Um passeio
filosófico
Questões pertinentes
Em seu livro Introdução à Vida Intelectual (2002), Libanio,
considerando a importância do desenvolvimento do hábito de pensar, aponta-nos o
que o torna eficiente e exato:
“À
medida que nos habituamos às distinções, mais equilibrado e correto será o
nosso hábito de pensar. Evitam-se dogmatismos, fundamentalismos, ortodoxias
rígidas, fanatismos. Todos inimigos do pensamento. Estes já queimaram na
fogueira da intransigência”.
( grifo no original, p.49)
Mais adiante, na seção intitulada de A cultura
do estudo e da leitura, destaca a importância do
hábito de estudo e leitura que decorra da vontade do sujeito e que não esteja
vinculado a exigências do ensino formal:
“Ler
e estudar fora das horas de aula e por gosto deveria ser um hábito cultivado
desde os jovens anos de vida (...). O intelectual se faz lendo e estudando
durante toda a vida por hábito e por gosto. Quando se pensa no hábito de estudar
e ler, entende-se uma qualidade, uma disposição que a pessoa possui e que a
move ao estudo e à leitura. Essa qualidade adquire-se por educação, por
esforço, por ajuda de outras pessoas, por estímulos culturais, por motivação da
importância e do gosto do estudo”.
(grifo no original, p. 50)
Este outro trecho esclarece-nos sobre o que é
indispensável para pôr em curso uma vida dedicada à labuta do intelecto:
“O
início da vida intelectual é aprender a pensar. Crescer na vida intelectual é
continuar aprendendo a pensar. O ocaso sábio da vida intelectual é morrer
aprendendo a pensar. Tarefa de sempre (...). Aprender a pensar é pensar livre com o único compromisso com a verdade”.
(grifos no original, pp. 50-51)
Saber pensar, segundo Libanio, implica a necessidade
e o reconhecimento da importância de situar os problemas ou as realidades em
seus respectivos contextos, sem perder de vista o fato de que os contextos
reclamam novos enquadramentos em contextos cada vez mais amplos, de modo que,
com Libanio, se pode dizer a capacidade de pensar esteia-se em um trabalho
contínuo de compreensão da realidade orientado para a totalidade. O saber
pensar tende sempre à totalidade, à universalidade, à globalidade durante o
próprio processo de conhecer.
Não tenciono me deter a meditar sobre os passos
de Libanio referidos acima, não porque não estimule reflexões, mas porque, se o
fizesse, me desviaria dos propósitos de minha exposição. Se os trouxe à cena,
foi por duas razões: a primeira delas é que seu conteúdo incita-me a perseverar
na construção de meus caminhos verbais; a segunda é que as ideias do autor se
afinam com as minhas posições sobre o valor imensurável da autonomia
intelectual e do exercício do pensamento crítico e reflexivo para a formação de
um sujeito emancipado. Consoante observa o autor, consinto na ideia de que a formação
do intelectual e o aperfeiçoamento de seu trabalho intelectivo dependem de sua
perseverança em aprender a pensar.
Como eu pretenda me ocupar de alguns temas que me
pareceram pertinentes a um tratamento para cuja realização caberia produzir um
texto, eu os distribuirei em seções, a fim de não causar no leitor muito enfado
ou lhe estorvar a compreensão. Penso que os temas, embora possam parecer
díspares, podem ser relacionados por um único fio temático condutor, a saber, o
hábito de pensar. Consideremos, então, o primeiro tema, sinalizado no
título da primeira seção, a seguir.
1. O conhecimento
da realidade
Quando aventamos as questões “o que é conhecer?”
e “como se atinge o conhecimento?”, impõe-se-nos a consideração do que está
envolvido no processo de conhecimento. Devemos, portanto, distinguir, aí
1) um sujeito que conhece;
2) um objeto a ser conhecido;
3) o ato ou processo de conhecer;
4) o produto desse processo ou ato.
O produto ou resultado do processo ou ato o é o
próprio conhecimento (a explicação propriamente dita). Esse produto, na medida
em que assume a forma de uma representação na mente do sujeito cognoscente,
transforma-se em conceito. O ato de conhecer supõe uma análise da
realidade; o conhecimento, a seu turno, é sintético.
Em suma, o conhecimento, entendido como
compreensão/explicação sintética da realidade pelo sujeito, é produzido sob a
orientação de uma metodologia que confere ordem e alicerce ao trabalho de
análise das feições da realidade. Nesse trabalho, o sujeito esforçar-se por
desvendar a lógica, a estrutura dessa realidade e por atribuir-lhe um sentido,
de modo a torná-la inteligível. Nas palavras de Luckesi & Passos (2012),
“Em síntese, o conhecimento, como elucidação
da realidade, decorre de um esforço de investigação, de um esforço para
descobrir aquilo que está oculto, que não está compreendido ainda . Só depois
de compreendido em seu modo de ser que um objeto pode ser considerado
conhecido”.
(p. 21)
A leitura desse passo leva-nos a concluir que,
para os autores, o conhecimento é o produto de um trabalho durante o qual o
sujeito traz à luz o que estava obscurecido. O conhecimento é o que foi
esclarecido; por isso, conhecer é elucidar ou iluminar a realidade, que se nos
apresenta em estado bruto, difuso. Conhecer é conferir ordem à realidade, é
dar-lhe uma unidade e sentido.
Que a leitura do que foi exposto não nos leve a
pensar o sujeito como pura abstração. Ao contrário, o sujeito é dotado de uma
materialidade histórica. O sujeito que conhece – é preciso insistir – está
sempre situado num dado contexto sócio-histórico, do que resulta o fato de que
o ato ou processo de conhecer é uma prática durante a qual o sujeito mobiliza
um complexo conjunto de crenças, atitudes, representações, valores, ideologias,
que vai alicerçar a própria prática. Como prática, o conhecimento transforma a
realidade que se busca conhecer. Portanto, quem conhece não é um sujeito
abstraído de um entorno sócio-histórico e ideológico, mas um sujeito
sócio-historicamente situado, que leva a efeito uma atividade de reelaboração,
de reconstrução da realidade. Essa realidade é segmentada e transformada em
conceitos, cujas raízes remontam, novamente, a condições sócio-históricas
definíveis.
Conhecer é, assim, sempre interpretar a
realidade. A toda atividade de conhecimento se prende uma atividade de
valoração. Ainda que o sujeito cognoscente se esforce por evitar fazer juízos
de valor no momento em que se debruça sobre uma realidade que busca compreender,
atitudes subjetivas, preferências, sentimentos e valores vão influenciar seu
modo de olhar essa realidade. Ora, quem conhece é um sujeito cultural, por
conseguinte, a cultura, enquanto teia de significações, que hierarquiza
valores, gostos, vai determinar a produção de juízos estéticos. Com Nietzsche,
por exemplo, devemos reconhecer que todo conhecimento é condicionado por
múltiplos fatores: psicológicos, históricos, culturais, econômicos, etc.
