sábado, 28 de dezembro de 2013

"Todo pensamento é pensamento compartilhado. O outro está sempre suposto no próprio movimento do pensar" (BAR)

                               
                                   





                  Um intróito de filosofia vespertina

É na leitura que se fazem sentir estes pensamentos, aos quais, aqui, dou materialidade verbal. Sem delongas, cito, pois, Sponville antes de mais nada (e que não me apareça por aqui algum sabedor integrante da patrulha linguístico-normativista para condenar-me o uso dessa expressão que destaco, propositalmente, em itálico) : “filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”1.
Esse enunciado de Sponville diz-nos duas coisas: 1) que filosofar é ir além do que já conhecemos, ir além do conhecimento comum e estabelecido; 2) que filosofar, enquanto atividade de reflexão radical, é ir além de toda forma de conhecimento possível; nesse sentido, é fazer metafísica; é também, portanto, pensar o que está além da extensão de nossas capacidades cognitivas (ou se preferir, para dizer à moda kantiana, dos limites da razão). Um bom exemplo de domínio sobre o qual o pensamento filosófico se debruça é a Existência (com maiúscula para significar o fato mesmo da presença irrecusável do SER). Para ser mais claro, Existência, com maiúscula, deve sugerir que se trata de uma dimensão temporal situada entre dois nadas e relativa à qual supomos haver um fundo imperscrutável  onde, para alguns dentre nós, residiria o sentido último, absoluto e transcendente, ou onde, para outros dentre nós, residiria a ausência de sentido, o Nada, cujas feições se manifestam no interior da própria existência na forma da categoria do absurdo. Kierkegaard negava que a existência pudesse ser objeto para o pensamento; e, embora eu não esteja interessado em me alongar sobre o como Kierkegaard pensava a existência, preciso notar que ela é, para ele, a origem a partir da qual cada um de nós pensa e age. Para o homem, existir não é ser ou ter uma existência empírica e imediata. Para o homem, existir é uma tarefa, uma exigência, qual seja, a do devir, a do edificar-se. Você poderá encontrar o desenvolvimento destas ideias em outro texto que se encontra neste blog e no qual discorri sobre o conceito de angústia em Kierkegaard e Sartre. Por isso, escusa retomá-las aqui. Vale dizer, por ora, que a Existência excede, portanto, as possibilidades do próprio pensamento, enquanto atividade do espírito, o que não nos desobriga, por isso, de pensá-la.
Não quero correr o risco de dirigir meus pensamentos para muito longe dos caminhos previstos para eles. Por conseguinte, retorno à definição de Sponville. Tenhamo-la em conta. Pensei, então, que seria oportuno ilustrar a definição de filosofia aduzida por Sponville, tomando-se, para tanto, o significado da expressão sintagmática a existência de Deus. Quiçá, essa breve ensaio seja interessante também aos que apreciam dar seus testemunhos de fé (crença) em (na existência de) Deus; em todo caso, certamente, interessará a você e a todos que, como nós, apreciam o exercício do pensar livre, o ocupar-se da ginástica do pensamento, sem, todavia, recear a possibilidade do equívoco ou o próprio equívoco como possibilidade que nos incita a ir adiante, a repensar o nauseantemente dito, a reelaborar o já elaborado e cristalizado. Por isso também a filosofia é uma atividade discursiva sempre em abertura: não só porque supõe o incessante movimento de retomada das questões, do repropor do pensar que não cessa de elaborá-las, de reelaborá-las, de dar-lhes múltiplos caminhos, diversas dimensões, outros sentidos (é já lugar-comum para os iniciados na seara filosófica que as questões importam mais que as respostas, que a forma como elaboramos as questões é decisiva na busca pelas respostas (quando há) que elas reclamam), mas também porque tem em seu horizonte a possibilidade mesma do equívoco que, antes de refrear aquele movimento, dá-lhe mais força e ambição.
É Kierkegaard, de cujo pensamento andei ocupado recentemente, que nos põe em face do movimento dos sentidos, da própria realidade pluridirecional que lhes é constitutiva, quando usa a expressão existência de Deus. Quando nos perguntamos sobre que sentido tem essa expressão na filosofia de Kierkegaard, somos levados também a nos perguntar se faz algum sentido, tendo em conta o senso-comum, falar em existência de Deus. O que queremos dizer com o sintagma existência de Deus; por exemplo, quando o encontramos num enunciado como “Meu amigo crer na existência de Deus”? Reportemo-nos a Kierkegaard. Alguns intérpretes seus pensam que, ao usar a palavra existência em a existência de Deus, Kierkegaard se referiu à realidade eterna de Deus. É este o sentido pretendido por Kierkegaard: assumir a existência de Deus é o mesmo que admitir que Deus é dotado de uma realidade eterna. Para Kierkegaard, seria, então, uma blasfêmia tanto pretender provar a existência de Deus quanto negá-la.
Em contrapartida, intérpretes há que lançam um outro olhar sobre aquela expressão em Kierkegaard. Para estes, Kierkegaard entende por existência a maneira de ser do próprio homem; portanto, finita e temporal, submetida essencialmente ao devir. Ora, Deus, à luz da teologia cristã, não é finito, tampouco está sujeito ao devir, porque é imutável e intemporal (tempo e mudança se implicam: o tempo supõe mudança e a mudança só existe no tempo). Para esses intérpretes, Kierkegaard não  estaria senão expressando o mais absoluto fideísmo (sistema de pensamento que dá proeminência à fé em detrimento da razão). Esse fideísmo é suposto no próprio sentido da palavra existência em a existência de Deus construído pela interpretação à luz da qual Kierkegaard teria pretendido referir-se à realidade eterna de Deus. Não é difícil inferir o fideísmo kierkegaardiano: uma vez que Kierkegaard pense a existência de Deus na acepção de realidade eterna de Deus, segue-se daí que essa realidade eterna não pode ser acessível à razão humana, visto que ela só existe no tempo e visto que Deus, como tal, não se presta a ser um objeto para ela. A razão não pode pensá-lo porque ela é de natureza temporal e limitada. Somente pela fé se pode relacionar-se com Deus.
Se, como interpretam alguns estudiosos, Kierkegaard entende a existência como o  modo de ser do homem (chamado o existente), um modo marcado pela temporalidade e finitude, segue-se daí que a existência é uma categoria que não se aplica a Deus, porque ela envolve o tempo, a finitude e o devir. A conclusão que se nos impõe, logicamente, é a de que Deus não existe, se o consideramos em seu modo eterno de ser. Para os intérpretes que conscientemente ou não autorizam essa conclusão, Kierkegaard estava referindo-se ao fato paradoxal da Encarnação, ou seja, do mistério de Deus que se fez homem na pessoa de Cristo, o que equivale a dizer que, passando a viver entre os homens, se deixou submeter-se ao devir. Assim, a expressão a existência de Deus significaria, para Kierkegaard, o acontecimento – escândalo para os judeus! – e não menos, ao que parece, tormentoso para o próprio Kierkegaard – da encarnação de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
A que nos conduzem essas despretensiosas meditações incipientes? Que sentido se pode atribuir à expressão existência de Deus? Ou melhor: faz algum sentido, de um ponto de vista estritamente lógico-semântico, falar em existência de Deus? Perceba que não está em questão a possibilidade de Deus existir ou não. Novamente, estamos nos situando no domínio lógico-semântico, o que nos conduz a levar em conta o significado da palavra existência, tal como procurei enfocá-lo nesse texto, à luz da contribuição de Kierkegaard e de seus intérpretes.
Acredito que, se acompanharmos rigorosamente Kierkegaard, dois caminhos de compreensão se nos abrem: 1) ou Deus existe enquanto realidade eterna inacessível à razão – e, nesse caso, a existência de Deus é de ordem diferente da existência humana (Deus é o ser cuja essência (inacessível a nós, seres racionalmente limitados e finitos) encerra a existência, e essa existência não é de ordem temporal (o que seria então?)); 2) ou Deus não existe, embora tenha existido quando se fez carne em Cristo e se submeteu ao devir.  1) nos leva a concluir, com Kierkegaard, que não devemos tentar provar a existência de Deus (se o fizermos, seremos blasfemadores); mas também que não podemos tentar fazê-lo porque Deus não se dá a conhecer pela razão. Todo esforço de uma “teologia racionalista” é inútil e incorre em blasfêmia. 2), por outro lado, nos conduz à conclusão de que Deus não existe, tal como dizemos de nós que existimos. Ele não existe porque não é finito, porque não está no tempo, porque é imutável.
Fica, pois, evidente a problemática em que nos envolvemos quando nos debruçamos sobre o significado da expressão a existência de Deus; ou melhor, quando levamos em conta seriamente o que se quer dizer com o enunciado “Deus existe”. Novamente, lembro que não está em pauta aqui qualquer tentativa de provar a existência de Deus ou de rejeitá-la como projeção da fantasia humana. Trata-se, na verdade, de saber se essa expressão tem algum sentido.
Concluo com o que lhe disse, certa feita, sobre o fato de ser parte importante do trabalho da filosofia o cuidado com a definição dos conceitos, dos significados das palavras – cuidado, em última análise, com a forma como as empregamos, com os sentidos que lhes atribuímos. Em grande medida – penso eu -, a filosofia é um exercício de exploração semântica das possibilidades de verbalização (não de uma verbalização vazia, despropositada; mas de uma verbalização que supõe o mundo, o homem, a existência mesma como questão). Nesse exercício, a preocupação com a exatidão na constituição da estruturação semântica do discurso, a preocupação com a extensão (classe de entidades a que uma palavra se aplica) e a intensão (conjunto de propriedades que determinam a aplicabilidade de um termo), tomadas como propriedades semânticas das palavras, é uma instância fundamental do próprio trabalho de filosofar, cujo objetivo é tornar possível o conhecimento da verdade (todavia, temporal ou temporária, como nós).

