A minha filosofia
primícias de uma arquitetura
A
produção deste texto é motivada pela necessidade que senti de assentar os
alicerces sobre os quais um pensamento filosófico que me seja próprio possa, a
longo prazo, edificar-se. Pretendo, neste texto, tão-somente dar a conhecer a
estrutura das fundações. Trata-se de dar bases sólidas, de estruturar uma forma
de pensamento que tem sido, há muito, uma espécie de lente com a qual percebo e
interpreto o mundo, o real, a existência. O percurso de minhas reflexões será
traçado com o objetivo basilar de dar a conhecer a coerência não só entre o meu
estar-em-relação-com-o-mundo e as formas como eu compreendo este mundo, que não
me são acessíveis senão nessa relação, mas também entre formas de
representação, entre posições que foram, ao longo do tempo, edificando uma
plataforma filosófica que se apresenta em reação às representações sociais que
dão forma à mentalidade predominante numa época. Trata-se de uma plataforma filosófica
refratária ao conformismo, aos sistemas de crenças dogmáticos, às formas de
pensar que não vão além do estabelecido e que, por isso, o reproduzem como um
dado natural, inalterável, em face do qual não resta senão manter-se num estado
de resignação intelectual.
Filosoficamente,
percebo-me como um materialista. Não basta, contudo, afirmar-me como tal, sem
demonstrar em que medida isso é uma verdade, pelo menos, para mim.
Esforçar-me-ei por fazer-me compreender. Para tanto, é preciso que se compreenda
que, uma vez se assuma uma posição ateísta em face do mundo, necessário é que
se reconheça o compromisso dessa posição com uma posição materialista. Não
quero sugerir que o materialismo sempre foi uma forma de ateísmo, ou que todo
ateu deve, necessariamente, ser materialista. Em primeiro lugar, Epicuro,
reconhecido materialista, não era propriamente ateu (lançarei, adiante, algum
olhar sobre o materialismo de Epicuro). Por outro lado, um ateu pode ignorar,
durante toda vida, as posições materialistas e, por isso, pode sequer cogitar
de que elas lhe estejam ligadas às formas de pensar o mundo como pressupostos. No
curso de minha tentativa de assentar os alicerces de meu próprio pensamento
filosófico, também procurarei sinalizar a filiação entre as posições ateísta e
materialista.
Para
mim – já que se trata de alicerçar minha própria perspectiva filosófica, cujo
desenvolvimento adequado dependerá ainda de mais alguns anos de estudo -, a
assunção do ateísmo está intrinsecamente ligada a uma posição materialista que,
neste texto, trato de desenvolver.
Começarei,
pois, apresentando uma definição de materialismo, colhida da obra Dicionário Básico de Filosofia (2010),
de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú. Pretendo, citando-a, tão-só situar o
materialismo como problema de que me ocuparei doravante:
“Doutrina que reduz toda a realidade à
matéria” (p. 181)
Ainda que a definição não nos esclareça muito sobre o que é o materialismo, ela nos permite inferir que o que chamaríamos de imaterial é rejeitado pelo materialismo. Assim, o materialismo nega a existência da alma ou da substância pensante cartesiana; nega também a realidade de um mundo espiritual ou divino, que existiria independentemente do mundo material. Aqui já se pode entrever sua relação com o ateísmo; mas ela se nos tornará mais clara ao longo do texto. No início da era moderna, o mecanicismo da física pode ser visto como uma variedade de materialismo, visto que busca explicar o real com base única e exclusivamente em mudanças sofridas quantitativamente pela matéria. O mecanicismo moderno sustenta que todos os fenômenos naturais devem ser explicados por alusão à matéria em movimento, entendendo-se por movimento toda modificação sofrida pelas coisas, que faz com que o mundo esteja num permanente devir.
Um
dos problemas implicados no materialismo é a noção de matéria; mas deixarei para esclarecê-la numa seção mais adiante. Outro
problema diz respeito à variedade de materialismos. O materialismo, nota
Sponville (2001, p. 103) é uma tradição; por isso, não há apenas um
materialismo, mas vários materialismos que, embora se sucedendo em intervalos
de tempo extensos, revelam afinidades, solidariedades e pontos de contato.
