segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O caso dos verbos auxiliares

                       
                                


                   O caso dos verbos auxiliares
  Alguns critérios para a determinação da auxiliaridade


A auxiliaridade, ou seja, o comportamento estritamente gramatical que certos verbos exibem quando entram a fazer parte do que, tradicionalmente, se tem chamado de locução verbal, é, sem dúvida, um dos tópicos mais controversos em gramática. Tenciono, neste texto, examiná-lo com vistas a avaliar a adequação de um conjunto de critérios sintáticos que nos permitiriam determinar se, dada a proximidade de dois verbos, um dos quais deve ou não ser considerado um verbo auxiliar. A apresentação desses critérios se seguirá a um longo e acurado esforço analítico de uma série de problemas recobertos pelo fenômeno da auxiliaridade.
Minha hipótese inicial é que os referidos critérios sintáticos, em si, isto é, quando tomados sem qualquer referência ao aspecto semântico implicado na questão, não dão conta de todos os casos que a tradição gramatical considera casos de locução verbal. Sem embargo, penso que eles são indispensáveis para que se consiga estabelecer as condições que fazem de uma combinatória verbal um caso de locução verbal.
Antes de encetar a discussão, faz-se mister dar a saber um elenco de conceitos básicos que devem ser, de antemão, conhecidos, a fim de que a própria discussão se torne tanto mais compreensível ao leitor quanto menos dispendiosa para mim. Com a apresentação e definição desse conjunto de conceitos, creio não só contribuir para facilitar o trabalho de compreensão do leitor, como também me escuso da necessidade de fazer, vez ou outra, ao longo da discussão, alguma digressão para esclarecer um conceito circunstancialmente relevante.

1. Conceitos básicos

1.1. O que é gramática?

O primeiro conceito que eu gostaria de esclarecer é o de gramática. Duas acepções do termo gramática estarão pressupostas no desenvolvimento desta exposição. A primeira acepção do termo gramática recobre a ideia de sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. Nesse sentido, todas as línguas naturais são dotadas de uma gramática – de um sistema de regras -, que prevê as possibilidades combinatórias que tomam parte da produção de enunciados funcionalmente aceitáveis em cada língua. Assim, por exemplo, a gramática da língua portuguesa – o sistema de regras dessa língua – prevê uma regra que nos obriga a usar a preposição “de” para conectar o verbo “ter” a uma forma de infinitivo, procedimento de que resulta uma locução verbal (conforme veremos). Um exemplo dessa construção é a frase (a), abaixo:

(a) Tenho  de   sair cedo amanhã.
                         inf.

Por outro lado, a desobediência a essa regra gramatical torna a construção agramatical ou inaceitável para os usuários do português (o * marca a agramaticalidade):

(a1) *Tenho  # sair   cedo amanhã.

A segunda acepção do termo gramática que o leitor deve ter em conta ao longo desta exposição é recoberta pela designação gramática descritiva, a qual constitui uma hipótese elaborada pelo linguista com base na qual ele busca descrever e explicar a estrutura e o funcionamento de uma dada língua. A gramática descritiva, enquanto modelo teórico-metodológico, cientificamente construído com base nos postulados da observação e da análise de certo conjunto de “fatos linguísticos”, eles mesmos determinados pelo recorte teórico-metodológico que, por sua vez, norteia a observação e a análise, visa, portanto, à descrição e à explicação da gramática tomada na primeira acepção acima. A rigor, o que o linguista tenta descrever e explicar é esse sistema de regras – a gramática na primeira acepção - que se encontra inscrito na mente/cérebro dos falantes nativos na forma de um saber que eles dominam intuitivamente.
Já de início, como eu pretenda situar a problemática sobre a qual me debruçarei, buscarei aporte em um exemplar de gramáticas tradicionais do português, chamadas também de gramáticas normativas, as quais, embora encerrem uma porção de descrição, são orientadas fundamentalmente por uma preocupação prescritivista. As gramáticas normativas, que se identificam com nossas gramáticas escolares, isto é, que, tradicionalmente, fornecem insumo ao ensino de língua portuguesa na escola, são manuais que reúnem certo número de regras pelas quais se estabelece “o bom uso” da língua. Assim,  acredita-se que os falantes que pretendem ser socialmente bem avaliados, quando do uso de sua língua materna, deverão pautar seu comportamento linguístico pelas regras prescritas por essa gramática.
É suficiente dizer – já que o território em que se desenvolve esta discussão não carece aqui de ser inspecionado – que os critérios pelos quais esse “bom uso” é estabelecido são não só variados, como também determinados e sustentados por uma argumentação atravessada por pressupostos elitistas ou aristocráticos quase sempre silenciados ou quase nunca acessíveis aos não-especialistas. O “bom uso” é um valor normativo, sociolinguisticamente determinado, inspirado num ideal de correção idiomática que se busca estabelecer, por seleção arbitrária dos usos feitos pelos assim considerados “grandes escritores” da literatura.

1.2. Formas nominais do verbo

Chamam-se formas nominais do verbo às formas que cumulam a função verbal com a de nomes. Significa isso dizer que tais formas preenchem funções sintáticas típicas de substantivo e adjetivo. Essas formas nominais apresentam as desinências –r, -do e –ndo. Dividem-se em infinitivo, que se comporta como um substantivo (cf. Recordar é viver); em particípio, que assume a função típica do adjetivo (cf. homem sabido/ empresa falida); em gerúndio, que assume a função típica de adjetivo (cf. Despeje a água fervendo na vasilha = água fervente) e também de advérbio, muito embora, atualmente, a classe dos nomes recubra apenas o adjetivo e o substantivo, em virtude do fato reconhecido de que eles são praticamente indistintos do ponto de vista morfossintático (cf. Amanhecendo, sairemos = assim que amanhecer, sairemos/ cedo sairemos). Note-se que, nesse último caso, a forma de gerúndio “amanhecendo” ocupa a posição suscetível de ser ocupada por uma oração adverbial ou por um advérbio simples.

1.3. Significado lexical e significado gramatical

O significado lexical recobre o modo como as línguas segmentam nossas experiências de mundo. Trata-se do significado que corresponde à organização do mundo extralinguístico. Por exemplo, o vocábulo “casa” comporta significado lexical, porque descreve um elemento, uma coisa do mundo exterior à língua.  Estou ciente de que simplifico demais a explicação; mas essa simplificação é indispensável para que não percamos de vista o que é necessário reter na distinção que ora procuro apresentar.
Por seu turno, o significado gramatical compreende o conjunto de distinções significativas que pertencem ao domínio estrito da gramática. Tomando-se a forma “casas”, o elemento “-s” marca a noção de pluralidade que está na base da distinção entre os pares “casa/casas”. A distinção singular x plural é marcada pela oposição ‘presença de marca –s’ e ‘ausência de marca -s’. A presença da marca ‘-s’ indica o plural, ou seja, expressa a quantidade ‘mais de um elemento’ relativamente ao ao referente ‘casa’; a ausência dessa marca indica a ausência da noção 'mais de um'. Nos substantivos, a distinção singular/plural é referencialmente motivada: o singular serve à expressão da ideia de unicidade; o plural, à ideia de pluralidade.  Ademais, essa distinção é determinada por condições gramaticais. A forma assumida pelo determinante (artigo, por exemplo) fixará a forma que deverá ser assumida pelo substantivo subsequente. Assim, em “as casas”, a ocorrência da desinência “-s” em “a” determina a ocorrência da desinência “-s” no substantivo “casa”. Por outro lado, a ausência de marca no primeiro elemento do sintagma implica a ausência de marca no segundo elemento (cf. a casa). Naturalmente, essa regra vale para a variedade de prestígio da língua. Em outras variedades, muito estigmatizadas, basta acrescentar o “s” no artigo para indicar que todo o grupo sintagmático foi pluralizado (cf. as casa).
A distinção entre significado lexical e significado gramatical pode ser estabelecida também em termos da distinção entre lexemas e gramemas. Assim, distinguem-se os lexemas, que são morfemas lexicais que comportam um significado de base extralinguística, o qual representa parcelas de nossa experiência de mundo, dos gramemas, os quais comportam significado estritamente gramatical, responsável pelas distinções operadas no interior da gramática. Por exemplo, se os nomes “Alexandre” e “Márcia” identificam entidades do mundo extralinguístico, os pronomes “ele” e “ela” apenas indicam as entidades do discurso, seja essas entidades designadas por substantivos [+ animado], seja por entidades [- animado]. As formas “ele” e “ela” não designam referentes no discurso, mas nos instruem para que os recuperemos no domínio discursivo. A distinção entre “ele” e “ela” repousa no fato de que a primeira forma remete a um referente designado por um substantivo masculino no singular; a segunda, a um referente designado por um substantivo feminino no singular.
Os lexemas pertencem a um inventário aberto, ilimitado de formas; ao contrário, os gramemas pertencem a um universo fechado ou limitado de formas. Verbos, adjetivos, substantivos e advérbios em –mente (felizmente, alegremente, etc.) são exemplos de lexemas. Artigos, preposições, conjunções, numerais e pronomes são exemplos de gramemas.
Essa distinção, conquanto suscite críticas e sem reivindicar qualquer rigor teórico-metodológico, será importante, todavia, para que se compreendam os verbos auxiliares como formas gramaticalizadas, formas que perderam o significado lexical (mas não todo e qualquer significado, conforme veremos) e com ele sua natureza valencial, no ambiente sintático em que se encontram.