(BAR)




1. COMTE-SPONVILLE, André. A filosofia. Ed.: Martins Fontes, São Paulo, 2005, p. 20.


                                

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"O homem deve ser inventado a cada dia". (Sartre) "Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se." (Kierkegaard)

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                                         Filosofia em foco

                      A existência angustiante
                             Uma leitura de Kierkegaard e Sartre


Este texto se destina a mostrar de que modo dois grandes representantes da corrente de estudos filosóficos, conhecida na tradição pelo nome de existencialismo - corrente filosófica cujo objeto é o homem concreto no mundo, o homem como ser que precisa fazer-se a si mesmo enquanto ser livre e ser para quem sua existência se lhe apresenta como um problema-, pensaram o conceito de angústia. Esses dois representantes são Sören A. Kierkegaard (1813-1855) e Jean Paul Sartre (1905-1980). Embora Sartre tenha uma grande dívida para com Kierkegaard, sua filosofia opõe-se à filosofia deste, relativamente a um pressuposto básico sobre o qual a sua (de Sartre) se erigiu e a partir do qual se desenvolveu: a inexistência de Deus. Enquanto Kierkegaard se ocupou da existência do homem tendo como ponto de referência a relação do indivíduo com Deus, Sartre pensa-a como um acontecimento contingente, e não algo em cuja origem se encontra uma Providência. É no confronto de duas filosofias, assentadas em pressupostos opostos, ou seja, uma de orientação cristã e outra de orientação ateísta, que buscarei iluminar o modo como os dois filósofos compreenderam a experiência da angústia como uma dimensão estruturadora da existência humana.
Ainda que haja pontos de contato entre os dois pensamentos, especialmente no que tange ao tema da angústia, o modo de enfocá-lo e as consequências que o enfoque de cada um carreia são diferentes. Trataremos, portanto, de pontuá-las. Também tenho em vista assinalar os pontos em que os dois filósofos se encontram e os pontos em que eles se distanciam, no que tange à visão deles sobre o que é o homem.
Antes de expor, em pormenores, como ambos os filósofos pensaram a angústia – tema central deste texto -, precisarei lançar um olhar geral sobre o empreendimento filosófico desses dois pensadores, destacando temas que se relacionam intimamente à questão da angústia.
Para os meus propósitos, em cuja extensão não está prevista uma dissertação sobre o existencialismo como tal, basta assinalar que essa corrente de estudos filosóficos busca pensar o indivíduo concreto, tendo em conta sua existência cotidiana. Um postulado central do existencialismo é formalizado pela frase a existência precede a essência. Com ela, quer-se dizer que não existe uma natureza humana, que não é possível definir o homem anteriormente ou previamente ao ato de existir. Ela significa que o homem, enquanto projeto, primeiro existe para então, exercendo sua liberdade absoluta, realizar-se, escolher quem quer ser; em uma palavra, definir-se. Essa frase nega que haja uma essência precedente, que determinaria aquilo que cada indivíduo vai ser ou deve ser. É necessário, portanto, reter esse postulado, ao qual retornarei, mais adiante, ao me ocupar com o pensamento de Sartre, a fim de que o leitor compreenda bem em que bases se sustenta o desenvolvimento do pensamento existencialista, nas suas diversas vertentes. Quem quer que se alinhe com a perspectiva existencialista não poderá rejeitar o postulado segundo o qual no homem a existência precede a essência.
Começarei por considerar o pensamento de Sartre, por se tratar de um pensador que marcou indelevelmente o nosso tempo. Sartre está mais próximo de nós do que Kierkegaard. A opção por começar por Sartre não pode fazer esquecer ao leitor a precedência de Kierkegaard. A filosofia de Sartre inspirou-se, em parte, no pensamento de Kierkegaard. Sartre tem uma dívida para com Kierkegaard (e, certamente, para com Heidegger).