Claro
deve estar ao leitor que trato aqui do materialismo filosófico e não do
materialismo na sua acepção trivial, como maneira de viver daqueles que
valorizam apenas os prazeres físicos, os bens adquiridos com o dinheiro e o
próprio dinheiro como signo de riqueza. Estando claro que trato do materialismo
como doutrina filosófica, é urgente pensá-lo como um esforço crítico das
ilusões idealistas, espirituais e religiosas. Os filósofos materialistas
repensam o valor do corpo e dos seus prazeres. Se é verdade que eles também
podem nutrir um ideal, não podem, contudo, se deixar iludir totalmente por ele.
Para um materialista, o corpo comanda, enquanto a alma precisa ser criada.
O
materialismo é uma filosofia que, elegendo como primeira a realidade do corpo,
se desenvolve a partir dele. O materialismo pensa o mundo a partir do corpo
(“tudo se faz no corpo como se não houvesse alma” (Sponville)). A noção de
corpo aqui não se limita ao corpo humano, mas recobre toda substância material.
Ser materialista é ser, em alguma medida, epicurista e antiplatônico. É, por um
lado, não admitir a separação entre corpo e alma; é tratar a alma como uma
substância material tanto quanto o corpo. Por outro lado, é também rejeitar a
separação entre mundo sensível e mundo inteligível. O materialismo também se
caracteriza por uma rejeição ao espiritualismo, embora não se reduza a isso.
Vale
esclarecer o que é o espiritualismo. Trata-se da doutrina que afirma existir
uma substância espiritual (a alma ou o espírito) independente da matéria, que,
no homem, seria o princípio da vida. Mas o espiritualismo é uma forma de
idealismo.
O
materialismo erige-se e se desenvolve contrariamente a todas as filosofias que
assumem a prioridade da alma sobre o corpo; nesse sentido, o materialismo é uma
filosofia do corpo. Denominam-se materialistas
os filósofos que afirmam que só existem seres materiais ou corpos. O
materialismo é um monismo, conforme nos permite depreender a definição
anteriormente referida. Isso significa dizer que o materialismo só admite uma
espécie de substância, que é a própria matéria ou os corpos. Ele afirma a
materialidade da alma, portanto, nega que ela tenha uma existência autônoma.
Para um materialista, o pensamento resultaria de um movimento da matéria. Essa
ideia não é, de modo algum, clara.
Retendo
o principal até aqui, vale sublinhar que o materialismo é um monismo físico,
porque entende existir apenas a matéria. Sob o rótulo de materialistas,
podem-se reunir Epicuro, Demócrito,
Hobbes, Diderot e Marx.
O materialismo de Epicuro: um esboço
Poder-se-ia
objetar que Epicuro não deve ser incluído entre os materialistas, porque sua
filosofia reconhece duas substâncias: a matéria e o vazio. Nesse tocante, ele
segue a tradição dos atomistas da Antiguidade.
No
entanto, como o vazio é nada (é um
não-ser, por que se movem os átomos), segue-se que tanto para Epicuro quanto
para os atomistas, só existe a matéria e nada mais. Claro é que não devemos
esquecer a posição de Demócrito, para quem o nada existe tanto quanto algo.
Mas, nesse caso, ainda é possível sustentar que a matéria recobre a totalidade
do ser apenas, ainda que não esgote a totalidade de tudo (esse “tudo” inclui o
vazio, o não-ser). Não estranhe o leitor o pleonasmo da expressão “totalidade
de tudo”. Com ela, quero dizer que o ser, segundo essa interpretação, não
corresponderia ao tudo, de modo que seria possível pensar que esse tudo inclui
também o vazio.
Tome-se
o problema da existência do pensamento à luz da doutrina materialista. Devemos
ainda ter em conta Epicuro. Seria absurdo que um filósofo negasse completamente
a existência do pensamento, já que, se o fizesse, negaria a si mesmo, além de
pensar que não pensa, o que seria absurdo. O materialismo monista – vale frisar
– não nega a existência do
pensamento; nega a sua independência relativamente à matéria. O que um
materialista nega é que o pensamento tenha existência autônoma. Trata-se, pois,
de dizer não que o pensamento não existe, mas que ele é material como tudo o
mais. O pensamento seria ele mesmo um corpo (posição dos estóicos), ou seria
explicado por um “movimento sutil da matéria” (Epicuro) – ainda que essa ideia
não explique nada.
Faz-se
mister notar uma conclusão provisória:
São materialistas os filósofos que
afirmam que tudo, exceto o vazio, é material. Nesse tudo, devemos incluir o
pensamento.