1.4. Locução verbal

Por locução, entende-se um grupo constituído por dois ou mais elementos em vias de cristalização, que pode ser totalmente invariável ou pode admitir a pluralização de um de seus elementos constituintes, desde que não seja o último. Essa definição, deveras, abrangente reúne num mesmo elenco construções como “atrás de” e “cesta básica”, “merenda escolar”. Também aí devemos incluir os substantivos e adjetivos compostos, tais como “navio-escola” e “verde-garrafa”, entre outros tantos.
A definição que apresento não pretende dar conta da complexidade envolvida nessa questão. É extremamente difícil determinar a natureza locucional de um grupo de palavras. Essa definição deve ser encarada apenas como um guia para a compreensão do conceito de locução verbal, que é o conceito que convém elucidar para efeitos de discussão.
A locução verbal é uma unidade semântico-sintática formada pela combinação de dois ou mais verbos, um dos quais preserva sua natureza semântico-sintática. Cumpre, então, esclarecer o seguinte. A locução verbal é um complexo constituído por pelo menos dois verbos, o primeiro dos quais perde significado lexical e assume o papel de suporte para a expressão das categorias gramaticais de tempo, número, pessoa, modo e aspecto. O segundo verbo, no entanto, conserva seu comportamento valencial; é ele o predicador, o responsável por determinar a estrutura relacional da oração.
As noções de número e pessoa são reflexos da pessoa e número do sujeito. Destarte, o verbo se flexiona para expressar as categorias de número e pessoa inerentes ao sujeito. Na locução verbal, é ao verbo auxiliar que cumpre manifestar as flexões de tempo, número, pessoa, modo e aspecto.
A categoria de aspecto diz respeito à duração do processo verbal independentemente da instanciação do tempo. O aspecto indica ou não a estrutura temporal interna de um fato (Costa, 1997, p.38). Assim, por exemplo, na oração “O garoto começou a correr”, o aspecto incoativo, ou seja, a expressão da fase inicial do processo de “correr”, é marcado pelo verbo “começar”, que também atualiza as categorias de tempo, número, pessoa e modo.

1.5. Valência

Entendo por valência a propriedade que tem o verbo, por excelência, na condição de predicador, de determinar certo número de lugares vazios passíveis de ser preenchidos pelos seus actantes. A valência é um fenômeno de base semântica que exibe, no entanto, uma dimensão sintática. Além do número de lugares vazios, o verbo determina também as propriedades morfossintáticas e semânticas dos actantes. A valência é uma propriedade semântica também extensiva a certos substantivos e adjetivos, mas é o verbo a forma que mais sistematicamente a manifesta.
Por actante, entendo cada um dos constituintes sintáticos que preenchem os lugares vazios determinados pela valência do verbo. O fenômeno de valência verbal se sustenta pelo princípio da previsibilidade valencial, por mim demonstrado em minha dissertação de mestrado, o qual se define como o fato de o significado do verbo prever certo número de lugares vazios e tipos morfossintáticos e semânticos de actantes.
Cada um dos lugares vazios é representado por uma das variáveis x, y, z, que são marcadores de posição. A variável x corresponde à posição típica do actante sujeito; a variável y, à posição do complemento direto (objeto direto), outro actante; e a variável z , à posição do complemento indireto (objeto indireto), outro actante.
Assim, tomando-se os verbos “construir” e “dar”, temos as seguintes estruturas relacionais formalizadas abaixo:

(b) X  construir Y
(c) X dar  Y  a  Z

Essas estruturas servem de modelos para a produção de um sem-número de frases das quais “construir” e “dar” são predicadores. Vejam-se os dois exemplos abaixo:


(b1) O rapaz construiu a maquete em uma hora.
           X            v              Y

(c1) O pai    deu   a mesada   ao garoto.
           X       v          Y             Z

Acrescente-se que, além de determinar o número de actantes, o verbo “construir” faz restrição de seleção quanto aos traços semânticos que devem comportam seus actantes. Assim, o actante sujeito deve ser preenchido por um substantivo [+ humano], na função semântica de AGENTE (entidade dotada dos traços [+ animação] e [+ intencionalidade]). O verbo “construir” não autoriza a ocorrência de um substantivo como “cachorro”, por exemplo, para ocupar a posição de sujeito. Ora, claro está que “construir” codifica uma experiência complexa que supõe um agente inteligente, dotado de capacidades cognitivas e motoras que lhe permitam praticar a ação de “construir”.
Por seu turno, o verbo “dar”, na acepção com que foi empregado em (c), a saber, na acepção de ‘transferir ou doar o que se possui a outrem’, tem uma seleção menos restritiva, já que autoriza a ocorrência de um sujeito [+ animado], como “cachorro”, desde que o segundo actante designe um elemento que possa integrar a experiência de um cachorro. Naturalmente, “cachorros” não dão mesadas, mas podem ser treinados para “dar” um molho de chaves ao seu dono.
Há que considerar verbos que fazem ainda restrições quanto à forma do sujeito. Um exemplo desse tipo de verbo é o verbo “convir”, que seleciona uma oração  reduzida de infinitivo para ocupar a posição de sujeito.

(d) Convém dizer sempre a verdade.
                         actante-sujeito

Não menos importante é que esse verbo exige que o sujeito lhe seja, sistematicamente, posposto.  Relativamente aos seus actantes, o verbo determina suas (1) propriedades morfossintáticas; (2) propriedades sintáticas; (3) propriedades semântico-categoriais; (4) propriedades semântico-relacionais.
As propriedades do tipo (1) – morfossintáticas -, recobrem a presença ou ausência de marcas preposicionais introduzindo os actantes. Por exemplo, o verbo gostar exige um actante introduzido de preposição “de” (cf. Gosto de sorvete). As propriedades do tipo (2) – sintáticas – recobrem, por sua vez, as diferentes possibilidades de pronominalização dos actantes. Por exemplo, os verbos obedecer e recorrer exigem diferentes formas de pronominalização de seu actante imediatamente posposto. Para uma frase como “Ele obedece ao pai”, temos a correspondente com pronominalização do actante “ao pai” “Ele lhe obedece”. Mas o verbo “recorrer” recusa a forma “lhe” para substituir seu actante lhe posto à direita. Nesse caso, devemos usar a forma “a ele/a ela”: “Pedro recorreu ao pai”/ Pedro recorreu a ele.
Também é uma propriedade sintática a forma assumida pelo  actante por exigência do verbo predicador. Assim, o verbo “alegrar” pode selecionar para acantante sujeito um SN cujo núcleo é um substantivo, como em “Alegra-me a sua vinda”, ou um SN na forma de oração desenvolvida, como em “Alegra-me que você venha”. É possível também construir o verbo “alegrar” com um actante na forma reduzida de infinitivo, como em “Alegra-me cumprimentá-lo”.
As propriedades do tipo (3) – semântico-categoriais – dizem respeito a restrições de seleção dos semas constitutivos do significado do núcleo dos actantes. Por exemplo, o verbo “espantar” exige que o actante correspondente à função de sujeito seja ocupado por um substantivo [+ animado], como em “O garoto se espantou com a atitude do colega”. Esse verbo recusa a ocorrência de um substantivo nessa mesma posição desprovido desse traço, como em “* A cadeira se espantou com o mau tempo”.
Finalmente, as propriedades do tipo (4) – semântico-relacionais – recobrem as funções semânticas que os actantes devem assumir no estado-de-coisas designado. Novamente, é o verbo que determinará essas funções para seus actantes. O verbo “ouvir” fixa a função semântica de “EXPERENCIADOR” para o actante x (sujeito), ao passo que o verbo “arremessar” fixa a função semântica de AGENTE para esse mesmo actante (cf. João ouviu o barulho que vinha da cozinha/ Paulo arremessou a pedra na vidraça).

1.6. Verbos ergativos

O conceito de verbos ergativos também será importante num momento de minha análise. Verbos ergativos são verbos cuja estrutura valencial encerra um sujeito que cumpre a função semântica de PACIENTE.
Cada uma das construções em que se especificam os actantes do verbo e seus respectivos papéis semânticos é uma diástese. Vejamos um exemplo de verbo ergativo:

(e) O tanque encheu.

