segunda-feira, 29 de abril de 2013

Toda palavra é grávida de silêncio.


                                             



                                                 Indo além do texto


Este texto é mais um testemunho de minha obstinação docente no trabalho com o ensino da leitura. A confecção deste texto assenta no pressuposto de que a eficiência do processo de produção da leitura depende muito da capacidade de o leitor atuar cognitivamente nas camadas de sentidos subjacentes à superfície textual. Ademais, nesta exposição, assumo que o texto é um evento sociocognitivo-interacional complexo para o qual convergem diversas competências e/ou estratégias que são ativadas ou mobilizadas tanto pelo produtor, por ocasião da atualização do seu projeto de dizer, quanto pelo interpretante, por ocasião da interpretação/compreensão dos enunciados então produzidos.
O leitor experiente é aquele suficientemente habilitado a ir além da superfície do texto, no processo de interpretação, que visa à compreensão dos atos de linguagem.
Como eu esteja preocupado com a questão da leitura, limito a noção de texto à modalidade escrita, muito embora ‘texto’ seja toda e qualquer entidade linguística produzida num contexto determinado e preenchendo funções sociocomunicativas determinadas. Todo texto é, assim, uma unidade de comunicação, de modo que os enunciados produzidos na fala nada mais são do que textos.
Tendo em vista o exposto, meu objetivo será mostrar como o leitor pode se tornar mais competente, ao conseguir, com base no processo de inferenciação (processo básico e indispensável a toda prática linguageira) reconhecer pressupostos e produzir subentendidos. Além disso, também será minha preocupação aqui oferecer uma proposta de leitura de alguns trechos do texto de Sponville, em Amor à solidão (2006), orientada por um método que pode ser enunciado com as seguintes formas performativas:

1) Preste atenção nas palavras;
2) Vá além das aparências.

Bem sei que, tal como os formulei, os enunciados não esclarecem muito sobre como deve proceder o leitor. Vou então desenvolver um pouco esses dois comandos metodológicos. Em 1), solicita-se que o leitor atente para certas palavras que ativam processos de inferenciação. Essas palavras podem também estabelecer relações significativas importantes para a compreensão do texto como um todo. Elas podem sugerir associações com outras palavras num mesmo campo semântico. Grosso modo, podem ser palavras que “lançam” o leitor para fora do texto, num movimento cognitivo que, tendo início no texto, envolve a ativação de saberes de ordem vária que ele tem armazenados em sua memória. Muitas palavras servem como marcadores de pressuposição, ou seja, são índices que sinalizam para conteúdos não explícitos nos enunciados, embora intrinsecamente ligados a eles. Acredito que o princípio 1) ficará claro quando da análise dos textos de Sponville.
Em 2), pede-se que o leitor não se prenda à significação produzida na superfície textual. Nesse caso, está implícita a ideia de que, ao falarmos, ao produzir um discurso, instauramos, consciente ou inconscientemente, silêncios. O silêncio é sempre fundante dos sentidos. Não há sentidos sem o silêncio. Pelas palavras vazam silêncios. O silêncio é constitutivo da linguagem, porque a linguagem é insuficiente (ela não diz tudo). Conforme ensina Orlandi, em As formas do silêncio (2007):

“Com efeito, a linguagem é passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras (p. 70)”.


