quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Viver acima de tudo é necessário"



A Morte de Deus
Ou o seu reaparecimento?

O meu empenho, na produção deste texto, será o de aproximar a filosofia da vida. Este texto deve ser visto como um ensaio, e não como um artigo filosófico. Meu esforço consistirá em reduzir a formalidade linguística tanto quanto possível. Se eu conseguir com que, ao final da leitura, o leitor veja este texto como expressão da fórmula dos antigos segundo a qual “filosofar é aprender a viver”, já me darei por satisfeito e contente. Não escrevo do lugar em que se situaria um filósofo profissional, mas de um filósofo-aprendiz e dedicado ao exercício do próprio filosofar. Escrevo como um aprendiz de filósofo. O aprendizado é a meta de minha escrita. Ao escrever, eu reelaboro o que aprendi e reaprendo, ou mesmo desaprendo para aprender. A norma é o prazer na aprendizagem. A meta – eu repito – é sempre aprender.
Então, neste texto, eu retorno a Nietzsche. Eu revisitarei sua filosofia, sem pretender recobri-la totalmente. Meu ponto de partida é o seu postulado segundo a qual “Deus está morto” (que aparece em A Gaia Ciência e em Assim falou Zaratustra). Tomo para ponto de ancoragem de minhas reflexões a morte de Deus enunciada, ou melhor, retomada e reelaborada por Nietzsche. Até onde pude entender, a ideia de que Deus está morto já estaria, tacitamente, presente no pensamento dos modernos anteriores a Nietzsche, pelo menos desde o século das Luzes (XVIII). Mas o que é novo em Nietzsche é a sua compreensão da extensão do significado da expressão “Deus está morto” – extensão e profundidade, eu diria. Nisso consiste o que entendo por reelaboração da questão da morte de Deus, empreendida por Nietzsche.
Mas, antes de atacá-la, preciso dizer também que ela se prende a outros conceitos nietzschianos, como o do “além-do-homem” (traduzido por alguns especialistas comumente como “super-homem”) e do Eterno Retorno. Mas não para por aí. A morte de Deus também leva-nos a fazer incursão no seu projeto de “transvaloração de todos os valores”. No fundo, a morte de Deus implica um olhar sobre os valores tradicionais que precisam ser superados e, mais ainda, sobre a gênese dos valores. O problema que ela suscita é também o problema da verdade. A verdade, assumida pelos antigos gregos como um valor metafísico, passará à categoria de ficção, de ilusão, de metáfora em Nietzsche. Se Deus era a verdade e se a razão sempre foi a condição para alcançar a verdade, uma vez morto Deus, a verdade carece de fundamento e a razão passa a atrair sobre si muita suspeita como um caminho para atingir alguma verdade. Mas não vou me apressar.
É preciso, antes de prosseguir, situar Nietzsche. É preciso considerá-lo relativamente a um tempo marcado por profundas mudanças em todos os setores da vida. É urgente, então, considerar o que significa pós-modernidade. Não pretendo dar conta da complexidade envolvida nessa questão. O que se costuma designar como pós-modernidade é uma realidade histórica bastante complexa e, para alguns especialistas, pouco clara. Serei forçado a fazer referência a alguns aspectos dessa condição da existência do homem contemporâneo, com vistas a acentuá-los em conformidade com os meus propósitos.
A condição pós-moderna é caracterizada por convergências e divergências históricas em várias esferas (arte, cultura, política, economia, saber, religião, ensino, etc.). Recobre um período, cujo início pode ser datado na década de 1950 e cuja extensão abarca os dias atuais, que se caracteriza por múltiplas posições e profundas inquietações. O período pós-moderno inaugura uma série de mudanças em nossa cosmovisão e nas diversas maneiras como a realidade se organiza. O homem pós-moderno é um sujeito extremamente inquieto em face de uma realidade que muda incessantemente. Em meio à profusão de mudanças, em um espaço de tempo muito curto, esse homem se vê desorientado ou perdido, porque se dá conta de que o universo de referências em que a vida de seus antepassados se baseava e de que é herdeiro, diluiu-se. O pós-moderno deve ser entendido como superação do moderno. Tempos de crises são estes, decerto. Crise da razão, crise dos valores que tradicionalmente guiaram a vida das pessoas. O pós-moderno decreta o esgotamento do poder da razão, que tanto seduziu os modernos, especialmente os que viveram sob os auspícios das Luzes. E o Iluminismo (séc. XVIII) – vale dizer – compreendeu uma corrente radical do pensamento intelectual que liberou a filosofia das amarras teológicas. Os filósofos do século XVIII aproveitaram as ideias que animavam os avanços científicos para questionar a maneira como o governo era pensado, o modo como a sociedade era compreendida. Seus esforços foram orientados para a superação da superstição, da tirania e da injustiça, para o que eles se serviam do poder da razão. A Razão Iluminista ocupa, pois, a posição que, durante séculos, fora ocupada por Deus. A bandeira iluminista era desfraldada sobre a necessidade de tolerância e justiça. Somos herdeiros do século das Luzes. E, a despeito da crítica avassaladora de Nietzsche, ainda resiste, em nossa era, pelo menos no senso comum, uma confiança na racionalidade científica. É claro, contudo, que, na pós-modernidade, a ciência não é mais vista como o único saber legítimo; e a ciência de hoje é uma ciência que se coloca sempre em questão, que não cessa de revisar seus postulados, de avaliar o alcance de seus resultados e a validade deles. Não se admite mais que ela silencie as demais formas de saber.
A pós-modernidade é uma era afeita ao relativismo; é infensa à ideia de uma verdade absoluta; reina nela uma suspeita sobre o imperativo da objetividade. É verdade que, nela, a razão está em crise, mas não é menos verdadeiro que a crise lhe tenha sido companheira em quase todas as épocas.
Também gostaria de lembrar, nessa rápida revisão da condição pós-moderna, que, nela, a ideia de progresso, herdada da Modernidade (mais precisamente do período da Renascença), e vinculada ao surgimento do método científico-tecnológico, perde seu significado dentro de um projeto político-filosófico de emancipação do gênero humano. O homem pós-moderno suspeita da ideia de progresso; vê nela uma mentira que não pode mais ser sustentada como uma preciosa verdade. Como, então, situar Nietzsche em face desse contexto sócio-histórico? Comecemos por entender quem foi Nietzsche, atentando para o seguinte trecho, tomado a Antonio C. Braga, em Nietzsche – o filósofo do Niilismo e do Eterno Retorno (2011):


“Considerado por muitos como o maior filósofo dos tempos modernos e por outros como destruidor impiedoso de todos os valores conquistados pelo homem em toda sua história, Nietzsche causou espécie por seus posicionamentos radicais e inovadores no mundo da filosofia, da moral, da religião, da arte e da história. Não resta dúvida de que foi um crítico feroz do passado e um dessacralizador dos valores tradicionais, mas foi também como que um profeta de um mundo renovado e inteiramente novo, de uma história futura depurada dos entulhos de séculos e milênios, de um homem dessacralizado e embriagado de vida plena isenta de moralismos, o super-homem (...)”.

(p. 10)


Vejamos, então, como este dessacralizador dos valores tradicionais, atacou radicalmente o valor supremo do homem ocidental: Deus. Preciso aqui enfatizar que, ao declarar a morte de Deus, Nietzsche está declarando a morte da Verdade como valor metafísico. O que está, portanto, implicado na proposição “Deus está morto”? Dito douto modo, qual é a extensão e profundidade de seu significado no interior do pensamento filosófico de Nietzsche? De início, acho importante salientar que Nietzsche não conflita apenas com o Deus cristão, ou seja, não declara apenas que ele não pode mais servir de fundamento da verdade ou da moral; ele vai mais além: também rejeita qualquer fundamento divino supraterrestre, o que inclui o Deus de Platão (Demiurgo) e o de Aristóteles (Primeiro Motor Imóvel).
Em linhas gerais, a morte de Deus parece envolver:

a) o questionamento da verdade como valor metafísico;
b) a busca por superar a metafísica platônica;
c) a busca por suprimir o fundamento do sentido;
d) a afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;
e) a rejeição como utopia de uma vida além-mundo.

Morto Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo deixa de ter um coração. A morte de Deus é a morte da oposição entre a vida no mundo e a vida além-mundo.
Mas cabe questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, estando Deus morto. Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus na Modernidade.
Em Teologia e Pós-modernidade – novas perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de Sousa, intitulado de A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito da morte de Deus:

“Nós, que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em nome da ciência, em nome da filosofia. Tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”.

(p. 64)