1. Sartre: no homem, a existência precede a essência

Sartre (1905-1980) foi um filósofo bastante atuante na França do pós-guerra. Considerado o principal divulgador e um dos grandes nomes do existencialismo, Sartre tem uma grande dívida para com Kierkegaard e Heidegger. Sua mais importante obra é O Ser e o Nada.
Sartre levou a sério a tese central do existencialismo – a existência precede a essência -, de tal modo que é difícil dissociá-la de sua filosofia, ainda que, tal como está formalizada, constitua ela a expressão de uma releitura que ele, Sartre, fez de Heidegger. Sem me estender sobre o problema de saber se Sartre foi fiel à letra de Heidegger, nesse tocante, o fato é que essa tese tem uma importância inegável na estruturação de sua doutrina filosófica. Com base nessa tese, Sartre argumentou que o homem não é predeterminado por alguma essência, que sua existência é marcada fundamentalmente pela liberdade: primeiro o homem existe, se encontra no mundo, para só depois definir um sentido ou uma essência para a sua vida.
A referida tese deve ser compreendida relativamente à afirmação da absoluta liberdade do homem. Como ser totalmente livre, é o homem, enquanto indivíduo concreto existente no mundo, que escolhe quem quer ser. É preciso, aqui, assinalar a importância que tem o pressuposto ateísta em que se erige e a partir do qual se desenvolve o pensamento sartreano. Como não exista Deus, isto é, como não exista um projetista que determine previamente um sentido, uma meta ou plano para a existência do homem, argumentará Sartre que cabe ao indivíduo e apenas a ele escolher as formas de viver que pensa ele serem mais adequadas ou as melhores.
Se o pressuposto da inexistência de Deus, em que se apoia a filosofia de Sartre, se alinha adequadamente com a proposição segundo a qual não há uma essência humana prévia que faça de cada indivíduo o que é ou deve ser, não se segue daí que Sartre estivesse mais preocupado em provar o seu postulado existencial (a existência precede a essência) com base em seu ateísmo. Na verdade, sua maior preocupação residia em argumentar que, mesmo admitindo-se a crença em Deus, essa crença resultaria sempre de uma escolha pessoal, de modo que a crença em qualquer divindade não pode ser imposta a ninguém. É sempre o indivíduo que tem de escolher entre crer ou não crer num deus ou nas visões miraculosas de um profeta.
Novamente, reportando-nos à tese existencialista que está no cerne, especialmente, da filosofia de Sartre, compreende-se bem por que Sartre afirma ser absoluta a liberdade do homem. Sartre não nega que o homem a exerça em certas condições sociais, não nega que escolhemos tendo em conta certas circunstâncias, certo conjunto de condições; mas nega que haja determinismo de alguma espécie. O homem goza de liberdade absoluta porque não possui uma essência que o determina, porque “o destino do homem encontra-se dentro dele mesmo”. Estamos condenados a sermos livres: não nos é possível não escolher, pois não escolher é também uma escolha.
Vale insistir em que, ao sustentar que no homem a existência precede a essência, Sartre quer-nos fazer ver que os entes humanos não são dotados de alma, natureza ou essência que os façam ser o que são. Assim também, afirmar a absolutidade da liberdade humana não é, de modo algum, ignorar as condições em que essa liberdade é exercida. Por isso, Sartre fala em facticidade. Evidentemente, o ente humano é um ser que se acha no mundo, que precisa exercer sua liberdade nesse mundo. Mas ao chegar ao mundo, esse ser encontra certas condições que preexistem a seu nascimento. A facticidade é, portanto, não só nosso passado, mas também nossas condições biológicas, sociais, etc. Ela compreende o fato de nascermos numa dada sociedade, de possuirmos certos atributos físicos, de falarmos um idioma, e nos encontrarmos em situações sociais que não escolhemos totalmente. Não obstante, para Sartre, a existência humana é capaz de transcender sempre esse domínio do imediatamente dado, movendo-se, portanto, para além dele, negando-o.
Vamo-nos concentrar, agora, visto que é urgente fazê-lo, na questão da liberdade, em Sartre. Para Sartre, tanto quanto para Kierkegaard, o homem é um ente livre. Eis aqui um ponto de contato entre os dois pensadores, a cujo desenvolvimento me deterei mais adiante. Por ora, convém notar o radicalismo com que Sartre trata da questão da liberdade, ao enfocá-la como a essência da condição humana. Esse radicalismo é entrevisto no exemplo que ele fornece de um homem que esteja encarcerado. Mesmo nessa condição, é ele quem escolhe entre a resignação e o desafio, ou seja, é ele quem escolhe entre permanecer como prisioneiro ou agir para alcançar sua libertação. As consequências de sua escolha não o eximem de fazê-la. É claro – e este ponto é importante – que a liberdade absoluta ou radical se acompanha da responsabilidade total. Somos sempre responsáveis por tudo o que fazemos. Não há lugar para desculpas. Não podemos dar desculpas ou responsabilizar um ser divino ou nossa facticidade por nossas ações e as consequências que elas carreiam. Se o fizermos, incorreremos no que Sartre chama de má-fé. Ser livre é ser responsável: a absolutidade da liberdade implica a absolutidade da responsabilidade. Veremos que a consciência dessa relação necessária entre liberdade e responsabilidade é fonte de angústia. Mas, antes de trazer à cena a questão da angústia, precisamos desenvolver um pouco mais a relação entre liberdade e responsabilidade.
Em O Existencialismo é um humanismo (2010), observa Sartre acerca da responsabilidade o seguinte:

“(...) A primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência. E quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que ele é responsável estritamente por sua individualidade, mas que é responsável por todos os homens” (grifo meu).


Nesse passo, Sartre argumenta que, ao fazer uma escolha por conta própria, um indivíduo também escolhe por todos os outros indivíduos. Quando, em sua escolha, esse indivíduo inventa o homem que quer ser, ele cria, ao mesmo tempo, uma imagem do homem que cuida ele deve ser. Essa imagem deve ser extensiva a todos e deve valer para toda uma época.
Como o homem é um projeto, como nada predetermina aquilo que ele é ou deve ser, a responsabilidade é consequência dessa liberdade que tem o homem de definir o significado de sua própria vida. Naquela mesma obra, Sartre nota a extensão de nossa responsabilidade:

“Se a existência, além do mais, precede a essência, e nós queremos existir ao mesmo tempo em que moldamos nossa imagem, tal imagem é válida para todos e para nossa época inteira”.
(p. 27)


O homem, como “ser condenado a ser livre”, não tem escolha senão assumir essa condição. No existencialismo, o homem é sempre considerado um ser em situação e é em situação que ele precisa construir o sentido de sua existência. Necessário é insistir em que, não obstante Sartre afirmar ser todo indivíduo, no momento em que tem de escolher, responsável por toda a humanidade, não ignora o fato de que ninguém pode ter controle absoluto sobre a situação em que se encontra. Sartre reconhece que há outros indivíduos além de nós e que, embora sejamos livres, numa dada situação, não podemos simplesmente determiná-la.

1.2. A angústia e a inescapabilidade à liberdade

Doravante, vou-me deter a mostrar como a experiência de angústia é definida e explicada por Sartre. Começarei, pois, apresentando a definição de angústia proposta por Sartre. Sartre a entende como um tipo de apreensão fenomenológica da liberdade absoluta a que o homem está condenado. Na angústia, é a liberdade que se apresenta, em seu próprio ser, como uma questão para si mesma.
Sartre – e, nesse tocante, Kierkegaard e Heidegger estão de acordo – diferencia a angústia do medo. Enquanto o medo supõe um objeto externo que o provoca, a angústia não tem objeto externo. Mais precisamente, a angústia põe diante de si mesmo o indivíduo; ele sente angústia em face da representação do modo como poderia agir numa ou responder a uma situação ameaçadora. A angústia pressupõe uma apreensão reflexiva sobre o eu e sobre nossa liberdade para responder a uma situação-limite de modos vários. Sartre ilustra a compreensão que tem de angústia com a imagem de alguém que, caminhando junto a um precipício experiencia a possibilidade de pular no abismo. É justamente na consciência de sua liberdade para saltar no abismo que reside a angústia.
Duas são as fontes de angústia que já se podem discriminar, tendo em vista as considerações feitas até aqui. Para Sartre, a angústia pode manifestar-se no reconhecimento de nossa liberdade total e também na consciência da responsabilidade que temos de assumir por força dessa condição. Assim, sentimos angústia ao reconhecer que somos totalmente livres, que nada determina o que somos ou como devemos agir e também a sentimos ao tomarmos consciência de que somos responsáveis por nossas ações. A angústia emerge ou resulta da consciência de que nada pode impelir-nos a ser ou fazer alguma coisa. Nossos sucessos e fracassos na vida são produtos de nossas escolhas e somos por eles responsáveis.
Tanto Kierkegaard quanto Sartre veem a angústia como um componente fundamental da existência humana. A angústia é consequência dessa necessidade humana de construir um sentido para a existência – uma existência – vale lembrar -  que carece de um fundamento transcendente (pelo menos, é esta a visão de Sartre) e que, por isso, não pode renunciar à busca pela construção de um significado.