Há, portanto, um jogo constante entre palavras e silêncios nas atividades linguísticas. É mister dizer, no entanto, que por silêncio não devemos entender ausência de palavras. O silêncio é onde se pode significar. As palavras transpiram silêncios; o silêncio está nas palavras, e não na ausência delas. Porque a linguagem não diz tudo, ao  se dizer fica sempre algo por ser dito, domínio este do silêncio, do possível, do múltiplo. É aí que o sentido faz sentido.
Para efeito de análise, em minha proposta de leitura dos textos de Sponville, levarei em conta os conceitos de pressuposto e subentendido, que passo a definir doravante. Ambos os conteúdos são implícitos. No entanto, há diferenças entre eles, como veremos.
O pressuposto está envolvido no processo de pressuposição, que é o processo através do qual o interpretante, por meio de inferência, e levando em conta uma base de conhecimento comum (com seu interlocutor), recupera um ou mais conteúdos implícitos, mas inscritos no enunciado. O pressuposto é, portanto, uma informação implícita que, não estando presente no enunciado, é dele dependente. Todo enunciado deve ser visto, nesta perspectiva, como constituído de dois níveis de sentido: o posto, que é o conteúdo proposicional, por exemplo, em “Maria ainda não chegou”, “põe-se” ‘Maria não chegou’; e o pressuposto, que é o conteúdo não explícito, mas inscrito no enunciado – o que significa dizer que pode ser recuperado com base numa palavra que o sinaliza ou o marca (marcador de pressuposição). No enunciado em tela, é a palavra “ainda” que marca a pressuposição, ou seja, que indica o pressuposto, inferido pelo interpretante, com base no enunciado, ‘Maria vai chegar’. Em outros termos, é o “ainda” que me permite inferir ‘Maria vai chegar’ (pressuposto).
Duas observações são fundamentais sobre o pressuposto: em primeiro lugar, o pressuposto é imposto, ou seja, é um conteúdo veiculado pelo enunciado, de modo implícito, evidentemente, para ser aceito. O pressuposto é assumido como inquestionável e, nesse sentido, da sua aceitação depende a continuação do discurso. Disso não se segue que não se possa questioná-lo, mas isso acarretaria sérias consequências para a interação. Num caso extremo, quando os pressupostos não são aceitos, o discurso pode ser interrompido (não há acordo sobre a validade dos pressupostos). Por exemplo, se alguém ousasse dizer algo como “Só a Grécia antiga produziu grandes filósofos”, provavelmente atrairia a objeção do seu interlocutor ao conteúdo pressuposto segundo o qual ‘em nenhum outro lugar se produziram grandes filósofos’. Evidentemente, nesse caso, o locutor não foi bem sucedido, já que pretendeu “impor” um pressuposto frágil, facilmente refutável por quem quer que conheça um pouco sobre a história da filosofia. Claro é que esse é um exemplo extremo; há situações que gerará controvérsias. De qualquer modo, importa entender que todo conteúdo pressuposto é colocado à margem da argumentação, de tal modo não que se  encadeia sobre ele, ou seja, os enunciados subsequentes não se relacionam ao pressuposto. Vejamos um exemplo:
(1) Meu pai ainda não chegou, mas minha mãe está em casa.

Imaginemos que (1) fosse produzido numa situação em que alguém estivesse procurando o meu pai e eu supusesse que essa pessoa poderia querer falar do que se trata com uma pessoa responsável. O pressuposto “contido” em “Meu pai ainda não chegou” não é “afetado” pelo encadeamento por meio de “mas...”. Portanto, ele está à margem do desenvolvimento da argumentação. No caso, eu reconheço que frustrei, inicialmente, o desejo do interlocutor de falar com meu pai, ao comunicar-lhe que ele não está em casa, mas tento evitar sua total frustração procurando sugerir que ele dê o recado à minha mãe, de modo que ela possa transmiti-lo a meu pai.
O subentendido, por outro lado, é particularmente dependente do contexto de comunicação e também supõe uma base de conhecimentos que se supõem partilhados pelos interlocutores. Mas difere fundamentalmente dos pressupostos porquanto é de inteira responsabilidade do interpretante. Aliás, o enunciador pode, inclusive, insistir com o enunciatário que não disse o que ele achou que disse. O enunciador, assim, não assume a responsabilidade pelo que disse (de fato, ele não disse), transferindo-a ao enunciatário. É este que, por inferência, com base no contexto de comunicação e no conhecimento partilhado, produz uma interpretação não prevista ou não desejada pelo enunciador. Veja-se o caso abaixo:

(2) A -  Você conhece esta música?
      B - Não é da minha época.
      A - Está me chamando de velha?

Em (2), a parte “está me chamando de velha?” não é de responsabilidade do enunciador B. Seu enunciado não permite ou não autoriza a suposição do enunciador A. De fato, o enunciador B não disse “você é velha”; foi o enunciador A que assim o inferiu. Ele faz uma interpretação, portanto, não autorizada pelo enunciado como ato de linguagem; no entanto, a interpretação do enunciador A é justificável com base num conjunto de hipóteses que ele formula. Essas hipóteses se baseiam em conhecimentos partilhados e pressupostos na situação de comunicação. Assim, quando pergunta “você conhece esta música?”, há a suposição por parte do interlocutor de que a música é antiga; e realmente é o que ele diz: “não conheço (está implícito), porque não é da minha época”, ou seja, “porque a música é antiga”. O conhecimento partilhado de que o enunciador A é uma pessoa mais velha do que o enunciador B favorece a produção do subentendido por A.
Chamo atenção para o fato de que o fenômeno dos implícitos (como o do pressuposto e do subentendido) ilustra a concepção de linguagem ou discurso como arena de conflitos. De fato, em muitos contextos, a produção de subentendido pode acarretar desentendimentos, discórdias ou mesmo brigas entre pessoas.
Um caso interessante de subentendido é o que envolve uma asserção em que um elemento de informação reconhecido como indiscutivelmente verdadeiro não é pertinente ao contexto, de modo que o interlocutor é levado a inferir a pertinência com base na informação veiculada. Para tanto, ele leva em conta o contexto.

(3)  A – Você gosta do presidente Lula?
       B – Cara, eu gosto do Brasil.