A variedade de materialismos e a noção de matéria
Nesta
seção, discutirei um problema que se revelará aporético ao termo da exposição.
Lembro que a aporia é uma
dificuldade lógica insolúvel. Não obstante, a compreensão dessa dificuldade
ajudar-nos-á a fixar um lugar para o materialismo na história da filosofia e
nos instrumentalizará para defender a posição materialista de ataques de
adversários.
Há
duas dificuldades que tratarei de expor e explorar: uma diz respeito à
definição do próprio materialismo; a outra, à definição de matéria. Há vários
materialismos, conforme já notei; e há várias opiniões acerca do conceito de
matéria.
Essas
dificuldades podem ser expressas nas seguintes alternativas: ou se deixa
indefinida a noção de matéria e, consequentemente, também indefinido o próprio
materialismo. Ou se define a matéria, não positivamente (o que suporia saber a
sua natureza última, empresa esta a que renunciou, há muito, o materialismo),
mas negativamente, ou seja, como não sendo pensamento ou espírito.
Acontece
que, ao propor definir a noção de matéria de modo negativo, está-se a opor a
matéria ao pensamento. Essa oposição não é autorizada pela definição
tradicional de materialismo, cujo exemplo apresentamos anteriormente. Ora, se o
materialismo é a doutrina que reduz a realidade à matéria, então não há lugar para
a oposição entre matéria e pensamento, já que o próprio pensamento é corpo,
forma de matéria. Para preservar o princípio de identidade, não se pode manter
que haja diferença entre matéria e pensamento. Do mesmo modo, violar-se-ia o
princípio de contradição se se afirmasse que tudo incluiria e, ao mesmo tempo,
excluiria o pensamento. Vê-se, logo, que o materialismo seria uma anomalia
lógica.
Uma
primeira solução consiste em eliminar a oposição entre matéria e pensamento,
afirmando que tudo é matéria e que a matéria a nada se opõe, exceto ao nada,
que é o vazio. A oposição fica suprimida, pois a matéria não se pode opor ao
nada. Sucede, contudo, que essa solução se nos demonstra imediatamente frágil,
fazendo irromper nova dificuldade, qual seja, se a matéria não se opõe ao
pensamento, então ela se torna sinônima do ser. Por conseguinte, o materialismo
se apoiaria numa tautologia sem valor algum, segundo a qual tudo é do domínio
do ser. É como se estivéssemos dizendo que a totalidade do ser é o ser.
Sponville observa que o materialismo seria uma “espécie de pan-ontologismo (um
monismo do ser), e cessaria por conseguinte de ser materialista” (p. 112).
Não
há lugar para um materialismo monista radical: se existe apenas um tipo de ser
(a matéria), este tipo de ser deve, necessariamente, encerrar o pensamento.
Pode-se
resolver o problema, afirmando que é a matéria que pensa. A matéria e o
pensamento não se distinguem como duas substâncias, mas como causa (matéria) e
efeito (pensamento). Os marxistas e os materialistas do século XVIII estão de
acordo nesse ponto. O espírito é, pois, o produto mais elevado da matéria. É a
matéria que pensa (o cérebro, no homem, que pensa; a própria mente não seria
mais do que uma função do cérebro, aquilo que ele faz); é a matéria que produz
o pensamento, portanto. Eis o que se chama de primado da matéria.
Se
nos detivermos a refletir sobre o problema, veremos que ele não é suprimido
totalmente. De alguma forma, ele permanece. Senão vejamos. Uma vez que se
admite que o pensamento é da mesma natureza que a matéria, ou seja, é material,
segue-se que a matéria não produz nada além dela mesma. Assim, suprime-se o
primado da matéria. Se a matéria é diferente do pensamento, suprime-se o
monismo.
A
aporia se instala: o materialismo chega ao seu limite. Ou só existe negando a
si mesmo como monismo, caso em que terá de admitir, forçosamente, a oposição
entre matéria e pensamento, ou se define como monismo, anulando-se como
materialismo, caso em que não há mais primado da matéria. Lembro que só podemos
falar em primado da matéria se
houver lugar para o pensamento na doutrina materialista. A própria noção de
primazia supõe a superioridade de um termo sobre outro.