1.3. O nada da consciência e a angústia

Antes de levar a cabo esta seção, é preciso elucidar o problema da consciência, em Sartre, e o modo como esse problema se articula à questão da angústia.
Vamos começar notando que, acerca do ser, Sartre limita-se a dizer que é. Para Sartre, o ser é o que é, e nada mais. O ser é pleno, total, perfeito, ilimitado, nada pode perturbá-lo, porque ele não tem nenhuma consciência de si mesmo; ele é pura e simplesmente. Relativamente à consciência, o ser é o objeto, é tudo aquilo do qual temos consciência. Dessa concepção de ser segue-se que a consciência precisa do objeto para ser, já que a consciência é nada. Diremos melhor: ela é nada sem o objeto para o qual ela se dirige. O sujeito não é nada, para Sartre.
Como a consciência só existe na sua relação intencional (aqui fica clara a influência da fenomenologia no pensamento de Sartre) com o objeto que não é ela mesma, segue-se daí que o fundamento da consciência é o nada. A consciência se define pelo princípio da contradição: ela é aquilo que não é e não é o que é. Isto é, ela é consciência de outra coisa, mas ela nunca se identifica com o objeto do qual ela é consciência.
O ser, na medida em que é perfeito, fechado em si mesmo, é chamado por Sartre de em-si. A consciência é o para-si.  O para-si é responsável, em seu ser, pela relação com o em-si. Ele se produz sobre o fundamento de uma relação com o em-si. Convém dizer o seguinte sobre o para-si. Embora envolva auto-reflexão, o para-si compreende toda a consciência. O ser do para-si é a liberdade, pela qual ele nega o em-si. Também não devemos pensar o para-si como um ente real, embora exista na medida em que sabe o que não é. A consciência diante de uma cadeira sabe que não é este objeto que ela postula. O para-si é consciência livre e transcendente, porque nega tanto nossa facticidade quanto os objetos.
Antes de me estender um pouco mais sobre o modo de ser da consciência, cabe notar como Sartre entende o Nada. Em Sartre, o nada tem estatuto ontológico; ele é parte da estrutura ontológica do nosso mundo. Nesse sentido, Sartre se distancia de uma longa tradição filosófica, que via o nada como o não-ser. Para Sartre, o nada não é o não-ser, não exclui o ser, não é ausência de ser. O nada, na perspectiva de Sartre, integra a relação entre o homem e o mundo. É através do para-si (a consciência) que o Nada irrompe no mundo. O ser e o nada são, pois, duas categorias ontológicas fundamentais. Dualista ou não, Sartre afirma que o nada é uma interrupção dentro do próprio ser ou, dizendo poeticamente, o nada emerge do ventre do próprio ser.
Volvendo à questão da consciência. Um retorno a Descartes permite a Sartre estabelecer uma distinção entre o cogito pré-reflexivo e o cogito reflexivo. A afirmação de que a existência precede a essência implica, entre outras coisas, a inexistência de um “eu”, com o qual experienciamos o mundo. Vale enfatizar este ponto: Sartre nega que exista um “eu” que se identifique com a consciência. O modo original da consciência é o que Sartre chama de cogito pré-reflexivo, graças ao qual experienciamos o mundo e de cujo domínio está excluída uma concepção do “ego”.
O segundo modo da consciência é o cogito reflexivo, que supõe um “eu” que reflete sobre experiências passadas. Esse “eu” se encarrega por unificar essas experiências, dotando-lhes de um sentido.
Sucede, contudo, que o “eu”, para Sartre, não seria mais do que um feixe de percepções; ademais, o filósofo sustenta que nosso modo original de perceber o mundo, de nele existir não envolve a existência de um “eu”. Segundo Sartre, nós olhamos o mundo como olhamos a paisagem através de uma janela, sem que, nesse ato, tenhamos uma experiência fenomenológica de nossa própria individualidade. Tampouco apreendemos a nós mesmos como sujeitos cuja unidade perduraria. Por outro lado, quando trazemos à memória eventos vividos, como se olhássemos pela janela, em retrospecto, conferimos a nós um “eu”, no momento em que atribuímos uma unidade à sequência temporal. Nesse momento, estamos em face do modo chamado cogito reflexivo.
Da concepção sartreana de consciência, deve-se reter o seguinte:

a) A consciência é posicionalmente consciente do objeto da qual ela é consciência. A consciência é sempre consciência de alguma coisa; e também é consciência que assume uma conduta em relação a essa coisa;

b) A consciência é não posicionalmente consciente de si mesma enquanto consciência, ou seja, ela está indiretamente consciente de que não é o objeto que está visando.

Como não há um conteúdo real para a consciência, como não há um eu que está em relação consciente com o objeto que visa, Sartre conclui que o fundamento da consciência é o nada. A consciência, para Sartre, é fundamental e ontologicamente um não-ser em relação ao ser.
Como o fundamento da consciência é o nada, nenhum ser pode assumir o estatuto de princípio de explicação do comportamento humano. Não há nenhum tipo de essência, quer divina, quer biológica, quer psicológica, quer social, que anteceda e determine nossas ações. Sartre não hesitará em concluir que o homem é tão somente o conjunto de seus atos. A liberdade é o único fundamento dos valores e nada justifica a adoção de tal ou qual valor.
O homem é o ser pelo qual os valores existem e, como tal, ele é injustificável. A angústia também faz morada nessa liberdade que experimenta o homem de ser o fundamento sem fundamento (sem essência, natureza, etc) dos valores.
O nada da consciência é o fato de não haver um conteúdo real para essa consciência. Não há – insisto – um eu que esteja numa relação consciente com o objeto. Essa inexistência de um eu, de uma essência ou natureza é o que torna a existência humana condenada a ser livre.

1.4. A angústia diante do passado e do futuro

Sartre observa que podemos experimentar angústia quando da própria emergência da possibilidade de uma ação realizar-se no futuro, sem que nenhum impedimento suprima essa possibilidade. O homem que caminha junto ao precipício, por exemplo, é livre até para lançar-se ao abismo. Essa possibilidade de realizar uma ação futura, uma ação sempre aberta, o angustia.
Por outro lado, Sartre nota que uma decisão que tenhamos tomado no passado sempre pode ser revogada, caso seja esta a vontade de quem a tomou. Assim, um apostador que, perdendo muito dinheiro no jogo e que tenha quase lançado por terra as chances de casar-se, decidisse não mais jogar, jamais estaria obrigado a manter sua decisão quando passasse por uma casa de jogos. Pode suceder que, nesse momento mesmo em que o apostador passasse pela casa de jogos, experimentasse angústia, justamente por aperceber-se de que a decisão que tomara outrora não o obriga a mantê-la em definitivo.