O enunciador A, reconhecendo que a resposta não é pertinente à pergunta, é levado a subentender que o enunciador B não gosta do Lula. É possível que A rejeite a inferência de B, e busque se explicar, o que desencadearia toda uma discussão subsequente sobre se faz algum sentido gostar de um país sem se preocupar em avaliar o trabalho do presidente.
Essa breve exposição e explicação dos fenômenos da pressuposição e do subentendido sugere a sua importância no processo de leitura, porque o torna mais criador e o leitor mais eficiente. Do reconhecimento do leitor dos pressupostos depende o seu sucesso interpretativo durante a atividade de leitura, na medida em que ele consegue atuar cognitivamente nas camadas subjacentes de sentido. Não menos importante, é claro, para o aperfeiçoamento da competência de leitura ou, para ser mais preciso, da competência comunicativa dos enunciadores, é a produção de subentendidos. Mas, nesse último caso, é necessário sensibilidade do enunciador para reconhecer quando a produção do subentendido é desejável e pertinente, sob pena de lhe trazer alguns prejuízos sociocomunicativos.
Tomarei, de agora em diante, para análise os textos de Comte-Sponville, a fim de produzir uma leitura que patenteie não só a importância dos conteúdos pressupostos para o processo mesmo de leitura, como também a importância de superar práticas que prendem o leitor à superfície do texto.

Quantos fogem da solidão, ao contrário, e são capazes de um verdadeiro encontro? Quem não sabe viver consigo, como saberia viver com outrem? Quem não sabe morar com sua própria solidão, como saberia atravessar a dos outros?” (p. 30).

Destaquei as formas “quantos “ e “quem” porque elas sinalizam conteúdos pressupostos. Elas levam o leitor a inferir informações que o enunciador supõe como indiscutíveis. Assim, o uso de “quantos” sugere que há pessoas que fogem da solidão, sugere que são muitas pessoas. A pergunta, como um todo, já prevê a resposta, ou seja, a resposta está pressuposta na pergunta. O enunciador já a pressupõe quando formula a pergunta. E a pergunta visa a suscitar a adesão do leitor à argumentação desenvolvida. A resposta esperada pelo enunciador é alguma coisa como “muitas” e o enunciador, ao formular de tal modo a pergunta, coloca o leitor numa posição de consentimento. O leitor não tem saída. O modelo de mundo proposto e suposto como partilhado leva o leitor a aceitar que “há muitas pessoas que assim se comportam”.
Em seguida, o enunciador, ao formular a pergunta encetada por “quem”, sugere que qualquer pessoa que não consiga viver bem consigo mesma dificilmente conseguirá conviver com alguém. O pressuposto aí é: quem são consegue viver bem consigo não conseguirá conviver com alguém.
O raciocínio elaborado até aqui vale para a última pergunta. Chamo atenção, no entanto, para a ocorrência da palavra “atravessar”, que suscita associação com “travessia” (“fazer a travessia”). Evidentemente, não devemos interpretar “atravessar” no texto com base no Núcleo metadiscursivo (Nmd) (Charaudeau, 2010, p. 35), isto é, com o significado sedimentado, constante e dicionarizado da palavra. Lembro que o sentido ou a significação é construída no discurso. O significado literal não existe. Charaudeau nos ensina sobre como se constrói o Núcleo metadiscursivo, ou seja, o que se chama comumente de “significado literal”:

“Tudo se passa como se o signo nascesse em um primeiro contexto – mas, é possível determinar um primeiro contexto? – e recebesse um primeiro emprego que tornasse esse signo dependente das circunstâncias que presidiram seu nascimento (a expectativa discursiva). Em seguida, este primeiro emprego seria explorado através de uma atividade de abstração que manteria certos componentes do primeiro emprego para reutilizá-los em um segundo emprego que dependeria de novas circunstâncias. A partir da existência desses dois empregos e de sua possível comparação, se construiria uma primeira sedimentação semântica que constituiria um primeiro saber metacultural sobre o funcionamento dos signos: isso nos levaria à determinação de um núcleo metadiscursivo. (p. 38)”