O verbo “encher” pode assumir uma forma ergativa. Em (e), ele determina a ocorrência de um substantivo no papel semântico de paciente. Coteje-se (e) com (e1):

(e1) O frentista encheu o tanque.

Agora, o verbo “encher” assume um comportamento transitivo. Seleciona um actante sujeito AGENTE e um actante complemento PACIENTE.
Verbos como “encher” são transitivos-ergativos, porque se comportam como transitivos ou ergativos. A esse grupo deve-se acrescentar o verbo “abrir”, que ocorrerá em um dos próximos exemplos que tratarei de examinar neste estudo. A construção ergativa também é determinada pela valência do verbo.


2. Situando a problemática

Em sua Moderna Gramática Portuguesa (2002), o gramático Evanildo Bechara aduz sua definição de locução verbal nos seguintes termos:

“Chama-se locução verbal a combinação das diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo, o gerúndio ou particípio de outro verbo que se chama principal (...) Muitas vezes o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal dando origem aos chamados verbos aspectuais (p. 203)”.

Deve-se notar que a definição de locução verbal de Bechara assenta apenas no domínio formal do fenômeno, ou seja, sua definição descreve a estrutura de uma locução verbal, e nada nos diz sobre o que faz com que um verbo seja considerado verbo auxiliar, questão principal deste trabalho. Tampouco nos dá a razão por que o outro verbo constituinte da locução é chamado de principal.
Bechara ajunta que, entre o verbo auxiliar e o principal na forma de infinitivo, pode ocorrer ou não uma preposição, entre as mais comuns refere as preposições de, em, por, a e para (cf. Tenho de sair/ Estou para conseguir um emprego). Prossegue o autor observando que, na locução verbal, é somente o auxiliar que manifesta as flexões de pessoa, número, tempo e modo (cf. Haveremos de fazer, iam trabalhando).
Veja-se o elenco de verbos auxiliares apresentado por Bechara a seguir:


1) ter, haver e ser

Os verbos ter e haver constituem os chamados tempos compostos, caso em que se combinam com a forma de particípio do verbo principal. Assim, temos “tenho cantado” e “havia vendido”.

O verbo ser se combina com o particípio-adjetivo (porque variável em gênero e número) para a formação da voz passiva, equivocadamente chamada pela tradição passiva de ação. Não nego que, em muitos casos, o verbo ser entra a fazer parte da formação de uma voz passiva de ação, mas isso se dá apenas quando o particípio deriva de um verbo que indica ação ou processo. Por exemplo, em “O carro foi comprado ontem”, há uma voz passiva de ação, já que o verbo “comprar” denota ação. No entanto, em “João é amado por todos”, não há voz passiva de ação, pois que a forma participial “amado” é formada a partir do verbo “amar” que não denota ação, mas uma experiência de ordem psico-física. É lícito dizer – me parece – que “ser amado” encerra um significado estativo, no sentido em que a entidade amada encontra-se no estado de objeto do amor.

2) estar e ficar

Os verbos estar e ficar também formam a voz passiva; estar integra a construção passiva de estado; e ficar, a construção passiva de mudança de estado. Assim, temos “Estou acordado” e “Depois de tanto caminhar, ficou cansado”.
Os verbos estar e ficar também podem-se combinar com gerúndio, como se vê nas frases “Estamos andando o dia todo” e “Ficava conversando sem parar”.

3) auxiliares aspectuais que se combinam com infinitivo ou gerúndio para determinar as fases da duração do fato expresso pelo verbo. Nesse grupo, Bechara inclui os verbos: começar a, por-se a, continuar, estar para, estar (a), andar, vir, ir, tornar a, costumar, acabar, cessar de, deixar de, parar de.
Notemos, de passagem, que os verbos estar e ficar, quando combinados com gerúndio, indicam o aspecto cursivo, ou seja, marcam a ação em seu desenvolvimento, em seu curso, como em “Estou escrevendo este texto agora”.

4) auxiliares modais, que se combinam com o infinitivo ou o gerúndio do verbo principal para marcar as atitudes que o locutor projeta sobre seu enunciado. Na esteira da tradição lógica aristotélica, tais marcas expressam as modalidades fundamentais do possível e do necessário e, por negação, os seus respectivos contrários, o impossível e o contingente. A despeito de sua herança lógica, a modalidade é tratada em Linguística como modalização, que não é pura e simplesmente um novo termo para um já reconhecido fenômeno linguístico, mas uma nova maneira de encará-lo. Basicamente, o que a Linguística fez ver foi a importância de considerar o envolvimento dos interlocutores na tentativa de compreender o fenômeno da modalização. As línguas naturais não conservam as definições estabelecidas pela Lógica, justamente porque o envolvimento de interlocutores, numa dada situação de interação, implica a existência de um contrato epistêmico que redefine as modalidades sentenciais propostas pela Lógica tradicional.
Constituem exemplos de verbos auxiliares modais ter de, dever, precisar, poder. Os três primeiros expressam a modalidade.  deôntica (do dever, do ser necessário); o último a do possível. É claro, no entanto, que a determinação da função modalizadora desses verbos, ou melhor, do seu conteúdo modal depende sempre das condições contextuais. O verbo “poder”, por exemplo, expressa possibilidade e/ou permissão em “Ele pode faltar à aula hoje”, mas ‘capacidade’ em “Ele já pode caminhar sozinho”. O verbo “dever” expressa ‘obrigatoriedade, necessidade’ em “Você deve ajudar os mais velhos”, mas ‘dúvida’, ‘incerteza’, em “Amanhã, devo ir à escola (não sei)”.
Outro verbo que serve para modalizar o enunciado é o verbo “parecer” combinado com infinitivo, como em “Ele parece estar sozinho agora” (expressão de dúvida, incerteza). É preciso entender que é o enunciador que, ao fazer uso de uma forma como “parecer”, projeta sobre o enunciado uma atitude de dúvida ou incerteza sobre o conteúdo comunicado. O fenômeno da modalização já foi objeto de exame em outros textos neste blog, por isso não vou me estender sobre ele. Mas cumpre dizer que a modalização deve ser entendida em termos de mais ou menos adesão do enunciador ao seu enunciado. Quem diz “Ele parece estar sozinho” não se compromete totalmente com o valor de verdade do seu enunciado, não adere totalmente ao conteúdo proposicional. A modalização, nesse sentido, é uma das estratégias de que dispõem os enunciadores para preservar a sua face. Ademais, o fato de o enunciador marcar mais ou menos adesão aos seus enunciados tem claras implicações na orientação argumentativa por ele tomada. O fenômeno da modalização é, portanto, um dentre os recursos de que dispõem os usuários da língua para fazer uso eficaz dela argumentativamente. Por exemplo, se estou insatisfeito com a insistência de minha namorada ou esposa para que vamos à praia amanhã, posso demonstrar meu desinteresse por ir, enunciando que “Parece que amanhã vai chover” (as razões de meu desinteresse podem ser outras, é claro; e isso certamente pode ensejar uma discussão, mas vamos desconsiderar essa possibilidade). O “parece que amanhã vai chover” constitui não só uma estratégia de recusa de um pedido indiretamente, mas, por força da ocorrência de “parecer”, também uma estratégia pela qual não me comprometo, ou melhor, afrouxo minha responsabilidade pela confiabilidade da informação. Manifesto dúvida sobre a possibilidade de chover (ouvi dizer, trata-se de uma previsão meteorológica da qual tomei conhecimento), mas não se me podem imputar a responsabilidade por enunciar uma falsidade caso “amanhã” faça um sol escaldante. O “parece que amanhã vai chover” também dá certa margem de liberdade de escolha a minha interlocutora, que pode se “arriscar” ou não a ir à praia, na esperança de que a previsão falhe. Assim, ao mesmo tempo em que lhe dou uma margem de escolha, busco mascarar qualquer atitude autoritária em minha fala, comunicando-lhe, no entanto e ao mesmo tempo implicitamente, que não estou disposto a me “arriscar”.
Retomando o elenco proposto por Bechara, cabe ainda referir outros conjuntos de verbos considerados por ele como auxiliares. Trata-se de casos, deveras, problemáticos. Vejamos quais são esses conjuntos.

5) Verbos que expressam tentativa ou esforço, em alguns casos seguido de decepção.

Busco escrever
Pretendo viajar
Tento ficar
Ouso reclamar
Procuro examinar


6) Verbos que indicam volição ou desejo:

Quero escrever
Desejo escrever
Odeio estudar

7) Verbos que exprimem consecução:

Consegui terminar
Logrei fazer


8) Verbos auxiliares causativos e sensitivos:

a) causativos: deixar, mandar e fazer;
b) sensitivos: ver, ouvir e sentir.