O novo Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no espírito da modernidade com novas roupagens.
A pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao reconhecer a morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a morte do poderio da verdade.
Aprendemos com Nietzsche sobre quem estabeleceu a verdade como valor metafísico. Nossos antepassados, decerto. Eles erigiram a verdade como valor inquebrantável e inquestionável. Eles a impuseram a nós e, pressupondo-a como algo a ser desvelado, nos ensinaram o caminho para o seu desvelamento.
Costuma-se afirmar que Nietzsche é um antiplatônico, mas não convém depreender disso que ele não reconheça o valor da filosofia de Platão, que não veja em Platão o grande mestre da filosofia ocidental. Mas há aspectos da metafísica de Platão que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão, Nietzsche ergue o “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica desenvolvida por Nietzsche à metafísica e à verdade como valor metafísico.
De início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em Platão, e a mentalidade do homem ocidental se formou com base na filosofia platônica. Um papel fundamental nessa formação do pensamento ocidental desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o da experiência intelectiva, ou o mundo das Ideias perfeitas. Platão opera, portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como conhecemos por meio de nossa percepção sensorial e de verdadeiro o mundo acessível apenas à experiência racional, intelectiva. Está, então, estabelecida a base sobre a qual outros dualismos podem ser desenvolvidos, tais como “corpo” x “alma”. Aliás, a ideia de que o corpo é um cárcere da alma é uma ideia consagrada por Platão, na esteira de Pitágoras.
Na Idade Média, com a patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo, de tal modo que passa a ser uma espécie de platonismo para o povo. Ou seja, Platão passa a ser conhecido para os cristãos, muito graças aos esforços de Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.
O Nietzsche de O Anticristo condena impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim,  ao homem é negada a possibilidade de tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo resignado, porque eleva sobre esta uma outra vida a ser aguardada na fé e na esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa recompensa numa vida além-mundo.
Para a superação deste homem decadente e resignado produzido pelo cristianismo, Nietzsche postula uma transformação do próprio homem, que assumiria a forma de um além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido. O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas raízes se acham no pensamento platônico.
Nietzsche convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a crença numa vida além-mundo é uma farsa. Como era um grande estudioso da Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele, considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação posterior.
Nietzsche também reconheceu que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, numa clara alusão ao fato de que o cristianismo não foi fundado por Cristo e que coube a São Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação tendenciosa da mensagem de Jesus.
Contrariamente à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do devir. Valor, em Nietzsche, é necessariamente o que torna esta vida, aqui e agora, mais forte – uma vida que precisa ser vivida. Qualquer valor que negue esta vida, na verdade, não é sequer um valor.
A filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do porvir. Nesse sentido, ela se opõe também a qualquer sentimento niilista, a ela erroneamente associado, muitas vezes. Nietzsche é, definitivamente, o contrário de um niilista. Sua máxima é: é necessário viver e viver mais.
O além-do-homem é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce, tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico. E o trágico, em Nietzsche, é um caminho para a aprendizagem. É o homem que ama a vida, que experiencia o amor fati (amor ao destino).
A morte de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o verdadeiro, ao contrário do que ensinou Platão.
O além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na imanência. O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa (Sousa, 2008).
“Acima de tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche. E, anunciando-a aqui, quero, por fim, dizer algumas palavras sobre o seu conceito de Eterno Retorno que, como vimos, está intimamente ligado ao postulado segundo o qual “Deus está morto”.
O Eterno Retorno do mesmo recobre a ideia de Heráclito de devir, do vir a ser contínuo. Também envolve a ideia do além-do-homem, já que o além-do-homem, esse homem que superou o homem metafísico, vive como quem deseja reviver cada acontecimento infinitas vezes. Portanto, essa ideia supõe a infinitude do tempo e o retorno de vivências na infinitude do tempo.

O Eterno Retorno também se vincula à necessidade de dizer sim à vida infinitas vezes. É preciso viver sem arrependimentos e remorsos. O Eterno Retorno é um critério de avaliação, pelo qual o homem seleciona os acontecimentos que merecem ser revividos e que devem ser revividos (Ferry, 210, p. 118). É preciso dizer que esse reviver infinitas vezes os instantes de nossa vida inclui também os momentos de dor, os momentos de infelicidade, muita vez, incontáveis. É desejar reviver sem concessão. O que Nietzsche ensina aí é que devemos viver como quem tem necessidade de reviver, como quem deve desejar reviver. Devemos viver como alguém para quem desejar reviver se coloca como um dever. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"Amanhã, nós vamos se falar"


A gente não sabemos
O erro que ninguém vemos

Esta é uma cena que se repete todos os dias em nossa sociedade:

A – Eu tinha trago o caderno ontem.
B – (risos) Não se diz tinha trago. É errado. O certo é tinha trazido.

Nesta amostra representativa de uma situação de comunicação comum em nosso dia-a-dia, o falante A usa uma forma participial negativamente avaliada pelo falante B. A forma participial “trago” é classificada de “errada” pelo falante B, que enuncia a forma que acredita ser a certa – “tinha trazido”.
O que nem um nem outro sabem é quais as condições históricas que tornaram possível a eles acreditar que existem formas linguísticas certas e formas linguísticas erradas. Esses falantes, que representam a maioria esmagadora de nossa sociedade, acreditam que valores como “certo” e “errado” são intrínsecos às expressões linguísticas. Na verdade, como me esforçarei por mostrar, eles não fazem senão reproduzir uma tradição que, tendo mais de dois mil anos, congrega atitudes e práticas que visaram a estabelecer um padrão linguístico ideal calcado sobre a língua em que foram escritas as grandes obras literárias da Antiguidade Clássica. Vou apresentar, a seguir, sem pretender a exaustão, os desdobramentos históricos que levaram à constituição do que ficou conhecido por Gramática Tradicional (doravante, GT) entre nós, ocidentais.


Contando a História

1. A gramática tradicional

No Ocidente, foram os antigos gregos os primeiros a desenvolver reflexões sobre a linguagem. No século V a.C, as sementes de tal empreendimento encontraram no pensamento de Platão um terreno fértil. A ele coube a distinção entre ónoma (nome) e rhéma (verbo). Posteriormente, Aristóteles acrescentou a essas partes do discurso os syndesmoi (unidades gramaticais); mas foram os estóicos quem separou, nesse grupo, as formas variáveis (artigos e pronomes) das invariáveis (advérbios e conectivos). Mais tarde, no século II-I a.C, Dionísio da Trácia estabeleceu as oito categorias gramaticais, que compõem as classes de palavras de nossas gramáticas hoje (substantivo, adjetivo, advérbio, artigo, conjunção, preposição, numeral e verbo).
A gramática, como disciplina, surgiu entre os gregos para atender a dois propósitos: um, filológico, que consistia em estudar as produções literárias de grandes poetas e prosadores, para preservá-las, e em identificar as regras de uso da língua em que foram escritas; o outro, pedagógico, que consistia em estabelecer um padrão de língua que deveria ser ensinado aos cidadãos e seguido por eles (que eram homens (seres do sexo masculino) que tinham direito à educação e acesso à cultura letrada). Em sua obra A Vertente Grega da Gramática Tradicional (1987), a linguista Maria Helena de Moura Neves nota o seguinte:

“Toda uma situação cultural cerca esses fatos. A exigir a instalação de uma disciplina estão as condições peculiares da época helenística, marcada pelo confronto de culturas e de línguas, e pela consequente exacerbação do zelo pelo que então se considerava a cultura e a língua mais puras e elevadas”.
(p. 243)


Esse caráter da gramática se manteve entre os romanos, a quem coube divulgá-la. A situação não mudou na Idade Média. O latim era a lingua em que se escreviam as grandes obras da Europa medieval até o século XIII. A gramática passou a compor o trivium das instituições acadêmicas, ao lado da dialética e da retórica. Um abade, à época, escreveu a gramática “prepara a mente para entender tudo que possa ser ensinado por meio das palavras” (Azeredo, 2000: p. 17). O passo de Neves (1987), a seguir, lança luzes sobre as motivações que subjaziam ao trabalho dos gramáticos:

“Era para facilitar a leitura dos primeiros poetas gregos que os gramáticos publicavam comentários e tratados de gramática, que cumpriam duas tarefas: estabelecer e explicar a língua desses autores (pesquisa) e proteger da corrupção essa língua “pura” e “correta” (docência), já que a língua quotidianamente falada nos centros do helenismo era considerada corrompida. E, servindo à interpretação e à crítica, realizava-se o estudo metódico dos elementos da língua e compõe-se o que tradicionalmente seria qualificado como gramática”.
(pp. 104-5)


Como se pode ver, havia um sentimento elitista a guiar o trabalho desses gramáticos. A produção das gramáticas era impulsionada pela crença de que a língua falada pelas camadas populares era considerada “errada” ou “estropiada”.
Quando nos debruçamos sobre a GT, a primeira coisa que devemos reconhecer é que ela remonta à gramática grega. A GT é um fato da cultura helenística e representa os esforços para a preservação dessa cultura.
Desde sua origem, a GT se preocupou com o estabelecimento das regras consideradas as melhores para a língua escrita, para o que se baseou no uso que dela faziam aqueles que tinham prestígio na sociedade à época; eram eles, especialmente, os grandes escritores da literatura, entre os quais poetas e prosadores. O uso da lingua escrita literária serviu, portanto, originalmente, de modelo para uso “correto”, “adequado”, “bom” do grego.
Essa tradição, preocupada em estabelecer um padrão na base do qual o comportamento linguístico dos indivíduos deveria se modelar, começa a ganhar corpo entre os filólogos-gramáticos alexandrinos, no século III a.C. Nesse período, a Alexandria (que tinha esse nome devido ao seu fundador Alexandre, O Grande), era o principal centro irradiador da cultura clássica. Foi entre esses filólogos que a preocupação em estabelecer um padrão de uso calcado sobre a língua escrita e em eleger uma determinada variedade da língua como exemplar da língua “correta”, encontrou origem. A GT, portanto, tem clara orientação elitista. Ela reforça a variedade linguística da elite, que passa a ser valorada como boa e correta, silenciando, em contrapartida, as variedades usadas pelas camadas populares, que, por sua vez, eram consideradas “ruins” ou “erradas”.
Lyons chama de “erro clássico” a um acontecimento que envolveu os filólogos alexandrinos, ou melhor, pelo qual eles foram responsáveis: privilegiar a língua escrita dos grandes escritores, em detrimento da língua falada pelas camadas populares. Os filólogos alexandrinos opunham a fala à escrita de modo radical. Eles eram grandes apreciadores da produção literária do passado glorioso da Grécia clássica. Acreditavam que somente a língua escrita literária merecia atenção, análise, descrição e estudo e que somente ela poderia servir de modelo para a prescrição de normas do bem falar e escrever. Para esses estudiosos, a fala era caótica e desregrada, era lugar de erro e equívoco, ao passo que a escrita, vista como uma realidade homogênea, era clara e regulada. Duas línguas eram, então, contrapostas: a língua falada no dia-a-dia da Alexandria do século III a.C e a língua escrita literária da Atenas do século V a.C.
Foram os gramáticos alexandrinos, portanto, quem definiu o destino dos estudos gramaticais e da pedagogia das línguas por mais de dois mil anos – uma pedagogia ainda muito em voga em nossa sociedade atual. É com esses gramáticos que foi introduzido no pensamento linguístico ocidental as noções de “certo” e “errado”, com as quais são avaliados os usos da língua.
Dentre os discípulos dos gramáticos alexandrinos, destaque-se Varrão (séc. I a.C), cuja contribuição foi aplicar a gramática grega ao latim. Ele propôs uma gramática do latim padrão, chamado latim clássico, que se opunha ao latim vulgar – a variedade latina falada pelas classes populares da República e do Império Romano. Para ele, a gramática “é a arte de escrever e falar corretamente e compreender os poetas”.
Terminamos, pois, esta seção, referindo o seguinte passo de Weedwood, em História concisa da Linguística (2002), em que a autora esclarece-nos sobre o que é a GT:

“(...) a Gramática Tradicional, expressão que engloba um espectro de atitudes e métodos encontrados no período anterior ao advento da ciência linguística. A “tradição”, no caso, tem mais de 2000 anos de idade, e inclui os trabalhos dos gramáticos gregos e romanos da Antiguidade clássica, os autores do Renascimento e os gramáticos prescritivistas do século XVIII.”
(pp. 9-10)


É preciso insistir em que os estudos compreendidos pela GT são de orientação descritivo-prescritivista e tinham finalidade pedagógico-filológica. Na esteira dessa tradição, surge e se desenvolve a partir do século XX, com a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, a Linguística, uma disciplina descritiva de orientação científica, cuja preocupação única é descrever e explicar o funcionamento e a estrutura da língua/linguagem. É bem verdade, entretanto, que as sementes de uma cientificidade na abordagem dos fenômenos linguísticos já se faziam presentes nas reflexões dos gramáticos histórico-comparativistas do século XIX.