Em resumo, o uso é que vai cristalizando o significado, tornando-o um saber partilhado culturalmente.
Voltando à palavra “atravessar”, claro é que não ativamos o significado sedimentado ‘passar através de’ do domínio cognitivo ‘espacial’. Isso nos leva a operar associações com outras palavras ou expressões pertencentes ao campo semântico de “travessia” ou que guardem com ela alguma afinidade semântica. “Atravessar” ou “travessia” sugere a ideia de ‘movimento’, ‘esforço para ir além’, ‘ultrapassar’. Na travessia, há também o imprevisto, o contato com o desconhecido. A solidão do outro é o desconhecido para mim. E atravessá-la supõe que eu esteja disposto a aceitá-la, a conhecê-la, a aprender a lidar com ela. Portanto, a conviver com ela.
A conclusão que o texto de Sponville encaminha e quer que o leitor aceite é a de que viver bem com a nossa solidão é condição necessária para que nos relacionemos bem com o outro. Considerando-se a hipótese lacaniana segundo a qual o “eu é o lugar do desconhecimento”, o esforço dispensado na busca pelo autoconhecimento é indispensável para a construção de relacionamentos bem sucedidos. A experiência do desconhecido de si é precondição para a experiência do desconhecido do outro. Assim, propõe Sponville que é necessário aceitar a minha solidão, conviver bem com ela, para que eu consiga conviver bem com a solidão do outro.
Devo dizer que, em momentos anteriores, Sponville assume que a solidão é inerente à condição humana. Dirá ele que a solidão “ é o quinhão de todos nós” (p. 30). Na vida humana, segundo ele, “a solidão é a regra”.
Consideremos, finalmente, os dois excertos abaixo:

“(...) o amor, em sua verdade, é solidão”. (p. 30)

“O amor não é o contrário da solidão; é a solidão compartilhada, habitada, iluminada – e às vezes, ensombrecida – pela solidão do outro. O amor  é solidão sempre, não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque todo amor é solidão. (p. 31)”

As duas palavras importantes aqui são “amor” e “solidão”. Não há oposição entre eles. O amor supõe a solidão. Ou ainda, é solidão. E não poderia ser diferente, já que cada um de nós é ser de solidão. É claro que o amor supõe a relação com o outro; o amor pede-nos que aceitemos o outro em sua solidão, ou como solidão em si mesmo. No amor, há o encontro de solidões que desejam proteção mútua.
A palavra “solidão” sugere uma associação com “deserto”, não pela sua aridez, mas por não ser geralmente habitável. Lugar de solidão, portanto. E o amor é o encontro de dois desertos. O drama do amor consiste em desejar unir dois desertos formando um só deserto de solidões.
Chamo atenção para a ocorrência das palavras “habitada”, “compartilhada”, de um lado; e “iluminada” e “ensombrecida”, de outro. Todas são adjetivos que modificam “solidão”, mas a solidão do amor, a solidão que é amor. O amor supõe o milagre do encontro, especialmente se dermos razão a Sponville ao sugerir que a sociedade se estabelece sobre “ o dinheiro, o interesse, as relações de força e poder, o egoísmo e o narcisismo” (p. 32). O amor não é suficiente para construir uma sociedade. Para Sponville, e me parece que com ele está a razão, nas grandes cidades, predominam a indiferença e os egoísmos.
O amor é quando um mora no outro, ou ainda, quando um mora na solidão do outro. É o que nos sugere a palavra “habitada”. Interessante é o contraste sugerido pelas palavras “iluminada” e “ensombrecida”. No amor, a solidão de um pode iluminar a solidão do outro, mas também pode escurecê-la ou embaçá-la, o que supõe a insuficiência do amor para permitir a travessia da solidão do outro. Não raro, o que fica para o amante em sua solidão é o sentimento de não ser devidamente compreendido como ser de solidão pelo amado. Daí a sombra que o amor pode lançar sobre a solidão dos amantes. É a natureza antitética do amor: ele ilumina e ensombra. Ele não resolve completamente a solidão dos amantes, visto que não cabe ao outro resolvê-la. Cada qual deverá confrontar-se consigo mesmo em sua solidão, o que não exclui a partilha, a travessia dos dois pela solidão um do outro. Assim como o amor, a solidão é um latifúndio inalienável. 

domingo, 28 de abril de 2013

"A única eternidade possível ao ateu é o real" (BAR)


                       

                             
                    

                         O sentimento ateu



Desnecessário dizer que estive ocupado com os livros, durante toda esta manhã. Se o digo, no entanto, é apenas para abrir um caminho discursivo para que as palavras o percorram. O percurso inicia-se com uma citação de Comte-Sponville, em seu Amor à solidão (2006).



“(...) a sabedoria outra coisa não é que essa simplicidade de viver” (p. 20).



Sponville argumenta que o sábio é aquele que dispensa a filosofia para viver. Ele não precisa mais dela. Se um dia chegou a escrever livros, abandona-os como balsas à margem do rio. A simplicidade é, assim, consoante Sponville, livrar-se de tudo quanto nos atravanca e nos separa do real e da vida. Mas o que é o real? Ensinará Sponville:

“(...) O real é o que é, simplesmente, sem nenhuma lacuna (p. 24)”.