Todos esses casos merecem uma avaliação crítica, mas vou circunscrevê-la a dois casos que, uma vez se demonstrem incorretos à luz da crítica, os outros dois também estarão. Ater-me-ei aos casos 6) e 8).
Segundo Bechara, verbos como querer, desejar e odiar podem ou não se comportar como auxiliares. Em nota, ele nos dá a conhecer o que é necessário considerar para que estes verbos sejam considerados ou não auxiliares:

“Por exemplo, na frase: queríamos colher rosas, os verbos queríamos e colher constituirão expressão verbal se pretendo dizer que queríamos colher rosas e não outra flor, sendo rosas objeto da declaração. Se, porém, pretendo dizer que o que nós queríamos era colher rosa e não fazer outra coisa, o objeto da declaração é colher rosas e a declaração principal se contém incompletamente em queríamos” (p.233).



Bechara cita aí José Oiticica. Esclareça-se o que nos ensina o gramático. O que está dizendo Bechara é que é a intenção do falante que determinará se, em “queríamos colher rosas”, há uma locução verbal “queríamos colher” ou, ao contrário, uma oração principal “queríamos” a que se articula uma oração de infinitivo “colher rosas”. O problema patente dessa proposta é o total abandono da descrição à arbitrariedade em que se baseia o recurso à “intenção do falante”. É claro que a intenção do falante é um dos elementos importantes a ser considerados quando se descreve a língua em uso, mas a intenção é sempre pensada como um elemento constitutivo da troca verbal, o qual deve, para ter valor epistemológico, ser passível de apreensão pela materialidade linguística. Na esteira da Pragmática, em Linguística, a intenção é realizada por meio de textos; dito de outro modo, os textos realizam a intenção dos falantes e permitem recuperá-la. O que Bechara fez, a meu ver, foi simplesmente renunciar a se decidir sobre a questão. Ele se negou a lançar mão de um critério seguro, tangível ou operancional para determinar se em “queríamos colher rosas”, o verbo “querer” é um verbo auxiliar ou não.
A razão por que a análise mais adequada é a que fixa o caráter não-auxiliar para verbos como “querer” é que esse verbo conserva seu significado lexical e, por consequência, a sua natureza valencial ou predicadora. Substituamos “colher rosas” por “casar com você”, e ajustemos a oração, para vermos que o verbo “querer” seleciona para actante à direita toda a oração “casar com você” (cf. Quero casar com você). Ora, o sintagma preposicional “com você” não está sob a dependência do conjunto “quero casar”, mas apenas de  “casar”. Ele integra a oração de “casar”. O verbo “querer” conserva seu estatuto valencial, selecionando um complemento direto na forma oracional. Mais adiante, veremos se os critérios sintáticos se aplicam satisfatoriamente a esse caso.
Detendo-me doravante no caso dos auxiliares causativos e sensitivos, convém notar que Bechara (p.430), aduzindo os exemplos abaixo,

Vejo abrir a porta
Ouço soprar o vento
Vejo crescer as árvores

mantém que, em “Vejo abrir a porta”, “a porta” é objeto direto de “abrir”, interpretação equivocada, porque, nessas construções, o SN é, sistematicamente, deslocado para a posição posterior à combinatória verbal. Essa possibilidade de deslocamento é garantida pela natureza semântico-sintática do infinitivo. Os verbos “soprar” e “crescer” são verbos que recusam objeto direto; e o verbo “abrir” é um verbo do tipo ergativo-transitivo. Quando ergativo, o verbo “abrir” seleciona um actante sujeito-PACIENTE. Por exemplo, “A porta abriu”. Na construção “Vejo a abrir a porta”, “a porta” é sujeito de “abrir”, que está apenas deslocado de sua posição canônica (cf. Vejo a porta abrir). O verbo “abrir” admite uma diátese transitiva, caso em que se construiria com um sujeito-AGENTE – objeto-PACIENTE, como em “Pedro abriu a porta”.
Apesar do equivoco da análise de Bechara, ele entende que o conjunto formado pelo infinitivo e o SN que o acompanha é uma unidade sintática dependente do verbo “vejo”, do que resulta a admissão de que o verbo “ver” não é um auxiliar.
Um expediente extremamente eficaz para determinar o caráter não-auxiliar dos chamados verbos sensitivos é o desenvolvimento do conjunto formado pelo infinitivo numa oração encetada de “que”. Assim, para “Vejo abrir a porta”, temos “Vejo que abriu a porta (ou que a porta abriu)”. Esse expediente formal é extensivo ao conjunto dos verbos causativos também. Assim, para “Mandei o garoto ir ao mercado”, temos “Mandei que o garoto fosse ao mercado”. A transformação da oração reduzida de infinitivo em uma oração desenvolvida patenteia que ela é um constituinte selecionado pela valência do verbo que a precede (respectivamente, “ver” e “mandar”).


3. Critérios sintáticos para a determinação da auxiliaridade dos verbos

Finalmente, cumpre atentar para os critérios de base formal que podem ajudar-nos na busca por determinar se há, numa dada combinatória de verbos, um verbo auxiliar.

1º critério: existência de um único sujeito para o grupo verbal.

Segundo esse critério, há locução verbal e, portanto, um verbo auxiliar sempre que houver um único sujeito que está em dependência de todo o conjunto verbal. Nesse caso, o sujeito é selecionado pelo verbo principal, o verbo que comporta a função de predicação no conjunto. Seguem-se os exemplos abaixo:

(f) Eu vou correr na Lagoa amanhã.
(g) Ele ficou caminhando o dia todo.

Em (f) e (g), são os verbos “correr” e “caminhar” que selecionam, respectivamente, os sujeitos “Eu” e “Ele”. São esses verbos que conservam significado lexical e, portanto, sua natureza valencial. Comparem-se esses casos como o caso (h), abaixo:

(h) Vejo o menino subindo às escadas.

Em (h), o sujeito de “vejo” é diferente do sujeito de “subindo”. Podemos transformar o conjunto “subindo as escadas” na forma desenvolvida: Vejo que o menino sobe às escadas. Claro está que os sujeitos são diferentes e que, por isso, não há locução verbal.

2º critério: impossibilidade de transformação do verbo pleno numa oração desenvolvida

Só há locução verbal, quando não conseguimos transformar o verbo pleno numa oração desenvolvida, à semelhança do que fizemos acima. No exemplo abaixo, é impossível tal procedimento:

(i) Eu tive de sair cedo.
(i1) * Eu tive de que saí cedo.

3º critério: inserção da negação na tentativa de romper com a unidade do conjunto verbal

Se for possível a inserção da negação no conjunto verbal, sem perturbar sua unidade semântica, não há locução verbal; do contrário, há locução verbal. No exemplo abaixo, a impossibilidade de usar a negação entre os dois verbos indica que se trata de uma locução verbal e que o primeiro verbo é um auxiliar.

(l) A criança está brincando.
(l1) * A criança está não brincando.

Ora, a partícula de negação só pode orbitar o conjunto “está brincado”, donde se segue que seu escopo é todo o conjunto (cf. A criança não está brincando).
Esse critério me parece ser o menos eficiente, já que ele pode não valer para os casos aos quais os outros critérios se demonstraram aplicáveis. Assim é que, em “Deixa o menino brincar”, a inserção da negativa entre “deixa” e “brincar” torna o enunciado inaceitável - “* Deixa o menino não brincar” - ou muito pouco aceitável “ (?) Deixa não brincar o menino”. Não obstante, vimos que construções com verbos como “deixar” seguido de infinitivo não encerram locução verbal. Os critérios 1 e 2 garantem ser este o caso.



                    4º critério: pronominalização

Se o verbo que ocupa a segunda posição na construção supostamente perifrástica for pronominalizável, segue-se daí que esse verbo comporta-se como um actante do primeiro verbo. Assim, não há locução verbal, e o primeiro verbo é também um verbo pleno. Veja-se o seguinte exemplo:

(m) Você sabe agradar ao seu marido.
- Eu o sei.  (o = agradar ao seu marido)

Não há dúvida de que o verbo “saber” não se comporta como verbo auxiliar, não só porque ele conserva seu significado lexical, quando combinado com um infinitivo, mas também porque pode construir-se com uma oração desenvolvida encetada por “que” (ou, se na negativa, com “se”). Por exemplo, temos “Eu sei que o professor dará prova amanhã”. Ademais, em “Você sabe agradar ao seu marido”, “ao seu marido” não é um actante do conjunto “sabe agradar”, mas apenas de “agradar”.