Tanto Marx quanto Nietzsche (embora não só eles)
entendiam que o pensamento é ação e que supõe uma relação necessária entre
reflexão e vida, entre conhecimento e práxis.
As condições socioculturais, históricas e
ideológicas são determinantes do ato de conhecer, decerto. A cultura é o modo
próprio de ser do homem. Ela molda suas formas de pensar, de agir, de fazer, de
se comportar, de se relacionar com o mundo, com os outros e, inclusive, com o
Absoluto. Também a cultura condiciona as formas de os homens se reproduzirem.
Toda cultura repousa sobre uma base simbólica, donde se destaca, a par dos
diferentes sistemas semióticos informados e fornecidos culturalmente, a
linguagem verbal.
Vejamos, agora, o que a neurociência e a física
têm a nos ensinar sobre conhecimento, percepção e realidade.
A questão que se nos impõe ao pensamento, doravante, é a seguinte: Como
conhecemos a realidade? Vamos considerar essa questão à
luz da neurociência. Comecemos, pois, por reconhecer o papel que a percepção
desempenha nesse processo. A percepção, um processo ativo, envolve uma
relação entre nossos comportamentos e o ambiente em que vivemos. As informações
que chegam ao nosso cérebro resultam desses comportamentos,
desencadeados pelo próprio cérebro. Com esses comportamentos, exploramos o
mundo em nosso derredor. A percepção se inicia na mente, que é efeito do
cérebro. Por meio desses comportamentos exploratórios, o cérebro teste
continuamente o seu ponto de vista em face do fluxo das informações que recebe.
Portanto, a percepção sensorial não se dá sem esse trabalho do cérebro. É ele
que segmenta e dá forma às sensações que experimentamos. O neurocientista
brasileiro Miguel Nicolelis, em seu livro Muito além do nosso eu (2011),
pondera sobre o papel fundamental desempenhado pelo nosso cérebro na
experiência de percepção:
“Mesmo que rotineiramente experimentemos
na ponta dos dedos as sensações de textura, forma e temperatura, na realidade
elas são esculpidas pelo cérebro durante a fração de segundo na qual a pele
entra em contato com um objeto para transmitir, através do emaranhado de
determinações nervosas espalhados pelo corpo, toda uma gama de dados sensoriais
para o sistema nervoso”.
(p. 55)
Se essas informações não atendem às expectativas
do cérebro, ele produzirá em nós um sentimento de surpresa e desconforto. Os
processos de inspeção do mundo pela visão, audição, gustação e olfato têm
origem numa mesma fonte: “vastas tempestades elétricas cerebrais a que
costumamos nos referir, de maneira quase distraída e casual, como pensamentos”
(ib.id.).
Para Nicolelis, o cérebro é uma espécie de
simulador produzido pela evolução em nosso universo. Ele é um escultor da
realidade e é o responsável pela produção de comportamentos necessários à
sobrevivência e à existência consciente. Dentre as categorias em que se podem
dividir esses comportamentos vitais, vale destacar a que diz respeito à
construção de modelos “altamente refinados do mundo exterior” (p. 56),
modelos também de nós mesmos e das relações interativas e dinâmicas entre nós e
o mundo.
Na medida em que compreendemos a importância do
cérebro na construção do conhecimento do mundo, segue-se daí que não temos
acesso direto à realidade. O mundo conhecido é mundo percebido. O mundo
experimentado é um mundo que se nos dá na percepção. Em outras palavras, não
conhecemos a realidade tal como é, mas a realidade como modelo produzido pelo
nosso cérebro. Nós, seres humanos, desenvolvemos a capacidade de criar
simulações refinadas, elaboradas, detalhadas da realidade experienciada. Essa
realidade é produto, portanto, de uma construção virtual de nosso cérebro a
partir de dados sensoriais a que se soma um conjunto complexo de crenças
adquiridas e congênitas, que nos orientam na interpretação de novas
informações.
Em seu livro O grande Projeto- Novas respostas
para as questões definitivas da vida (2011), Hawking & Mlodinow também desenvolvem a mesma ideia básica de
que a realidade percebida é sempre resultado de uma construção/fabricação para
a qual é necessário um quadro ou modelo mental, ao qual subjaz um conjunto de
crenças e teorias. Novamente, os autores reconhecem que é o cérebro que
constrói o modelo mental. Atendamos no trecho seguinte:
“Fazemos modelos não só em ciência mas
também na vida cotidiana. O realismo dependente do modelo aplica-se tanto ao
conhecimento científico quanto aos modelos conscientes e subconscientes que
criamos para interpretar e compreender o mundo do dia a dia. Não há como
remover o observador – nós – da nossa percepção do mundo, que é criada pelo
nosso processamento sensorial e pelo modo como pensamos e raciocinamos. Nossa percepção – e, portanto, as
observações nas quais se baseiam nossas teorias – não é direta, mas antes
moldada por uma espécie de lente, a estrutura interpretativa do cérebro humano”.
(grifo meu, p. 34)
É preciso, então, reter esta ideia fundamental e
conclusiva, tendo em vista o exposto: o cérebro é um simulador da realidade
experienciada. Ademais, é ele quem fabrica modelos mentais com base nos
quais conhecemos a realidade. Nós não temos acesso imediato à realidade; a
realidade experienciada é uma realidade sempre em perspectiva – uma perspectiva
construída com base nos modelos fabricados pelo nosso cérebro, com base em seu
trabalho interpretativo sobre as informações sensoriais que recebe.
Numa perspectiva sociocognitiva, que tanto
contribui para iluminar muitos problemas com os quais precisam lidar as teorias
do discurso, o mesmo tema pode ser tratado trazendo à cena a influência dos
sistemas de crenças, significados, valores, representações produzidos e
fornecidos pela cultura. Como o cérebro ocupa corpos que vivem em sociedades complexas,
estruturadas em sistemas de crenças, valores, práticas, normas, representações,
ideias, preconceitos, etc., claro parecerá que o modelo de mundo fabricado pelo
cérebro humano será influenciado pelas condições socioculturais em que os
indivíduos vivem e constroem suas percepções. Mas isso é outro longo caminho,
que não poderíamos trilhar aqui.
Prosseguindo com o nosso passeio, consideremos o
que se segue na próxima seção.
2. O lugar da
filosofia
“Filosofar não é
outra coisa senão preparar-se para a morte”
(Michel Montaigne)
Talvez, o primeiro grande desafio com que se
defronta um professor de filosofia é reeducar as sensibilidades e modificar as
percepções, por vezes, assentadas em preconceitos, a respeito da filosofia e do
trabalho do filósofo. Não me vou ocupar disso aqui, para o que o leitor pode
recorrer a livros de introdução à filosofia, em que, por vezes, a imagem
popularmente construída da filosofia é considerada para efeitos de discussão. Não
obstante, para a compreensão do que se seguirá, convém levarmos em conta o que
escreve Luckesi & Passos (2012):
“(...) no cotidiano, as pessoas não
valorizam a filosofia como uma forma de saber que tenha um significado definido
e importante em suas vidas. Temos que ter clareza que essas manifestações são
expressões particulares da forma universal como a sociedade, especialmente pelo
seu segmento dominante, vê a filosofia. Há um alijamento do saber filosófico
diante da possibilidade de ele despertar a criticidade, devido ao mesmo ter
possibilidade de desvendar os valores que sustentam as ações, individuais ou
coletivas”.