Se não há lacuna no real, concluiremos, com Spinoza, que o real é perfeito. Spinoza escreveu: “Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa”. Identidade entre realidade e perfeição, é o que nos quer fazer ver Spinoza. Mas não nos apressemos em concluir a perfeição do real signifique que ele seja maravilhoso, extremamente agradável. Aqui devemos nos prender à etimologia. A perfeição supõe acabamento. Algo perfeito é algo que se perfez, é algo completo, portanto, que não tem lacuna.
O real não deseja, por isso é perfeito. Não há falta. Ora, quando há desejo, há falta. O desejo supõe algo que nos falta e que por isso desejamos. Faço uma digressão breve. Aprendi com a filosofia que o trabalho de reflexão é trabalho cuidadoso com as palavras. Quando desenvolvemos um discurso filosófico, devemos prestar atenção no significado que pretendemos produzir ao concatenar as palavras. A filosofia é uma atividade discursiva durante a qual, com base na produção de conceitos (portanto, pelo uso da palavra) pelo uso da razão, forjamos representações sobre o mundo, com vistas a compreendê-lo.
O real também não tem perguntas, já que nada lhe falta. Nesse tocante, escreverá Sponville:

“Não há pergunta, e é por isso que a resposta é sim: é o próprio mundo. Os mistérios estão em nós, em nós os problemas e as perguntas. O mundo é simples porque é a única resposta às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa e o silêncio (ib.id.)”.


O “sim” é a afirmação da vida; é a resposta à pergunta “o que é o real?”. Nada mais claro: é o próprio mundo. Os seres humanos que nele vivem são as únicas criaturas para as quais a sua existência é colocada como problema. Somente eles se perguntam: o que é isto, a vida? De onde vim? Para onde vou? Há sentido em viver? A morte tem sentido? Por isso, as perguntas e os mistérios estão no homem. O mundo nada pergunta. O real não precisa de respostas.
Algumas palavras sobre a filosofia de Sponville me parecem necessárias. Sponville é, declaradamente, ateu. Sua filosofia, até onde posso ver, tem também um pouco de Nietzsche, embora o próprio filósofo francês cite, com muita frequência, em seus trabalhos, Montaigne. A influência deste é inegável, decerto. No entanto, vejo um pouco de Nietzsche em Sponville sempre que ele insiste em que a vida basta, em que o mundo é uma presença irrefutável. É também uma presença que devemos experienciar plenamente. Sponville propõe uma plenitude imanente. A eternidade, para ele, no que estou de acordo, é o agora. Se entendermos por eternidade a negação da temporalidade, ou seja, a atemporalidade, a eternidade se identifica com o agora, e apenas com ele, porque não permite que seja segmentada num antes e depois. A eternidade nos oferece plenamente o presente. Não há futuro prometido. Nesse tocante, não há vida eterna por vir após a morte. Não há vida transcendente. Se há alguma transcendência, é uma transcendência na imanência. Não estou certo, contudo, de que Sponville sustentaria essa concepção. Não sei se ele concordaria em admitir a transcendência, ainda que ancorada na imanência do mundo. De qualquer modo, o que me parece certo é que a eternidade a que se refere Sponville nada mais é do que o agora. Acompanhemos as palavras do autor no seguinte trecho:

“A abolição do tempo (...) mas no tempo mesmo, na verdade do tempo: o sempre-presente do real, o sempre-presente do verdadeiro, e a interação deles, que é o mundo, e o presente do mundo (p. 26)”.



A abolição do tempo a que se refere Sponville é a própria eternidade. Ela se identifica com o “sempre-presente do verdadeiro” ou do “sempre presente do real”. Não deixemos que a linguagem nos traia. Dizer que a eternidade, negando a temporalidade, se identifica com o agora, significa dizer que a experiência do agora é a experiência da eternidade. A única experiência possível do tempo, para nós, é a do agora. Experiência consciente do agora. Ora, o passado é o não-ser; o futuro ainda não é. Passado e futuro são conceitos com que segmentamos nossa experiência do contiuum do tempo (realidade física). Temporalidade é já uma abstração. O universo não conhece passado, presente e futuro. Somente nós, seres humanos, é que podemos conceber o tempo como temporalidade dividida em porções de tempo, que designamos como tempo passado, tempo atual ou presente, tempo futuro. E, se meditarmos com acuro sobre a palavra eternidade , veremos que seu significado não descreve nenhuma experiência possível a nós, seres que se sabem mortais, a menos, é claro, que acreditemos que essa experiência transcende à vida e que será possível numa vida além-túmulo. Mas pensar a eternidade dessa forma é já reconhecer sua impossibilidade no aqui e agora do mundo.
Como seja ateu, Sponville só pode aceitar a experiência de eternidade, ou melhor, só pode aceitar que essa palavra signifique realmente alguma coisa, se ela servir para descrever uma experiência claramente budista de “dissolução do ego”. Sponville nos contará sobre o que pensa da experiência que reúne o silêncio, a plenitude e a eternidade. Noto, de passagem, que o silêncio, para ele, é “a presença muda de tudo”; a plenitude, “o desaparecimento da falta” (p. 26). Vejamos como ele situa a eternidade na imanência do mundo. Eternidade não é transcendência (uma experiência superior a e além do mundo):

