quarta-feira, 12 de junho de 2013

O retorno do artigo

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O artigo em sala de aula
Algumas considerações sobre seu funcionamento discursivo


O tema deste texto toca a um capítulo das aulas de língua portuguesa que não costuma ser bem explorado pelo professor, qual seja, o artigo. Creio não incorrer em erro ao afirmar que, nas aulas, de um modo geral, muito pouco se ensina sobre a função textual ou discursiva desempenhada pelo artigo. Nas séries iniciais, o aluno é levado a identificar os artigos em frases soltas e a classificá-los em definido ou indefinido. Por vezes, há uma preocupação em ensinar a distinção semântica entre a forma “um” (uma) do artigo e a forma “um” (uma) do numeral. No capítulo da sintaxe, os artigos assumem uma função sintática no interior do sintagma nominal que o aluno deve saber reconhecer. No entanto, em nenhum dos casos mencionados, procura-se tratar o artigo como um recurso importante de coesão textual.
Este texto, portanto, é dedicado ao tratamento do artigo como uma unidade linguística implicada nos mecanismos de coesão referencial. Para elaboração deste trabalho, entendo por coesão referencial o fenômeno pelo qual um elemento da superfície textual faz remissão a outro(s) elemento(s) presente(s) no texto ou dele inferível(is). A coesão textual é parte do fenômeno global da referenciação. A referenciação é uma atividade discursiva de construção sociocognitiva-interacional de referentes que vão emergindo na própria prática discursiva e formando redes referenciais. Os referentes são considerados “objetos-de-discurso”, que são construídos, mantidos e modificados pelo/no discurso. Subjacente à noção de referenciação está a visão de que a linguagem não espelha a realidade; esta, ao contrário, é construída num complexo processo de interação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. A realidade é construída segundo os modos como interagimos com o entorno físico, social e cultural.
Os referentes, não sendo objetos do mundo, são unidades culturais construídas no/pelo discurso. A fabricação dos referentes, ou dos objetos-de-discurso, se dá na dimensão da percepção-cognição via discurso. A construção dos referentes é sempre um processo sociocognitivo-interacional. Nas palavras de Marcuschi & Koch (1998: 5),

“Isto não significa negar a existência da realidade extra-mente, nem estabelecer a subjetividade como parâmetro do real. Nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico do mundo, nem como um sistema de  espelhamento, ou seja, nossa maneira de ver e dizer o real não coincide com o real. Ele reelabora os dados sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá essencialmente no discurso. Também não se postula uma reelaboração subjetiva, individual: a reelaboração deve obedecer a restrições impostas pelas condições culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas condições de processamento decorrentes do uso da língua”.


Portanto, não dizemos o mundo tal como ele é, mas construímos versões públicas do mundo (Marcuschi, 2005, P. 71). O mundo textualizado não se identifica com um mundo real ou extralingüístico, tomado como “verdadeiro”. Não há uma relação especular entre linguagem e real: a linguagem não espelha o real. Há sempre um trabalho da percepção-cognição e da linguagem, culturalmente determinado, sobre o real. A estrutura do real não é senão resultado do trabalho da interpretação humana. O real é produto da práxis, que é ação humana na história e que envolve um aparelho perceptual-cognitivo, práticas discursivas e culturais. É nas práticas culturais, que geram redes de estereótipos, que a realidade é fabricada. Esses estereótipos ganham materialidade na linguagem e são por ela reforçados.
Os objetos-de-discurso - é preciso frisar - não devem ser entendidos como produtos de uma transformação de objetos do mundo. Os objetos-de-discurso existem no discurso e não supõem um correlato no mundo extralingüístico. Eles são construídos no discurso e delimitados na dimensão perceptivo-cognitiva. Destarte, segundo Roncarati (2010),

“O referente se torna, portanto, um objeto construído no/pelo discurso. O mundo real é aquele que sentimos, lemos, interpretamos e sobre o qual falamos com base em crenças, pressupostos, ideias e inferências construídos e reconstruídos a partir de condições de produção transitórias, arbitrárias, históricas e passíveis de negociação. Mas também temos interditos, implícitos, ironias, intencionalidades, mentiras e más intenções: quantas vezes falamos de um referente X, em verdade ocultando e velando um referente Y?”
(p. 44)

Antes de considerar a função discursiva desempenhada pelo artigo, necessário se faz definir a noção de contexto. Não pretendo fazer incursão nessa problemática; por isso, cinjo-me a dizer que, ao me referir ao contexto, levo em conta o conceito de contexto sociocognitivo. Os estudiosos que se situam na esteira das abordagens sociocognitivas da linguagem têm insistido em que o contexto físico não determina diretamente a produção e compreensão dos enunciados, mas só o faz por meio de conhecimentos representados na memória dos interlocutores. O contexto sociocognitivo compreende, então, o conjunto de conhecimentos (enciclopédico, sociointeracional, linguístico, procedural, etc.) armazenados na memória dos interlocutores, que são mobilizados para a produção/compreensão dos enunciados por ocasião do intercâmbio verbal. Trata-se, portanto, da bagagem cognitiva que cada parceiro de comunicação já traz para o evento de interação verbal. Constituem partes do contexto sociocognitivo as seguintes formas de conhecimento: o conhecimento linguístico, o conhecimento enciclopédico (ou de mundo), quer declarativo, quer episódico (frames, scripts), o conhecimento da situação comunicativa e suas “regras”, o conhecimento superestrutural (tipos textuais), o conhecimento estilístico (registros e variedades da língua e sua adequação à situação de comunicação), conhecimento sobre gêneros textuais e conhecimento sobre outros textos (intertextualidade) (Koch, 2006, p. 24).
Intimamente ligado à noção de contexto sociocognitivo está o conceito de modelos cognitivos ou experienciais. Esses modelos se constituem de estruturas complexas de conhecimentos, que representam as experiências que vivenciamos em sociedade e que servem de base para a produção de conceitos. Os modelos constituem conjuntos de conhecimentos social e culturalmente determinados e adquiridos em nossas vivências.  (Koch, 2006, p. 44).
Os modelos cognitivos ou experienciais constituem blocos de conhecimentos que representam as nossas experiências de mundo. Eles podem ser tipificados de modo vário, mas, para os meus propósitos, basta me referir a um tipo apenas, chamado frames. Frames são um tipo de modelo cognitivo que compreende conhecimentos organizados na memória sob um dado rótulo (p. ex., conhecimentos relativos a “Natal”, conhecimentos sobre “Carnaval” restaurante”, etc.). Como há autores que não distinguem entre frames e outros tipos de modelos cognitivos (esquemas, scripts, planos), frames serão definidos aqui como todo conjunto de conhecimentos armazenados na memória dos interlocutores indispensáveis à intercompreensão.