(p. 72)
O filósofo britânico Colin McGinn, em dois
artigos, recentemente, propôs que se mudasse o nome da disciplina filosofia,
dada a confusão e incompreensão que ela provoca nas pessoas de um modo geral.
Não se trata de ressentir-se dessa situação, tampouco de ignorar as causas
históricas que permitem explicar a confusão e má compreensão popular em relação
à filosofia. Trata-se de reconhecer, por um lado, que a imagem de filósofo como
uma espécie de ‘lunático’, ‘guru’, ‘pregador’, ‘conselheiro de bar’; e a visão
de filosofia, por outro, como uma área do conhecimento inútil e distante da
existência concreta, ainda se conservam nas mentalidades de nossa sociedade
atual. Em virtude disso, o enfrentamento do referido desafio pelo professor de
filosofia se torna precondição para a iniciação discente em filosofia. Mas
deixemos de lado esse domínio de discussões e nos voltemos para as
considerações que se seguem.
De início, preciso esclarecer que o que farei,
doravante, não será me limitar a apresentar uma série de definições (e são
muitas, certamente) de filosofia. No entanto, procurarei contribuir para que se
elucidem seu significado e pertinência à vida prática do homem comum. Nosso
ponto de partida é considerar a filosofia uma atividade discursiva
intencional, racional e crítica que não só visa a uma compreensão radical (que
vai às raízes dos problemas) do mundo, como também a fornecer princípios que
orientem o comportamento e prática humanos. Destarte, filosofar é uma
prática intelectual e sistemática que, baseada na razão, auxilia o ser humano
em sua vida. Não há, portanto, divórcio entre a atividade de filosofar e os
atos de viver. Disso não se segue que eu ignoro que tenha havido filósofos, na
longa tradição filosófica, que se tenham dedicado a uma filosofia densamente
especulativa, que, à consciência das pessoas em geral, tenha parecido
descompromissada com as questões mais urgentes e pertinentes da existência.
Veja-se, por exemplo, o realismo das ideias de Platão, ou seja, a sua concepção
segundo a qual a verdadeira realidade é o mundo das Ideias Perfeitas (o mundo
inteligível), em oposição ao mundo sensível, domínio das aparências, o qual não
é mais do que um simulacro do mundo inteligível – a verdadeira realidade. Ou
ainda a ambição de Hegel ao propor um sistema idealista com que pudesse
explicar a totalidade do Universo. Pense-se na postulação de Hegel de uma
Razão, que compreende um conjunto de universais (categorias lógicas) donde se
pode derivar o Universo. Pense-se, de um modo geral, nas proposições dos
idealismos, por exemplo, o idealismo imaterialista de Berkeley, cuja tese
básica é que o mundo sensível, ou seja, o mundo dos objetos acessíveis à
experiência sensorial só existe como ideias quer na mente de Deus, quer na
mente do homem. Não estou sugerindo que devamos atribuir aos grandes filósofos
idealistas e a Platão a culpa pelo desinteresse comum pela filosofia. Tampouco
estou sugerindo que esses filósofos não tenham se preocupado com questões mais
prementes e, em algum sentido, tangíveis, imediatamente acessíveis ao homem
comum. Veja-se, por exemplo, que Platão, pela voz de Sócrates, se ocupou do
homem como ser político e moral. Platão pensou o amor e muito do nosso
imaginário ocidental sobre o amor devemos às especulações platônicas sobre este
tema, universal e tão caro, decerto. Hegel não deixou de ser um pensador
político, um pensador da História. E o trabalho de Marx deve muito à filosofia
hegeliana, ainda que aquele tenha se afastado desta num e noutro aspecto. Mas é
inegável que a dialética hegeliana, enquanto uma concepção do real, permitiu a
Marx compreender o movimento da História como essencialmente marcado por
contradições. Não me será possível me aprofundar nesta seara, sob pena de levar
minhas reflexões longe demais dos propósitos que lhes fixei. Retomando, então,
o fio discursivo, creio ser necessário reconhecer que, se, por um lado, há, em
filosofia, exemplos de filósofos que se envolveram em densas e áridas
abstrações, o que, talvez, tenha contribuído (sem que eles devam ser disso
culpados) para enrobustecer o sentimento de desinteresse popular pela
filosofia; por outro lado, é necessário cautela e bom senso quando se trata de
decidir pela “inutilidade” da filosofia, ou quando se trata de considerá-la uma
espécie de “exoterismo de/para certa elite intelectual”.
Uma nota esclarecedora, de passagem. Em um ponto
acima, empreguei a forma “abstração”. Gostaria, pois, de esclarecer o
significado filosófico dessa palavra. A abstração é uma operação intelectual,
por meio da qual nós “extraímos”, “separamos”, “isolamos” de um dado objeto
propriedades que, na experiência sensível, são inseparáveis dele. Para que se
compreenda o que significa fazer abstração, é preciso reconhecer que, com
Aristóteles, conhecer é abstrair, já que, por esse processo, busca-se atingir o
“geral” nas coisas, o que é comum ao gênero ou à espécie. Partindo-se do fato
de que só existem indivíduos, por exemplo, da espécie humana; só existe este
lápis, esta mesa, sempre que tomo uma propriedade comum a todos os individuais,
isolando-a deles, faço uma abstração. Se me refiro à aspereza da pedra, trato
esse aspecto como algo abstrato, como algo que identifico em todos os membros
de certa espécie de pedras. Na base dessa herança filosófica, está a distinção
tradicional entre substantivos abstratos e substantivos concretos, por vezes,
mal ensinada e incompreendida por nossos estudantes colegiais (e talvez,
universitários). Que não haja dúvida: um substantivo é abstrato quando designa
uma qualidade ou característica que se toma como existente independentemente da
coisa ou ser a que está associada, como em “a suavidade da rosa”, “o azul de
seus olhos”, etc. No substantivo abstrato, a qualidade é abstraída da coisa
para efeito de referência no discurso, embora, na experiência sensível, não
exista uma coisa do tipo “aspereza” como ente independente.
Além desse sentido, abstração pode também
designar uma ideia demasiado pura, metafísica, que não tem um referente
concreto no mundo da experiência ordinária. Por exemplo, a ideia de infinito, a
ideia platônica de Bem, a Razão absoluta de Hegel, etc.
Prossigamos...
Pensar filosoficamente é lançar olhares críticos,
é empreender um trabalho mais ou menos exaustivo de perquirição sobre as
dimensões existencial, cultural, política, social, educacional, artística, etc.
do ser humano.