Sponville
nos fornece uma solução final. O materialismo é, segundo o autor, uma filosofia
do combate. Ele supõe um adversário e se define em oposição a ele. Portanto, o
materialismo não acredita nos sistemas filosóficos (entendidos como formas de
pensamento que visam a atingir um saber sistemático, isto é, um saber que
integra as questões da filosofia, da ciência e de vários tipos de saber numa
totalidade articulada na qual as várias respostas oferecidas são vistas como
diferentes facetas de um mesmo tipo de problema). Dizer que o materialismo não
acredita nos sistemas é dizer que não acredita na construção de um saber
totalizante do real, cujas regiões estão interligadas, de modo que uma parte
remete, necessariamente, a outra. O materialismo pensa contrariamente; pensa na
forma de confronto. Nas palavras de Sponville,
“O materialismo seria então
contraditório (ou, se preferirmos, dialético) na mesma medida em que seria
reativo. O dualismo seria seu terreno de luta (que ele compartilha
necessariamente com o adversário) e o monismo, seu horizonte (que ele ainda não
atinge)”.
(p. 118)
Do
excerto de Sponville, segue-se que sua solução deve deixar claro que:
1)
o problema da definição do materialismo não é, necessariamente, de ordem
filosófica; porque coloca em questão o estatuto do pensamento. Assim, pode ser
um problema para as ciências naturais;
2)
o materialismo, como lugar de confronto, pode aceitar que o pensamento e o
próprio pensamento materialista, às vezes, conheçam limites;
3)
o materialismo reza que o substrato de tudo que existe não é da ordem do
pensamento; por isso não é razoável sustentar que o pensamento deveria abranger
tudo.
Em
3), fica clara a forma como o materialismo pode-se definir: em oposição ao
idealismo. O materialismo não afirmaria dogmaticamente que o real se reduz à
matéria, mas que, certamente, não se reduz ao pensamento.
O
materialismo não aspira, de modo algum, a um saber absoluto; não se alicerça
sobre a ideia de que o ser é completamente transparente ao pensamento, o que
lhe permite reconhecer seus limites. Esses limites seriam, pois, formas de
confirmação de sua plausibilidade.
“A ideia de um saber absoluto só
tem sentido se o absoluto é da ordem de um saber; e é precisamente o que o
materialismo rejeita e recusa”. (p. 119)
Está
claro que o absoluto, para o materialismo, é incognoscível. Por isso, o materialismo
é uma forma de pensamento que reconhece a finitude inerente a todo pensamento;
reconhece-se como pensamento finito. O materialismo é um pensamento inacabado.
O inacabamento de seu pensamento é justamente o que impede o término do
movimento do próprio pensar: “o infinito – diz Sponville – não está no
resultado mas no processo” (p. 119). Trata-se de um pensar que não conhece fim.
Síntese provisória
O
materialismo é a doutrina que
sustenta que tudo é matéria ou produto da matéria – exceto o vazio – e que,
consequentemente, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim
supostos) têm realidade secundária e determinada. Nessa definição reúne-se um
materialismo antigo ao materialismo marxista.
Por
outro lado, dado que o materialismo se define em confronto, o idealismo – seu adversário -, em
sentido lato, é toda doutrina que afirma ser independente, primeira e exclusiva
a existência do pensamento, quer tomado como espírito subjetivo (Descartes,
Bergson...), quer tomado como idealidades objetivas (Platão, Hegel...).
Compreendido
dessa forma, deve-se distinguir, no materialismo, o que se segue:
a)
um monismo ontológico, porque só existe uma substância, que é a matéria;
b)
um realismo gnoseológico, porque a matéria é cognoscível, mas não se reduz ao
conhecimento que podemos ter dela;
c)
um relativismo teórico, porque não há valores absolutos (não há um Bem em si,
um Belo em si...); porque todo valor é relativo a um corpo individual ou social
ou à história.
O
materialismo se situa, negativamente, em oposição ao dualismo e ao
espiritualismo (deve-se entender que não há, para um materialista, nem mundo
inteligível, nem alma imaterial). Assim, ser materialista é ser antiplatônico.
O materialismo também se define em oposição ao ceticismo e ao criticismo
(Kant); porquanto rejeita a ideia de que a realidade em si seja incognoscível.
Um materialista não admite uma dimensão numênica do real (a coisa-em-si
kantiana).