1. O artigo definido

O artigo definido ocorre em sintagmas nominais que inclui informações conhecidas dos interlocutores. Em outras palavras, o referente de expressões nominais em que se acha o artigo definido é conhecido pelos interlocutores. É a intenção do falante que determinará o uso do artigo definido, bem como o modo como ele pretende comunicar uma dada experiência. O uso do artigo está intrinsecamente ligado às circunstâncias, linguísticas ou não, da enunciação.
O artigo definido atualiza uma referência direta quando o falante se refere a algo presente na situação de comunicação. Assim, em (1),

(1) A piscina está vazia hoje.

o enunciador usa o artigo definido para indicar que se trata de uma piscina identificada na situação de comunicação.
A referencia é indireta, sempre que o uso do artigo definido for extremamente dependente do conhecimento de mundo compartilhado pelos interlocutores. Nesse caso, eles sabem a que entidade se faz referência, mesmo que ela não esteja disponível na situação de fala. No exemplo (2), abaixo, ilustra-se a referência indireta:

(2)
A – Olha, virá uma senhora aqui pegar os alimentos que doarei. Atende ela pra mim.

(alguns instantes depois...)
A – E a moça pegou os alimentos?
B – pegou.

O uso do artigo “a” antes do substantivo “moça” no segundo turno da fala de A foi possível, porque A compartilha com B o conhecimento sobre a mulher que iria pegar os alimentos para doação. O referente de “moça” é reativado na memória do falante B, visto que já havia um endereço cognitivo para ele quando da produção da primeira fala de A, quando ele introduziu no discurso a expressão “uma senhora”.
O artigo definido, quando usado para referência textual ou endofórica, figura num sintagma que faz remissão a um constituinte anterior. Quando a remissão se dá para trás, chamamo-la anafórica. A anáfora é, portanto, o mecanismo pelo qual uma expressão nominal faz remissão a outro elemento que a precede. Em (3), temos um caso de referência anafórica pelo uso de uma expressão nominal com artigo definido:

(3) Um homem roubou a bolsa e fugiu. O delinquente está sendo procurado pela polícia.

Note-se que “o delinquente” faz remissão a “um homem”.

Particularmente interessante são os casos em que usamos o artigo definido em anáforas conhecidas como associativas. Anáfora associativa consiste no emprego de uma expressão definida, cuja compreensão não se ancora em algum referente explícito anteriormente anunciado, mas depende de uma inferência com base em algum elemento anterior que funciona como uma espécie de ‘gatilho’. O referente da expressão anafórica é introduzido como se fosse já conhecido. Há uma relação semântica de pertinência ou ingrediência entre a expressão anafórica e o elemento que permite a sua compreensão. No enunciado abaixo, de Pitágoras, o uso de “a amizade” (com artigo definido) foi possível em virtude da ocorrência de “amigos”.

(4) “Os amigos têm tudo em comum, e a amizade é a igualdade.

O constituinte “a amizade” não retoma “amigos”, ou seja, “amigos” não é o referente a que faz remissão “a amizade”, mas essa expressão ‘faz sentido’ porque podemos estabelecer uma relação semântica de pertinência entre ela e o elemento “amigos”. Vejam-se outros exemplos:

(5)  O carro enguiçou e o motorista esperou duas horas pelo reboque.
(6) O casamento foi um sucesso. A noiva estava linda; a decoração, impecável.
(7) Quando cheguei à bilheteria, os ingressos haviam acabado.

Todos os sintagmas grifados em negrito constituem exemplos de anáforas associativas. Em (5), a ocorrência de “o motorista” se explica porque é possível estabelecer uma relação de ingrediência com “o carro”. É claro que “o motorista” introduz um referente novo, mas ele se torna compreensível via “carro”. A expressão que torna possível a anáfora associativa ativa um frame no interior do qual esta faz sentido. Assim, “o carro” ativa um conhecimento sobre como chamamos a pessoa que o dirige. Em (6), é “casamento” que ativa um frame (um modelo cognitivo) no interior do qual “a noiva” e “a decoração” são interpretados. O frame é a representação na memória do falante de uma experiência que assume a forma de conhecimento que é ativado pela ocorrência de uma expressão linguística (no caso, “casamento”). Assim, “casamento” ativa um frame que inclui elementos como “noivo”, “noiva”, “igreja”, “padre”, “juiz”, etc. Novamente, cabe lembrar que “a noiva” e “a decoração” estabelecem uma relação anafórica por associação com “casamento”, mas não fazem remissão a um elemento anteriormente anunciado. Não há, nos casos de anáfora associativa, correferência. Finalmente, em (7), a expressão “a bilheteria” aciona um frame em que “os ingressos” se reveste de sentido. É parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que bilheterias vendem ingressos (para shows, filmes, partidas de futebol, etc.).


2. O artigo indefinido

Via de regra, as expressões nominais encetadas de artigo indefinido não servem para fazer remissão a referentes já introduzidos no texto. Não obstante, há alguns casos em que a remissão é possível: a) quando se seleciona um referente dentro de um conjunto já mencionado (p.ex. Um grupo de estudantes protestou contra a decisão do governo. Um colegial acabou agredido pelos policiais.); b) quando se nomeia uma parte de um referente previamente mencionado (p. ex. O telhado precisa de conserto. Uma telha está quebrada.); c) quando a expressão anafórica realça a informação que veicula (p. ex. Quando chegou em casa, não encontrou o pai vigoroso de sempre, mas um velho estafado).
Diferentemente do artigo definido, o artigo indefinido não é uma palavra fórica. Usa-se antes de substantivos quando não se pretende apontar ou indicar a pessoa ou coisa que se faz referência, nem na situação de comunicação, nem no texto. No sintagma com artigo indefinido, a referência incide sobre a classe particular a que uma coisa ou pessoa pertence. O artigo indefinido indica que o sintagma aplica-se a qualquer membro da classe ou grupo. Dizer que os artigos indefinidos são não-fóricos significa dizer que eles não permitem recuperar a informação semântica na situação ou no texto. Também não são descritivos, porque não fornecem informação sobre a natureza dos objetos; eles operam sobre um conjunto de objetos previamente delimitados em razão de suas propriedades.
Se, por um lado, o artigo definido se acha num sintagma nominal em que a referência é considerada como conhecida tanto pelo falante quanto pelo ouvinte; por outro lado, o artigo indefinido figura num sintagma indeterminado que pode ser de dois tipos:

a) indeterminado específico: quando o falante identifica um referente, mas o ouvinte não.
Ex. Eu pedi a um amigo que me emprestasse o celular.

“Eu” sei de que amigo se trata. O referente de “um amigo” é parte de meu conhecimento de mundo.

b) indeterminado não-específico: quando nem o falante nem o ouvinte identificam o referente.

Ex. Tenho de comprar um celular novo urgentemente.

