na perspectiva freudiana, senão expressão do temor e do
medo do castigo e expressão do desejo de consolo. Em uma palavra, ela é a
resposta dada pelo homem à árdua realidade da vida.
Freud assinalou uma relação entre
as exigências dos tabus na experiência religiosa e a sintomatologia dos
neuróticos obsessivos. Nos dois casos, observa-se a ausência de motivação
consciente, a capacidade de contagiar e a necessidade de purificação mediante
atos rituais. Todavia, uma diferença entre os dois casos não lhe escapou à
consciência: se, por um lado, os neuróticos obsessivos são movidos por uma
pulsão tipicamente sexual; por outro lado, nos tabus, se percebem impulsos
antissociais de agressão e de morte.
A fim de sublinhar a concepção de
religião como ilusão infantil,
observe-se que, para Freud, a religião é a nostalgia que o homem sente de um
pai onipotente que o console e o proteja, em face da angústia vivenciada na
dura realidade do viver. Por isso, novamente, cumpre dizer que a religião era
vista por Freud como fundamentada no desamparo infantil do homem.
Em face da natureza indiferente e
assustadora, esse homem infantil forja deuses segundo o modelo do pai, e a
religião se torna fuga à realidade. Nas palavras de Freud: “O homem não pode
permanecer criança. O infantilismo deve ser superado”.
Não se deve ignorar o fato de que
Freud procurou explicar a religião por sua gênese psíquica. Interpretando os
sonhos e os sintomas neuróticos, Freud elaborou um modelo teórico que via a
religião como a realização de desejos. Nesse sentido, as representações
religiosas não derivariam da experiência nem da razão, mas seriam ilusões,
“realização dos desejos mais antigos, mais fortes e mais intensos da
humanidade”. Freud, naturalmente, referia-se aos desejos da criança desamparada
e ávida de proteção em face das ameaças da vida. De passagem, noto que Freud,
como homem de seu tempo, não deixou de esposar a fé positivista na ciência como
caminho para a libertação do homem do mundo da ilusão religiosa e da
superstição.
Deus e imortalidade são desejos
infantis cuja origem remonta, em última instância, ao complexo de Édipo não
superado. Essa visão Freud a estendeu a toda humanidade.
Em suma, é a cultura que cria as
concepções religiosas e as inculca no indivíduo em formação. A religião surge
da necessidade de proteção contra as forças implacáveis da natureza e do
destino. Freud precisou lidar com acusações de que fez incursão no tema
religioso desconsiderando a pluralidade inerente ao fenômeno da religião.
O próprio Freud viria a confessar,
em uma carta destinada ao seu amigo psicanalista e principal colaborador S.
Ferenczi, que sua redução do fenômeno religioso a meras experiências infantis e
à busca de segurança foi demasiado apressada, para se dizer o mínimo.
Apressada, talvez, mas não menos intrigante e digna de reconhecimento.
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