Os critérios aqui elencados, longe de resolver a complexidade do problema de que me ocupei aqui, lança algumas luzes sobre o estudo da locução verbal e das condições que conferem a propriedade de auxiliaridade a um verbo. Creio, no entanto, que a adoção desses critérios não pode levar o estudioso a desconsiderar a raiz semântica do problema, qual seja, a conservação ou não do significado lexical do primeiro verbo do conjunto e de sua natureza valencial. Isso é importante quando queremos determinar, por exemplo, se o verbo “conseguir”, em “Eu consegui namorá-la por dois anos”, é um verbo auxiliar ou um verbo pleno; se há uma locução verbal ou uma oração principal de que depende outra oração dita, por isso, subordinada. 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

"Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto" (BAR)

            


                Sobre a nossa incapacidade de amar

Quando o assunto é amor, dois coros de vozes se dispõem antagonicamente. De um lado, ouvem-se os otimistas que não cessam de acreditar que o amor é capaz de tudo: ele é constante, eterno e criativo. Estes se acostumaram à crença num caráter salvífico do amor. De outro lado, protestam os pessimistas, que denunciam o óbvio: as expectativas geradas pelo amor são repetidamente frustradas. Estes chegam, pois, a uma conclusão que conta com o testemunho da realidade: a natureza humana não permite que as esperanças do amor se realizem. O amor humano, à luz dessa visão, está atolado em ilusão, encarcerado no narcisismo, na incompreensão, na possessividade e na manipulação egoísta. Freud e Proust (entre outros) são, reconhecidamente, partidários dessa visão.
É notável, contudo, que tanto Freud quanto Proust estejam ainda vinculados a uma concepção cristã do homem, que eles tentaram rejeitar. No seu esforço por substituir as velhas categorias com base nas quais se explica a depravação humana, tais como ORGULHO, LUXÚRIA e IRA, esses autores não fizeram senão dar a elas um tratamento linguístico secularizado, donde a ocorrência de termos como NARCISISMO, PROJEÇÃO e INSTRUMENTALIZAÇÃO DO OUTRO para descrever o que aquelas categorias descreviam.
As dúvidas que eles acalentavam sobre a possibilidade de o homem ser capaz de um amor calcado sobre o despojamento do ego, de um amor altruísta, que seja a expressão de alegria sem a posse do outro, são muito semelhantes às que nutria, por exemplo, Santo Agostinho.
Lembremos o que a tradição cristã nos ensinou sobre o amor. No cristianismo, o amor é a fonte e a medida de todas as virtudes. O amor, como Deus, é eterno. No entanto, quando os pensadores cristãos teorizaram sobre a capacidade humana de amor (vejam-se, por exemplo, Santo Agostinho e Lutero), eles concordaram, em sua maioria, que o amor é uma graça de Deus, de modo que só podemos amar por intermédio de Deus. Agostinho e Lutero ainda estariam de acordo quanto a outro ponto: somos incapazes de amor genuíno. São Tomás, ao contrário, embora aquiescesse à ideia de que o amor genuíno fundamentalmente provém de Deus, acreditava que não somos meros recipientes para a ação de Deus. São Tomás argumentava que temos vontade animada, a qual, com o concurso da graça, poderia se desenvolver até o estágio em que atingiríamos a perfeição espiritual. Ele não negava que o amor – a suprema das três virtudes teologais, às quais se reúnem a fé e a esperança – fosse infundido em nós por Deus; mas não concordava com Agostinho no tocante à crença de que não sejamos naturalmente capazes de amar (tendo sempre em conta a concepção de amor cristão).
Se articularmos a visão cristã sobre a incapacidade humana de amor genuíno, tal como sustentada por Santo Agostinho – visão também ela pessimista – à visão secularizada do pessimismo de um Freud ou de um Proust, não será difícil concluir que a capacidade de amor não é possuída por todos; o amor está entre os mais raros de todos os talentos. Ele é tão excepcional quanto a capacidade que tem um grande artista de deixar-se penetrar pelo mundo para recriá-lo através de sua arte.
O que a experiência cristã e os teóricos da visão de mundo secularizada nos ensinam a respeito do amor é que ele exige um longo e meticuloso trabalho e aprendizado. Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto.




(BAR)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

"Tem a cada dia diante dos olhos a morte, o exílio e tudo o que parece assustador, principalmente a morte: jamais terás então qualquer pensamento baixo ou qualquer desejo excessivo". (Epicteto)

                               


                                A caminho da morte
                                  Confrontos filosóficos



Neste texto, pretendo apresentar e discutir o problema da morte, tal como dele se ocuparam Max Scheler (1874-1928) e Martin Heidegger (1889-1974), procurando assinalar pontos de proximidade e distanciamento entre as reflexões desenvolvidas por estes dois filósofos. Na primeira parte do texto, elucido a perspectiva de Scheler, à qual se seguirá uma breve crítica. Na segunda parte, dou a saber o modo como Heidegger desenvolve o tema da morte, tarefa à qual se seguirá também uma breve crítica.


1. Quem foi Max Scheler

Max Scheler (1874-1928) foi um filósofo alemão, nascido em Munique, que se notabilizou por ter adaptado o método fenomenológico de Husserl ao tratamento de questões de ética, teoria dos valores e da cultura, e antropologia filosófica. Na fase inicial de sua obra, foi um pensador católico. Sua concepção de ética se desenvolveu em oposição ao formalismo da ética kantiana, que deveria ser superada por uma apreensão vivida dos valores éticos e também estéticos, calcada sobre a fenomenologia.
Scheler integra-se ao círculo de filósofos da vida cujo pensamento se desenvolveu em oposição a algumas correntes do pensamento científico, as quais professavam um mecanicismo e um finalismo levados ao extremo. Essas correntes concebem a morte como um acontecimento mais ou menos catastrófico, externo ao indivíduo e semelhante a um acidente mecânico e artificial.


1.2. A visão naturalista da morte

Scheler se distancia do idealismo alemão, segundo o qual a morte não afeta o ser humano. Ao contrário, sustentará Scheler que todo ser humano se caracteriza essencialmente por um esgotamento interno dos agentes vitais dos quais depende o desenvolvimento da espécie. Assim é que a morte, na visão de Scheler, é um fenômeno ligado à essência do ser vivo. Ela faz parte da forma e da estrutura de toda a vida. A vida não pode, portanto, ser pensada sem a morte. Creio ser possível depreender daí, com Scheler, que pensar sobre a morte é pensar a vida, em sua totalidade. Quem se ocupa de refletir sobre a morte está ocupado com a reflexão sobre a vida.
A tese basilar endossada por Scheler é a de que a existência humana é orientada para a morte. Nesse sentido, Scheler pavimenta o caminho que será trilhado pelo pensamento de Heidegger, para quem também a morte não acontece como um acidente ou uma catástrofe, contrariamente ao que pensavam Lévinas e Sartre. Tanto Scheler quanto Heidegger estarão de acordo no tocante ao fato de que a existência humana é orientada para a morte: “Tão logo um homem chega à vida, ele está já bastante velho para morrer” – lembrará Heidegger. Mas a aproximação entre os dois cessa por aqui. Scheler pensa a morte no domínio ôntico; ao passo que Heidegger a pensará no domínio ontológico. A diferença entre os métodos adotados levará esses dois filósofos a resultados distintos.
Scheler rejeita o método experimental do empirismo clássico em seu trabalho de investigação do fenômeno da morte. Sua reflexão tanatológica dispensa uma discussão sobre as teses cartesianas ou kantianas, bem como rejeita uma compreensão fisiológica e psicológica da relação entre corpo e alma.
Ao se ocupar da atitude do homem moderno – um tipo coletivo - em face da morte, Scheler nota que esse homem nega, na realidade, a “essência e o ser da morte”, na medida em que se esquiva da certeza intuitiva de sua morte, deixando de viver “na presença da morte”. A morte é um a priori de toda observação e experiência indutiva. Ela imiscui-se em cada fase do desenvolvimento da vida. Scheler, assumindo que a existência do ser vivo tem necessariamente um conteúdo limitado, manterá que é a experiência de esgotamento do futuro e do aumento do passado que constitui a experiência íntima de nossa orientação para a morte.
O homem moderno identifica-se, para Scheler, ao homem do ocidente europeu, que se habitou a afastar de sua consciência a morte, considerando-a apenas um fato que, um dia, lhe acontecerá.