Trata-se de “qualquer celular”; nesse caso, o referente não é conhecido nem do falante nem do ouvinte.

Por fim, vale dizer que o artigo indefinido enceta sintagmas que fazem remissão catafórica (movimento para frente). No exemplo “Eu só espero uma coisa de você: a sua amizade”, a expressão “uma coisa” faz remissão ao constituinte “a sua amizade”, posposto.
Segue-se, abaixo, o texto de Millôr Fernandes, intitulado de “a vaguidão específica”, que ilustra muito perspicazmente a função discursiva do artigo definido. Destaquei os sintagmas em que ocorre o artigo definido. O uso do artigo definido foi possível porque as interlocutoras compartilham parcelas de seus contextos sociocognitivos.

A Vaguidão Específica

“As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica”.
(Richard Gehman)

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim, senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse para ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo para mim?
- Não senhora, só trouxe as coisas.
- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.

(Millôr Fernandes)





terça-feira, 11 de junho de 2013

"O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há.Mas o demônio não precisa de existir para haver." (Guimarães Rosa)



Satã: o renegado da História
Breves considerações sobre esta personagem bíblica


 

Em Ímpio – o evangelho de um ateu (2011), de Fábio Marton, o narrador nos conta sobre o que costuma acontecer ao final de um culto evangélico. Após o pastor anunciar “aceitem Jesus em seu coração”,

“Era nessa hora que podia acontecer o exorcismo de um dos crentes com problemas ou caso algum dos recém-convertidos trouxesse da rua um demônio avulso que precisasse ser removido antes de começar sua nova vida. Neste dia, e em todos, meu pai e minha mãe não foram à frente. Quanto aos demônios, como falei, meu avô não era muito dado a exorcismos, e parece que os demônios respeitavam sua inclinação”.
(p. 24)


Mais adiante, o narrador nos relata que o mundo dos crentes é repleto de emoções. Eles vivem num mundo em que Deus atua constantemente, mas ele não está sozinho; também o Diabo, seu adversário, costuma dar o ar de sua graça. Segundo o narrador, os crentes vivem num mundo “em que Deus e o Diabo nos falam por nossos próprios pensamentos, que, assim, nunca são nossos” (p. 26). Não é novidade que, no mundo dos neopentecostais, Deus e o Diabo estão numa batalha cósmica eterna. Nesse universo, as forças do mal exercem influência direta na vida dos crentes e as sessões de exorcismos, bastante teatralizadas, são frequentes.
Neste texto, eu me ocuparei com as formas como a personagem satã foi representada no Antigo e no Novo Testamento. A questão básica sobre a qual assentam minhas reflexões é: O que a Bíblia tem a nos dizer sobre anjos, demônios e satã? No imaginário popular, ainda hoje, demônios e satã (ou Satanás) são seres malignos capazes de possuir pessoas e prejudicá-las. Muitos, ainda hoje, evitam pronunciar essas palavras. Essa crença encontra abrigo na Bíblia ou foi construída pelo pensamento cristão no período pós-Bíblico? Este texto é destinado a contar um pouco sobre a história que está na origem da crença em satã como um opositor de Deus.
A crença na existência de forças ou espíritos malignos é comum a muitas tradições religiosas. Embora este texto não seja destinado ao tratamento das representações de forças malignas nas mais diversas tradições religiosas, vale referir aqui alguns exemplos dessas representações em algumas tradições religiosas.
Comecemos pelo Zoroatrismo, uma religião monoteísta muito antiga da Pérsia (atual Irã). Em meados do século VII d.C., ela deixou de ser predominante nesse território, devido à chegada do Islã. Atualmente, é praticada por uma pequena parcela da população iraniana e por minorias na Índia e em outros países.
Seu profeta chamava-se Zoroastro, conquanto seus seguidores costumassem se referir a ele como Zaratustra. Ele pregou uma religião em que o deus criador, chamado Aúra-Masda, estava envolvido numa luta eterna com o espírito maligno Angra Mainyu. Estudiosos do passado acreditaram que o Zoroatrismo exercera influência na representação da personagem Satã no Antigo (por ocasião do Exílio babilônico) e no Novo Testamentos. Atualmente, parece haver consenso em que este não era o caso, visto que a personagem Satã estava sempre subordinada a Deus nas representações judaicas e cristãs, ao passo que Angra Mainyu nunca assume o papel de acusador. Consoante veremos, na Bíblia Hebraica, um dos papeis assumidos por satã é o de acusador ou querelante.
Os adeptos do zoroatrismo ajudam o deus Aúra-Masda na luta contra Angra Mainyu, por meio da prática do bem e do culto. Há uma forte ênfase à liberdade de escolha moral e os crentes são estimulados a agir de modo moralmente bom.
As religiões primais também constituem exemplos de religiões em que forças do bem concorrem com forças do mal. Consistem elas em sistemas de crenças e rituais típicos de povos com um modo tradicional de vida tribal. Esses sistemas precederam às grandes religiões organizadas. Como não havia escrita, quando do desenvolvimento dessas religiões, suas crenças e tradições eram transmitidas oralmente.
Nelas, há milhares de espíritos ou divindades pelas quais os adeptos explicam as poderosas forças naturais do cosmo. Suas práticas religiosas se destinam, sobretudo, a cultuar ou a agradar esses espíritos, para prevenir desastres ou para obter ajuda ou misericórdia quando sucedem problemas. Os espíritos influenciam diretamente a vida e o destino dos indivíduos.
O panteão dessas religiões é repleto de espíritos ou divindades que cumprem muitas funções e se relacionam com os homens de modo bastante variado. Algumas divindades se parecem com os deuses de outras religiões, controlando um ou mais aspectos do cosmo. Por exemplo, Ogum, entre os iorubas na Nigéria, é a divindade do trabalho em metal; Kukailimoku é o deus havaiano da guerra. Existem espíritos benévolos e maus ou travessos; estes últimos devem ser aplacados pelos devotos com preces e oferendas. Em algumas culturas, há um deus superior ou espírito criador. No universo dessas religiões, os espíritos estão em toda parte. Eles estão ligados à natureza, e essa ligação assinala o estreito vínculo entre os povos tribais e a terra que habitam.
Há praticantes dessas religiões, ainda hoje, entre os povos indígenas de partes das Américas do Norte e do Sul (norte do Canadá e a baía amazônica), na África subsaariana, na Austrália e em partes do norte e do leste da Ásia.
Não poderia deixar de notar a importância do maniqueísmo como um exemplo representativo de doutrina em que o mal está em conflito com o bem. O maniqueísmo foi uma doutrina fundada por certo Corbicius (séc. III d.C), chamado Mani. Na língua arameu-babilônica, Mani significa “Espírito do Mundo Luminoso”. O pensamento maniqueísta assemelha-se muito ao cristianismo, e a semelhança é tal, que seu fundador teria recebido um chamado do próprio Jesus, para que se tornasse seu apóstolo e anunciasse a verdade. Conta-se que Mani também fora crucificado. O maniqueísmo era uma religião do mistério ou uma espécie de religião-ciência. Ela se difundiu pelo Império Romano e o Ocidente cristão, combinando elementos do zoroatrismo, de outras religiões orientais e do próprio cristianismo. Basicamente, a doutrina maniqueísta assenta numa visão dualista radical, segundo a qual o mundo é habitado por forças do bem e do mal, que são princípios absolutos em luta eterna. O maniqueísmo influenciou o desenvolvimento do cristianismo em seus primórdios, atraindo inclusive o interesse de Santo Agostinho; mas este, posteriormente, daquele se afastaria, tornando-se um tenaz opositor.