2. Kierkegaard: o homem é uma síntese entre o finito e o infinito

Qualquer tentativa de abordar a filosofia de Kierkegaard deve pontuar o fato de que ele é um dos poucos filósofos cuja vida exerceu uma profunda influência na construção de sua obra. Embora considerado o pai do existencialismo, a relação de Kierkegaard com o existencialismo não é tão facilmente sustentável. De qualquer forma, tradicionalmente, sua obra se caracteriza como a expressão de um existencialismo cristão. No entanto, Kierkegaard não era um doutrinador cristão; era, antes de tudo, um pensador religioso (filósofo?) que expressou suas angústias e inquietações ao longo do trabalho de reflexão sobre a fé cristã e sobre o modo mais adequado de o homem, enquanto indivíduo, vivenciá-la. Kierkegaard manteve com o cristianismo uma relação de tensão e sofrimento – uma relação decorrente de uma influência religiosa marcante de seu pai. Seu pai apreciava o modo exacerbado como os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês eram observados. O protestantismo era, à época, a religião de Estado. Várias publicações de Kierkegaard foram destinadas à crítica ao cristianismo de Estado, que, para ele, era incompatível com suas crenças cristãs.
Filósofo dinamarquês nascido em compenhague, Kierkegaard desenvolveu sua filosofia tendo em mira, especialmente, a filosofia de Hegel com sua pretensão de estabelecer, em definitivo, a identidade entre o real e o racional. Contra Hegel, Kierkegaard insistiu em que não é a Razão que governa o mundo. Embora reconhecesse que ela pode ter uma função reguladora, observava Kierkegaard que a matéria sobre a qual ela atua está impregnada de irracional.  Em oposição a Kant, Kierkegaard delegou à fé um lugar proeminente em face da razão supra-sensível. A ele importava mais, no julgamento, a seriedade, a autenticidade da vida, a pureza do coração, e não a transgressão de uma lei da razão. Sua originalidade consistiu em atribuir superioridade à dimensão religiosa, em detrimento da dimensão ética. Ademais, estabeleceu em Deus a instância normativa. Retornarei a esse ponto mais adiante.
Tendo em vista sua crítica às filosofias que pretendiam superestimar o poder da Razão, Kierkegaard pode ser inserido entre os filósofos denominados de irracionalistas. O irracionalismo, em cuja esteira pode-se situar a filosofia de Kierkegaard, foi um movimento marcante no final do século XIX, que visou a criticar a supremacia da razão, vista como um instrumento pelo qual era possível estabelecer a verdade. Essa tendência ganhou força, especialmente, depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando para ponto de partida a existência. Afinado com esse projeto, Kierkegaard não hesitou em afirmar a necessidade de viver uma verdade que seja verdadeira para o eu.
O irracional é o paradoxal, para Kierkegaard. Esse paradoxal é originário, é a própria energia da vida em sua interioridade mais escusa. Esse paradoxal ou irracional enfeixa todas as forças da alma. Reside ele na percepção de que é tão-só a categoria do absurdo que lhe permite pensar a fronteira que precisa transpor para que a existência se revista de sentido. Observa Kierkegaard que é trabalho da condição humana atingir o supremo bem que é a beatitude ou eternidade.
A essa altura, saliente-se que Kierkegaard, alinhando-se com os postulados do irracionalismo, nega que o sentido da existência seja atingível pelo caminho da reflexão racional. A investigação de Kierkegaard, na medida em que se afasta de toda a tradição filosófica, se situa fora do domínio da racionalidade ordinária. Embora situada no domínio do paradoxo e da paixão, sua investigação vai mais além, de modo a alcançar o “padecer”. São caras ao seu empreendimento filosófico as categorias existenciais existência, angústia, desespero, liberdade e beatitude.
Para Kierkegaard, o modo como o homem se relaciona consigo mesmo determina sua situação no mundo. Essa relação se dá na forma de três dimensões: a estética, a ética e a religiosa. Tratarei delas em uma seção separada.
Vale insistir em que Kierkegaard critica tanto a falta de religiosidade do clero da Igreja Luterana, em sua época, quanto a influência negativa de Hegel no mundo intelectual.

2.1. A proeminência do indivíduo

A filosofia de Kierkegaard centrou-se no indivíduo, que ganha proeminência ontológica. Sua filosofia, portanto, contrasta com a de filósofos como Spinoza, Hegel e Marx, para os quais o indivíduo pouco importava. O eu kierkegaardiano não existe encerrado em si mesmo; mas não se erige em absoluto. O eu não é o fundamento de si mesmo; não é a identidade do sujeito com o produto de seu ato. Entre o eu e o absoluto há intermediações que se impõem no caminho que leva o primeiro a atingir o último.
O postulado da existência do eu como auto-relação serve de eixo para Kierkegaard pensar a existência e a condição humana – condição marcada profundamente pelo desespero. Kierkegaard sustentou que a existência nunca poderá ser objeto para o pensamento. Ela é a origem a partir da qual cada um de nós tem experiências, pensa e age. Existir, para o homem, não é ser ou ter uma existência empírica e imediata. O homem é o único existente; o único ente diferente de todos os outros entes, os quais têm uma existência empírica e não sabem o que são. Para o homem, que tem consciência de sua finitude, a existência é uma tarefa, uma exigência, qual seja, a do devir, a de definir-se.
Para Kierkegaard, o homem é, de fato, um ente particular, porquanto está adiante de si; ele se ocupa de si mesmo, está perpetuamente interessado em si, inclinado aos possíveis (nada para ele está fixado, determinado previamente). O homem é um ente que pode ser, mas sempre em face de suas escolhas. É por seus atos que o homem se determina, que ele emerge do imediatismo das coisas, ao mesmo tempo em que age livremente: ele ek-siste, isto é, mantém-se fora de si mesmo, no seu projeto, sua relação com o que é. O existente, que é o homem, é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Sendo autêntica, a existência do homem faz sentido por si mesma.
O que seria, então – perguntaríamos a Kierkegaard – existir para o homem? Existir, para o homem, é, ao mesmo tempo, não ser Deus e não ser apenas como os entes ou coisas que existem na inconsciência da imediatidade e na coincidência do eu consigo mesmo. A existência é o próprio sentido da vida que, não se prestando a ser um objeto de uma consciência imediata, se desnuda progressivamente ao longo do tempo – domínio em que ela é instada a realizar-se na relação com a verdade eterna. Em Kierkegaard, a existência mantém uma relação de extrema intimidade com a subjetividade de viver.