1.2.1 O conhecimento intuitivo da mortalidade


Reza o senso comum que eu chego à certeza de “minha morte” futura com base na experiência empírica, fundada na observação, ela mesma calcada sobre processos indutivos pelos quais da morte dos outros concluo que eu também deverei morrer. Scheler rejeita resolutamente essa visão, lançando-se à empresa, como faria mais tarde Heidegger, que consiste em buscar uma razão pela qual um homem solitário, que nunca tivesse observado o acontecimento da morte de outros – entendida como a transformação de um ser humano em cadáver – chegaria à certeza de sua condição mortal.
Tomando-se para exemplo o eremita, como, pergunta Scheler, ele poderia alcançar aquela certeza? Num primeiro momento, sem ainda atingi-la, o eremita teria um pressentimento de seu fim se comparasse as diferentes fases de sua vida, assim como se levasse em consideração experiências tais como o envelhecimento, o sono e a doença.
Naturalmente, isso não bastaria para que o eremita concluísse pela certeza de sua mortalidade, mas tão-somente pela possibilidade de seu fim. Ora, como esse sujeito solitário pode ainda saber que a curva de suas experiências não se desenvolverá ilimitadamente? Ou seja, nada lhe garante ainda o conhecimento seguro de que não seja esse o caso. Afinal, a sua vida poderia se caracterizar por uma abertura para possibilidades infinitas.
Se, tomadas em conjunto, a observação da morte dos outros, as conclusões da indução, as lembranças do eremita quando ele compara as fases de sua vida, só podem levar à probabilidade, decerto elevada, mas não à certeza absoluta, da sua morte, resta a Scheler recorrer ao sentimento como meio para explicar como é possível a esse indivíduo solitário chegar à certeza de seu fim.
Mesmo que imaginássemos um ser humano que jamais apresentasse sinais de fraqueza, que não conhecesse cansaço e doença, ele poderia atingir a certeza de sua condição mortal pelo sentimento que ele tem de sua vida, segundo crê Scheler. O sentimento lhe dá a experiência vivenciada da estrutura de cada fase da vida. E é por essa experiência que ele alcançaria o conhecimento seguro de sua mortalidade.
Convém esclarecer esse ponto.
Segundo Scheler, a ideia de morte está entre os elementos constitutivos da consciência. Scheler assume aqui a tese de que a morte faz parte da essência da vida, da sua forma e estrutura. Segue-se daí que a morte já está fundamentalmente presente em cada fase da vida. Uma vez tenha limitado sua análise ao nível biológico, Scheler observa que a vida se apresenta de duas maneiras:

1) a vida é um grupo de fenômenos particulares de ordem morfológica e motora que se dá à percepção comum e sensível dos seres vivos;

2) a vida é um processo de uma consciência especial que se desenvolve com base no corpo.

Esse processo, num momento de seu curso, que é indivisível, apresenta uma forma própria que é idêntica em todos os seres vivos. O estudo dessa estrutura desindividualizada do ser vivo é que permite a experiência da morte, que está presente em cada fase da vida. É por esse estudo também que percebemos intuitivamente a essência da morte e, desse modo, chegamos à certeza da condição mortal do ser humano.
A morte se apresenta, portanto, para Scheler, como um a priori para toda observação e experiência indutiva do conteúdo variável de cada processo vital real. Mas essa percepção da morte não deve ser confundida com o sentimento de proximidade da morte ou o pressentimento do fim da existência, tampouco com o desejo de morrer ou o seu medo. Ela se situa num nível de ser mais profundo. Temos experiência da diminuição do passado e essa experiência, segundo advoga Scheler, é a experiência íntima de nossa orientação para a morte. A experiência da estrutura de um instante de vida alicerça a certeza de nossa condição mortal e revela a realidade da morte natural.


1.2.2.  A estrutura do processo vital

Cabe esclarecer de que modo, segundo Scheler, se atinge a certeza da morte pela experiência da estrutura do processo vital. A estrutura do processo vital num instante indivisível T se divide em três atos – que são distintos qualitativamente - , todos correlatos a esse instante: o presente, o passado e o futuro. Esses atos são imediatos de qualquer coisa. A cada ato se atribui uma extensão. A percepção se vincula ao presente; a lembrança se prende ao passado; e a expectativa se atrela ao futuro. Essas três extensões – percepção, lembrança e expectativa – se diferem das extensões mediatas cujos meios são o raciocínio e a reprodução. Scheler postula que a totalidade T vivida em cada instante se expande com o desenvolvimento do indivíduo.
Argumenta ainda o filósofo que a consciência do ser vivo percebe intuitivamente, num instante do processo vital, não só as três dimensões imediatas, mas também e principalmente a totalidade (T). Essa totalidade se divide novamente à medida que o processo vital progride objetivamente numa direção característica, a qual representa um fato específico da experiência vivida. O crescimento da extensão do conteúdo do passado, acompanhado da repercussão imediatamente experimentada desse mesmo passado, se dá concomitantemente com a redução da extensão do conteúdo do futuro imediato; também a ação que se antecipa para ele vai diminuindo.
Cumpre reter que o domínio do presente fica mais comprimido entre o passado, dilatado, e o futuro, encurtado. À proporção que a vida flui, tendo em conta todos os instantes vividos, diminuem as possibilidades de experiência na expectativa vital imediata. Na medida em que a totalidade é constante, sustenta Scheler que, aumentando o passado, tanto o presente quanto o futuro diminuem necessariamente.


1.3. Crítica à tanatologia de Scheler

Dentre as dificuldades suscitadas pelo modelo de análise tanatológico de Scheler, destaque-se como a principal o ter ignorado a importância da experiência ôntica da morte do outro como meio de possibilidade de atingir um conhecimento intuitivo da mortalidade.
Decerto, a morte é o limite natural do ser vivo, inclusive do ser humano. Ela participa de sua constituição biológica presente. Também está fora de questão o fato de que o ser vivo é projetado numa direção irreversível, que é a de seu termo: a morte.
Todavia, continua problemático ignorar que o ser humano só parece ter consciência de sua condição mortal, da inscrição da morte na estrutura da vida, pela experiência com a morte do outro.
Outro problema suscitado pela análise de Scheler consiste em não ter ele demonstrado que a temporalidade está delimitada por um passado e um futuro precisos. O homem não tem consciência, a priori, de que o campo de suas possibilidades diminui, de que a extensão de sua vida se encurta. Ora, sem se apoiar na experiência empírica com um cadáver e sem por indução concluir que essa condição é a sua, o sujeito humano está justificado na suposição de que sua projeção para o futuro é ilimitada.


2. Heidegger: a morte como minha possibilidade mais própria

Não há dúvida de que o ser-para-a-morte heideggeriano determinou o curso da filosofia ocidental no exame da morte. Heidegger separou, radicalmente, por princípio metodológico, a análise da morte da questão sobre uma possível imortalidade, a qual foi circunscrita ao domínio ôntico – domínio que colocou fora da alçada de sua perquirição. Ademais, Heidegger procurou ver a morte no interior da série de fenômenos da vida. Sua originalidade consistiu em desenvolver uma reflexão sobre a morte no nível ontológico, separado esmeradamente do nível ôntico no qual se situou a visão de seus predecessores Simmel e Scheler.
Para Heidegger, o propriamente morrer representa o Dasein na sua essência do “poder-ser”. A fim de que compreendamos esse momento do desenvolvimento do pensamento do filósofo de Fribourg, necessário será trazer à luz as categorias de fim, possibilidade e devir. Igualmente importante é ter em conta sua definição de morte como a possibilidade da impossibilidade de ser.
Começarei por apresentar a distinção por ele estabelecida entre os domínios ôntico e ontológico; passarei, em seguida, a considerar a sua afirmação, em consonância com Epicuro, segundo a qual é impossível experimentar a minha morte, entendida como “estado de morte”. Posteriormente, darei a saber como o filósofo de Fribourg procurou demonstrar não ser possível alcançar a noção exata de seu propriamente morrer pela análise da morte do outro. Em seguida, discuto a sua proposta para a aquisição da certeza da mortalidade, a qual se estriba no conceito de ser-para-a-morte.
Como o conceito de ser-para-a-morte repousa sobre a noção de temporalidade, entendida ontologicamente, outros conceitos recobertos por ela deverão ser contemplados, tais como o de poder-ser, possibilidade, ser-antes-de-si e ser-para-o-fim.
Por fim, esboço uma crítica ao projeto heideggeriano de fundar a certeza da morte unicamente em uma ontologia da temporalidade apartada completamente de uma perspectiva ôntica.