 Anjos e demônios na Bíblia

As representações de anjos e demônios figuram em várias partes da Bíblia e estão ligadas a ideias que se desenvolveram ao longo do tempo. Em primeiro lugar, é preciso fazer ver que a palavra “anjo” tem origem no grego angelos, que significa ‘mensageiro’. É a forma que figura na tradução da Septuaginta da Bíblia hebraica para o grego e corresponde ao hebraico malak. O nome do profeta Malaquias significa “meu mensageiro” (Swenson, 2010). Em segundo lugar, também importa saber que angelos e malak são usados para se referir a mensageiros humanos ou a mensageiros sobrenaturais de Deus. Por vezes, esses mensageiros são maus.
No Antigo Testamento, é a forma malak que é usada, mais comumente, para se referir aos mensageiros sobrenaturais de Deus. Os malaks, quer sejam divinos, quer sejam quase divinos, não só entregam mensagens, mas também comandam as ações humanas, protegem ou impingem castigos. Ainda no Antigo Testamento, é possível se topar com a forma bene elohim que significa, numa tradução livre, “filhos de Deus”. Trata-se de seres divinos, também entendidos como “seres celestiais”. Eles integram a assembleia de Deus, e uma representação desta assembleia se pode ver em 1 Reis 22:19-22.
A palavra “anjo” também pode designar, no Antigo Testamento, seres humanos dotados de características e habilidades não-humanas. Em Zacarias 1:7-17, se encontra uma alusão tanto a um homem quanto a um malak que instrui o profeta a realizar sua profecia. Em meados do século II a.C, época em que o livro de Daniel já estava concluído, as representações de anjos estavam bem assentadas e detalhadas. Anjos como Gabriel, que ajudou Daniel a interpretar os sinais, e Miguel, que, em hebraico, era designado como “príncipe” ou “funcionário” são exemplos de anjos com nomes de pessoa.
No tangente aos seres sobrenaturais chamados serafins e querubins, Swenson (2010) nota que, na Bíblia hebraica, “não são tanto “anjos” na forma como os concebemos, mas, digamos, a fauna da esfera sobrenatural” (p. 230). A autora acrescenta:

“Eles não são intermediários entre o céu e a terra; tampouco lidam com os seres humanos de muitas outras maneiras. Pelo contrário, eles agem como guardiões protetores do divino (...) e podem servir para proclamar a santidade de Deus (...); os serafins aparecem também como agentes da ira de Deus contra os israelitas e como cobras ferozes cuja picada pode ser letal (...)”.

(pp. 230-31)


No Novo Testamento, os angelos não só continuam a cumprir as funções dos malaks da Bíblia hebraica, como também assumem outros papeis. Eles continuam sendo mensageiros ou guias (como no Antigo Testamento), mas passam a ser guardiões de seres humanos ou de toda uma comunidade. Particularmente importante é notar que os anjos participam da vida de Jesus, ajudando-o do início ao fim de sua vida. Os anjos ainda auxiliam nos julgamentos (ver Atos).
Tendo em conta, agora, os demônios, interessa saber que, na Bíblia hebraica (o Antigo Testamento cristão), Deus não só podia enviar mensageiros para realizar boas obras na Terra; ele também era responsável por enviar ruach há’a, que se pode traduzir como ‘espírito malévolo’ (Swenson, p. 231). Foi um desses espíritos que atormentou o rei Saul. Esses espíritos, embora não fossem demônios, tais como os entendemos hoje, provinham de Deus.
O Antigo Testamento não dispõe de apenas um termo específico que equivalha à palavra “demônio”. Na Septuaginta, ocorre o termo shedim, traduzido como daimonion (que, em grego, era espírito ou alma), que se refere a deuses que não eram como Deus e que os israelitas cultuavam.
Em suma, segundo Swenson, “há simplesmente muito pouco na Bíblia hebraica sobre demônios, como nós os imaginamos” (p. 232). Na verdade, o que figura no imaginário popular hoje a respeito do que sejam demônios tem sua origem nos textos intertestamentais e no Novo Testamento. A palavra daimon, ou sua forma diminutiva daimonion, que, em grego, não significa necessariamente um ser sobrenatural e malévolo, é empregada aí para se referir ao que entendemos hoje como “demônio”. Os judeus-cristãos daquele tempo acreditavam que doenças e deficiências físicas ou mentais eram obra de demônios que podiam possuir pessoas.


Com a palavra, Satã ou Satanás

Desde já, é importante frisar que a Bíblia não endossa a interpretação segundo a qual a serpente do Éden era Satanás. Na verdade, coube a Orígenes, teólogo cristão do século III d.C, identificar a serpente com Satanás. De acordo com Swenson, na maioria das vezes, na Bíblia, as serpentes são representadas como ameaças naturais às pessoas, “mas elas não são retratadas como más em si mesmas” (p. 215).
Em seu livro Satã – uma biografia (2008), Henry Ansgar Kelly, ao se dedicar a analisar a história biográfica da personagem Satã na Bíblia, declara, na forma de tese, estar na mídia a origem da deturpação, através dos tempos, da imagem desse ser mitológico:

“Minha tese é que a deterioração do personagem Satã apresentado na Bíblia é simplesmente o resultado natural da “atenção desfavorável da mídia”, o tipo de situação que acontece com qualquer personagem impopular. A deterioração que acontece na época pós-bíblica, quando Satã foi finalmente interpretado desde o início como um rebelde e um desterrado e no final como praticamente um anti-Deus, nada mais do que uma extensão desse desenvolvimento interno”.
(p. 13)