É claro que isso não é tudo que se poderia dizer
sobre a natureza da investigação filosófica. Não pretendendo recobrir tudo que
se tem dito ou escrito sobre a questão o que é filosofia? (tarefa
infactível e desnecessária, decerto), vou-me socorrer da lição da filósofa
Marilena Chauí que, em Boas-Vindas à Filosofia (2010), distinguirá entre
quatro definições de filosofia (dentre as inúmeras já propostas). Três delas me
interessarão neste trabalho. Considere-se, pois, a primeira.
A filosofia pode ser entendida como sabedoria
de vida. Nessa acepção, a filosofia
consiste em uma atividade de reflexão sobre a moral, bem como em uma
contemplação do mundo e dos outros seres humanos, a fim de ensinar estes a
controlar seus desejos, sentimentos e impulsos e a lhes dirigir a vida de modo
ético e sábio. Nas palavras de Chauí,
“A filosofia seria uma escola de vida ou
uma arte do bem viver e de uma vida justa, sábia, feliz, ensinando-nos o
domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões”.
(p. 26)
Segundo a filósofa, essa definição não recobre a
totalidade do domínio de interesses da filosofia. Não diz o que ela é, embora
encerre alguns aspectos do trabalho filosófico.
Uma segunda acepção de filosofia envolve
pensá-la como uma compreensão do Universo como totalidade ordenada e dotada de
sentido. Essa é a forma da filosofia nascente entre os primeiros gregos. De
acordo com essa visão, a filosofia é uma cosmologia. Assim, atribui-se à
filosofia a tarefa de conhecer a totalidade do real, de modo a provar que o
universo (cosmo, para os gregos), enquanto totalidade, é ordenado segundo
relações de causa e efeito. Ainda aqui, deve-se situar a proposição segundo a
qual essa totalidade é racional, ou seja, dotada de sentido e finalidade
apreensíveis pela razão humana. Nesse tocante, comenta Chauí:
“Os que adotam essa definição precisam
distinguir entre Filosofia e religião, e entre Filosofia e ciência”.
(p. 27)
Diferentemente da religião, a filosofia busca
compreender o Universo com base nas ferramentas da razão, ao passo que a
religião se serve da confiança (fé) numa Revelação divina. A fé é suficiente
para que se aceitem princípios que não podem ser demonstrados e fatos
particulares da experiência. A filosofia, no entanto, rejeita a
indemonstrabilidade e se erige como trabalho racional que visa à
universalidade. Assim, entra na agenda filosófica também uma preocupação com o
que parece ser irracional e inquestionável. Mas Chauí se apressar em notar:
“Entretanto, essa definição segundo a qual
a Filosofia procura compreender racionalmente o Universo também é problemática,
porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão
totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema de
mundo. Mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível, embora em seus começos
a Filosofia julgasse isso viável, pois ela era o conjunto de todos os saberes e
não havia distinção entre ela e as ciências”.
(p. 28)
Não nos escapará, nas reflexões desenvolvidas
neste texto, a ruptura e a relação necessária da filosofia com a religião. Por
ora, basta dizer que, na origem, estavam a religião e o mito; a filosofia foi
um desenvolvimento posterior na tradição do pensamento.
A terceira acepção de filosofia que me interessa
consiste em pensá-la como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos
e práticas. Quando pensamos na palavra “fundamento”, pensamos na ideia de
“base sólida” sobre a qual podemos erguer uma construção qualquer. Do ponto de
vista do conhecimento, o fundamento consiste num princípio racional que dá
sustentabilidade a uma demonstração. Destarte, fundamentar é buscar
definir e estabelecer, por meio da razão, os princípios, as causas, as
condições da existência, da forma e comportamentos de alguma coisa. Na
definição que estamos considerando, aparece também a forma “teórica”. Devemos,
então, considerar a teoria como uma palavra que, originalmente,
significava contemplação da verdade pelos olhos do espírito. Trata-se de
uma atividade puramente intelectual indissociável do processo de conhecimento.
Por fundamentação teórica, entende-se,
pois, a atividade de determinação, pelo pensamento e de modo lógico, metódico,
sistemático, do conjunto de princípios, causas e condições de alguma coisa.
Devemos aí incluir também a determinação de sua existência, de seu
comportamento, de seu sentido e de suas mudanças.
A palavra crítica também deve ser bem
entendida, quando situada no domínio da filosofia. Ela recobre a capacidade
para julgar, discernir e decidir com exatidão; é o exame racional das coisas
sem preconceito e prejulgamento. Criticar é examinar, avaliar e pormenorizar
uma ideia, um valor, um costume, um comportamento, uma obra artística, um
trabalho científico, etc. Estamos longe, portanto, do seu sentido popular e
corrente, de “apontar defeitos”, “falar mal de”. Uma vez que entendemos que
fazer a crítica é avaliar, examinar minuciosamente, discernir com precisão,
compreendemos que a fundamentação crítica não é senão avaliar,
examinar, julgar racionalmente os princípios, as causas, as condições da
existência, do sentido, comportamento e mudanças de uma coisa (Chauí, p.
30).
Do que, então, se ocupa a filosofia?
A filosofia estará interessa nos princípios, nas
causas e nas condições do conhecimento que se pretende ser racional e
verdadeiro. Ela também se ocupará da origem, da estrutura e do conteúdo dos
valores éticos, políticos, religiosos, artísticos e culturais. Ademais, não
escaparão ao domínio de suas reflexões as causas e as formas de ilusão e de
preconceito individual e coletivo, bem como as causas e condições das
transformações históricas dos conceitos, ideias, valores e práticas humanas.
Resumindo, a filosofia é um trabalho
intelectual sistemático, visto que se realiza com base em enunciados
precisos e rigorosos, logicamente articulados, segundo princípios comuns e
certas regras de argumentação e demonstração que lhes dão coerência. É ainda um
trabalho intelectual porque se realiza pelo intelecto – evidentemente – e pela
razão. É sistemático, porquanto supõe uma ordem, uma organização interna entre
os enunciados e os conceitos com os quais constrói seus discursos. É
sistemático também porque não se satisfaz com respostas apenas, mas, indo além,
demanda que as próprias questões elaboradas sejam válidas. Não raro, em matéria
de filosofia, a forma como elaboramos as questões, a validade delas importam
mais que as respostas que se possam dar a elas. É sistemático também porque
exige que as respostas sejam verdadeiras e se relacionem entre si, iluminando
umas as outras. É sistemático porque requer a construção de sistemas de ideias
e significações coerentes e passíveis de ser provados e demonstrados racionalmente.
Importa, finalmente, considerar a atitude
crítica, tão indispensável ao empreendimento filosófico. Chauí (p.17)
distingue nela dois aspectos: um negativo, que consiste numa recusa ao
senso comum, às crenças, às opiniões e valores correntes que simplesmente são
assumidos de modo acrítico. Ela sugere um distanciamento em relação aos
preconceitos, um discernimento das crenças e opiniões para que elas sejam
tomadas para objeto de reflexão crítica, que vise a investigar suas causas e
determinar seu sentido.