2. Gramática normativa

Se, por um lado, a GT é o espírito, a mentalidade, a doutrina, o sistema de crenças, de valores, de reflexões que deram ensejo ao surgimento de uma disciplina e pedagogia de orientação prescritivo-normativista; por outro lado, a gramática normativa dá corpo à GT (Bagno, 2010). A gramática normativa constituirá um conjunto de regras que se destinam a fixar uma variedade ideal de excelência (a variedade padrão) da língua. A gramática normativa prescreve as regras dessa variedade, que devem ser seguidas pelos usuários que pretendam falar/escrever “corretamente”.
A gramática normativa se ocupa apenas com os fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua. Essa norma se tornou oficial e prestigiosa para indivíduos num dado contexto sócio-histórico. A gramática normativa, de que nossas gramáticas escolares são exemplares, constitui um manual de regras para o bom uso da língua. Acompanhemos o que nos ensina Bagno, em sua Dramática da Língua Portuguesa (2010), ao nos esclarecer sobre o fato de a gramática normativa ter-se tornado um instrumento ideológico de poder e controle sociais:

“(...) Com a instrumentalização da gramática normativa em mecanismo ideológico de poder e controle de uma camada social sobre as demais, formou-se essa “falsa consciência” coletiva de que os usuários de uma língua é que precisam da gramática normativa, como fonte mística, invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. A língua ficou subordinada á gramática. O que não está na gramática normativa “não é português”, assim como as palavras que não estão no dicionário simplesmente não existem...”.
(p. 27)


Bagno nos ensina que, por um efeito ideológico, as pessoas, em geral, passam a acreditar que quem não domina as regras de uso prescritas pela gramática normativa não sabe falar português. Essas pessoas acreditam também que precisam da gramática para falar “corretamente” a sua língua materna. Daí que os usos não contemplados e abonados por essa gramática não são considerados pertencentes à língua portuguesa. Essas pessoas não se percebem mais como os verdadeiros agentes e construtores linguísticos; a língua não pertence à gramática, tampouco aos seus supostos guardiães; mas a todos os seus falantes nativos que dela se servem não só para interagir socialmente, mas também para construir, definir e reafirmar sua identidade (individual, linguística, social e cultural).
Carlos Franchi (2006) dá-nos a conhecer uma definição de gramática normativa bastante concisa e lúcida, que vale referir aqui:
“(...) é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores”.
(p. 16)


É importante perceber, na definição de gramática normativa, o valor assumido pelo uso da língua feito pelos considerados “bons escritores” da literatura tomados para modelo a partir do qual se determina uma língua padrão ou “correta”.
Quais são as razões por que determinadas formas e usos linguísticos são inseridos ou excluídos da norma de prestígio? Vejamo-las a seguir.
A primeira é de ordem estética. Nesse caso, são incluídas na norma as formas linguísticas consideradas elegantes, belas, eufônicas; e dela são excluídas as formas cacofônicas (boca dela), os pleonasmos viciosos (hoje em dia/ subir para cima), o eco, etc. A segunda é de ordem elitista. Esta está na base do preconceito e discriminação linguísticos. Nesse caso, contrapõe-se o uso da língua feito pelos indivíduos pertencentes às classes dominantes ao uso feito pelos indivíduos das classes dominadas. A terceira é de ordem política. Nesse caso, combatem-se os neologismos e os estrangeirismos. Valoriza-se a pureza do idioma e a vernaculidade. A quarta é de ordem comunicacional. Nesse caso, deve-se evitar a ambiguidade, o hermetismo, a imprecisão. Valoriza-se a busca pela clareza, a precisão, a fim de facilitar a compreensão. A quinta é de ordem histórica. Aqui tem peso a tradição. Deve-se evitar as inovações e valorizar as formas consagradas pelo uso feito pelos usuários da língua (escritores literários clássicos) considerados de excelência. Por essa razão é que se proscrevem formas como “vende-se carros” ou “custei a acreditar nele”.
Antes de por termo a esta seção, gostaria de distinguir aqui entre norma padrão e norma culta, com base em Bagno (2007, p. 107). A norma padrão não pertence à língua. É um modelo, uma entidade abstrata, uma forma ideológica que exerce grande poder simbólico no imaginário coletivo, mormente sobre o imaginário dos indivíduos mais escolarizados. A norma culta é a norma real que compreende as variedades linguísticas de prestígio, ou seja, as que são usadas pelos membros das camadas socioeconomicamente favorecidas da população. Seus usuários são definidos por critérios mais próximos à noção de cientificidade, quais sejam, antecedentes biográfico-culturais urbanos e grau de escolarização superior. No entanto, atento à problemática suscitada pelo uso do termo “culto” relativamente à “norma”, Bagno (p. 105) prefere falar em variedades de prestígio e variedades estigmatizadas. Assim, há diferentes normas, dentre as quais a norma de prestígio.


3. Linguagem, ideologia e discriminação


No trecho de Bagno, anteriormente citado, lemos sobre a transformação da gramática normativa num mecanismo ideológico de poder e controle sociais. Nesta seção, irei descer a pormenores sobre o papel desempenhado pela ideologia na legitimação de práticas e atitudes que visam a avaliar os padrões linguísticos em termos de noções como “certo” e “errado”. Ademais, examinarei, sem, contudo, ser exaustivo, as consequências sociais desse patrulhamento linguístico generalizado em nossa sociedade.
Assumirei a visão marxista de ideologia. Por ideologia entenderei, pois, um conjunto de crenças, valores e atitudes culturais que servem para justificar e legitimar o status quo. As ideologias, em geral, refletem os interesses de grupos dominantes e servem de meio para perpetuar sua dominação e privilégios. Elas produzem uma “falsa consciência”; são ilusões, abstrações e inversão da realidade. Na ideologia, a realidade assume a forma de aparecer social. No modo de representação ideológica, os indivíduos consideram o aparecer social como se fosse a realidade social mesma. A ideologia oculta à consciência dos indivíduos as verdadeiras causas de suas condições de existência.
Acrescente-se também que a ideologia consiste no processo pelo qual as ideias das classes dominantes se tornam as ideais dominantes numa dada conjuntura social. As ideias das classes dominantes se tornam, por força da ideologia, as ideias de todas as classes sociais. Isso é particularmente verdade quando observamos que avaliar o comportamento linguístico de outrem é prática comum aos indivíduos de todas as classes sociais. Essa prática, que expressa os interesses das classes dominantes, torna-se também uma prática dos indivíduos das classes subalternas. Sob o embotamento da consciência provocado pela ideologia, os indivíduos não se reconhecem mais como agentes responsáveis pelos processos sociais. Eles não percebem que a realidade de sua classe decorre da atividade de seus membros.
Na ideologia, dá-se a inversão entre as ideias e o real. Ao invés de o real explicar as ideias produzidas pela consciência (que é produto socioideológico) de indivíduos que se relacionam em condições de existência concretas, são as ideias que explicam o real. As ideias são decalcadas do real e passam a ter existência independentemente das condições sociais em que foram produzidas. Os indivíduos não mais percebem as condições sócio-históricas como a verdadeira causa de suas ideias. Eles imaginam que suas ideias independem de tais condições e que valem para todo o sempre. Na ideologia, a realidade aparece à consciência do sujeitos como algo dado, já pronto, acabado, para que seja simplesmente ordenado, classificado e julgado.
É, portanto, a ideologia que nos ajuda a explicar por que os indivíduos costumam avaliar as formas e usos linguísticos uns dos outros na base de noções como “certo” e “errado”. Em primeiro lugar, a ideologia mascara as condições sócio-históricas que explicam por que eles tendem a avaliar os padrões linguísticos em termos de “certo” e “errado”. Também é por meio dela que eles buscam, sem estar conscientes disso, justificar tal prática. A ideologia cristaliza a crença de que existem formas linguísticas essencialmente certas e formas linguísticas essencialmente erradas, mascarando o fato de que as noções de “certo” e “errado” tomam a forma de valores com que é julgado o comportamento linguístico dos indivíduos numa sociedade. Considerar certo um determinado uso e errado outro resulta de valoração social, em cuja origem se acha um forte sentimento de estratificação social.
Cumpre dizer algumas palavras sobre a noção de valor cultural. O valor, entendido no âmbito da da Antropologia Social, é uma ideia comum que sinaliza o modo como alguma coisa é classificada, tendo em conta desejabilidade, perfeição e mérito. Valorar é atribuir valores (bom, ruim, aceitável, desejável, etc.) a qualquer coisa. Valores podem servir virtualmente para classificar qualquer coisa, desde abstrações (lógica acima de intuição), a experiências e comportamentos. O que torna uma ideia um valor é seu uso para categorizar coisas em relação a outras. Portanto, quando se valora uma expressão linguística como errada, faz-se em relação a outra que é avaliada como “correta”.
A autoridade dos valores transcende o indivíduo, existe fora dele. Valores são partes importantes de todas as culturas, porquanto influenciam a maneira como as pessoas escolhem e como os sistemas sociais se desenvolvem e mudam.
É preciso, então, insistir, para o que serei enfático: as formas e usos linguísticos NÃO SÃO INERENTEMENTE certos ou errados; é a sociedade como um todo que atribui os valores de certo e errado às expressões linguísticas e, ao fazê-lo, refletem e reforçam os interesses das camadas sociais dominantes.
Outra lição importante: uma forma não é errada porque a gramática normativa diz que é errada; o que essa concepção mascara é que uma forma só é errada porque é produzida por membros de camadas sociais desprivilegiadas. Disso se segue que a avaliação é negativa apenas porque as formas linguísticas usadas por uma pessoa não correspondem ao ideal de correção atribuído ao comportamento linguístico de usuários mais prestigiados. As gramáticas normativas legitimam isso fazendo-nos crer que toda forma que não seja agasalhada pela norma avalizada por elas é “errada” e deve, por isso, ser evitada.
Uma política e pedagogia linguísticas comprometidas com o combate ao preconceito e a discriminação sociais, quase nunca percebidos nas práticas de uso da linguagem, devem orientar-se pelo reconhecimento de que a avaliação é essencialmente social e incide sobre o sujeito social. Não é propriamente a língua que está sendo avaliada, mas a pessoa que está usando a língua. Repito: os juízos de valor feitos sobre os usos linguísticos não são imanentes aos usos, mas resultam de relações sociais ou sócio-políticas marcadas por conflitos entre classes e que expressam interesses antagônicos. Assim é que, quando se avalia negativamente uma forma linguística como “trabaio” (típica de falantes da zona rural), avalia-se negativamente o seu usuário e, por extensão, toda a sua classe e origem sociocultural. Infelizmente, a grande maioria das pessoas ignora o fato de que toda palavra é uma arena de conflitos sociais e de que a língua é um lugar onde se encenam as lutas de classe com mais ou menos clareza.
Uma consciência clara do papel que desempenha o uso da língua no robustecimento do preconceito e da discriminação social está intrinsecamente ligada à percepção de que a língua é um poderoso instrumento de controle social, de manutenção e ruptura de vínculos sociais, de inclusão e exclusão, de constituição, legitimação, preservação e destruição de identidades individuais (Bagno, 2007).
A ideologia também ofusca a percepção do fato de que o uso da linguagem é inseparável das esferas de poder. Em Linguagem, Escrita e Poder (2003), Gnerre nos lembra o seguinte:

“A começar do nível mais elementar das relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”.
(p. 22)
(ênfase minha)



O autor nos chama atenção para o papel desempenhado por certas linguagens especializadas, tais como a linguagem jurídica. Essas formas de linguagem excluem da comunicação as pessoas de comunidades linguísticas externas ao grupo que as usa. Além disso, elas servem para reafirmar a identidade dos membros desse grupo reduzido que tem acesso a elas. Segundo Gnerre,


“A linguagem pode ser usada para impedir a comunicação de informações para grandes setores da população. Todos nós sabemos quanto pode ser entendido das notícias políticas de um jornal Nacional por indivíduos de baixo nível de educação (...)”.
(p. 21)



Nesse caso, apenas os indivíduos já familiarizados com a linguagem usada e capazes de reconhecer os conteúdos associados às informações conseguirão compreender alguma coisa. Gnerre nos ensina que a variedade de prestígio incorpora conteúdos ideológicos que podem ser facilmente manipulados, uma vez que as formas às quais se ligam ficam imobilizadas (vejam-se as palavras democracia e ditadura), o que favorece a restrição da comunicação entre grupos que sabem a que domínio conceitual se prendem as palavras. Disso se segue que fica garantida a impossibilidade das grandes massas, não obstante estarem familiarizadas com a forma das palavras, não terem acesso ao significado delas atualizado contextualmente.


4. Há erros mais errados que outros

Gostaria de acrescentar algumas palavras, antes de pôr termo a este texto. Bagno nos mostra que, nas múltiplas práticas de valoração e discriminação de usos da língua, há erros que carreiam mais desaprovação do que outros. Em outras palavras, há erros que são mais percebidos do que outros, o que contribui para gerar uma situação sociolinguística de valoração e discriminação bastante hipócrita, visto que a mesma pessoa ou grupo que acusa “erros” na fala do outro, muita vez, não se dá conta de que também comete “erros”, embora sutis ou não reconhecidos como tais. É também com base nesse ideal de língua que muitas pessoas apreciam apontar erros na fala de personalidades públicas de quem esperam um comportamento linguístico adequado à norma de prestígio. O que essas pessoas não percebem é que, se tais personalidades fazem uso de formas desaprovadas pela gramática normativa é sinal de que tais formas já encontram abrigo na norma de prestígio, pois que quem faz a norma são os próprios usuários da língua (evidentemente, no caso da norma de prestígio, os que gozam de acesso à educação plena e à cultura letrada).
Ontem, assistindo ao RJ TV, uma repórter da Globo, durante uma reportagem, empregou, várias vezes, o verbo ter, no sentido de existir (tinha muitos buracos nesta rua). Se a repórter usa o verbo “ter” em tal caso, é porque esse uso já é parte da norma entre os falantes mais escolarizados. Ou seja, é já um uso abonado na norma de prestígio, em que pese os resmungos desabonadores de gramtiqueiros de plantão. O uso do verbo “ter”, no sentido de “existir”, é normal no português brasileiro e figura na fala de muita gente bem educada de nosso país. Não há razões para condená-lo. A língua varia e muda, segue sua deriva. É claro que os usos linguísticos sofrem pressões que vão na direção da inovação, que tende à mudança, e da conservação, que tende a refrear a mudança. Lembro novamente que a língua é palco de conflitos.
A mesma pessoa que condena uma forma como “Eu preocupo com você” ou uma forma como “Nós se vemos amanhã” usará, normalmente, “Custei a acreditar que isso era verdade” ou “O ônibus que eu entrei estava lotado”. São justamente as formas usadas por indivíduos que não pertencem à sua classe social, que não gozam dos privilégios dessa classe, que ela condena. São formas que ela não usa; no entanto, usa também formas que, se estivesse realmente preocupada em basear seu comportamento linguístico pelo padrão prescrito pela gramática, deveria evitar. Em “custei a acreditar...”, reza a tradição que o verbo “custar” tem de ser construído com sujeito “oracional” e que deve preservar seu sentido original de ‘ser dificultoso’ (cf. Custa-me acreditar...). Em “custa-me acreditar”, o sujeito é a oração de infinitivo “acreditar” e o “me” é o objeto indireto (a mim, a alguém). Já em “custei a acreditar”, uso corrente, embora ainda mal avaliado por vários indivíduos das classes dominantes (e, certamente, por professores e profissionais da linguagem antiquados e ultra-conservadores), o verbo “custar” tem a acepção de “demorar para”, “levar tempo”. Sintaticamente, ele rege a preposição “a” e se acompanha, portanto, de um objeto indireto. Já em “O ônibus que eu entrei estava lotado”, temos uma forma chamada de “cortadora”, já que, com a supressão da preposição “em” regida por “entrar”, a função sintática correspondente a “o ônibus” na oração introduzida por “que” não é atualizada (O ônibus estava lotado / Eu entrei (que)). Analogamente, é possível ocorrer “O ônibus que eu entrei nele estava lotado”, caso em que figura o constituinte “nele”, introduzido para retomar a forma “ônibus” na função de adverbial locativo. O “que” é destituído de sua função como pronome relativo e passa a funcionar como conectivo apenas. A função anafórica é desempenhada pelo constituinte “nele” que “copia” o sujeito “o ônibus” da oração principal na função adverbial na oração introduzida por “que”.
Outros exemplos:

O carro que eu andei nele era um fusca.
O menino que eu falei era irmão de minha amiga

O homem que o filho dele falou comigo conhece meu pai.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

"Deus é um conceito pelo qual medimos o nosso sofrimento." (John Lennon)






A tábua do sofrimento
Um caminho de retorno a Deus



Por que escrevo? Porque preciso pôr alguma ordem às ideias, porque preciso disciplinar o pensamento. Para que escrevo? Para me entreter. Escrever é entreter-me. Nada espero de minha escrita. Sou apenas mais um numa multidão de blogueiros. Não sou um autor; sou apenas o agente de minha escrita, mas não o senhor dela; há um Outro que fala através de mim, que escreve comigo. Sou um sujeito e, como tal, constituído pela ideologia.
Do exposto, é forçoso depreender-se que não levo a sério este trabalho com as palavras. Mas, ao dizê-lo, talvez, eu minta. É verdade, no entanto, que pouco ambiciono. Não suponho haver qualquer sentido transformador em minha escrita. Ela é egocêntrica; só satisfaz a mim mesmo, ou se esforça para tanto.
Neste texto, lançarei olhares sobre a questão do sofrimento no sistema doutrinário cristão. Estou, particularmente, interessado na investigação do papel desempenhado pelo sofrimento na ideologia cristã. Assumo, desde já, que, em meu empreendimento analítico, o sofrimento será tomado como signo, e é justamente seu papel simbólico (no sentido lato da palavra) no interior da ideologia cristã que tratarei de examinar. É mister fazer algumas considerações preliminares.
A fim de investigar o papel simbólico desempenhado pelo sofrimento no cristianismo, necessário é definir o símbolo. Nesse momento, faço a distinção tradicional entre símbolo e signo. O símbolo é um objeto concreto ou físico a que se associam diversos significados. O símbolo é sempre um objeto físico ou uma coisa que representa ideias abstratas. Por exemplo, o círculo pode simbolizar o absoluto, a unidade ou a perfeição; a balança é símbolo da justiça, e assim por diante. O signo, a seu turno, é uma entidade linguística, constituída dicotomicamente de um significante (imagem acústica) e de um significado (conceito). Embora o signo não se cinja ao domínio da palavra (um morfema é um signo, uma frase é um signo e mesmo um texto é um signo complexo), para os meus propósitos, basta entender que signo será aqui tomado como sinônimo de palavra. Mas voltemos ao símbolo.
No cristianismo, sabe-se que a cruz simboliza o sofrimento. Um cristão católico poderia objetar que, na realidade, a cruz para a Igreja católica apostólica romana, é símbolo da salvação. Todavia, é preciso dizer que todo símbolo é polissêmico (o mesmo vale para o signo, evidentemente). O significado ‘sofrimento’ atribuído à cruz coexiste com o significado de ‘triunfo’, que já se situa no campo semântico de ‘salvação’. Mas, no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, era sinal de suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso. Ao que parece, foi na iconografia cristã, que se estabeleceu a transposição do significado original ‘sofrimento’ para o significado ‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Atualmente, para os cristãos, a cruz de Cristo, de onde brotam flores e folhas, simboliza a superação da morte e a salvação.
Essa consideração sobre o simbolismo da cruz servirá de ponto de partida para que compreendamos como o sofrimento, enquanto signo, passou a receber entonações ou valores positivos. A cruz, originalmente, símbolo de sofrimento e suplício, foi reinterpretada pelos cristãos proto-ortodoxos no longo desenvolvimento do movimento cristão, como símbolo da salvação. Pelo sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a humanidade. Não surpreende que o sofrimento passe a ser valorado como um caminho para um bem maior.
Convém também considerar que não estou negando a realidade subjetiva do sofrimento. O sofrimento é uma evidência irrecusável. Assim, entendo o sofrimento como uma perturbação violenta, quer de ordem física, quer psíquica, experimentada por uma pessoa. O sofrimento é uma realidade constitutiva da condição humana. O ser humano não só sofre, mas sabe que sofre. Embora possível em psicanálise, não faço distinção entre dor e sofrimento. Portanto, sofrimento envolve dor. O texto do Catecismo da Igreja Católica (2000) reconhece a indissociabilidade entre o sofrimento e a condição humana:

“A enfermidade e o sofrimento sempre estiveram entre os problemas mais graves da vida humana. Na doença, o homem experimenta sua impotência, seus limites e sua finitude. Toda doença pode fazer-nos entrever a morte”.
(p. 412)


O texto se refere também à causa do sofrimento: a enfermidade, a doença. Diz-nos que esses fatos nos avivam a consciência de nossa impotência e finitude. E acrescenta, a seguir, que a enfermidade pode levar uma pessoa à angústia e à revolta contra Deus – atitude esta natural e esperada. Por outro lado, o próprio Catecismo observa que a doença pode tornar a pessoa mais madura, ajudando-a a discernir, em sua vida, entre o que é essencial e o que não é essencial, de modo a conduzi-la às coisas essenciais. Não é custoso inferir que, entre as coisas essenciais, está, evidentemente, Deus. O sofrimento (doença, enfermidade) provoca no sofredor um anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um sentido moral no sofrimento, porquanto é graças a ele que o homem orienta sua vida pelo discernimento entre as boas e más paixões, entre o que é essencial e o que é supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus valores, aperfeiçoa-se moralmente.
Até aqui, vim procurando descrever como o sofrimento, enquanto signo, se articula à lógica doutrinária cristã. Antes, entretanto, de avançar, preciso dizer algumas palavras sobre os conceitos de valor e virtude. Em primeiro lugar, situando-me no âmbito filosófico, noto que o valor se relaciona ao que é bom, ao que é útil e positivo. Num sentido prescritivo, o valor é algo que deve ser realizado. No domínio da ética, por valores entende-se os fundamentos da moral, das normas, das regras. Assim, são os valores que alicerçam nossos modos de conduta, de comportamento. Não ignoro haver uma perene discussão sobre o conceito de valor. Para alguns filósofos, o valor é tudo que visa à felicidade; para outros, o valor deve ser definido segundo os fins a que servem, de modo que há bons e maus valores.
Assumirei, desde já, que o sofrimento, no interior do sistema ideológico cristão (discutirei a questão da ideologia mais adiante), é um valor, no primeiro sentido exposto. Ou seja, o sofrimento é, no cristianismo, um valor porque é útil, porque serve a um bem, a um propósito benéfico.
No tangente à noção de virtude, atendo-me ao âmbito filosófico, originalmente, a virtude é a qualidade ou a potência que está na natureza de algo. Do ponto de vista ético, recobre a qualidade positiva de um indivíduo que o leva a praticar o bem a si mesmo e aos demais. Em Platão, a virtude era considerada uma qualidade inata; em Aristóteles, ao contrário, podia ser ensinada e resultava do hábito. Para o filósofo estagirita, a virtude é uma disposição que o homem adquire por vontade e que se define pela razão. Um homem virtuoso age refletidamente buscando um meio-termo, uma medida justa entre o excesso e a falta.
A teologia cristã, que se moldou, em parte, pela filosofia aristotélica, conceberá a virtude como “uma disposição habitual e firme para fazer o bem” (CIC, 2000, p. 485). A pessoa virtuosa se inclina ao bem, busca praticar atos bons. O cristianismo católico distingue entre quatro virtudes cardeais, quais sejam, a justiça, a prudência, a temperança e a fortaleza. Esta última nos interessa aqui. A fortaleza é a virtude cardeal que dá segurança ao homem nas dificuldades, que o mantêm firme nas tribulações. Ela o capacita a vencer os medos, inclusive o da morte, a perseverar em face das provações e também o ajuda na aceitação do sofrimento e na renúncia a algum meio de resistência a ele. O homem dotado dessa virtude crê que seu sofrimento é necessário para o alcance de um bem; ele sofre tendo em vista um bem, se sacrifica por uma causa justa.
Em vista do exposto, assumirei que, para o cristão, resignar-se ao sofrimento, é virtuoso. O cristão sofredor, que compreende ser seu sofrimento necessário para o atingimento de um bem, é um homem dotado de virtude.
O tema do sofrimento é constante na Bíblia, muito embora as respostas oferecidas pelos diversos autores bíblicos à questão de “por que existe sofrimento num mundo criado por um Deus bom? sejam insatisfatórias (veja-se a esse propósito Ehrman, Bart D. O problema com Deus). Os homens do Antigo Testamento experimentavam o sofrimento em face de Deus. Eles se queixavam de seu sofrimento a Deus. Imploravam a cura a ele.
Uma ideia basilar, inferida, sem muitas dificuldades, após examinar a problemática do sofrimento na doutrina teológica cristã, é que a enfermidade, a dor, o sofrimento tornam-se um caminho para a conversão.
O Problema do Mal é, sem dúvida, o problema mais espinhoso e dramático para a fé cristã. E o é porque essa fé supõe a existência de um Deus todo-poderoso e moralmente bom e perfeito. O grande desafio é responder à questão: Por que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom permite a existência do mal e do sofrimento no mundo? Essa questão global suscita outras, tais como “por que esse Deus permite que pessoas justas e inocentes, crianças, inclusive, sofram, padeçam de dores atrozes e morram?” A fé em tal Deus não se sustenta em face da evidência inegável do mal e do sofrimento no mundo. Embora seja absurdo atribuir a maldade à natureza (a natureza não pode ser avaliada segundo nosso senso de moralidade, ela é indiferente, é amoral), é inegável que ela é fonte de sofrimento para os seres humanos e para os animais de consciência superior.
Leio sobre um tornado que devastou o estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, matando 51 pessoas, dentre as quais crianças. Das 60 pessoas que ficaram feridas, 12 são crianças. Em face de acontecimentos como este – por sinal tão comuns, tão frequentes, como é possível, ainda assim, manter a crença na existência de uma Providência, de um Deus criador, todo-poderoso e bom?
Vimos que o Catecismo reconhece ser o sofrimento uma realidade intrinsecamente ligada à condição humana. Mas é preciso dizer que também os animais de consciência superior e dotados de um sistema nervoso central (mamíferos, aves, incluindo polvos, etc.) sofrem. Reconhecer simplesmente o sofrimento um mal a que está fadado o ser humano é insuficiente para conferir à doutrina cristã alguma validade. Ao contrário, só o reconhecimento acarretaria graves problemas para as suas alegações. É bem verdade que os problemas persistem, embora tenham sido ardilosamente disfarçados pelos floreios da casuística cristã.
Se um Deus bom criou um mundo bom, como, então, foi possível o sofrimento penetrar o mundo? A resposta da teologia das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) é fornecida pela doutrina da Queda do Homem. O sofrimento e o mal no mundo decorrem do pecado original cometido por Eva, do qual tomou parte Adão, inocentemente. Por essa razão, todas as gerações posteriores carregam o estigma do pecado e cada bebê que nasce precisa ser batizado para depurar-se dessa mácula. Ignoremos o absurdo dessa esdrúxula doutrina, qual seja, a culpa estendida a toda uma geração de inocentes pelo erro cometido por seus antepassados.
O pecado é uma ofensa a Deus. Sinaliza o afastamento do homem em relação a Deus. O pecado original, cometido por Eva, caracterizou-se pela desobediência a Deus. Reza a doutrina da Queda que o homem pretendeu ser como deuses, tornando-se conhecedor do bem e do mal. O pecado recobre a vaidade humana, o seu brio. Peca o homem que tem orgulho de si, que exalta a si mesmo e despreza a Deus.
No cristianismo, o homem tem de ser rebaixado e humilhado para só, então, arrependendo-se dos seus pecados, alcançar a redenção. Em seu livro Um rosto para Deus (2005), Maria Clara Bingemer, também reconhece que a experiência do sofrimento era comum aos antigos israelitas:

“(...) a presença de Deus é percebida pelo povo [de Israel] no meio de acontecimentos, como guerra, a vitória e a derrota, a passagem do Mar vermelho e a liberação do Egito e o exílio. Ou melhor: onde outros viam a guerra, a vitória, a derrota, um acaso ou uma fatalidade, o povo de Israel via a presença de seu Deus à frente e por dentro de todos estes fatos”.
(p. 44)

Esse trecho é ilustrativo do fato de que a questão da ideologia, tal como a abordarei aqui, com base em Bakhtim e Althusser, se insinua. O trecho nos ensina que a experiência da dor, do sofrimento, dos fracassos, mas também do sucesso e da vitória era vivida e ancorada sobre a crença numa participação direta de Deus nos acontecimentos. É nesse cenário histórico que se forja a crença, entre os antigos hebreus, segundo a qual Deus se revela também na história. O que, para nós, céticos e ateus, soa como uma impostura que ganhou, entre os judeus e cristãos, status de verdade inquestionável.

De que Deus se trata?