Antes de prosseguir, preciso fazer algumas observações de ordem linguística, no que diz respeito ao emprego das palavras satã e diabo na Bíblia hebraica. No Antigo Testamento, a palavra hebraica para “satã” é um substantivo comum, cujo significado é “adversário” (Kelly, p. 11). Quando traduzida para o grego, assumiu a forma diabolos (diabo). Ocorre, contudo, que, em hebraico, quando usado com artigo definido, “satã” designa o substantivo comum “o adversário”. Quando usado sem acompanhar-se do artigo, pode significar “um adversário” ou o nome próprio Satã. Em grego, todo nome próprio se acompanha de artigo definido. Portanto, “o diabolos” significa “o diabo” ou “Diabo”. Diz-se o mesmo da palavra Deus, que, em grego, se escreve ho theos, significando “o deus” ou “Deus”.
Compreendamos, pois, como esse personagem impopular e execrável fora representado na Bíblia. Em hebraico, satan não se referia originalmente a um indivíduo. Na Bíblia hebraica, satan é um nome ou um verbo que significa “acusação”, “traição” ou “adversidade”. Segundo Swenson, apenas em 1 Coríntios 21:1, a palavra satã designa um adversário de Deus. Nesse caso, a palavra se acompanha de artigo definido, sugerindo que se trata de um nome próprio, qual seja, Satanás. Deve-se notar, no entanto, que, nesse caso, estamos falando do Novo Testamento. Foi no Novo Testamento que Satã, então entendido como Satanás, acaba por personificar o mal.
No Antigo Testamento, de modo geral, satã não é representado como um antagonista de Deus. Em Jó, por exemplo, ele é uma espécie de acusador. Na Bíblia hebraica, satanás é empregado para designar seres humanos ou adversários sobrenaturais. Satanás, por exemplo, foi associado ao papel desempenhado por Davi no exército filisteu; os filisteus estavam preocupados com que Davi pudesse se tornar um satanás para eles. Em Números, Zacarias, 1 Crônicas e Jô, satanás designa seres sobrenaturais; mas ele não era uma adversário de Deus. Na verdade, assumia o papel de acusador ou promotor. Segundo Swenson, apenas em 1 Crônicas, Satanás fora representado como um adversário personificado de Deus. Aprendemos bastante sobre como a imagem de Satã se foi modificando neste trecho de Swenson:

“Dado o aumento na variedade de nomes pessoais aplicados depois aos demônios na literatura intertestamental, parece que mudanças nas visões de mundo (provavelmente influenciadas, em primeiro lugar, pelo dualismo do zoroatrismo da Pérsia) permitiram o desenvolvimento de um demônio tal como o reconhecemos. Comentários judaicos posteriores sobre as escrituras hebraicas durante o período rabínico intertestamental atribuem muito mais maldade a Satanás (...)”.

(p. 235)


Com a conclusão do Novo Testamento, Satanás já se achava plenamente identificado com a figura do mal e, portanto, com um adversário de Deus. Se, no Antigo Testamento, Satanás operava sob a orientação de Deus, em geral, apenas contra seres humanos, no Novo Testamento, Satanás passa a gozar de maior autonomia de ação e a assumir uma forma totalmente diversa. Por volta do século I d.C, satanás passou a ser um adversário de Deus. No Novo Testamento, satanás tem vários nomes, um dos quais é “diabo”.
Interessante é que a ideia de Satanás como um anjo decaído, chamado Lúcifer, não se encontra na Bíblia. Essa ideia chegou até nós muito devido a contribuição dos teólogos cristãos Orígenes e Tertuliano, no início do século II d.C. Com base na passagem de Isaías 14:12 – “Como caíste, estrela da manhã! Tu, que uma vez derrubaste nações, estás caída à terra” -, eles associaram a profecia de Isaías a Satanás. Com vistas a esclarecer este ponto, convém notar que a profecia de Isaías trata de uma estrela específica que aspirou a subir tão alto, que excedesse em altura as estrelas de Deus. Ela, assim, se tornaria o Deus supremo; no entanto, segundo Isaías, ela seria relegada a uma posição mais baixa que a terra. O nome Lúcifer com que se designa Satanás é uma versão latina do hebraico helel, que, originalmente, significava “estrela da manhã”, mas que assumiu o significado “portador de luz”, quando traduzido para o latim.
Belzebu, do hebraico Baal zebub, também é outro nome para Satanás. Essa forma se acha no livro dos Reis do Antigo Testamento. Baal zebu era um deus filisteu a quem o rei israelita recorreu, após sofrer uma queda que lhe causou danos. No período do Novo Testamento, Belzebu já tinha se tornado uma outra forma para se referir a Satanás.


Conclusão

Não tive a intenção de me alongar sobre o tema, de modo que muito ainda haveria de ser dito. Não obstante a concisão com que o tema foi abordado, se levamos em conta as formas como Satã é representado na vasta e diversa literatura bíblica, devemos reconhecer o seguinte: para os antigos judeus, a incompatibilidade entre a existência de um Deus bom e de um Satã não constituía um problema que se deveria enfrentar. Na verdade, Satã, a considerar uma grande parte dos registros do Antigo Testamento, estava subordinado a Deus e agia sob a tutela deste. Satã não era, pelo menos na grande maioria dos escritos da Bíblia hebraica, um adversário de Deus. A situação é diversa no Novo Testamento, e o problema que surge quando se admite a existência de um ser maligno, em que pese a existência de um ser bom, Criador e Todo-poderoso, se impõe. No Antigo Testamento, Deus podia enviar seres malévolos para cumprir algum propósito; no Novo Testamento, Satã passa a ter autonomia em relação a Deus e torna-se seu opositor. Até onde eu sei, o cristianismo não oferece uma resposta, ao menos satisfatória, para a questão: como conciliar a existência de Deus com a existência do Diabo? Tampouco, parece ser uma preocupação da teologia cristã a questão que se impõe quando se afirma que Deus criou tudo que há: Donde então provém Satanás? Se de Deus, como, então, sustentar a benevolência de Deus?

Este texto ilustra o que chamo de ateísmo esclarecido. Um ateísmo esclarecido deve consistir numa reflexão séria sobre a História cristã e deve se respaldar nas contribuições de estudos crítico-históricos da Bíblia. Um ateísmo esclarecido é um ateísmo que não se limita a declarar simplesmente absurdas as crenças religiosas, mas que busca compreender a origem dessas crenças, a história que as tornou possíveis. Este texto procurou mostrar que a personagem Satã fora construída em parte pela literatura bíblica e em parte por interpretações posteriores. Subjacente ao desenvolvimento deste texto está o pressuposto de que Satã não é um ser real, mas um personagem da diversificada e vasta literatura bíblica. Ele tem uma biografia, como salienta Kelly. Um ateu esclarecido, não se limitando a vociferar que Satã é um mero ser imaginário, deve se esforçar por compreender as suas raízes históricas. De fato, Satã não existe, se existisse, sua própria existência deveria lançar sérias dúvidas sobre a existência de Deus, embora isso não constitua um problema reconhecido pela maioria dos cristãos. No entanto, para um ateu esclarecido, tanto Deus como Satã são personagens criados por homens que viveram no Antigo Oriente Médio, a fim de lidar com as dificuldades de seu tempo. Se o culto ao Diabo atormenta ou escandaliza os cristãos, ao ateu esclarecido esse culto não deve ser encarado senão como uma realidade favorecida numa cultura cujas raízes foram construídas por uma teologia e História que o preveem e o explicam. 