A eternidade é o lugar de todos nós, é o único. Mas nossos discursos nos separam dela, bem como nossos desejos, bem como nossas esperanças... No fundo, só estamos separados da eternidade por nós mesmos. Daí essa simplicidade quando o ego se dissolve; não há mais que tudo, e pouco importa o nome (“Deus”, “Natureza”, “Ser”...) que alguns quererão lhe dar. Quando não há mais que tudo para que as palavras, já que o tudo não tem nome? (...) O silêncio e a eternidade andam juntos: nada a dizer, nada a explicar, já que tudo está presente (p. 28, ênfase minha)”.


Notemos que Sponville categoriza “eternidade” como “lugar”, o que sugere a noção de situação, mas uma situação no mundo, onde nós estamos. Assim, eternidade é também o mundo, o universo onde vivemos. Por isso, é uma eternidade imanente. Ela é inseparável do mundo, ou melhor, se identifica com o mundo. A eternidade congrega o agora e o mundo, num “sempre-presente-aqui”. Somos nós que forjamos palavras para designar essa experiência de dissolução do ego na eternidade do mundo. Mas os discursos, as palavras só servem para causar estorvo e perturbações. Inquietude mais do que placidez. O silêncio convoca-nos à experiência de placidez, por isso não carece do burburinho das palavras. Deus é, certamente, a expressão máxima da perturbação do silêncio, porque nele e através dele fala uma multidão de vozes estridentes convencidas de que compreenderam a eternidade. Basta a experiência do agora!
Nunca dissimulei meu interesse pelos estudos de religião, especialmente minha inclinação intelectual e afetiva às lições budistas. Mesmo tendo sido criado na tradição cristã, vejo no budismo um avanço em relação à doutrina cristã. Vejo mais vantagem, muito porque a doutrina budista não inclui a ideia de pecado e de culpa: flagelos da alma, com que o cristianismo mantêm o rebanho em seu estado de docilidade.  O budismo identifica a causa de nossos males, de nossos sofrimentos no desejo, mas não se limita a isso; propõe-nos um caminho para nos libertar da tirania do desejo, não num além-mundo, tampouco por meio de uma figura carismática e endeusada (Buda não era deus; no budismo, não há deus). Ao contrário, o cristianismo cria o mito da Queda do homem e com ele declara que o homem é irremediavelmente um pecador (o pecado como tudo aquilo que nos afasta de Deus). No mito cristão, a desobediência de Eva e a fraqueza de Adão, que não resistiu à tentação de comer da maçã do Paraíso, condenou todas as gerações de seres humanos. Nessa esdrúxula e obscena doutrina cristã, todo bebê que nasce traz a herança do pecado de Adão, por isso precisa ser batizado com a água que “lava o pecado”. Mas esse pecado, simbolicamente, lavado no batismo, é constitutivo da natureza humana. Por isso, o cristão viverá por toda a vida reconhecendo-se como pecador, humilhando-se, rebaixando-se diante de uma autoridade Superior com vistas a buscar a redenção de seus pecados (que nunca o abandonam totalmente) e a salvação após a morte. Todo cristão é pecador. Um cristão que não se reconhecesse como pecador não seria cristão, ou levantaria sérias suspeitas sobre sua fé ou mesmo desaprovações. Não se reconhecer pecador, para o cristão, já é pecado. Como se vê, não há como fugir. Só o pecado condena o cristão à fé.
Vou referir alguns trechos, colhidos de Buda – o mito e a realidade (2009), de Heródoto Barbeiro, a fim de dar a saber alguns ensinamentos do budismo sobre a dor e sobre formas de lidar com ela. Não me limitarei a citar os trechos; a cada um deles se seguirá uma breve avaliação:


“Siddharta não foi nem um teólogo, nem um metafísico. Ele chegou à conclusão de que era impossível viver sem dor. E para acabar com ela, era preciso descobrir sua origem. O Buda concluiu que essa origem era o nascimento. Nascer, sofrer. Envelhecer, perder afeto, bens, tudo aquilo pelo qual tanto se lutou, as mudanças constantes que estragam tudo o que foi construído e, por fim, a morte. Tudo isso provoca dor. Só resta renascer imediatamente e reiniciar o ciclo de nascimento e morte. Agarra-se nas poucas coisas agradáveis existentes na vida, e o restante é sofrimento (p. 64)”.