2.1.2. O homem como síntese entre o infinito e o finito

Em Kierkegaard, a existência tem como horizonte Deus. Nesse ponto, Sartre se distancia de Kierkegaard. Em Sartre, a existência tem como único horizonte o mundo. Mas nos concentremos em Kierkegaard. Para ele, toda existência é uma espécie de mal-estar, dado que o homem percebe como problemática a inserção no tempo do princípio eterno que lhe deu origem. Ademais, é um mal-estar, porque os possíveis embaçam a liberdade que precisa determinar-se.
É a totalidade da finitude no homem que deve relacionar-se com o infinito. Sucede, contudo, que essa finitude é complexa por si mesma, é conflituosa; está fadada à tensão e ao desequilíbrio. Na finitude, a consciência opera uma cisão entre alma e corpo, entre interioridade e exterioridade. A emergência do espírito no homem é já o limiar da angústia. Mas, antes de tratar desse irromper-se da angústia no surgimento do espírito, é necessário compreender não só o que Kierkegaard chama de espírito, mas também seu lugar na sua própria filosofia.
Remontando à condição de Adão no Paraíso bíblico, Kierkegaard toma como ponto de partida o estado de inocência, no qual a alma e o corpo compõem uma unidade em repouso e em serenidade. Nesse estado, não há angústia, não há nada contra o qual se deve combater. Na inocência, estado de ignorância e típico da idade infantil, o ser humano não é determinado como espírito; mas é determinado psiquicamente como unidade imediata com a natureza. Sem culpa, sem angústia e sem sofrimento, o homem goza da felicidade da inocência.
Kierkegaard, trazendo à cena a proibição feita por Deus a Adão, mostra que é justamente porque a proibição desperta em Adão a possibilidade de liberdade que essa proibição o angustia. O que antes, em estado de inocência, era o nada da angústia, deste momento em diante, passa a ser interiorizado nele, Adão, como um nada que se qualifica por força do espírito: esse nada é a angustiante possibilidade de ser-capaz-de.
Kierkegaard prosseguirá observando que essa possibilidade angustiante não sabe o que ela é capaz de fazer (ignora-se a distinção entre o bem e o mal). Existe tão-só, neste momento, a possibilidade de ser-capaz-de. Essa possibilidade, evidentemente, não deixa de ser uma forma de ignorância, embora superior. Também é uma forma superior de angústia. Essa capacidade ama e não ama a angústia, porque foge dela.
Seguem-se às palavras de proibição, as palavras da sentença. Deus, então, sentencia: “Certamente tu morrerás”. Adão, evidentemente, não sabe o que significa morrer; todavia, a ignorância de Adão não exclui a possibilidade de ter-lhe afigurado ao espírito um acontecimento terrível. O horror experimentado por Adão, ao imaginar a possibilidade desse acontecimento terrível, se converteria em angústia, dado que Adão não compreendeu o enunciado de Deus. Fica-lhe novamente a ambiguidade da angústia: ele a ama, enquanto infinita possibilidade de ser-capaz-de, mas dela foge; agora, especialmente, porque ela lhe põe diante de outra possibilidade que assume a forma de consequência de sua escolha. Se ele é infinitamente capaz de, é capaz de fazer qualquer coisa, até mesmo de matar-se.
A inocência adâmica situa-se na angústia, quando esta se relaciona com o proibido e com o castigo. Sem haver culpa, há, no entanto, angústia.
Retomemos o conceito de espírito, a fim de precisá-lo. Direi, em primeiro lugar, que, em Kierkegaard, o espírito deve testemunhar a nossa liberdade relativamente à natureza, a qual é necessária e determinada. O espírito é o aspecto religioso de nossa existência, em contraste com o aspecto sensual, carnal e mundano. É o princípio do pensamento e da reflexão no homem. Daí ter-nos legado Kierkergaard, em seu O conceito de angústia (2010, p. 46), o enunciado “Quanto menos espírito, menos angústia”. O espírito é a faculdade de síntese reflexiva.
O homem é espírito. O espírito é o eu, e o eu é uma relação entre a alma e o corpo. Essa relação se relaciona consigo mesma, por meio do espírito. O eu é o fato de que a relação se relaciona consigo mesma. Assim, não sendo identidade abstrata, o eu é essencialmente relação viva consigo mesma. Não é propriamente relação entre alma e corpo, mas a relação em sua reflexividade que se desenvolve na dinâmica do tempo. A reflexividade dessa relação, que se vai desdobrando no tempo é que permite a realização da síntese entre o finito e o infinito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição que compreende os contraditórios de nossa humanidade. Deve-se insistir em que é através do espírito que a relação entre a alma e o corpo relaciona-se reflexivamente consigo mesma. O eu é essa relação que se relaciona consigo mesma em sua reflexividade.
Ao se debruçar sobre a identidade do eu, Kierkegaard insiste em sua reflexividade, insiste na singuralidade de cada indivíduo, graças à qual esse eu se desprende da impessoalidade da espécie e se desfaz das máscaras forjadas pelas convenções sociais.
Não é custoso ver que, em Sartre, o conflito dessa relação não encontra lugar. Para Sartre, não há um “eu”, um sujeito, entendido como conteúdo da consciência. Não há, portanto, espírito; e não há cisão entre corpo e alma. Em Sartre, o eu é produto da necessidade de conferir unidade a experiências passadas. É um feixe de percepções. Não é fundamento da consciência, já que a consciência se constitui enquanto nada.
O espírito, portanto, surge como consequência da cisão entre alma e corpo, a qual, por sua vez, resulta do conhecimento, da consciência reflexiva de si mesmo. No momento em que Adão e Eva tomam consciência de sua nudez, o espírito se faz presente no estado de repouso (ainda que em esboço), permitindo o nascimento da vida interior. Não devemos supor que, em estado de inocência, o homem encontra-se em unidade com a natureza. O espírito, ainda que repouse em estado de imediatidade e sonho, coloca Adão e Eva em face da possibilidade de ser capaz de. Esse espírito, ainda como possibilidade, já experimenta a angústia diante do nada.
Em Kierkegaard, a existência humana é dotada de uma reflexividade bastante complexa. O homem é filho do finito e do infinito, do eterno e do temporal. Sua condição obriga-o a buscar incessantemente o equilíbrio nessa relação, com vistas a realizar o mais adequadamente possível a síntese. Ora, uma síntese é reunião de duas coisas percebidas como distintas. Trata-se, pois, da síntese entre o finito e o infinito. Essa relação relaciona-se consigo mesma, e o seu resultado é o eu. Nota Kirkegaard que ou essa relação se faz a si mesma, ou é tornada possível por obra de outra coisa. Se esse é o caso, a relação, ou seja, o espírito, relaciona-se com aquilo que a tornou possível, a saber, com Deus. Por conseguinte, para Kierkegaard, resgatar conscientemente a relação com Deus é nascer para si mesmo de verdade. É renascer, reconciliar-se. Mas essa renovação envolve dor. Há uma tensão no interior do indivíduo que escolhe relacionar-se com Deus: é o indivíduo que se determina, que se escolhe. Se ele fosse determinado, não seria um eu. Nesse ponto, Kierkegaard e Sartre se aproximam: a liberdade do indivíduo implica responsabilidade, e existir é estar intimamente consciente de que somos responsáveis pelo que escolhemos vir a ser. Todavia, em Kierkegaard, há uma força ontológica fundadora da relação consigo mesma.
É tarefa do homem não só reunir numa unidade a alma e o corpo, mas elevar essa unidade ao nível de espírito, graças à relação com Deus. O homem espiritual, cuja vida finita renasce na relação com o infinito, é uma forma do homem que se sobreleva ao homem, tanto quanto o homem eleva-se sobre o animal. A espiritualidade, na perspectiva de Kierkegaard, é uma propriedade do homem que o distingue absolutamente do animal.


2.1.3. Unindo pontos

Façamos uma síntese intermediária ou provisória, antes de trazer à cena a questão principal desse texto: a da angústia.  Kierkegaard esboça uma teoria do self, à luz da qual pensa o espírito como síntese entre corpo e alma. O espírito precisa compreender numa síntese o tempo e a eternidade, no momento em que TEM DE FAZER ESCOLHAS.
Kierkegaard reintroduz na filosofia o nada como categoria ontológica. A disposição que nos leva ao nada é a angústia. Kierkegaard, seguido por Heidegger, considera a angústia como aquilo que manifesta o nada.
Estar na presença de Deus é estar envolvido numa solidão muito pessoal, muito íntima que deve permanecer discreta e oculta. O homem, síntese entre o finito e o infinito, deve experienciar o sentimento religioso em sua interioridade, ou seja, na relação do eu consigo mesmo diante de Deus. Diante de Deus, a exterioridade desaparece e deve o homem fechar os olhos.
A única essência do homem é não ter essência alguma. O homem é uma existência livre, é um ente livre que corre o risco de se perder. Ele constitui uma exceção na natureza: ele é livre, capaz de autodeterminar-se em ato, é livre do determinismo natural. Sua existência, por definição, supõe o desprendimento de seu ser relativamente aos imperativos da natureza. Pela liberdade, o homem é um dever-ser: ele deve determinar-se sem deixar se determinar. O homem é um ser em perpétuo vir a ser.