segunda-feira, 3 de junho de 2013

"A fé torna-se ainda mais frágil quando conhecemos sua História" (BAR)



Como tudo começou
A História dos antigos hebreus


Atualmente, a palavra História apresenta duas acepções, com que a maioria de nós está suficientemente familiarizada: a) disciplina que se constitui de relatos, análises, pesquisas sobre documentos, desenvolvidas pelos historiadores; b) a matéria dessa disciplina, ou seja, os acontecimentos, as relações, as práticas em que os seres humanos estão envolvidos como agentes e pacientes (guerras, sucessão de reis, alianças, assassinatos, miséria, escravidão, etc.). É preciso dizer, no entanto, que os historiadores não lidam diretamente com “fatos históricos”; na verdade, os fatos históricos são produtos de seu trabalho de pesquisa, seleção e interpretação. A história não nos dá o passado; mas o passado é que é reconstruído pelo trabalho investigativo e interpretativo dos historiadores. A reconstrução do passado se dá com base nas evidências disponíveis; no entanto, elas, por si mesmas, não lhes fornecem um “retrato” do que aconteceu. Embora todo fato histórico seja um acontecimento do passado, o inverso não é sempre verdadeiro (Schaff, 1983, p. 209). Para que um acontecimento seja considerado um fato histórico, ou seja, um fato social, necessário se faz que ele produza efeitos em certa conjuntura social e em certo sistema de referência. Todo fato, para ser considerado um “fato histórico”, tem de ser dotado de significado num dado sistema de referência. É no interior desse sistema que o historiador valoriza e seleciona acontecimentos segundo os objetivos de sua pesquisa. Tendo em conta o trabalho do historiador na definição de um fato histórico, observa Schaff,

“O historiador que procura, por exemplo, fontes sobre a história política de um país, ficará indiferente aos testemunhos da cultura e da arte se estes não estiverem diretamente ligados à vida política; estes testemunhos não terão para ele nenhuma significação história, enquanto que se tornarão fatos históricos significantes (podem pelo menos vir a sê-lo em certas condições) para aquele que os situar no contexto da história cultural do país ou de uma determinada época, para aquele que os ligar a um dado sistema de referência.”

(pp. 210-11)


Tendo em vista o exposto, serão dois os objetivos que perseguirei neste texto: o primeiro dos quais será tornar patentes os acontecimentos da saga dos antigos hebreus que influenciaram o aparecimento dos primeiros manuscritos que, após reeditados muitas vezes e muito tempo depois, por escribas, viriam a constituir a Torá (Bíblia hebraica); o segundo será mostrar a importância da fé israelita na Escrita da História da Antiga Israel.


Escrituras Sagradas


De início, a despeito da crença em contrário, os documentos que se iam forjando na época em que viveram os antigos hebreus (aproximadamente 1.200 a.C), no Antigo Oriente Próximo, se tornaram “Escrituras” não porque fossem divinamente inspirados, mas porque as pessoas os tratavam de modo diferente. Sucedeu assim com os textos que viriam a compor o que hoje conhecemos como Bíblia. Os textos só se tornaram sagrados pelo uso especial que deles faziam os homens, ou seja, quando eram lidos em contextos ritualizados e, portanto, quando eram desvinculados da vida comum e dos modos de pensamento secular (Armstrong, 2007, p. 10).
O sagrado, portanto, não está nas coisas em si, mas é um significado que os seres humanos atribuem a certos objetos, lugares ou pessoas, segundo a forma como eles entram em relação com esses objetos, lugares e pessoas. É a linguagem humana que cria o sagrado. Em outras palavras, as coisas se tornam sagradas quando os homens a nomeiam como tais (Alves, 2008). Seres, objetos e coisas se tornam sagradas quando entram a fazer parte de teias invisíveis de significação. O que é o sagrado, senão o imaculável, o não profanável, o inviolável, com que os homens têm de se relacionar com profunda deferência e decoro? O sagrado é o sinal, para os homens, da presença do divino entre eles no mundo. Por isso, o sagrado deve ser adorado, reverenciado e transformado em objeto de culto. Ao atribuir o valor de sagrado a um objeto ou experiência, esse objeto ou experiência é desvinculado do viver cotidiano. O sagrado transcende o significado de que são dotadas as coisas em nossa vida cotidiana. Uma rodela de pão ázimo, entre os católicos, deixa de ser uma rodela de pão para tornar-se o próprio corpo de Cristo. Justamente porque é o corpo daquele de quem os cristãos dizem ter sido o próprio Deus, aquela rodela de pão ázimo torna-se sinal do sagrado.
Na experiência do sagrado, os humanos se submetem aos próprios significados que forjam, à própria linguagem religiosa que produz significados extraordinários, que lhes evocam a presença do divino no mundo.
Em suma, os manuscritos se tornaram sagrados porque passaram a fazer parte de estruturas ritualísticas, o que lhes permitiu separar-se das experiências da vida comum.


A Bíblia Judaica

A Bíblia judaica é mais antiga e serviu de base para o aparecimento da Bíblia cristã. A Bíblia dos cristãos depende da Bíblia judaica. Pode ser surpreendente para muitas pessoas, mas a Bíblia judaica não existia como tal antes do aparecimento dos primeiros cristãos. É verdade, por outro lado, que grande parte dos manuscritos que viriam a constituir essa Bíblia já se prestava a uso, havia muito tempo, como escritura autorizada pelas comunidades judaicas. Em Desvendando a Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte:

“As Escrituras pré-Bíblia – que tanto os judeus tradicionais quanto os judeus seguidores de Jesus usavam naquela época – eram traduções de antigos manuscritos em hebraico para uma língua comum, o grego. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia oculta, pois sua existência, pressupostos, linguagens e estrutura estão por trás de muitas diferenças nas Bíblias de hoje”.
(p. 30)