Quando cunhei a frase “O sofrimento trama as malhas da existência humana”, inspirei-me na doutrina budista que reza que “nascer é sofrer, viver é sofrer, morrer é sofrer”. É verdade que também o cristianismo reconhece a dor e o sofrimento como experiências constitutivas da vida humana, mas difere do budismo, nesse tocante, porque destitui o homem de autonomia no enfrentamento do sofrimento, não lhes fornece meios de por si só livrar-se do sofrimento, a não ser por sua fé e submissão a um outro que lhe serve de modelo de resignação ao sofrimento injusto, qual seja, Cristo. A Paixão de Cristo, ou seja, o seu martírio e sofrimento deve servir de inspiração ao cristão que sofre resignadamente confiante. Confiante na libertação por e em Cristo. Ele é o caminho pelo qual o cristão alcança a graça de Deus (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” Jo 14: 6).
O budismo instrumentaliza o homem para que ele consiga se libertar dos seus sofrimentos, pelo conhecimento de sua causa. Segundo Barbeiro, “Buda disse que a vida é muito pior do que os homens pensam”. Buda não oferece o paraíso, não promete uma vida eterna. A morte no budismo é vista como dissolução da forma orgânica, após a qual haverá novas recombinações de elementos. O budista quer escapar ao samsara, ou seja, ao ciclo de nascimento-morte-renascimento. A sabedoria budista supõe que, ao nascer, uma pessoa começa a morrer, porque grávida de um princípio de destruição. Observará Barbeiro, “não há como fugir da morte, uma vez que também estamos em constante transformação, e que em um dia somos diferentes do que fomos no outro” (p. 65). Todos os dias, em nosso corpo, morrem e nascem novas células.
Disse que o desejo é, no budismo, a causa de toda dor.

“(...) ninguém deve iludir-se com as aparências: elas são falsas, enganam a mente, não se constituem na verdadeira realidade. Dor, envelhecimento e ilusão são as bases do sofrimento. Estão apoiados no desapontamento das pessoas com a impermanência de tudo (ib.id.)”