2.1. O retorno ao ser: a distinção entre o ôntico e o ontológico

Cuido lícito dizer que é extremamente difícil compreender o desenvolvimento da investigação teorética de Ser e Tempo, sem que compreendamos o princípio metodológico que a norteia. Tal princípio consiste na distinção entre os domínios ôntico e ontológico que se ilumina pela busca heideggeriana de fundamentar sua analítica existencial no domínio ontológico, para cuja tarefa ele apela a que seja retomada a questão central de toda a ontologia clássica, a saber, o significado do ser. Trata-se, segundo Heidegger, de um problema ainda não resolvido e que perpassou toda a filosofia grega. O primeiro passo dado por Heidegger foi revisitar a questão do ser na esteira da tradição platônico-aristotélica. Para os gregos, dirá Heidegger, o ser é presença. O ser é presença constante. Todavia, o que mais interessou a Heidegger foi o fato de os gregos terem assumido um horizonte temporal específico, a saber, o presente para, então, determinar o ser. O ser é determinado tendo como referência necessária o tempo.
Vou-me cingir a sublinhar este fato: ao propor um retorno ao ser, Heidegger revisita o pensamento original dos gregos. Destarte, busca pensar o ser sem o ente, e esse ser, que é impessoal, revela-se e se esconde em um acontecimento atemporal, ao qual o homem tem de submeter-se. O ser de Heidegger pode ser comparado ao apeíron de Anaximandro, indiferente às perguntas e às interrogações do homem.
Com vistas a esclarecer a distinção entre os níveis ôntico e ontológico, cumpre notar que Heidegger parte da diferenciação entre as ciências ônticas, como a biologia e a medicina, a antropologia e a história, cujo objeto é o ente particular regionalmente delimitado, um ente já dado antes mesmo que a ciência tenha lhe fixado o estatuto de objeto, e a ciência ontológica, a filosofia, ciência por excelência, que se caracteriza pela universalidade e radicalidade. Ela transcende a regionalidade das ciências ôniticas.
O objeto dessa ciência ontológica – a filosofia – é o ser enquanto fundamento dos entes e condição a priori de possibilidade de aparecimento dos entes. O ser não se apresenta como tal no mundo, mas determina o que aí aparece.
Heidegger instaura, assim, uma barreira intransponível entre os níveis ôntico e ontológico, ao mesmo tempo em que pretende que a ciência ontológica fundamente as ciências ônticas. Estas se ligam àquela, embora lhe sejam completamente distintas.


2.2. A impossibilidade de experimentar minha própria morte

No nível ontológico de sua análise, Heidegger identifica o propriamente morrer, parte integrante do poder-ser do Dasein. Esse propriamente morrer impregna o Dasein desde seu nascimento. No nível ôntico, que Heidegger não considerará, ele distingue entre dois tipos de fim, dos quais se ocupam as ciências ônticas: 1) o perecer, que é próprio do animal, dado que ele é incapaz de se interessar pela morte como tal, e 2) o falecimento, acontecimento pontual que Heidegger descreve como sendo intermediário entre o propriamente morrer e o perecer. O falecimento expressa a fase derradeira do Dasein; é o próprio Dasein enquanto o único ente capaz de ter acesso à morte como morte.
O Dasein só pode falecer na medida em que, ontologicamente, está morrendo. Com efeito, somente o Dasein – um ser-para-a-morte – está pronto para propriamente morrer. Somente ele pode falecer, portanto.
É necessário esclarecer que, consoante Heidegger, o Dasein não pode ser sua morte – quando por morte entendemos o estado de morte, o qual escapa a uma experiência possível por quem morre. Heidegger nega ser possível a quem morre a experiência de sua própria morte. O Dasein não sente esse deixar de ser. A morte, como estado de morte, não pode ser integrada à estrutura própria do Dasein. Somente o pode o propriamente morrer. O Dasein só experimenta a morte ontológica, que é o propriamente morrer. A esta altura, é urgente ter em conta a distinção entre o estado de morte e o propriamente morrer. O primeiro é inacessível ao Dasein e se situa no domínio ôntico; o segundo integra a estrutura do Dasein e se situa no domínio ontológico. Essa distinção se tornará mais clara ao longo desta exposição.
Em certa medida, Heidegger retoma a posição de Epicuro, para quem enquanto existimos, a morte não está; e quando ela estiver, nós já não estaremos mais. Em outras palavras, enquanto o Dasein existe, o estado de morte não se atualizou; quando ele se atualizar, o Dasein já não existirá. O estado em que se “encontra” o defunto é o de não-mais-ser, ou seja, o de destruição total e irreversível do indivíduo humano.
Tanto Epicuro quanto Heidegger situam a morte, entendida como estado de morte, exteriormente ao sujeito. O estado de morte é, deveras, cotejável com um encontro ao qual o Dasein não comparece. A presença de um significa necessariamente a ausência do outro. Se admitirmos, com Epicuro, que o estado de morte não faz parte da experiência do morto, segue-se daí que a morte significa o desaparecimento total e irreversível da pessoa, a volta ao vazio do Dasein. Ela é a impossibilidade possível da existência, a impossibilidade eterna dos meus projetos, da realização de minhas possibilidades.
A existência do Dasein é um acidente entre dois vazios representados pela concepção e pela morte. Ela parte do nada e se representa como objeto afetivo da angústia. O Dasein é atravessado por uma finitude original e radical. Ele é o ser-para-a-morte que tem seu fim inserido ontologicamente em sua própria estrutura.
Retomarei o conceito de ser-para-a-morte na próxima seção, já que ele ocupa um lugar de destaque na analítica existencial de Heidegger. Prosseguirei, por ora, apresentando o modo como Heidegger demonstra a impossibilidade de se experienciar o estado de morte a partir da experiência com a morte do outro.
Uma vez assegurada a certeza da impossibilidade de o defunto experienciar sua própria morte, Heidegger se debruçará sobre a questão de saber se essa experiência do estado de morte é possível por meio da experiência com a morte do outro.
Os que continuam a viver constatam, a respeito do estado de morte, em primeiro lugar, o acontecimento ôntico de morrer, o falecimento; em segundo lugar, a condição externa do cadáver que conserva sua aparência humana por algum tempo. O cadáver se faz presente sob a forma de representação corporal da pessoa que há pouco tempo estava viva. Por fim, constatam as consequências dessa morte sobre si mesmos e sobre a comunidade humana.
Heidegger observa que o cadáver, longe de constituir uma coisa material, ainda se encontra num estado que denomina de o ser-somente-ainda-ai. O defunto não é abandonado, mas, ao contrário, inspira preocupações dos vivos que o acompanham prestando-lhe homenagem nos cultos fúnebres.
Não obstante essas diversas experiências com a morte do outro, os que permanecem vivos não chegam a experienciar, deveras, o estado de morte em que se acha o defunto, tampouco experienciam a essência da transformação que ele sofreu tendo morrido. O sobrevivente-espectador não dispõe de meios de vivê-la internamente, não assume o ponto de vista do morto, já que permanece sempre exterior ao morto ou à morte do outro.
Os que ainda vivem só podem assistir o estado de morte. Esse estado se lhes afigura como uma perda justamente porque eles a experimentam como uma perda. Mas eles não experimentam, a rigor, o estado de morte que tornou uma pessoa antes viva um cadáver.
Em suma, os espectadores só têm acesso à morte do outro enquanto representação de uma perda que eles “sofreram”. Também o falecido não sofreu sua própria morte, no sentido de que quem morre, já que, por definição, não mais existe, não pode experienciar a própria morte. Heidegger não se preocupou em pensar sobre a perda existencial sofrida por aquele que sobrevive ao falecimento de um ente amado, tampouco levou em conta a importância do trabalho de luto. Claro parece que a morte de um ente querido pode provocar-nos – e com frequência nos provoca – um questionamento sobre nossa visão de mundo, um abalo existencial, tal como o sofrido pelo jovem Agostinho.
Quando consideramos um ato de amor e amizade que une duas pessoas, não nos é custoso compreender que para aquele que permanece vivo a morte é essencialmente uma perda do ser e da vida terrestre. O sobrevivente é levado, pela experiência diante do defunto, que se despediu definitivamente do mundo, a deduzir, por analogia, que chegará também o dia em que ele terá de se despedir da vida.
Heidegger mantém que o morrer ôntico (o falecimento) e o morrer ontológico (o propriamente morrer) são essencialmente meus, isto é, ninguém pode morrer a minha morte. Cumpre, em suma, sublinhar duas ideias caras à argumentação de Heidegger. A primeira consiste em insistir na impossibilidade de os que sobrevivem experienciar a morte dos outros. A segunda ideia é a de que a morte é a minha possibilidade mais própria e intransferível.
Ontologicamente, eu morro sempre só, mesmo que, onticamente, enquanto cadáver, eu esteja acompanhado de pessoas que choram por meu falecimento, que velam o meu corpo. É somente ao morrer que posso dizer absolutamente que “eu sou” (nesse sentido, Heidegger estabelece seu próprio cogito), visto que a morte é constitutiva da essência do Dasein. O caráter exclusivo da morte e sua intransferibilidade constituem a característica essencial da subjetividade.