Essas traduções dos manuscritos em hebraico para o grego ficaram conhecidas pelo nome de Septuaginta, em referência aos setenta estudiosos e aos setenta dias necessários à tradução dos manuscritos para o grego. Não havendo ainda uma Bíblia, a Septuaginta acabou por incorporar mais do que escrituras hebraicas traduzidas; incluiu variantes de livros já existentes e novos livros inteiros. Foi somente no século I d.C que os judeus excluíram os novos livros que, por serem novos, não mereciam credibilidade, e definiram seu cânone, ou seja, a sua Bíblia.
A Bíblia hebraica ou judaica, também, às vezes, chamada de Torá, encerra, além da Torá (Pentateuco), os livros dos Profetas e dos Escritos (Salmos, Provérbios, Jô e Eclesiastes). Por vezes, a Bíblia hebraica é chamada pela sigla Tanakh, em que ‘T’ refere-se a Torá; ‘N’, à palavra hebraica Nevi´im, que significa Profetas; e ‘Kh’, à palavra hebraica Kethuvim, que significa “Escritos”. O Pentateuco, que se identifica com a Torá, encerra os livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Bíblia judaica, Tanakh e Bíblia hebraica são designações para a mesma Bíblia dos judeus. Muita vez, o Antigo Testamento cristão corresponde a todo o conteúdo da Bíblia hebraica, muito embora seja organizado de modo diferente. Como os cristãos acreditavam que a vinda do Messias, que foi identificado com Jesus, havia sido profetizada nos manuscritos judaicos, o Antigo Testamento foi organizado de tal modo que o último texto anunciasse  a chegada do Salvador. A identificação do Messias aguardado pelos antigos hebreus com Jesus de Nazaré, por isso chamado o Cristo, se deveu à interpretação dos primeiros cristãos, já que os antigos judeus não acreditavam que esse Messias apareceria na forma humana. O Messias dos antigos judeus deveria ser muito mais grandioso do que sugeria ser um simples carpinteiro de Nazaré.
Embora se costume chamar de Antigo Testamento a toda a Bíblia hebraica, esta não se reduz àquele. Os Antigos Testamentos da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa encerram livros e seções da Septuaginta que não figuram na Bíblia judaica.
A Bíblia compreende textos provenientes de várias épocas e lugares. Estimava-se que a Bíblia hebraica inclua textos que remontam a um período que se estende por mais de mil anos (o mais antigo data de 1.200 a.C; o mais recente, de aproximadamente 165 a. C). Os textos são provenientes da Mesopotâmia, de Canaã, do Egito e de todo Crescente Fértil (um extenso território que inclui os atuais Israel, Jordânia, Líbano, partes da Síria, Iraque, o sudoeste da Turquia e do Irã). A região tem esse nome em virtude de ser banhada pelos rios Jordão, Eufrates, Tigre e Nilo. Não só a origem dos textos é bastante variada, mas a literatura bíblica também o é. A Bíblia inclui poesia devocional, textos jurídicos, biografias, aforismos, tratados filosóficos, cartas a indivíduos e grupos, cânticos e narrativas de instrução, anedotas e sermões (Swenson, p. 64).
Como, no período em que a Bíblia ia tomando forma, a grande maioria das pessoas era analfabeta, a produção e uso dos manuscritos eram circunscritos a uma pequena elite letrada. No tangente à autoria da Bíblia, Swenson dá-nos a saber o seguinte passo:

“Autoria, durante o período do desenvolvimento bíblico, raramente significava a empreitada criativa de um indivíduo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Quase toda a literatura da Bíblia é atribuída a uma pessoa ou outra que não chegou a escrevê-la. A maior parte da Bíblia (especialmente da Bíblia hebraica) é produto das poucas pessoas, geralmente anônimas, que podiam aprender a ler e escrever – escribas, ensinados no templo (...)”

(pp. 64-5)


Importante notar que os escribas lançavam mão, ainda que parcialmente, de tradições preexistentes e de textos na modalidade oral (narrativas, poesias, anais, oráculos preservados e veiculados por discípulos de um profeta) (Swenson, p. 65). Eles copiavam e editavam tais textos de acordo com seus interesses e teologia. A literatura que hoje chamamos de Bíblia não circulava em códices encadernados, mas na forma de rolos de pergaminho. Os textos circulavam de modo independente, do que resultou uma organização não muito fixa.
Desde já, convém ter em conta a influência decisiva do exílio dos antigos hebreus na Babilônia, por ocasião da invasão a Jerusalém por Nabucodonosor, então rei da Babilônia, na fabricação da Bíblia. Não menos importante foi o papel desempenhado pelo imperador persa que, após libertar os exilados, recomendou que eles codificassem em forma escrita suas leis e tradições. Há um consenso forte entre os especialistas de que os cinco primeiros livros da Bíblia judaica se constituíram durante o exílio, se tornando oficiais na comunidade judaica durante a ocupação dos persas.