Por
fim, o materialismo é incompatível com toda forma de religião fundada na crença
num Deus imaterial, criador e legislador. Não se trata de opor o materialismo a
qualquer forma de religião, pois que o próprio Epicuro não era ateu (ele
julgava os deuses como seres materiais). O materialismo é, portanto, como
sublinha Sponville, “um pensamento de recusa, de combate”. Na esteira de
Lucrécio e de Marx, o materialismo é um esforço filosófico para suplantar a
religião, a superstição, a ilusão em geral.
O
materialismo é uma filosofia que busca explicar o espírito por recurso a
processos materiais. Assim procedeu Marx, que explicou o fenômeno espiritual
como produto de relações na base econômica, e Freud, que explicou o psiquismo
pelas pulsões sexuais. O materialismo é um monismo pluralista (p. 121). Recusa
a ideia de Um e assume como consequência da asserção de que “tudo é matéria” a
proposição “tudo é múltiplo”.
Tendo
em conta a coerência entre a assunção de uma visão materialista de mundo e a
rejeição a certas filosofias idealistas, a cuja exposição tenho consagrado
estas reflexões, notemos com Onfray (2008), que um materialista deve-se opor
a)
à tradição platônica, transmitida pelo cristianismo. Nietzsche observou, a esse
respeito, que o cristianismo é um platonismo para o povo;
E
deve
b)
dar razão a Demócrito em lugar de dá-la a Platão. A oposição ao platonismo e ao
neoplatonismo cristão se expressa na forma de rejeição a uma filosofia de
renúncia à existência; em suma, a uma filosofia que ensina:
“(...) as ideias, os conceitos
puros que evoluem num mundo celeste, cultua uma potência demiúrgica e dá aos
deuses o poder arquitetônico sobre o mundo; ensina a desviar-se do sensível, em
proveito do inteligível, enfim transforma a existência em perpétua ocasião de
renúncia”.
(p. 54)
Longe
de instilar o pessimismo aborrecido, o materialismo se alinha bem com o
hedonismo de um Hiparco, para quem a filosofia é uma oportunidade de sabedoria
e reconciliação do si consigo mesmo, com os outros e com o mundo (Onfray, p.
78).
O que é a matéria?
As
ciências da natureza nos dizem o que é matéria sem saber realmente o que ela é.
Ondas ou corpúsculos? Corpo ou energia? Quais corpos? E qual energia? Quarks,
léptons são as últimas realidades? É provável que a matéria seja inesgotável.
Para
a filosofia materialista, importa pensar a matéria como tudo cuja existência
independe do pensamento ou do espírito. A matéria é o fundo não espiritual do
real. Ela carece de consciência, não tem memória, nem projeto, nem vontade. É o
ser sem vida e inconsciente. É o todo que se oferece ao espírito na forma de
silêncio e indiferença.
Definida
assim a matéria, vê-se com nitidez a filiação do materialismo com o pensamento
trágico, isto é, com a “lógica do pior”, através da qual a vida se revela sem
mentira, na sua nudez verdadeira, e sem esperança, na sua irremediável
fragilidade (certamente também sem alegria nem grandeza, “sobre um fundo de
morte ou de nada” (Sponville, p. 132).
Na
sua relação com o trágico, o materialismo não propõe uma salvação da morte (que
seria a promessa da religião, ou uma forma de esperança), mas o tornar possível
a realização plena do que vai morrer. Portanto, o sábio materialista vive
desesperadamente a única vida possível e verdadeira; por isso o presente, para
ele, é o próprio real. Por isso, ele vive o presente, e a morte, que é o fundo
do próprio real, não é nada para ele. Lição materialista: o silêncio, o
desespero (ausência de esperança) e o esquecimento; mas também a paz e o
estímulo a viver. Todo materialismo afirma a vida, não sob a forma da
esperança, da promessa ilusória, mas reconhecendo sua plenitude presente na
própria impermanência a que todas as coisas estão destinadas. Afirma a vida não
mascarando a morte, numa intransigente inversão valorativa: não é a certeza da
morte que destitui a vida de importância; é a própria crença na eternidade além-túmulo
que a torna depreciável. A inexorabilidade da morte torna a vida válida, na
medida em que a percebemos como urgência que deve ser vivida no aqui e agora.
“Nascemos uma vez, não é possível
nascer duas vezes, e temos de não ser mais para a eternidade: tu, portanto, que
não és amanhã, tu adias a alegria; a vida perece pelo prazo; e cada um de nós
morre atarefado”.