2.1.4. Explicitando alguns pressupostos kierkegaardianos

Em Kierkegaard, a religião anda em par com a filosofia. Religião e filosofia têm o mesmo objeto – Deus enquanto verdadeiro em si e por si e o homem na sua relação com ele. Kierkegaard reconhece nas religiões um domínio em que o homem expressou sua consciência do Absoluto, de modo que não se pode negar que elas são obra suprema da razão. Não obstante, Kierkegaard se revoltou contra o pretender exaustivamente submeter o religioso ao pensamento. Também critica a tendência de subsumir o real ao racional – tendência que leva à quase diluição do individual no universal. Aqui, se entrevê sua crítica a Hegel, cujo sistema pretendia reunir tudo – Deus, o homem e o mundo – ao abrigo de uma Razão soberana, tendo o homem um lugar central numa totalidade que lhe justifica progressivamente a própria existência. Kierkegaard acusava Hegel de que, ao proceder assim, suprimia a angústia como uma dimensão fundamental da existência humana.
Como Kierkegaard tenha se dedicado a desenvolver uma fenomenologia do espírito individual ou da existência, a questão que o ocupava não era “o que é o homem?”; seu esforço era encaminhado no sentido de demonstrar as etapas por que ele, homem, deve passar, a fim de apropriar-se cada vez mais de si, como numa caminhada ou ao longo de uma história que se vai construindo e na qual a morte pode irromper para sinalizar o quão inacabado é o homem. A fenomenologia do espírito individual busca, pois, descrever os momentos que, relacionados dialeticamente, compõem o curso de ascensão do indivíduo a si mesmo, sem que jamais chegue a termo, no domínio temporal, esse processo de ascensão a que a própria vida destina cada um de nós. Donde a ideia de existência como edificação. Existir é um edificar-se contínuo, que supõe a passagem de um momento a outro num esforço por encontrar-se consigo mesmo.
A existência é uma tarefa, e é tarefa do existente, isto é, do homem tornar-se uma síntese entre o finito e o infinito. Nesse sentido, essa síntese é a própria essência humana, a cuja realização se consagra o homem. Cabe, a essa altura, uma digressão elucidativa. Se Sartre nega haver qualquer essência ou natureza humana que determine o que o homem pode ser, Kierkegaard, ao que parece, admite uma essência humana. Diz, inclusive, que a essência da existência humana é a auto-relação, e essa auto-relação determina o modo de o homem encontrar-se ou estar no mundo. Todavia, o homem, dirá Kierkegaard, é um ser livre, o que nos leva à conclusão de que essa essência não é um determinante; é o que o homem traz em si como possibilidade para ser vivida intimamente, e, como possibilidade, está sempre submetida à vontade, à liberdade do homem. Vale lembrar que o homem precisa realizar a síntese que o constitui como tal, mas ela só pode realizar-se na existência, e o homem é livre para escolher entre a realização dessa síntese, a busca por uma relação com Deus e a imersão total no mundo.
Devemos ter em conta que não se trata de uma ascensão do espírito em direção a Deus, mas da relação do espírito consigo mesmo em diálogo com Deus. A cisão é a própria relação do espírito consigo mesmo. O homem é, pois, marcado por uma cisão que constitui sua própria existência pela mediação de seu fundamento, qual seja, Deus.
Ora, se a essência humana consiste em ser bem-sucedido nessa relação com Deus, não pode o homem furtar-se a ela, tampouco deve o homem fugir ao mundo. Kierkegaard preconizava que o fim a que se destina a existência humana é apropriação da existência como existência no aqui e agora, em cada instante que nos dá a eternidade.
É importante reforçar esta ideia, a fim de que se torne claro o que se seguirá, quando eu me concentrar no problema da angústia: o homem é uma síntese entre o psíquico e o corpóreo. O espírito perturba continuamente, quando presente, essa relação entre alma e corpo. Por outro lado, não deixa de ser favorável a ela porque busca estabelecê-la. Trata-se de um poder ambíguo, portanto. A forma como o espírito se relaciona consigo mesmo e com a condição do homem é a da angústia: “O espírito se relaciona como angústia (p. 47)”.
A existência, para o homem, o lança a um paradoxo, ou melhor, está fundada num paradoxo. O espírito não pode desembaraçar-se de si mesmo; tampouco pode apreender-se a si mesmo, enquanto ele se volta para fora de si. O homem não pode imergir num estado vegetativo, pois que ele é determinado pelo espírito; não pode escapar à angústia, já que ele a ama, mas não a ama verdadeiramente, porquanto, afinal, foge dela.
Finalmente, para Kierkegaard, a consciência humana é marcada profundamente pelo desespero. Ainda que eu não possa me ocupar desse tema neste texto, vale notar que o desespero é visto por Kierkegaard como uma característica essencial do ser humano. Não há homem livre do desespero. O desespero é uma verdade totalizante da condição humana. E Kierkegaard não consente a objeções. Quem quer que suponha não carregar desespero é porque se deixa viver despreocupado em face do mundo. Kierkegaard reconhece que o homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra satisfação imediata. Vivendo num relativo entorpecimento em face de sua condição desesperante, o homem não se dá conta, naturalmente, do desespero, tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada. Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. Ela é uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do possível. E conclui: todo homem é, por natureza, desesperado.


2.2.  O salto de fé

Na medida em que existir é, simultaneamente, devir e ser, existir exige a fé. Mas a fé não é fuga ao mundo, mas uma apreensão da eternidade no tempo. Enquanto certeza interior que antecipa a infinitude (Hegel), ela é esforço orientado para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver com sentido, para viver uma vida bem orientada na dimensão do ser. Por isso, a fé conduz ao crescimento no ser; é ela abertura do tempo à eternidade, de modo que, pela fé, o homem vive da própria eternidade no tempo.
Lembremos que o homem é cindido por um abismo que precisa transpor. Esse abismo se interpõe entre o eu e o eu mesmo. Toda uma vida é necessária para transpô-lo. Examinemos, brevemente, o lugar que ocupa a fé na filosofia de Kierkegaard. Qual é a sua importância para a existência humana?
Kierkegaard afirma que a escolha é nosso ponto de partida, é nossa companhia permanente e nosso fardo mais pesado. Como ente livre, o homem tem sempre de fazer escolhas. O problema fundamental para Kierkegaard, quando se debruçou sobre a condição humana, é o que cada eu, enquanto indivíduo, deve fazer e não que deve conhecer. Necessário é encontrar uma verdade que valha para o eu, uma ideia por que esse eu possa viver e morrer. Mas onde encontrá-la? Respondeu Kierkegaard: na crença religiosa. Mas a crença religiosa envolve paixão e não razão. A fé é incompatível com a razão; esta pode minar aquela. A crença autêntica supõe um salto de fé, porque se define como uma força que provém de nosso interior e que dispensa a orientação da razão. Não importa, aqui, se nossa crença é verdadeira ou certa.
Segundo Kierkegaard, a fé só tem sentido, ou melhor, só é necessária na ausência de certezas e de segurança. Se estivéssemos realmente seguros da existência de Deus, prescindiríamos da fé. Mas a existência de Deus não é uma questão de reflexão racional. O apelo à necessidade de manter em divórcio a fé e a razão não é uma originalidade de Kierkegaard; na verdade, ele não faz mais do que recuperar posições antigas de pensadores como Tertuliano (155 d.C) e João Duns Escoto (1265-1308), os quais insistiam no primado da fé sobre a razão.