Os primeiros hebreus: a saga da antiga Israel

A palavra “hebreu” significa “viajante” ou “aquele que atravessa para o outro lado” (Blainey, 2010, p. 94). De fato, os hebreus eram povos nômades. Embora tenham vivido períodos de prosperidade, conheceram a miséria, a humilhação, o cativeiro e o exílio. Foram escravizados no Egito, mas alcançaram sua liberdade por meio dos esforços de seu líder Moisés. Entretanto, o que ficou conhecido como Êxodo não constitui um fato histórico.
O aparecimento dos antigos hebreus remonta a, aproximadamente, 1.200 a.C. Os israelitas eram, segundo pensam alguns estudiosos, refugiados provenientes das cidades-estado em crise situadas nas planícies costeiras. Eles, provavelmente, surgiram nas cabeceiras dos rios do Golfo Pérsico ou nos desertos próximos. Os países banhados pelo Golfo Pérsico são Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Quatar, Bahrein, Kuwait, Iraque e Irã.
É possível que aos refugiados tenham-se unidos outras tribos provenientes do sul, que professavam fé em Jeová, deus que se originou das regiões próximas ao Sinai, ao sul. Os israelitas transmitiam suas tradições oralmente. Em 1.200 a.C, eles se organizavam em doze tribos situadas na região montanhosa cananeia, ainda que acreditassem possuir uma origem e história em comum. Ao contrário dos demais povos, que desenvolveram uma mitologia e liturgia baseadas no mundo dos deuses no tempo primordial, os israelitas professam sua fé em Jeová, que acreditam intervir na história de seu povo. Jeová os conduziu à Terra Prometida, por intermédio de Moisés. Eles viveram, durante muito tempo, sob o domínio egípcio e ansiavam retornar à terra natal.
Em aproximadamente 1000 a.C, o sistema de tribos entrou em declínio, e os israelitas fundaram duas monarquias em Canaã: o reino de Judá, no sul; e o reino de Israel, no norte. Eles já não mais celebravam, em festas, a aliança que, outrora, lembrava-lhes a linhagem comum. Ainda que não haja, atualmente, muitas informações sobre o reino de Israel, sabe-se que muitos salmos, que posteriormente viriam a ser incluídos na Bíblia, eram usados na liturgia em Jerusalém e revelam que os judeus foram influenciados pelo culto de Baal, deus da vizinha Síria. Também, àquela época, o povo do norte acalentava a crença de que Jeová havia feito uma aliança com o rei Davi, fundador da dinastia judaica, e prometido que seus descendentes reinariam para sempre em Jerusalém.
Um importante acontecimento na longa história da produção dos manuscritos que viriam a compor o que hoje chamamos de Bíblia foi interpretado como uma revolução literária. Sucedeu, no século VIII a.C, em todo o Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental, que os reis recomendassem documentos que conferissem glória ao seu regime. Os textos foram guardados em bibliotecas. Em Israel e em Judá, historiadores trabalharam para articular as primeiras narrativas, de modo a criar sagas nacionais. Elas foram preservadas nas versões mais antigas do Pentateuco. Com base em variadas tradições de Israel e de Judá, os historiadores do século VIII a.C puderam construir uma narrativa coerente. Chamaram de “J” ao épico sulista de Judá; e de “E” à saga do norte (Israel). O “J” faz referência a Jeová, nome com que os habitantes de Judá chamavam Deus; e “E” faz referência a Eloim, forma com que Deus era designado pelos habitantes do reino do norte. Tempos depois, essas duas narrativas foram combinadas por um editor para constituir a história única que é, hoje, o cerne da Bíblia hebraica.
É importante frisar que “J” e “E” não escreveram relatos históricos. Nesse tocante, devemos lembrar, com Mckenzein (2005), que, na Escrita da História na Antiga Israel, não havia uma preocupação em relatar o que realmente aconteceu. O objetivo básico era “prestar contas com o passado” (Mckenzein, 2005, p. 36). Isso significa que os autores bíblicos buscavam imputar responsabilidades pelas ações e julgá-las, de tal sorte que pudessem explicar seus efeitos no tempo presente. A Escrita da História na Israel Antiga era, portanto: a) uma forma de tradição específica; b) um meio de rememorar o passado e determinar seu significado; c) um meio de determinar as causas, basicamente morais, das condições do presente; d) nacional e coletiva; e) de natureza literária e um importante componente da identidade de grupo. Portanto, ela não consistia num relato histórico, no sentido em que, modernamente, entendemos a palavra História.
Desde as origens, não houve uma mensagem única para o que se tornaria a Bíblia. Os autores J e E desenvolviam diferentes interpretações sobre a saga de Israel, e os editores futuros não se esforçaram por suprimir as incoerências e as contradições.  Historiadores subsequentes fizeram acréscimos aos textos de J e E e os alteraram radicalmente.
Particularmente interessante é ver que J e E tinham concepções diferentes sobre Deus. O Deus de J era antropomórfico, imagem que desagradaria exegetas posteriores. O Deus de E (Eloim), no entanto, possuía uma natureza transcendente: se Jeová falava e caminhava no Jardim do Éden; Eloim raramente falava e preferia enviar um anjo como mensageiro. Embora a religião de Israel fosse se tornar, posteriormente, uma religião monoteísta, centrada, portanto, na fé na existência de um único Deus verdadeiro, nem J nem E eram monoteístas. A Jeová faziam companhia outros santos. Jeová pertencia a uma Assembleia Divina de “santos”. Até a destruição do Templo por Nabucodonosor, em 586 a.C, a Bíblia nos dá testemunho de que os israelitas adoravam muitas outras divindades.
Em 597 a.C., sucedeu que o Estado de Judá, situado na região montanhosa de Canaã, não mais aceitou o acordo que o mantinha sob o domínio do soberano Nabucodonosor, então imperador da Babilônia. A ruptura do acordo foi catastrófica para o povo judaico. Nabucodonosor invadiu a região de Jerusalém, então capital de Judá, com seu exército, forçando o rei a se render. Ele foi deportado para a Babilônio com cerca de dez mil cidadãos que constituíam o Estado (sacerdotes, militares, líderes, artífices e trabalhadores em metal).  Em 586 a.C., uma rebelião em Judá provocou a destruição do Templo por Nabucodonosor. O Templo ficava no monte Sião e fora construído pelo rei Salomão (970-930 a.C.) e era o centro da vida nacional e espiritual do povo israelense. Acreditava-se que Deus residia lá.
No século VIII a.C., surgiram alguns profetas dispostos a fazer com que o povo de Israel adorasse apenas Jeová. Jeová era um guerreiro invencível, mas não era dotado de conhecimento sobre agricultura. Quando as pessoas desejavam uma boa colheita, não hesitavam em recorrer ao deus da fertilidade Baal. O profeta Oséias injuriou-se com seus conterrâneos.  Para Oséias, o povo de Israel deveria retornar à adoração a Jeová, suficientemente capaz de prover as necessidades dos fiéis. Ele também cuidava inapropriado sacrificar um animal a Jeová. O que este queria era lealdade de culto. Segundo Oseias, se as pessoas não se voltassem exclusivamente para Jeová, Israel seria destruída pelo Império da Assíria. Àquela altura, a Assíria dominava a região do Oriente Médio. Outro profeta, chamado Amós, que pregava em Israel naquele tempo, viria a transformar definitivamente o culto a Jeová. Para esse profeta, Jeová não mais se agradava das cantorias e rituais do Templo.
Outro profeta, chamado Isaías, também desempenhou um papel importante na interpretação da história de Israel. Por volta de 740 a.C, Isaías recebeu uma mensagem terrível de Jeová: o império assírio devastaria a zona rural de Judá.  No entanto, Isaías não temeu a Assíria, porque “vira que a glória de Jeová enchia a terra” (Armstrong, 2008, p. 24). Mas o reino do norte não gozava de tal proteção. Em 722, os exércitos assírios destruíram Samaria, então capital de Israel.
Decerto, a saga dos israelitas não termina por aqui. Outros profetas e um grupo de reformadores, os deuteronomistas desempenhariam um papel extremamente importante nessa longa história de construção, reconstrução e preservação de uma identidade nacional, tão profundamente marcada por guerras, lutas, exílio e sofrimento, que culminaria com a produção das Escrituras hebraicas. Em seu muito instrutivo livro A Bíblia (2007), Karen Armstrong nota acerca dos deuteronomistas:

“É instrutivo que os deuteronomistas, os precursores da ideia de ortodoxia escriturística, tenham introduzido uma legislação surpreendentemente nova que – caso implementada – teria transformado a antiga fé de Israel. Para assegurar a pureza do culto, eles tentaram centralizá-lo, criar um judiciário secular independente do templo e despojar o rei de seus poderes sacros, tornando-o submetido à Torá como qualquer pessoa. Os deuteronomistas na verdade mudaram a redação dos códigos legais, das sagas e dos textos litúrgicos mais antigos, de modo que passassem a endossar sua proposta”.

(pp. 27-28)


Com o Deuteronômio, passou-se a exigir uma mudança radical na ordem social. O Deuteronômio tinha outra explicação para o fato de os israelitas serem privados da posse de sua terra: isso não se devia à suposição de que Jeová residisse em Sião, mas ao fato de os israelitas não observarem seus mandamentos.