(Lucrécio, livro III)
Uma
vez que o materialismo afirma o valor desta vida, uma vez que afirma que não há
nada a esperar, que é urgente viver a presença plena do real, ele é compatível
com uma ética da felicidade, à luz da qual a felicidade se situa no real
(presente) como possibilidade da própria experiência humana. Trata-se de uma
possibilidade emergente porque acessível a nós e urgente, porque jamais
percebida como algo que devemos adiar para um além-mundo. Não projetar a
felicidade para o futuro, mas encará-la como possibilidade presente; portanto,
do próprio real.
No
entanto, o materialismo, porque não se deixa seduzir pela ilusão, pelas
esperanças vazias, reconhece a fragilidade tanto da vida quanto da felicidade.
O real nos proporciona uma felicidade trágica – uma antítese que se impõe como
consequência da relação do materialismo com o pensamento trágico. Uma vez que
devolve a felicidade ao domínio do real, os materialistas, não podendo excluir,
por isso, o trágico (já que o real o abriga tanto quanto a possibilidade de
felicidade), buscam pensar os conflitos, as tensões, as contradições que
permeiam a relação entre a felicidade como possibilidade do real e o trágico
como dimensão que lhe é estruturante.
Não
estão ainda amadurecidas as reflexões
que visem a demonstrar de que modo um pensamento materialista pode admitir a
possibilidade da felicidade, ao mesmo tempo em que reconhece o trágico como
dimensão estruturante do real. No entanto, a experiência parece nos assegurar
que, apesar do trágico, a felicidade é possível a um grande número de pessoas.
A mim, o trágico tanto quanto a felicidade é experiência que deve ser examinada
em suas articulações, tensões com a fragilidade e efemeridade da vida.
Proponho
que se reconheça que assim como não há momentos felizes (a linguagem aqui
constitui uma fonte de engano), mas experiências de felicidades em
circunstâncias determinadas, assim também não há acontecimentos trágicos em si,
mas experiências do trágico. Trata-se de pensar o trágico não como atributo dos
acontecimentos, mas como um modo de perceber e sentir o mundo. Um universo
indiferente, silencioso, sem qualquer propósito ou significado em si não pode
comportar o trágico, embora – o que não deixa de nos causar espanto - nos torne
capazes de experienciá-lo como uma verdade para nós, mas inexistente para os
demais entes. Evidentemente, se nossa consciência evoluiu de tal modo que nos
permitiu também a experiência do trágico é porque o trágico é uma possibilidade
do real, uma dimensão estruturante dele. Mas o trágico só é uma ocorrência do real na
medida em que nós o experienciamos como tal. A morte de milhares de pessoas num
terremoto só é uma tragédia para nós, seres humanos, capazes de experienciá-la
como tal. Uma natureza indiferente não reconhece o trágico.
O
materialismo se harmoniza com o pensamento de Nietzsche num aspecto importante:
na superação da noção de “mundo das aparências sensíveis”. Abolir o mundo
sensível significa eliminar o equívoco do platonismo.
Finalmente,
chamo a atenção para o fato de que a visão segundo a qual os valores são
relativos, por exemplo, à história – de que um materialismo como o marxista nos
é uma expressão fidedigna - se afina com
a obliteração da crença num mundo espiritual ou divino. Para um materialista, não
faz sentido algum ver nos valores um fundamento supra-sensível. Na ausência de
Deus como fundamento dos valores, resta ao materialista tomar o homem, no
processo histórico, como o fundamento sem fundamento de todos os valores. A
relatividade de todos os valores é matéria inteligível mesmo a uma consciência
religiosa bem educada que, não obstante aceitá-la, pode – paradoxalmente –
tomar Deus como fundamento absoluto de todos os valores. E, nesse caso, se depõe o rigor exigido pelo
trabalho do pensamento filosófico para estender-se sobre a mentalidade das
pessoas o poder das estruturas contraditórias de pensamento religioso.
entre tantos ismos que me cabem [epicurismo, platonismo...], numa mescla, tantas vezes, angustiante, sou - ainda bem? - inexoravelmente paradoxal.
ResponderExcluirsou, material e espiritualmente, só. então, a filosofia - suas palavras - ainda salva[m].
um beijo, amigo querido
Beijos, querida! Feliz por poder notar sua presença de novo por aqui!
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