2.3. As dimensões da auto-relação

A existência do homem pode desenrolar-se em três dimensões, segundo Kierkegaard. Na dimensão estética, o homem assume uma posição de pura exterioridade. Nela, ele se evade de si. A vida estética se esvai no instante do prazer. Nela, o homem busca o prazer como sentido da vida, mas não qualquer prazer; tão-somente aquele prazer que provoca o amor que não se satisfaz em possuir o corpo do amado; quer possuir sua alma e sua liberdade. Dois tipos humanos são característicos dessa dimensão: o sedutor, que vive em função do prazer, tipo para o qual o prazer é o sentido da vida; e o poeta, que, sendo um esteta, se deixa impregnar-se da beleza do real para poder erigir seus versos.
Na dimensão ética, o homem vê-se diante da liberdade. Essa dimensão é a dimensão da liberdade. O homem não pode passar de uma dimensão para a outra por meio de um ato da inteligência; para fazê-lo, ele precisa de um salto, o qual depende de um ato da vontade. O locus da liberdade é a consciência individual, a qual é marcada profundamente pelo desespero. O desespero é um sentimento que o homem experimenta em face da escolha de si mesmo.
O tema do desespero demandaria, por si mesmo, um novo texto. Não me deterei a tratar dele aqui. Basta-me notar que o desespero se prende à liberdade de que goza o homem em face de sua própria condição como ser de relação consigo mesmo. O homem pode assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo mesmo, independentemente do princípio absoluto que o pôs nessa relação (ou seja, ignorando a Deus), ou pode não querer relacionar-se consigo mesmo. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo mesmo, situa-se no domínio da ficção, porque pretende, em vão, escapar a si mesmo, o que lhe é impossível, a não ser matando-se. Essa impossibilidade de fugir a si mesmo é fonte de desespero para o homem.
Na dimensão religiosa, o homem encontra-se com a fé. Acontece que, se a dimensão ética se assemelha a uma farsa, já que as regras encobrem e impedem o ato de liberdade, e se a dimensão estética tem uma urdidura de comédia, porque leva o homem a voltar-se para o prazer e o entretenimento, a dimensão religiosa tem uma face de tragédia, porque sua força motriz é a paixão – a paixão da fé. Onde há paixão há angústia e dor.
Kierkegaard considera a fé a mola da história humana. O homem, contudo, que fica atrelado às tarefas que servem para preencher o tempo não vai mais além.
Diremos, à guisa de conclusão, que não há entre as três dimensões mediação, porquanto cada uma delas se caracteriza por contradições inconciliáveis. Somente a liberdade pode por fim aos conflitos, já que o indivíduo precisa escolher uma dentre as dimensões. A passagem de uma dimensão a outra não se dá à luz da razão, mas à luz da vontade, por meio de saltos. Mas a dimensão religiosa é, para Kierkegaard, mais verdadeira, por ser mais significativa para o ser humano.

2.4. A angústia como dimensão estruturante da existência

Trata-se de uma ideia fulcral esta que verbalizarei – fulcral porque serve de sustentáculo para o que se seguirá. A angústia, para Kierkegaard, não é uma patologia psíquica, uma enfermidade, como fora consagrada na literatura psicanalítica. A angústia, na filosofia kierkegaardiana, é uma estrutura básica do modo como o existente, isto é, o ente humano se relaciona com a vida, consigo mesmo e com os outros. Ela dá forma a essa relação.
Vimos, quando eu trouxe a interpretação que fez Kierkegaard da tentação no Paraíso bíblico, que a angústia decorre da manifestação do Nada. O Nada, quando interiorizado pela consciência, causa angústia. A angústia reside em nossa liberdade que se traduz como “angustiante possibilidade de poder”. Sartre acompanha Kierkegaard na distinção entre angústia e medo. Enquanto o medo supõe um objeto real, um perigo real, a angústia é apreensão diante do nada, do vazio. É na angústia que a liberdade se expressa como poder ser.
Para Kierkegaard, ao contrário de Sartre, a angústia não é angústia diante do mundo; é o fato mesmo de o homem existir no mundo, enquanto ser encarnado, síntese entre corpo e alma, e corpo sexuado. Tanto Kierkegaard quanto Sartre, porém, definem a angústia como uma estrutura existencial, na qual a liberdade humana toma consciência de si mesma como sendo seu próprio nada. Kierkegaard e Sartre se aproximam também no tocante à compreensão segundo a qual o homem experimenta a angústia na carne, ainda que essa visão seja mais marcante em Kierkegaard.
Para Kierkegaard, a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade que se coloca antes da possibilidade. Isso significa que o homem é livre antes mesmo de poder ser segundo a determinação de sua liberdade. A liberdade no homem preexiste à possibilidade de poder ser o que ele quiser, e isso lhe causa angústia.
A angústia é o pressentimento experimentado pelo homem de que ele é maior do que a experiência imediata.  Kierkegaard vê na angústia a ação do espírito como causa simultânea da cisão e da síntese entre alma e corpo na consciência reflexiva. Compreendamos melhor essa ideia.
Ao tomar consciência de seu corpo, o homem remete a imediatidade corporal à exterioridade, isto é, ao tomar consciência de seu corpo, o homem apreende essa realidade imediata remetendo-a como algo que se relaciona à exterioridade do mundo. Como corpo, ele se percebe como parte constitutiva da natureza; no entanto, no momento mesmo em que toma consciência da imediatidade corporal, o homem experimenta sua interioridade como domínio capaz de se autodeterminar. A dialética entre interioridade e exterioridade atravessa e marca inteiramente a existência humana. O homem não é mais apenas um corpo; não está mais unido inextricavelmente ao natural; pela consciência de sua interioridade e pela possibilidade que  tem ela de se autodeterminar, o homem percebe-se como livre das amarras e predeterminações da exterioridade, do natural.
A angústia, então, liga-se à reflexividade nascente, a essa experiência originária que constitui o fato mesmo de existir, ao qual, no entanto, a própria condição humana impõe um tornar-se ato de existir. Longe de levar a experiência a perder-se num vácuo, a angústia lhe confere sentido, porque provém justamente dessa indeterminação humana originária que se impõe o dever de autodeterminar-se.
A angústia é o que leva a consciência a flutuar diante de todos os possíveis. Ela surge da intuição de que o homem é uma síntese a realizar-se, mas que, no entanto, fracassa, na maioria das vezes, na tarefa de edificação de si mesma. A angústia é o domínio em que o si mesmo começa a aparecer, é uma experiência impregnada de uma tonalidade afetiva única, dado que ela não tem objeto. A angústia não é intencional, no sentido de que não se dirige para um objeto. Ela se apresenta na origem do desvelar-se do indivíduo a si mesmo, quando ele se confronta com o seu nada, com o abismo desprovido de profundidade que é o possível; ela surge quando ele toma consciência de sua situação desesperadora. Enfim, ela surge da impotência que sente o homem, logo de início, quando se esforça por realizar uma síntese adequada.
Por fim, cumpre notar que a angústia, em Kierkegaard, é o sentimento de inquietude que se encontra na origem da livre opção (no que Sartre está de acordo); mas é também o que resulta do reconhecimento pelo homem de sua finitude e da sua condição mortal (é angústia diante da morte, do nada); e também – o que não deixa de nos surpreender – angústia em face do silêncio de Deus. Nem a fé nos dá garantia.

Conclusão



Penso ser arriscada qualquer tentativa de estabelecer uma linha demarcatória entre as duas visões sobre a angústia, por mim contempladas neste texto. Para fazê-lo, precisarei me aprofundar mais nessa temática tanto em Kierkegaard quanto em Sartre. Por ora, reitero que tanto um quanto outro situam a angústia no domínio da liberdade e da responsabilidade que decorre da consciência que tem o homem de ser livre. No entanto, em Kierkegaard, a angústia parece ser mais invasiva, mas conflitante, porque se imiscui na interioridade da subjetividade humana, corrói o eu durante o esforço de realização de sua síntese. Como Sartre não reconhece o eu como realidade ontológica, a angústia não pode manifestar-se como um sentimento esmagador do eu em sua interioridade. Em Kierkegaard, a angústia está envolvida na transcendência do homem tendo como instância de referência o Absoluto. Sartre, embora reconheça que o homem é ser de autotranscendência, nega que essa autotrasncedência o conduza a uma relação com o Absoluto. A autotranscendência do homem, para Sartre, se dá como imanência, porque se dá no mundo, é relativa ao mundo. O homem se autotranscende porque livre, porque pode ultrapassar sua facticidade, ou melhor, pode negá-la. Para Sartre,, ao contrário de Kierkegaard, a angústia é angústia em face do mundo.