Usei até aqui, sem escrúpulos filosóficos, a palavra Deus, supondo, evidentemente, que o leitor sabe a que Deus me refiro. No entanto, o Deus criador da Bíblia hebraica e o Deus de amor (embora disposto a lançar ao inferno os transgressores) do Novo Testamento não é o único deus produzido pelo espírito humano. Por conseguinte, quando uso a palavra Deus, quero referir-me a um Ser criador e pessoal, onipotente, onisciente, dotado de perfeição moral, demasiado interessado na vida humana e que funda uma relação para com o homem no mandamento do amor. Esse Deus foi forjado pela fé de homens que viveram no antigo Oriente Próximo há aproximadamente 2.000 a.C. Essa estimativa remonta à tradição judaica. O Deus a que me refiro tem suas raízes na tradição judaico-cristã. É, portanto, o Deus de Israel, de Abraão, de Moisés, de Isaías, de Jacó, mas também de Jesus Cristo e do apóstolo Paulo. É um Deus que, embora tenha desenvolvido uma personalidade que se inclina a um relacionamento mais próximo e exclusivista com o povo eleito (o povo de Israel), demonstrou um potencial para universalizar-se e estender sua soberania sobre os recantos mais longínquos do mundo. É o Deus a quem os antigos hebreus se socorriam para lutar contra o jugo, a dominação, a escravidão mantida pelos povos conquistadores. É o Deus que estabeleceu uma aliança com seu povo e que a reforça prometendo bem-aventurança em troca de obediência e fé.
Com o advento do cristianismo (I d.C.), esse Deus é rebaixado à condição humana, é instado a manter um relacionamento pessoal e paternal com o homem. Esse Deus se encarna em Cristo, se identifica com Cristo. Cristo passa, então, a reunir em si as naturezas humana e divina. Cristo é o próprio Deus. A esse respeito, não poderia deixar de notar que essa foi a visão vitoriosa, a visão dos grupos proto-ortodoxos. Outros grupos cristãos primitivos dos séculos II e III d.C tinham uma visão diferente. A bem da verdade, a visão proto-ortodoxa, de que Justino foi um representante e defensor ferrenho, afirma que Jesus era plenamente humano e plenamente divino, o que não deixa de ser um absurdo. Não só porque humano e divino pertencem a ordens incomensuráveis, mas porque a ideia de plenitude não pode ser atribuída separadamente a duas naturezas num mesmo ser: ou ele era plenamente humano e, portanto, não tinha nada de divino, ou, ao contrário, era plenamente divino, e não tinha nada de humano. Ou a qualidade divino totaliza seu ser ou a qualidade humano o totaliza. É, logicamente, impossível que seja, em si mesmo, inteiramente humano e inteiramente divino. Para mim, esse é um caso bastante emblemático do abuso da lógica, da inconsistência do sistema de pensamento religioso. A lógica cristã ignora os limites do bom-senso ou os subverte.

Como entender Deus em nossa análise?

Agora, peço ao leitor que me acompanhe nas considerações que farei sobre como se deverá entender Deus neste trabalho. A operação mental que se deve fazer, doravante, consiste na transposição da categoria de Ser para a de signo. Deus não será considerado um Ser transcendente cuja existência é inquestionável. Para efeito de análise, considero Deus um signo linguístico que expressa a autoridade máxima, atemporal e transcendente ao mundo e que cumula as entonações ideológicas de comunidades cristãs (sacerdotes, teólogos, filósofos, leigos). Considero-o um signo através do qual a hierarquia sacerdotal expressa sua autoridade na história. Deus é um signo ideológico. Veremos, com Bakhtin, que todo signo é signo ideológico.

Deus como signo ideológico

Todo signo verbal é dotado de uma dupla materialidade: é uma entidade linguística, ao mesmo tempo, físico-material e sócio-histórica. Chamo atenção para a influência marxista nessa concepção do signo verbal. Ela foi desenvolvida por Bakhtim. A influência a que me refiro diz respeito ao materialismo histórico (Karl Marx), o qual designa os processos de transformação social que se dão por meio do conflito entre os interesses das diferentes classes sociais.
Os signos têm a propriedade de perpassar todas as esferas sociais. A eles é associado um ponto de vista. Através deles, a realidade é representada a partir de um lugar valorativo (verdadeira, falsa, boa, má, positiva, negativa, etc.). O ponto de vista, o lugar valorativo, bem como a situação são sempre determinados sócio-historicamente. O discurso é o palco onde eles se constituem e se materializam.
Signo e palavra serão usados aqui indiscriminadamente. Portanto, é preciso entender o seguinte. Para Bakhtin, todo signo é signo ideológico. Como signo ideológico, a palavra reúne as entonações dos diálogos vivos aos valores sociais, incorporando em seu cerne as modificações ocorridas na infra-estrutura (base econômica, material de uma sociedade), mas também, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais.
Não se pode ignorar, segundo Bakhtin, a importância da comunicação na vida cotidiana e seu vínculo com os processos de produção material da sociedade. Para ele, é nos encontros casuais e corriqueiros do cotidiano que a ideologia encontrará seu cimento. Esses encontros vão povoando o universo de signos, e cada signo vai-se tornando parte da unidade da consciência, que é verbalmente constituída. A consciência, em Bakhtim, é um fenômeno socioideológico. A realidade da consciência é o signo. A consciência do sujeito, constituída de signos, pode, através da palavra, entrar em contato com o mundo exterior, também construído e povoado de palavras. Assim, o sujeito compreende o mundo no confronto entre as palavras da sua consciência e as palavras circulantes na realidade.
Bakhtim nos ensina que as menores mudanças sociais repercutem imediatamente na língua. Os sujeitos inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala de valores, nos comportamentos ético-sociais, as mudanças sociais. As palavras funcionam, assim, como agente e memória social, visto que uma mesma palavra figura em contextos diferentes e variados. Toda palavra é entretecida de inúmeros fios ideológicos, contraditórios entre si, uma vez que se construíram e freqüentaram todos os campos de relações e conflitos sociais. Vejam-se, por exemplo, palavras como Deus, Jesus, democracia, sem-terra, etc. Vimos um exemplo disso quando mencionei a disputa entre grupos cristãos chamados de heréticos e os proto-ortodoxos em torno da natureza de Jesus. As entonações do grupo vitorioso (dos proto-ortodoxos) prevaleceram. Os significados produzidos por eles e associados à palavra Jesus tornaram-se parte do cânone da Igreja cristã.
Um fato importante precisa ser enunciado: todo signo verbal ou toda palavra compõe-se de múltiplos sentidos. Todo signo possui muitos acentos ideológicos, uma vez que não consegue eliminar totalmente outros concorrentes ideológicos.
Uma propriedade fundamental da palavra consiste na sua capacidade de participar de todo ato consciente. A palavra opera tanto nos processos internos da consciência, mediante a compreensão e interpretação do mundo pelo sujeito, quanto nos processos externos de circulação das palavras nas esferas socioideológicas.

O que é ideologia para Bakhtin?