O segundo aspecto é positivo. Nesse caso,
a atitude crítica consiste numa interrogação sobre o que são as coisas, os
fatos, as situações, os comportamentos, os valores, e sobre quem somos. Essa
interrogação se expressa na forma de um “porquê” e de um “como” ,
orientados para a natureza das coisas e de nós mesmos.
Agora, vou descer a considerações sobre a relação
entre filosofia e religião, tema a que destinarei a próxima seção. Numa seção
subsequente, tomarei para objeto de discussão o sistema cosmológico-ético do
mundo grego, de que nos dá testemunho o estoicismo. Nessa seção, se contemplará
a concepção do divino, à luz desse sistema filosófico.
3. Na origem, o
mito e a religião
Religião e mito precedem a filosofia.
Consideremos, em linhas gerais, primeiramente, a natureza e finalidades da
religião. O que ela expressa, basicamente? Poderíamos dizer, sem incorrer em
erro, que ela expressa uma relação- que se acredita seja espontânea - do homem
com o Mistério, o Absoluto ou Deus. A religião propõe uma concepção global da
natureza humana, uma concepção que recubra o pensamento, o desejo, o sentimento
e a ação do ser humano, de sorte que possa fornecer a cada indivíduo ou
comunidade um conjunto de normas e preceitos que regulem seus comportamentos e
ações. Toda religião é, em certo sentido, uma visão de mundo. Toda religião
fornece uma interpretação do mundo, da existência e natureza humanas na
totalidade do universo. Disso redunda que a religião se interroga sobre a causa
e o sentido da vida prefigurando, ou melhor, estabelecendo, lançando as
questões fundamentais de que se ocupará toda filosofia. Mais adiante, vou-me
deter no desenvolvimento de algumas considerações sobre a relação entre
religião e filosofia. Passemos, agora, a considerar a originalidade do mito em
relação à filosofia.
3.1. Precedência
do mito
No princípio, era o mito e a partir das questões
colocadas pelo mito se erigiria e se desenvolveria o empreendimento filosófico.
O mito precede o nascimento da filosofia entre os gregos. A filosofia nascente
era uma cosmologia, ou seja, uma explicação para a ordem do mundo, do
universo com base num princípio racional e originário (Chauí, 2002). O mito,
portanto, lança as sementes para o desenvolvimento da filosofia, ou seja, as
questões de que a filosofia se ocupará, por meio da razão, foram postas pelo
mito. Segundo Chauí (2002, p. 37), “a filosofia nasce como racionalização da
narrativa mítica, superando-a e deixando-a como passado poético e imaginário”. Relegando
as produções míticas ao imaginário, a um passado que não podia mais responder
as questões que as novas condições sócio-históricas, políticas e econômicas
suscitavam, a filosofia sustentará que a origem e a ordem do mundo são
naturais. A terra não é mais Gaia; o céu, não mais Urano; o mar, não mais
Oceano. A razão demanda a rejeição a transformar elementos do mundo natural em
deuses antropomórficos. É verdade que, inicialmente, a filosofia ainda supunha
haver uma força divina a reger a natureza, mas - é preciso frisar – essa força é divina porque
imortal ou eterna, porque também capaz de criar absolutamente. Novamente,
os deuses antropomórficos das narrativas míticas foram destronados pela razão
filosófica. Assim, a filosofia, então nascente, assumindo a forma de uma
cosmologia, “procura ser a palavra racional, a explicação racional, a
fundamentação pelo discurso e pelo pensamento da origem e ordem do mundo”
(Chauí, 2002, p. 37). Vou sumariar, ainda que de modo um tanto grosseiro, como deus
era concebido pelos antigos. O que se seguirá recobre apenas uma parte do vasto
período de tempo que se estende desde os filósofos pré-socráticos (portanto, do
início da filosofia na Jônia) até o neoplatonismo da Antiguidade, ao longo do
qual a ideia de deus foi-se desenvolvendo. Vou-me cingir a apresentar como o
divino era pensado pelos tradicionalmente chamados “pré-socráticos”. No tocante
ao que os primeiros filósofos gregos da Antiguidade pensavam sobre deus, tome-se
nota do seguinte:
1) Trata-se de um deus do mundo. Ele se explica
na contemplação da ordem natural e dos acontecimentos naturais. É um deus
entendido como princípio que ordena o mundo. É um deus que é o próprio
cosmos;
2) Trata-se de um deus do pensamento racional.
Não constitui ele um objeto de crença mítica. Ele não requer adoração. Ele se impõe
ao pensamento, escusando, contudo, provas de sua existência;
3) É um deus que só é transcendente em relação
aos seres humanos, visto que é superior e exterior a eles. Mas a vida humana
vincula-se à ordem divina da existência natural e material. Esse deus não impõe
qualquer Lei ou mandamentos. O dever moral é lei natural. A moral se subordina
à ordem natural. Viver moralmente é viver em conformidade com essa ordem
natural;
Em 3), já se introduz a ideia central, que
procurarei desenvolver na próxima seção, ao me ocupar com a exposição do
sistema cosmológico-ético dos estóicos. Trata-se da ideia de que viver
moralmente é viver em conformidade com a ordem natural. Por ora, necessário
se faz retomar a questão da relação entre religião e filosofia,a fim de avaliar
qual a posição que ocupará a filosofia em relação à religião com o predomínio
da fé cristã durante a Idade Média.
3.2. A
filosofia torna-se uma serva da teologia
Em princípio, é preciso levar em conta que
filosofia e religião oferecem respostas diferentes e inconciliáveis em face da
questão da salvação. Convém precisar que me refiro à salvação da morte.
Atentemos para o modo como Luc Ferry, em Aprender a viver: filosofia para os
novos tempos (2010), expõe a eterna e mais importante questão sobre a qual
teólogos e filósofos irão se debruçar, questão que expressa uma verdade que une
a todos nós, seres finitos, mortais, a um destino do qual não vamos escapar (e,
para agravar ainda mais essa condição, dentre os seres produzidos pela
natureza, somos os únicos (até onde se sabe) que são conscientes desse destino):
“O que desejamos, de fato, acima de tudo?
Não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos
ficar separados dos próximos, em resumo,
não queremos morrer, nem que eles morram”.
(grifo meu, p. 22)
Ferry faz eco a Sêneca, que nos legou em Aprendendo a viver (2011), os seguintes excertos:
“(...) Ensina-me que o valor da vida não
está na sua duração, mas no uso que dela pode ser feito; que pode acontecer,
como acontece com frequência, que quem viveu muito, muitas vezes, viveu pouco.
Dize-me, quando eu estiver por adormecer, “podes não acordar mais”; e, quando
eu estiver acordado, “podes não dormir mais”. Dize-me, quando eu estiver
saindo, “podes não voltar”, e quando eu estiver de volta, “pode ser que não
saias mais”.