2.3. O ser-para-a-morte

Vimos que Heidegger rejeita ser possível ter acesso à morte do outro, como também nega ser possível ao defunto a experiência de seu estado de morte. Não obstante, Heidegger persegue o problema que consiste em compreender a morte como tal. Importa-lhe, nesse sentido, compreender a totalidade do Dasein, articulando-a a sua imutável incompletude.
Para tanto, duas observações se impõem no caminho da reflexão heideggeriana. Primeiramente, não tendo mais nada em face de si, o Dasein é fundamentalmente aberto e incompleto, ou seja, aberto a possibilidades e definitivamente incapaz de experimentar a sua totalidade, a sua completude, o seu acabamento.
Heidegger se confronta com o problema da coexistência entre incompletude e totalidade; no entanto, não deixa de atacá-lo, para o que ele lança mão dos conceitos de ainda-não-ser e fim, sempre de um ponto de vista ontológico.
Convém lembrar alguns pontos dessa discussão. Heidegger está a empreender uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade (que supõe uma experiência interna do tempo). A morte ontológica é denominada por ele de o propriamente morrer. A questão que o ocupará, doravante, é a de determinar se uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade pode conduzir a uma fenomenologia da morte. Em outros termos, posso compreender a morte tal como é a partir do exame ontológico da estrutura do Dasein e da temporalidade?
O propriamente morrer é entendido tendo como referência a estrutura ontológica “projetiva” do Dasein. Isso significa dizer que o Dasein não é pura e simplesmente ser dado, ser no presente, mas é um existente (ele ek-siste) na medida em que se lança para a sua possibilidade, mantendo-se fora do domínio do “ente-aí-defronte”.
A categoria da possibilidade é ontologicamente constitutiva do Dasein. É ele “prioritariamente ser-possível”, sempre aberto para uma gama infinita de possibilidades de existir. Enquanto estiver existindo, o Dasein sempre terá diante de si a possibilidade de ser. Enquanto existir, ele agirá em conformidade com seu fim que é poder-ser – que expressa seu caráter antecipativo. O Dasein está sempre a caminho de suas possibilidades, está sempre encaminhando-se para o querer-ser propriamente, o poder-ser de si mesmo.
Ora, vê-se que essa característica projetiva do Dasein expressa seu ser como “possibilidade no porvir” . Ele deixa de ser no momento em que o por vir não vem de maneira radical. O futuro tem primazia sobre o presente e o passado, ou seja, a temporalidade se realiza originalmente a partir do futuro, “lugar” de possível atualização das possibilidades do Dasein.
Heidegger rejeita a concepção vulgar do tempo como retenção-protensão, que remonta a Husserl e também rechaça a posição de Agostinho, segundo a qual o presente é o domínio principal. Para Heidegger, é o futuro que é o sentido donde todos os existentes extraem sua origem. Assim, o Dasein é sempre antecipado em relação a si mesmo em seu ser. Ele é já sempre “além de si”. Ele se volta sempre para um poder-ser que é ele próprio. O poder-ser é a essência do Dasein.
Dado que é originariamente projeção para seu próprio poder-ser, sempre voltado para o porvir, o Dasein é fundamentalmente um ser-na-frente-de-si. Retome-se aqui a ideia de incompletude que atravessa a estrutura do Dasein. O Dasein é irremediavelmente incompleto, ou seja, ele se caracteriza por um estado de incompletude perpétua, porquanto seu poder-ser de ser si mesmo ainda não se “realizou”. O que é esse poder-ser de ser si mesmo não realizado? Heidegger argumenta que há um limite final, uma possibilidade última própria do Dasein, uma possibilidade de ser que ainda está por vir.
Com vistas a elucidar essa possibilidade última do poder-ser do Dasein, faz-se mister dar a conhecer as duas acepções em que Heidegger faz uso do vocábulo fim. Há duas maneiras de compreender o fim, segundo Heidegger. Quando referido ao Dasein, fim significa o fato de chegar realmente ao termo, ou seja, é ser-no-fim. Nesse sentido, o fim é o termo de processo de atualização de possibilidades. Segue-se daí que a morte, de um ponto de vista ôntico, é a conclusão do Dasein, é seu termo. É claro que a experiência cotidiana patenteia, com muita frequência, que a morte surpreende o ser humano privando-o de suas possibilidades futuras, de seus projetos promissores. Está fora de dúvida que a morte nem sempre ocorre como o estágio final de uma série de possibilidades realizadas. Dizemos de alguém que morreu na flor da idade que foi privado de realizar seus projetos. O fim do Dasein não coincide, portanto, necessariamente, com a sua conclusão.
Por outro lado, não há dúvida de que o fim é uma relação com o termo: o ser-para-o-fim. O não-ainda do fim não é a antecipação de uma completude futura, nem é alguma coisa a ser realizada no porvir. O não-ainda-ser não é exterior ao ser, mas pertence formalmente ao presente porque é um elemento constitutivo do Dasein, que é sempre-já-seu-não-ainda. Seu poder-ser constitui a essência do Dasein; na medida em que existe, o Dasein deve “não-ser-sempre-ainda uma coisa”. É porque ele é que ele é seu não-ainda, que é sua morte, no sentido de que ele é um ser-para-o-fim.
A morte se enxerta nessa tensão própria do Dasein para seu fim. O fim próprio do Dasein não é exterior a ele e não se dá num futuro distante, mas é inerente a seu ser. O Dasein “já é seu fim”, ou seja, sua morte.
Para Heidegger, o Dasein jamais atinge sua completude; no entanto, se dirige para a realização dela até que a morte lhe venha interromper o movimento projetivo de totalização. O poder-ser íntimo do Dasein, sua morte, é intangível. O Dasein existe enquanto ser que se projeta para seu fim. O propriamente morrer é expressão de uma relação do Dasein com seu fim necessário que o impregna a partir do momento em que aparece na mundanidade. Daí a fórmula referida por Heidegger, já apresentada no limiar desta exposição – “Tão logo um homem chega à vida ele já está velho bastante para morrer”. A morte pertence ao Dasein por excelência – repitamos: é sua possibilidade mais própria.
Heidegger fundamenta o solipsismo existencial, o princípio de individuação do Dasein, no “estou morrendo”, ou no “estou destinado a morrer”, o qual dá sentido ao “eu sou”. O propriamente morrer é objeto de uma certeza absoluta e serve de fundamento para as outras certezas. O Dasein é sua morte, visto que é propriamente morrer que torna possível o “eu sou” (cogito heideggeriano: ‘morro, logo sou’).
A possibilidade da impossibilidade de ser constitui a estrutura do Dasein, o fundamento de seu ser. O propriamente morrer precede o sou e lhe confere sentido. O ser do Dasein é o ser-possível orientado para o extremamente possível que é a morte.
A certeza absoluta do propriamente morrer, que Heidegger demonstra ser independente das experiências ônticas, está fundamentada numa ontologia da temporalidade, a qual recobre as categorias de possibilidade, porvir  e de fim. Essa certeza se acompanha, todavia, da incerteza sobre o momento do falecimento, que escapa a toda determinação. Destarte, a morte é o que há de mais certo e, ao mesmo tempo, indeterminado.
A noção de possibilidade – cumpre esclarecer – define o propriamente morrer, uma dentre as possibilidades de ser do Dasein. O propriamente morrer é a possibilidade pura e simples impossibilidade. Mas essa possibilidade, que deve ser entendida no nível estritamente ontológico, jamais pode ser atualizada, não se realiza. Ela exprime o fato ontológico de o Dasein tender para a realização de sua completude, sem que jamais chegue a atingi-la porque destinado a morrer. Não obstante, essa possibilidade se expressa como movimento de relação com a possibilidade extrema da morte. O ser para a morte caracteriza o Dasein enquanto ser que se projeta para seu fim. O fim inerente ao ser-antes-de-si se depreende de sua própria finitude. Esse fim é sua morte, a qual nega todos os possíveis.
O Dasein é, em sua essência, um ser-para-a-morte, o que faz da morte uma possibilidade certa e uma impossibilidade possível devido à indeterminação que caracteriza o momento do falecimento, cuja vinda é factual.
É forçoso protelar para outra ocasião o tratamento da questão que Heidegger define como atitude de antecipação da morte, que nada tem que ver com a realização concreta da morte. Circunscrevo-me a notar que essa atitude de antecipação da morte torna possível vivenciar a angústia em si como angústia em face do vazio.


2.4. Crítica à tanatologia de Heidegger

Sem visar à exaustão – na verdade, sendo bastante esquemático -, é preciso fazer  ver que constitui um problema no estudo sobre a morte levado a efeito por Heidegger o ter rejeitado que a experiência com a morte do outro, mormente se ele é um ente querido, torna claro o fim do ser-antes-de-si, o meu propriamente morrer.
Da tensão do Dasein para o porvir não se segue, logicamente, a conclusão de que sua existência supõe um fim. O fim não está contido ontologicamente no ainda-não-ser, nem no ser-antes-de-si. Parece razoável que não se pode conceber a condição do ser-para-a-morte com base exclusivamente na condição de ser um possível orientado para o futuro.
Novamente, o ter negligenciado a experiência com a morte do outro como meio pelo qual chego à compreensão de mim enquanto ser-para-morte é uma lacuna não contornável pela alegação da abertura fundamental do ser-antes-de-si. Seu futuro não está limitado de modo essencial.