Um dos méritos de Bakhtim, no tocante à questão da ideologia, foi ter insistido que não há ideologia fora da linguagem. Ele mostrou que tudo que é ideológico é signo, que o discurso é o lugar próprio onde se constitui a ideologia. Para o filosofo e linguista russo, a linguagem é sempre uma realidade social. Nela, o sujeito se constitui na relação com o outro. Fora da linguagem, não há sujeitos.
Mas qual é a concepção de Bakhtin de ideologia? Em primeiro lugar, Bakhtim, embora assuma, como ponto de partida, a perspectiva marxista de ideologia como “falsa consciência”, ocultamento da realidade social, obscurecimento das contradições da existência, não o faz completamente. Na verdade, ele procurará reelaborá-la ou reconstruí-la, evocando a necessidade de considerar, ao lado da ideologia oficial, uma ideologia do cotidiano. Essa reelaboração redundará em que, para Bakhtin, não faz sentido definir a ideologia como falsa consciência. Para ele, a ideologia expressará uma tomada de posição determinada sócio-historicamente. O sentido pejorativo do termo, que constitui herança do marxismo, se esvaece ou, ao menos, não é imanente ao termo. O que se deve destacar é a função da ideologia. A ideologia pode funcionar para legitimar relações de dominação de uma classe sobre outra. Pode servir para justificar condições de opressão e desigualdades entre as classes sociais. A ideologia pode servir para manter e reproduzir o status quo. Mas – convém insistir - em Bakhtim, ela é um sistema de representação de mundo e da sociedade, que se constrói nas interações entre os indivíduos organizados em grupos sociais, por meio do discurso. É graças a esse sistema de representação e interpretação do mundo que se pode falar em um modo de pensar e de ser de um dado indivíduo ou grupo social. A ideologia expressa a orientação social ou a linha tomada socialmente por um indivíduo ou grupo.
Precisamos retomar aqui a natureza do signo ou palavra, com vistas a chamar atenção para um aspecto importante da relação entre o signo e a ideologia. Bakhtim ensina que a palavra apresenta a propriedade de neutralidade. Isso não quer dizer que ela seja neutra em relação à ideologia, mas que ela pode assumir qualquer função ideológica. Em outras palavras, o signo é sempre passível de receber uma carga significativa ou valorativa. Um mesmo signo, aliás, pode comportar acentos ideológicos contraditórios. Tendo isso em mente, Bakhtim mostrará que a superestrutura só existe na relação constante com a infra-estrutura, mediante os signos. Vimos que os signos podem fazer-se presentes em todas as relações sociais. Por isso, eles têm a capacidade de relacionar a superestrutura com a infra-estrutura. Segundo Bakhtim, a ideologia serve à expressão, organização e regulação das relações sociais entre os sujeitos.
Como a ideologia se estabiliza? Disse que Bakhtim reconheceu que, a par da ideologia oficial, deve-se considerar uma ideologia do cotidiano. Disso se segue que são as interações entre os sujeitos no cotidiano o nascedouro da ideologia; é nessas circunstâncias que a ideologia começa a tomar forma, a se constituir. No momento em que a ideologia do cotidiano, então constituída nas interações sociais, se organiza em um sistema superior, em interações já mais bem definidas e estáveis, dá-se a estabilização da ideologia. Nessas circunstâncias, padrões mínimos de sentidos postos em circulação vão se estabelecendo. É o caso em que a ideologia do cotidiano é reelaborada ou assume uma forma mais padronizada em grupos sociais organizados, tais como sindicalistas, profissionais liberais, estudantes, grupos religiosos, grupos não-governamentais, etc. A estabilização da ideologia se dá à medida que penetra instituições tais como imprensa, ciência, literatura, religião, leis, etc.
Uma operação básica na ideologia é o que se pode chamar de refração. Para Bakhtim, a ideologia refrata a realidade social, no sentido de que uma classe dominante confere ao signo ideológico um caráter intangível, imutável, atemporal, a-histórico, transcendente às próprias classes sociais. Disso se segue, então, o abafamento ou o ocultamento da luta dos índices sociais de valor, de modo a se propagar um discurso monovalente e monossêmico. A fim de ilustrar essa concepção e, assim, contribuir para o entendimento do leitor, retomo a questão em torno da qual grupos de cristãos primitivos disputaram o sentido verdadeiro ou correto. Essa luta por estabelecer a crença correta, a perspectiva certa foi uma luta, ao mesmo tempo, política, teológica e ideológica. Precisarei discorrer brevemente sobre os acontecimentos implicados aí. Nos séculos II e III da era cristã, havia muitas formas de cristianismos, muitos grupos cristãos que disputavam entre si para determinar quem estava de posse da fé correta. Entre esses grupos havia o dos cristãos docetas. O termo tem origem no grego DOKEO, que significa “dar a impressão de”. Os cristãos docetas defendiam que Jesus não era um ser humano, mas que era completamente divino. Jesus era Deus; apenas parecia ser homem. Marcião se destaca dentre os cristãos docetas dos primeiros séculos do cristianismo. A ele se opuseram dois padres proto-ortodoxos chamados Irineu e Tertuliano. Estes consideravam a crença de Marcião uma verdadeira ameaça à fé cristã. Só havia uma fé correta e esta era a defendida por Irineu e Tertuliano. Mas qual era a visão de Marcião? Para Marcião, Paulo era o verdadeiro seguidor de Jesus. Com base na observação de que, em algumas de suas cartas, Paulo distingue entre a lei (de Moisés) e o evangelho, concluiu Marcião que a salvação só viria com a fé em Jesus Cristo e não na obediência à Lei de Moisés. A oposição entre a lei judaica e o evangelho era tão clara e forte, que Marcião sustentou que o Deus do Antigo Testamento, que estabeleceu a lei e a delegou a Moisés não poderia ser o mesmo Deus de que nos falou Jesus. O Deus do Antigo Testamento era o Deus criador, o Deus do povo de Israel. Mas, segundo Marcião, Jesus originou-se de um Deus grandioso, distinto, que o enviou à Terra para salvar os homens do terrível Deus judaico. Disso concluiu Marcião que, não provindo Jesus do Deus criador do mundo, não poderia o Messias ser um homem de carne e osso. Jesus não pertencia a esse mundo. Marcião levou às ultimas consequências suas especulações: sustentou que Jesus, na verdade, não tinha sequer um corpo físico, que não tinha nascido, que não derramou sangue algum e que não morreu de verdade. Para Marcião, isso era apenas aparência.
Tertuliano não ficou satisfeito com essa interpretação e se dedicou ferrenhamente a bani-la da história cristã. Ele argumentou que, se Jesus não fosse humano, não poderia salvar a humanidade, que, se não tivesse derramado seu sangue, nunca teria trazido a salvação, que, se não tivesse de fato morrido, sua morte “aparente” não redundaria em benefício algum. Tertuliano e outros assumiram, portanto, a crença tenaz de que Jesus era divino e plenamente humano. Ele realmente derramou sangue, sofreu com as dores do martírio, foi crucificado e morreu; ressuscitou dos mortos e, fisicamente, ascendeu aos céus onde está sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso. Essa crença também incluía a expectativa de seu retorno iminente.
Como compreender esse acontecimento à luz do conceito de refração próprio da ideologia, segundo Bakhtim? O que se verifica nessa luta política, teológica e ideológica em torno da natureza de Jesus é que as entonações ideológicas dos docetas foram ocultadas. Prevaleceram os valores, as ‘vozes’ dos cristãos proto-ortodoxos. É a memória social desses grupos que a palavra Jesus, passou, ao longo da história, a conservar. Cada grupo de cristãos primitivos eram portadores de índices sociais de valor e eles se esforçaram por incorporar esses valores no signo Jesus. Mas, na luta desses índices, saíram vitoriosos os valores dos grupos proto-ortodoxos, de que Tertuliano e Irineu foram eminentes representantes.
A condição para que seja conservada a divisão social e que se perpetue a hegemonia da classe dominante é que os sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados. E foi justamente o que aconteceu ao longo do desenvolvimento da história do cristianismo. Havia sinais de contradição entre a visão dos docetas e a dos proto-ortodoxos. Como esses cristãos gozavam de maior poder sócio-político, teológico e ideológico, eles conseguiram apagar os valores dos cristãos docetas, permitindo assim que o signo ideológico Jesus passasse a significar aquilo que eles queriam que significasse. Instaurou-se por força dessa vitória proto-ortodoxa (o grupo dominante) a monovalência ou monossemia do signo “Jesus”.
Contrariamente à crença judaico-cristã, não é Deus que faz ou intervém na história; como se pode ver, são os homens os verdadeiros agentes dos processos históricos (que são sociais, políticos, econômicos, culturais e ideológicos).
Encerrando esta seção, gostaria de acrescentar que os signos comportam uma ambivalência, porquanto não só refletem a realidade, como também a refratam. Nesse sentido, podem permitir que a apreensão dela seja feita com fidelidade ou com distorção. Ponderemos sobre este passo de Leandro Konder, em A Questão da ideologia (2002), em que o autor nos lembra duas coisas importantes: a primeira é que os signos se constituem sempre numa organização social; a segunda é que a consciência dos indivíduos, bem como seus sentimentos, emoções, personalidade são formados em processos socioideológicos em uma dada organização social de que eles fazem parte.

“Por mais diferentes que sejam, entretanto, os signos têm em comum o fato de só poderem se constituir como sistema a partir de alguma forma de organização social. O social, portanto, precede o individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos depende da complexidade da organização social no interior da qual eles existem”.
(p. 115)


A ideologia em Louis Althusser


Diferentemente de Bakhtim, que se preocupou em varrer para fora do domínio semântico do termo ideologia qualquer sentido pejorativo, Althusser, de certo modo, o conserva. Para este filósofo, “a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (2007, p. 85). Para ele, a ideologia não corresponde à realidade.

“Nas ideologias, os homens representam-se, de forma imaginária, suas condições reais de existência”.
(p. 86)


Mais adiante, em seu trabalho, Althusser refinará essa definição, de sorte a fazer ver ao seu leitor que o que os homens representam, de forma imaginária, na ideologia não são suas reais condições de existência, mas as relações que eles estabelecem com essas condições. Consoante entende Althusser, é nessa relação com as condições reais de existência que se acha a causa da deformação imaginária na representação ideológica do mundo real.
Antes de atacar o modo como Althusser compreende, especificamente, a ideologia religiosa cristã, não posso deixar de referir sua contribuição para o entendimento da natureza do sujeito. Começo, então, notando que, para Althusser, só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito. O sujeito é uma categoria constitutiva de toda ideologia. A ideologia interpela os indivíduos em sujeito. Por exemplo, autor e leitor são sujeitos que se constituem no interior de formações ideológicas que se materializam nos discursos. Disso se segue também que Deus é um Sujeito, pois que construído na ideologia religiosa.
Atendo-se à ideologia religiosa, Althusser escreverá o que ela, segundo ele, nos diz:

“Ela diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado por seu nome no sentido passivo, não é nunca ele que se dá um nome), para dizer que Deus existe e que tu deves lhe prestar contas. Ela acrescenta: É Deus quem se dirige a ti pela minha voz (tendo a Escritura recolhido a Palavra de Deus, a Tradição a transmitido, a Infalibilidade Pontifícia a fixado para sempre quanto às questões “delicadas”). Ela diz: Eis quem tu és: Tu és Pedro! Eis a tua origem, tu foste criado pelo Deus de toda eternidade, embora tenha nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que tu deves fazer! Se o fizeres, observando o “mandamento do amor”, tu serás salvo, tu Pedro, e farás, parte do Glorioso Corpo de Cristo, etc.”.
(pp. 99-100)


Eis aí um fragmento do pensamento de Althusser importante e que nos demanda uma análise cuidadosa. Pedro, que pode ser qualquer cristão, é interpelado em sujeito. Essa interpelação lhe veda qualquer autonomia. Não é ele quem se nomeia; ele é nomeado. É-lhe fixada uma identidade (um nome, uma origem, um Pai criador). É-lhe determinado um lugar na sociedade, no mundo, no universo. Também ele é posicionado em relação a Deus (ele precisa prestar-lhe contas, obedecer-lhe ao mandamento). É-lhe determinado um modo de conduta, calcado sobre o mandamento do amor. Particularmente interessante é ver aí que o amor cristão precisa ser balizado por um mandamento. Deus ordena amar acima de tudo a ele mesmo e depois ao próximo. Isso lança suspeitas sobre a genuinidade do amor cristão. Por ser um amor, cuja manifestação, é pré-determinada por Deus, na forma de mandamento, redunda daí sua opacidade, sua vocação para um dever, no entanto, interesseiro. Ora, tenho de amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo para ganhar prestígio aos olhos de Deus.
Mas é possível ver a questão sob outra perspectiva. Uma vez assumindo ser Deus um signo ideológico que não é outra coisa senão o reflexo de uma autoridade eclesiástica e terrena, embora apareça à consciência coletiva, como um Ser transcendente, uma autoridade sobre-humana, o mandamento do amor, ao qual devemos acrescentar o temor a Deus, configura uma típica situação de relação desigual entre subalternos e seu líder. Um líder que queira expandir sua soberania e conservá-la, sem que os dominados se revoltem contra essa condição, precisará combinar o amor e o temor. Em outras palavras, precisará infundi-lhes amor e temor. A figura de Deus é representada como um ser que deve ser amado e, ao mesmo tempo, temido. Como Deus não é senão um signo ideológico, ele é o meio verbal pelo qual a Igreja decreta o amor e infunde o temor ou o medo. É provável que esse medo tenha sido mais forte no passado, ou melhor, tenha assumido outra forma, tenha servido a outros propósitos. No entanto, o medo de que o abandono da fé, a prática da heresia, ou de que a vida não tenha sentido transcendente algum ainda persiste, mesmo que num nível subconsciente nas grandes massas religiosas. É preciso frisar: os religiosos – assim creio – não amarão e temerão as suas igrejas, embora até possam nutrir tais sentimentos em relação às figuras carismáticas como padres, bispos, pastores e o papa. O amor e o temor é, em primeiro lugar, a Deus, mas entendendo Deus como um mero mecanismo ideológico mediante o qual a Igreja conserva e alimenta esses sentimentos nos indivíduos.
Sem pretender me delongar sobre este tópico, vale atentar para o que nos ensina Freud, em O Mal-estar na cultura (2010), sobre a ineficiência do mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”:

“(...) O mandamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é a defesa mais forte contra a agressão humana, e um exemplo excelente do procedimento nada psicológico do supereu cultural. O mandamento é impossível de ser cumprido; uma inflação tão grandiosa do amor apenas para diminuir o seu valor, sem resolver o problema. A cultura negligencia tudo isso; ela apenas admoesta que quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
(p. 180)


Basta entender que religião e Igreja são instituições culturais, que não será custoso concluir que “o amar a Deus sobre todas as coisas” e “o amar o próximo como a si mesmo” são exigências que extrapolam às inclinações humanas. O que nos martela a religião e a Igreja é que “quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
Voltando, contudo, ao sujeito Pedro, em Althusser, e lançando mão do conceito lacaniano de Outro, é interessante ver que o sujeito Pedro é submetido a toda uma comunidade de valores, crenças, dogmas, discursos materializada na forma de Escrituras Sagradas, de uma tradição teológico-doutrinária. Quem lhe fala é essa comunidade representada no signo Deus. Também lhe é determinada uma condição para a sua Salvação, bem como um destino. Obedecendo ao mandamento e vivendo segundo o que lhe foi determinado (entre outras coisas, que Deus é quem o criou; portanto, saiba-se uma criatura!; que Jesus é seu único salvador; portanto, reconheça-se como pecador!, etc.), ele participará da majestosa Família de Deus (o Corpo de Cristo, a comunidade cristã, composta pelos eleitos e acolhidos no amor de Deus).
De tudo que foi dito, devemos concluir o que se segue. Ao contrário de Bakhtim, Althusser entende a ideologia como um sistema de representação que deforma a realidade. Não é que essa visão esteja de todo excluída da abordagem do filósofo russo, mas, decerto, sua perspectiva é mais alargada. Para ele, todo signo é signo ideológico e a ideologia é um sistema de representação e interpretação da realidade social e do mundo. Todo discurso, em Bakhtim, é constituído do que poderíamos chamar de formação ideológica (embora esse termo não tenha sido cunhado por ele). Não há discurso sem ideologia, na visão de Bakhtim.
Para examinar como o sofrimento, enquanto signo ideológico, entra a fazer parte da constituição de uma trama ideológico-doutrinária sobre a qual se calcarão teologias cristãs, assumirei a visão de Althusser sobre ideologia, sem deixar de articular a ela a perspectiva de Bakhtim sobre a natureza ideológica de todo signo.

O sofrimento: uma escada que leva a Deus

Vimos que o sofrimento é consequência da Queda; mas também é o meio pelo qual o homem se redime perante Deus.
O sofrimento, sempre entendido como signo ideológico, se articulará à ideia de que a vida terrena é um vale de lágrimas. Nela, o ser humano deverá se esforçar por reparar seu erro que o maculou desde o nascimento.
No entanto, o sofrimento tem o potencial de alavancar uma verdadeira transformação. O fracasso que ele nos lega nos conduz à vitória. Ele instaura uma lógica, quase nunca percebida, segundo a qual, aviltando o pecador, amaldiçoando-o, Deus o concede a salvação. Pascal Bruckner, em seu livro A euforia perpétua – ensaio sobre o dever de felicidade (2010), oferece-nos uma preciosa constatação:

“Não basta, pois, experimentar o sofrimento, é preciso amá-lo”.
(p. 32)


A doutrina cristã prescreve: “É preciso sofrer!” “Resigne-se ao sofrimento e cairá nas graças de Deus!”. Mas o cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se "inspira" na Paixão de Cristo quando se vê à volta com a dor do sofrimento. No cristianismo, a morte do Cristo-Deus, em agonia, na cruz, é o cerne de seu ritual. Jesus se torna proprietário da morte. Ele afirma e nos lembra o trágico da condição humana, mas também confirma a promessa de sua superação, mediante a ascensão à condição sobre-humana na ordem da esperança (que assim seja!) e do amor (infinito e elevado!).
Para o cristão que padece, Jesus é um irmão de sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento, pela culpa do pecado deve ver em Jesus um amigo e um guia em seu calvário pessoal. “Deus dá a cruz segundo nossa capacidade para carregá-la”, diz o senso-comum fundado na ideologia cristã.
O sofrimento sujeita o homem à condição de impotência, arranca-lhe as forças, condena-o à resignação. O homem não pode salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. À salvação precede a humilhação, o aviltamento do homem.
É do fundo do seu sofrimento atroz que o homem ascende a Deus. O sofrimento é uma escada que o leva até ele. O signo do sofrimento instaura uma dependência do homem a Deus. Ela não seria possível sem o imperativo do sofrimento, o qual reaviva na consciência do homem sua condição de criatura mortal e inferior. Simone Weil escreveu: “só o sofrimento salva a existência”. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que se pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a salvação, sem a introdução na doutrina da crença em que o sofrimento faz sentido, já que constitui o caminho que conduz à salvação. Salvação da morte, salvação do mundo onde grassa o pecado. Salvação do próprio sofrimento. Novamente, Simone Weil dá-nos testemunho dessa lógica viciosa cristã: o sofrimento “é tão melhor quanto mais for injusto”. Eis aqui um dito moralmente inaceitável. Uma clara aceitação do sofrimento gratuito de inocentes. Para Simone Weil, só o sofrimento injusto pode nos conduzir à sabedoria e ao colo de Deus. Eis uma prova do abandono da atitude filosófica, e mesmo a rejeição a qualquer tentativa séria de refletir sobre o problema do sofrimento à luz de uma teodiceia, mesmo que ela seja pouco convicente.
Em relação ao cristianismo, escreverá Bruckner, “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou manifestaram esse “sadismo de piedade” (p. 34). E, mais adiante, acrescenta: “o sofrimento é a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo, rebaixá-lo (ib.id.)”.
Que outros índices de valores se acumularam na palavra sofrimento? Vemos nele também a ideia de progresso espiritual. Na medida em que nos leva a aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é interpretado como um progresso. Esse deslize semântico, operado pelo sistema ideológico religioso, da “estagnação”, do “mal” para o “progresso”, para o “bem maior” leva a que o sofrimento não seja mais visto como uma condição contra a qual devemos mobilizar esforços para lutar. O cristianismo nos diz: “resta sofrer junto de Cristo aceitando-o como um amigo de sofrimento”. A miséria traz a paz interior; traz a alegria espiritual. O cristão que sofre, experimenta, paradoxalmente, a alegria quando crer-se unido a Cristo em sofrimento, quando, comparando seu sofrimento ao de Cristo, pune-se por qualquer pensamento queixoso que se lhe assome à consciência. Consciente de que seu sofrimento não se compara ao de Cristo em intensidade e profundidade, o Cristão sofre resignado, não sem evocar a Cristo para que o conforte e o vele em seu sofrimento. Novamente, Bruckner nos lembra “com a religião, o sofrimento torna-se um mistério que não deciframos, a não ser sofrendo” (p. 35). O cristão, no momento em que sofre, crê haver um sentido em seu sofrimento, mesmo que não lhe seja imediatamente transparente ou acessível. E não nos surpreendamos que, após cessada a tempestade de dor, ele se regozije com a descoberta do sentido, que tardou, mas se lhe revelou cristalino. Bruckner faz uma breve referência ao trabalho ardiloso de teólogos na produção de teodiceias:

“E os teólogos irão desenvolver tesouros de casuística e de sutileza para legitimar a existência do mal sem atentar à bondade de Deus”.
(p. 35)


E diga-se, de passagem, que a própria concepção de sofrimento como uma forma de progresso, como um meio de retorno a Deus é já fruto de uma teodiceia denominada na tradição de pedagógica.
Vimos, no limiar deste texto, que no Catecismo, o sofrimento nos aviva a consciência de que somos seres destinados à morte. Que relação pode-se estabelecer entre o sofrimento e a morte, no interior da doutrina cristã? Se o sofrimento é uma escada que nos conduz a Deus, a morte é um passaporte para a verdadeira vida. A morte nos liberta das tentações mundanas, dos pecados deste mundo. O mundo não é nada mais do que um lugar de exílio, onde grassam a dor e o sofrimento.
Não exageramos ao notar que, na história cristã, propôs-se aceitar voluntariamente sofrer e renunciar a toda e qualquer medida contra a dor. É preciso participar da Paixão de Cristo. Bruckner nos fala de “eloqüência da cruz”, com que se busca justificar a imobilidade de esforços de piedosos na tentativa de melhorar as condições de existência humana neste mundo. A felicidade não pertence a esse mundo, mas ao outro mundo que está por vir. A eloqüência da cruz desencoraja os mais interessados em amenizar a dor dos desgraçados.

Palavras finais

Ainda que a concepção mais bem intencionada sobre a natureza de Deus não se sustente à luz da evidência das formas como o sofrimento se manifesta neste mundo, continua ela a ser uma representação consoladora e acalentadora da crença em que a existência humana seja portadora de um sentido transcendente. O sofrimento é o cabresto que prende os fiéis a Deus (Igreja). É a chave para a compreensão do maquinário ideológico cristão, que constitui o sistema de representação, de forma imaginária, das relações dos homens com suas reais condições de existência. Nessas relações, os homens se vêem, ou melhor, se representam, na imaginação, como criaturas de Deus.
O cristianismo é uma religião que se aproveitou do sofrimento como fato irrecusável, transformando-o, pela ideologia (na representação imaginária) em gatilho de toda teia de ideias e dogmas de que se forma sua doutrina. O sofrimento, antes de constituir um obstáculo à fé em Deus, a reforça, a torna mais intensa, mais viva. O homem que sofre é aquele que espera em Deus, que espera obter uma recompensa por ter-se obstinado na condição de sofredor resignado.