(pp. 46-47)
“Desfrutemos avidamente da presença de
nossos amigos, porque não podemos ter certeza por quanto tempo ainda os
teremos. Pensemos que, frequentemente, os relegamos por alguma longa viagem, ou
que, muitas vezes, não os vemos mesmo morando no mesmo lugar, e compreederemos
que, quando estavam vivos, perdemos muito tempo”.
(p. 56)
Portanto, tendo em conta o fato de que é a
morte, é a finitude humana que ocupará as reflexões tanto da teologia quanto da
filosofia, precisamos entender que a religião reza que a salvação só é
possível, basicamente, pela fé, único caminho que nos assegura de que seremos
alvo da graça de Deus. Acreditar em Deus é condição necessária para alcançar a
salvação. A filosofia, por seu turno, contrariamente ao que pretende ensinar a
religião, sustentará a necessidade de que busquemos não uma salvação da morte,
destino inevitável, mas ao menos e certamente das angústias e medos que ela nos
provoca, por nossa própria conta. A filosofia se propõe, então, orientar o
homem para que ele, mobilizando suas próprias forças e sua capacidade racional,
liberte-se dos temores decorrentes da consciência de sua finitude.
O filósofo, como não acredite em Deus, irá
propor que, uma vez conhecendo o mundo e compreendendo a nós mesmos e os
outros, na proporção de nossa inteligência, poderemos superar nossos medos.
Para tanto, devemos lançar mão de nossa capacidade crítico-reflexiva e
dispensar a fé cega.
Explicitei, de maneira geral, em que sentido
filosofia e religião se separam. A filosofia surgirá como ruptura com a visão
de mundo religiosa. Mas não podemos nos esquecer de que isso não significou o
desaparecimento da religião. E mesmo hoje, em nossas sociedades cada vez mais
secularizadas, a religião se faz presente, sobretudo se consideramos a América
Latina e os Estados Unidos. A religião é um fenômeno cultural universal. Não se
conhece sociedades humanas que não produziram religiões. As palavras de Ferry
(2010), a seguir, não bastante elucidativas, nesse tocante:
“Elas [as religiões] detinham o
monopólio das respostas para a pergunta da salvação, dos discursos destinados a
acalmar as angústias provenientes do sentimento de mortalidade”.
(p. 37)
Se a filosofia se impõe como um pensamento rigoroso,
ancorado na razão, que, visando à compreensão radical do mundo, precisou romper
com as concepções religiosas do mundo, do homem, do universo, ela não deixou de
se voltar para a religião, a fim de questionar seus fundamentos, seu sistema de
crenças e valores. Portanto, filosofia e religião estão entretecidas num
profundo e tenso diálogo; elas se relacionam reciprocamente. São próximas, quer
porque se preocupem com a questão da salvação, quer porque se preocupem com a
busca pela sabedoria como um caminho para libertar-se das inquietações
relacionadas à finitude. Mas se opõem, no tocante aos métodos de que cada uma
se serve para atingir seus objetivos.
Passarei a considerar o que aconteceu à
filosofia, quando do surgimento do cristianismo, particularmente quando do
desenvolvimento de uma teologia cristã entre pensadores que viveram na Idade
Média, época em que a Igreja Católica detinha o monopólio do saber e gozava de
grande poder político, econômico, ideológico e espiritual.
O cristianismo se desenvolverá por meio da
apropriação e reelaboração do pensamento grego. Dizendo de modo mais
apropriado: o que se deu foi, de fato, uma submissão do pensamento dos antigos
aos pressupostos da teologia cristã. Progressivamente, a filosofia perderia seu
estatuto como caminho para o bem viver e para a sabedoria, passando a
ocupar a posição de “serva da teologia”, nas palavras de São Tomás. Mas o
próprio São Tomás de Aquino, ao desenvolver uma teologia inspirada no
racionalismo aristotélico, não estará a salvo das críticas por Padres da Igreja
à época. O trecho abaixo de Ferry, em O que é uma vida bem sucedida
(2010) ilustra um pouco do trabalho levado a efeito pelo cristianismo na
apropriação e reelaboração de conceitos forjados no pensamento grego:
“O cristianismo, ao instaurar a ideia de
uma encarnação do logos divino num
ser humano, o Cristo, fundará não apenas uma nova concepção da providência, mas
também uma promessa inédita de salvação (...)”.
(p. 229)
A ideia de que a filosofia deveria ser uma
“servente da teologia” se encontrara na pena de São Pedro Damião, doutor da
Igreja italiana, no século XI d.C. e permaneceu, por muito tempo, preservada no
espírito de pensadores como Santo Agostinho e São Boaventura. A maioria dos
grandes teólogos, com efeito, estava de acordo em garantir a subserviência da
razão à fé. A fé deveria iluminar ou guiar a razão. Era a fé – e apenas ela –
que lhe devia fixar os objetivos e temas. Assim, se legitimava e se revestia de
significado uma filosofia cristã. A razão não estava de todo excluída; ela era
aplicada, por exemplo, para a interpretação dos evangelhos, para a compreensão
da natureza, considerada, pois, uma obra de Deus. Pela razão, buscava-se trazer
à luz da consciência as marcas do criador na criação.
Lancemos olhares sobre o último tema. Ele será
destinado à seção seguinte
4. O sistema
cosmológico-ético: revisitando os estóicos
Antes de fazer incursão no pensamento estóico e
descer a pormenores sobre no que consistia o sistema cosmológico-ético, que
remonta à segunda via do estoicismo no século II a.C, embora o estoicismo tenha
conhecido um desenvolvimento posterior em Roma, onde encontraremos a
notabilidade do pensamento do imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.),
precisarei retomar a relação entre religião e filosofia, a fim de elencar as
razões por que, segundo Ferry (2010, p. 38), a filosofia pôde se emancipar da
religião. Considere-se o seguinte passo de Ferry, em Aprendendo a viver
(2010), em que o autor sublinha a singularidade da filosofia em relação à
religião:
“Filosofar, mais do que acreditar, é, no
fundo, - pelo menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é,
com certeza, diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé.
Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer
preço”.
(p. 31)
Segundo Ferry, as razões por que se deu a
emancipação da filosofia em relação à religião podem ser as três seguintes:
1) a natureza democrática da organização
política da pólis grega;
2) em decorrência dessa natureza democrática da
organização política da cidade grega, deu-se o favorecimento das elites, que
podiam, então, gozar da liberdade e autonomia de pensamento;
3) esse ambiente político democrático,
favoreceu as condições para a discussão, deliberação e argumentação permanentes,
atividades em que se envolviam os cidadãos gregos, nas assembléias.
Segundo Ferry (p. 38), foi uma tradição
republicana que favoreceu o aparecimento de um pensamento livre e emancipado
das prescrições de diversos cultos religiosos.
4.1. O Estoicismo:
breves considerações
Na Atenas do século IV a.C, eram inúmeras as
escolas filosóficas existentes. Não raro, eram denominadas pelo nome dos
lugares onde se haviam estabelecido.
O fundador do estoicismo, Zenão de Cicio (334-262 a.C.) ensinava num pórtico,
que, em grego, se dizia “stoa”, donde a palavra “estoicismo”. Zenão não
conhecia apenas as especulações dos filósofos de seu tempo, também releu a obra
de seus antecessores e com ela se familiarizou. Particularmente importante foi
a influência que sobre seu pensamento exerceu a filosofia de Heráclito. No
cerne da ontologia de Zenão, se encontrava a ideia heraclitiana de fogo, que é phsys,
de logos e Deus. Essas ideias foram reelaboradas por Zenão.
Zenão assumia posições claramente
materialistas. Ele era um antiplatônico e, como tal, rejeitava a existência
transcendente das Ideias; não se demonstrou, apesar disso, favorável a acolher
o estatuto ontológico que Aristóteles atribuiu a elas. Para Zenão, bem como
para os estóicos, de modo geral, as Ideias não eram mais que meros pensamentos
da mente humana.
No entanto, é preciso ponderar, com Reale, em Estoicismo,
Ceticismo e Ecletismo (2011, p. 28), que “Zenão negou não só a existência
de Ideias inteligíveis transcendentes, mas também a existência de uma alma
espiritual”. Não há, segundo Zenão, uma alma diferente do corpo, tampouco
Inteligências Imateriais transcendentes. Nem o Demiurgo platônico, nem o
Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles tinham estatuto de realidade em sua
filosofia.
A alma, na perspectiva materialista de Zenão, é
dotada de natureza corpórea, de materialidade. Assim, para Cleanto (331-230 a.C.), sucessor de Zenão,
referindo-se a seu mestre, se não se conceder à alma uma natureza corpórea e
material, ficam sem explicação as inúmeras relações entre ela e o corpo.
A conclusão a que chega Zenão não deixa
qualquer dúvida: “a alma é o corpo”. Por isso, não deixa de ser estranho
que o próprio Zenão tenha chegado a definir a alma como pneuma e fogo e a
admitir que ela sobrevive durante certo período à morte corpórea. O que
suscita-nos a questão, de que eu não posso me ocupar aqui, segundo a qual como
manter que a alma é o corpo e, ao mesmo tempo, que ela sobrevive à morte do
corpo.
Essa questão não deve nos ocupar aqui. O que
interessa é ver que Deus, na visão estóica, que remonta a Zenão, é também
corpóreo e se identifica com o princípio ativo do universo. Trata-se de um deus
imanente ao próprio universo, muito diferente, portanto, da concepção de Deus
dos três grandes monoteísmos provenientes do Oriente Médio.
Embora Zenão não tenha negado o espiritual, o
imaterial e o suprassensível, sustentou que a physis é matéria, é corpo
e é dotada de uma natureza sensível. Embora designada como Natureza, physis não
se confunde com o que entendemos hoje pela palavra natureza. A physis é
a realidade primeira, inesgotável donde provém o cosmos. É a realidade última
das coisas. Ela recobre as ideias de nascimento, surgimento, crescimento,
natureza própria ou disposição espontânea de um ser. Também designa aquilo que
constitui a essência ou a natureza de um ser. Força criadora de todos os seres,
a physis é o destino final deles e a ela devemos seu surgimento,
crescimento e perecimento.
O estoicismo ou a filosofia de Zenão de Cicio
propõe que, para atingir a sabedoria e tornar-se um sábio, o homem deve
procurar viver em harmonia com o cosmo, com a natureza, domesticando suas
paixões e suportando com coragem os sofrimentos do viver cotidiano, até que
venha a desenvolver uma atitude de total indiferença e impassibilidade em face
dos acontecimentos. O ideal estóico é atingir a ataraxia, ou seja, a
serenidade, a ausência de perturbações, único caminho pelo qual se pode atingir
a sabedoria e alcançar a felicidade.
Já introduzindo os próximos desdobramentos da
doutrina cosmológico-ética dos estóicos, acrescente-se que o sistema estóico
integra a lógica, a física e a ética num princípio comum. Foi, todavia, a ética
que encontrou um desenvolvimento notável e influente na tradição filosófica, de
modo que se fez penetrar e sentir, posterior e significativamente, no
pensamento ético cristão.
4.2. A teoria no
estoicismo
Na filosofia estóica, o homem é parte de uma
totalidade harmoniosa. O mundo é um lugar que favorece a sua vida. Para nele
encontrar um lugar, para nele aprender a viver e nele agir, necessário se faz,
antes de tudo, conhecer o mundo.
A etimologia de “theoria” remonta a “ta theia
arao”, que significa “eu vejo (orao) o divino (theion)” ou “eu vejo as coisas
divinas”. Segundo Ferry (2010, p. 40),
“Para os estóicos, de fato, a theoria consiste exatamente em
esforçar-se por contemplar o que é “divino” no real que nos cerca”.
Delega-se à filosofia, assim, a tarefa primeira
de contemplar o essencial do mundo, de ver nele o que é mais real e
significativo. E o que é mais real e significativo? A ordem, a harmonia, que é
justa e bela, a que os gregos chamavam “cosmos”.
Nessa visão cosmológica, o mundo material, a
totalidade do universo é constituído de elementos harmoniosamente ligados. Cada
parte desse todo está perfeitamente ordenada. Mesmo o caos provocado por
catástrofes não é suficiente para destruir essa ordem. As catástrofes duram
pouco, e a ordem não tarda em restituir-se.
É essa ordem, esse cosmos, essa estrutura de
que se reveste o universo que os gregos chamavam divino (theion). Cabe
acrescentar que, para os antigos, esse cosmos assemelhava-se a um gigantesco
animal, dotado de alma e cuja natureza podia ser racionalmente apreendida. Vale
insistir que esse mundo animado compõe-se de órgãos que se articulam em harmonia
com o todo.
Onde, então, devemos identificar a ética nessa
concepção do universo como essencialmente divino? Nas palavras de Ferry (2010),
“É justamente porque a natureza inteira
é harmoniosa que em certa medida vai poder servir de modelo de conduta aos
homens”.
(p. 44)
Para um estóico como Marco Aurélio, por
exemplo, essa ordem harmoniosa é justa e boa. Na doutrina estóica, a natureza,
sendo justa e boa, dota cada um de nós do essencial de que precisamos para
viver, por exemplo, um corpo, uma inteligência, riquezas naturais. Assim, cada
qual recebe aquilo que lhe é devido. Veremos por que, para nós, modernos, essa
visão de mundo, embora extremamente importante, como herança cultural,
histórica e filosófica, não funciona mais, não faz mais sentido como parâmetro
com que podemos guiar nossas vidas.
Em síntese, no estoicismo e na maioria das
tradições gregas, salvo o epicurismo, uma das finalidades últimas da vida
consiste em encontrar um justo lugar na harmoniosa ordem do cosmo. Essa busca
levaria à conquista da felicidade e da vida boa.
Gostaria de esclarecer que uma coisa é imanente
ao mundo, quando se situa em relação a ele e apenas a ele. É transcendente,
quando é superior e exterior a ele.
Na visão cosmológico-ética dos estóicos, não
apenas a natureza era boa, mas todos os critérios pelos quais se determinavam o
que é o bem, o que é o mal, o justo e o injusto provinham da ordem natural, que
era transcendente ao homem.
De acordo com Reale (2011), constituem teses
trazidas à tona e tematizadas pelos estóicos, embora já estivessem implícitas
na filosofia dos pré-socráticos as seguintes: 1) tudo é vivo; 2) a matéria é
dotada de vida; 3) tudo é Deus (panteísmo); 4) Deus é cosmo; 5) physis e theion
se identificam.
“Uma vez negada a transcendência platônico-aristotélica,
Deus, se admitido como existente, devia ser necessariamente imanetizado e
identificado com o cosmo e com a natureza”.
(p. 12)
Eu não poderia deixar escapar um fato
importante relativo ao pensamento estóico, especialmente exemplificado em
Epicteto e Sêneca, a saber, a retomada da doutrina socrática do daimonion
divino que habita o interior dos homens como seu espírito e razão. Esse “deus
interior” estava ligado ao divino que governa todo o cosmo e que se identifica
com ele. Subjacente a essa ideia de um deus interior que é indissociável do
cosmos divino, está a concepção segundo a qual a razão humana participa da
razão divina do mundo.
No trecho abaixo, tomado a Luc Ferry (2010), pode-se perceber a influência do
pensamento cosmológico-ético estóico na concepção cristã de Providência:
“O estoicismo culmina numa
“cosmodiceia”. Um pouco de inteligência afasta-nos do cosmo, muita inteligência
nos reconduz a ele, e o sábio, contrariamente ao ignorante, compreende que
aquilo que pode parecer ruim do ponto de vista das partes revela-se bom quando
nos situamos no nível do todo: as “desventuras”, que, por vezes aparentemente,
abatem-se sobre a vida humana, podem ser justificadas de uma perspectiva mais
global, por exemplo, por que mais tarde como a condição de um bem superior”.
(p. 287)
4.3. A destruição
do sistema cosmológico-ético
Foram os efeitos da revolução científica
ocorrida nos séculos XVI e XVII que levaram a) à destruição da ideia de cosmo;
b) à destruição do mundo como uma totalidade finita e ordenada, na base da qual
se erigia uma hierarquia de valores e perfeição; c) ao surgimento da concepção
de um Universo indefinido, infinito, que não inclui qualquer hierarquia natural
e que se rege por leis que não podem servir de parâmetro para a moralidade e
condutas humanas.
Nas condições ideológicas, culturais,
tecnológicas, científicas, filosóficas, históricas, produzidas pela revolução
científica dos séculos XVI e XVII, o mundo não era mais habitável. Não era mais
uma casa aprazível. A natureza fora destituída de qualquer significado
especial. Ela se tornou inanimada e carecida de ordem. Segundo Ferry (2010, p.
285) “ela não é mais um modelo a ser seguido, um guia para a vida humana”. É o
fim do modelo cosmológico-ético da filosofia dos antigos. É de Ferry este passo
esclarecedor:
“A ideia segundo a qual a vida boa
residiria num acordo com ela volatizou-se, de maneira que o cerne mais íntimo
das representações antigas, o sentido mais profundo que elas permitiram dar à
existência humana desmoronou, num só golpe (...)”.
(p. 285)
O desmoronamento do sentido profundo da
existência humana, garantido pela visão cosmológico-ética acarretou ao homem um
sentimento de desorientação. Essa desorientação impôs-lhes a necessidade de
encontrar ou construir outros referenciais para orientar suas vidas. Notemos
que isso ocorreu em menos de um século e meio, quando da publicação de obras
revolucionárias como a “Sobre as revoluções das órbitas celestes”
(1543), de Copérnico, a “Principia mathematica”, de Newton (1687), os “Princípios
da filosofia”, de Descartes (1644) e das teses de Galileu sobre as relações
entre a Terra e o Sol (1632).
A desorientação do homem no mundo se acompanha
de uma mudança radical da visão de mundo e da sensibilidade de outrora, para as
quais o mundo foi um todo fechado e finito. O mundo passa, então, a ser
entendido como mundo inanimado, destituído de ordem e finalidade; torna-se,
enfim, um mundo indiferente.
Tendo mudado radicalmente a visão sobre a
natureza e o universo, tornou-se insustentável manter que nós devemos
imitá-los. A natureza não podia mais servir de modelo em que fundar princípios
éticos. Sua lei é a lei do mais forte e não caberia, evidentemente,
transformá-la em um princípio ético. A julgar pelo que sabemos hoje, muito graças
ao legado do darwinismo, é extremamente difícil – e até indecoroso – pretender
encontrar no funcionamento da natureza um modelo para nossas condutas éticas,
ou um sentido de justiça e bondade.
O homem que vivia entre os séculos XVI e XVII não
podia mais aceitar a ideia de que agir moralmente era agir em conformidade com
a ordem natural. A moral deveria erigir-se e desenvolver-se em oposição a essa
ordem. Nisso também reside a transcendência do homem em relação à natureza. A
moral encontraria seu fundamento não mais na natureza, mas no Deus
judaico-cristão ou no próprio homem.
Ao ser humano caberia, desde então, lutar
contra a natureza, transformando-a e impondo-lhe sua própria lei. Demolida a
estrutura que mantinha a relação entre natureza e virtude, construída pelas
grandes cosmologias do passado, a natureza, à luz da consciência e
sensibilidade modernas, passou a ser vista como fonte de males. De uma natureza
boa, ela assumiu feições maléficas. Não se deve concluir daí o absurdo de se
acreditar que a natureza seria passível de ser avaliada segundo julgamentos
morais. De fato, não podemos dizer da natureza que ela é capaz de perpetrar
intencionalmente o mal; mas o que mudou foi a percepção de que a natureza não
era boa em si; ao contrário, não havia nela qualquer intencionalidade ou razão
divina que, a despeito dos desastres que causava, conduzisse os acontecimentos
para o alcance de um bem maior. Uma natureza indiferente, desinteressada da
felicidade humana, destituída de qualquer significado transcendente não poderia
servir senão para ser dominada, domesticada e transformada segundo as
necessidades emergentes das condições sócio-históricas (culturais, ideológicas,
políticas, econômicas, tecnológicas, científicas) à época.
Termino, pois, este texto, esperando que eu
possa ter contribuído para que o leitor se sinta estimulado a avançar ainda
mais, tal como eu, nos estudos filosóficos, tendo na consciência avivada a
necessidade de conservar o hábito de pensar, pelo estudo e leitura aturados.