A lógica budista não poderia ser mais límpida. O desejo quer possuir, quer conservar, quer conter, aprisionar. O desejo é desejo de permanência. Mas a realidade, ensinou Buda, e nisso o acompanhou Heráclito, é mudança, é impermanência. Como nós e tudo que há somos parte do real, não escapamos à lei da impernanência das coisas. É notável como a razão, reconhecendo essa lei, se harmoniza com a verdade do mundo. O cristianismo, ao contrário, subverte essa relação harmoniosa da razão com a verdade do mundo, proclamando a imortalidade, a eternidade do homem. Inspirada na filosofia platônica, o cristianismo nos convencerá de que a morte é mera aparência, de que o mundo é mera aparência, de que a verdadeira realidade é transcendente ao mundo, está num além. A meu ver, essa compreensão cristã de que a morte é mera ilusão, de que, pela fé e confiança em Deus, os mortos ressurgirão, viverão por toda eternidade, leva a teologia cristã a esquivar-se a um tratamento honesto e útil da questão do sofrimento. O sofrimento significa pouca coisa em face da grande recompensa que aguarda os fiéis após a morte. Aquele que sofre com resignação e coragem semelhantes às de Cristo torna-se digno aos olhos de Deus e da comunidade cristã. O sofrimento cristão dignifica o sofredor. Uma das teodiceias cristãs ensina que ao sofrimento está atrelado um ensinamento, um bem maior. Em face do sofrimento, o cristão dirá ao sofredor: “tenha fé e Deus te livrará!” Se sua condição sofredora persistir, não hesitará em dizer: “paciente, Deus tem um propósito!” Se a morte deitar-se com ele no leito, consolará o cristão os que choram: “era a vontade de Deus, Deus sabe o que faz!”.
O caminho que vim percorrendo até aqui conduziu-me ao objetivo principal deste texto: mostrar que a atitude ateísta diante da existência pode sinalizar um sentimento de libertação e de conciliação com o real, portanto, com a eternidade. Contarei uma experiência que tive há algum tempo, já tendo acordado o ateu em mim.
Não me esqueço da experiência que tive naquele ônibus a caminho da faculdade onde eu lecionava. Era de tarde, o sol ameno e o céu ostentava seu manto azul reconfortante. No Centro da Cidade, observava, sem, contudo, reter atenção em alguma coisa em especial, as pessoas num ir e vir corriqueiro. Observava o movimento da vida pulsante nas artérias da cidade, sem qualquer pensamento que me sugerisse alguma verdade. Quando o ônibus atravessava a ponte, era o céu que prendia meu olhar. Eram as gaivotas que lhe davam testemunho do movimento incessante da vida. E eis que fui inundado de uma sensação de plenitude de vida, como se o céu, o movimento dos pássaros, a eternidade daquele instante mergulhassem em minha alma. Mas não era êxtase, não senti arrebatamento. Não havia violência nessa inundação. Havia uma paz delgada, acompanhada do silêncio da sofreguidão do cotidiano. Somente a vida, o estar vivo. Somente a simplicidade que há em olhar para o céu, tão convidativo à inspiração poética. Mas não havia palavras. Discursos só perturbariam quão íntima experiência com a vida. A vida ali nua: revelando-se tal como é. Simplesmente presente, acontecendo naquele instante. O silêncio do tempo. Alguns pensamentos misturados com sentimentos... pensamentos sentidos vieram-me a confirmar o que a filosofia, o que a razão já me ensinaram: não há Deus.
Naquela experiência de reconciliação com a vida, de sim à vida, eu não senti presença alguma no céu, exceto as gaivotas. Senti também a presença do movimento da vida, a presença do céu azul desnudado de nuvens... Foi uma experiência de sentimento, não de pensamento.
Há religiosos que dizem não conseguir explicar Deus, dizem não ser necessário refletir racionalmente sobre Deus. Dizem também ser capazes de senti-lo e sentindo-o, segundo creem, se contentam. A razão me sugere uma resposta ou uma explicação que protelo por ora. É de sentimento que se trata. Não que a razão se oponha ao sentimento, erro comum, por sinal. Eles caminham juntos, trabalham juntos em nós.
Duas experiências. Dois sentimentos opostos. Onde os religiosos dizem sentir Deus eu sentia a presença nua e simples da vida. Teriam eles algum sentido especial? Teriam eles alguma capacidade sobre-humana, extraordinária que tornaria possível o sentimento de Deus? Ou será que esse sentimento é sugerido tão-só pela crença de que Deus existe? Ou seja, penso que é porque eles creem que Deus existe, se convencem disso, que podem declarar poder sentir Deus. A crença suscita uma experiência que é interpretada, por força da crença prévia, como sentimento de Deus.
Eu mesmo, durante longo tempo em minha vida, estava convencido de que podia, em certas ocasiões, em que me abstraia de tudo que me seduzisse os sentidos, como durante à noite em que me ocupava com minhas produções poéticas, ou jazido na cama, conversando comigo mesmo no silêncio da alma, sentir a presença de Deus
Mas o que prova o sentimento? Nada. O sentimento nada prova; o sentimento não pode provar a existência de Deus. O sentimento prova apenas que existe um ser capaz de tê-lo e de tomar consciência dessa experiência.
Não pretendo levar adiante a objeção à possibilidade real de os crentes sentirem Deus. Se contei aqui a experiência que tive naquela tarde quando ia para o trabalho, é somente para mostrar que o descobrir-me ateu e o assumir a atitude ateísta diante da vida significou uma libertação. A experiência ateísta (isto é, viver sem a promessa de vida eterna, viver sem a crença numa divindade providente), longe de ser experiência de desespero, é experiência de libertação. É, decerto, sinal de coragem, que não suprime medos, apenas não se serve de alguma forma de fuga.
O acordar o ateu em mim significou sobrepujar o Pai primordial. Significou sobrepujar sua autoridade sobre o meu psiquismo. Para mim, a morte simbólica de Deus é fonte de alívio e de libertação em face de um autoritarismo do Outro (de Lacan). Libertação da escravidão da condição pecadora, da submissão a uma Vontade superior, vigilante e esmagadora, cujos desígnios e disposições me deviam ser ocultados. Também é uma libertação da dimensão egocêntrica que se enrobustece no religioso. Nesse sentido, deixei de interpretar os acontecimentos bons ou ruins com base na convicção de que Deus tem um propósito para tudo, propósito diante do qual me coloco como beneficiário, ou me represento como seu portador. A dimensão egocêntrica do religioso se expressa também na convicção de que ele é portador de uma verdade sobre o modo de Deus agir.
A imagem do cristão típico pode ser assim representada. Como cristão, alguém busca consolar um amigo cuja mãe foi desenganada pelos médicos. Sua mãe sofre de câncer terminal. Então, o cristão diz que tudo tem um propósito para Deus e, ao dizer isso, ele acredita na verdade do que diz, acredita que está sendo um porta-voz da palavra de Deus, um intermediário enunciador do desejo de Deus. Eis o seu ego insuflado! Ele traz a boa-nova, ele é portador dessa verdade que cuida inquestionável e consoladora.
Vejo nessa atitude cristã não só presunção, vaidade, mas certo desrespeito, certo desprezo pela dor, pelo sofrimento do outro. É mais nobre, a meu ver, participar de seu sofrimento. É mais digno e humano reconhecer-se também na fragilidade do outro, reconhecer-se como suscetível do mesmo sofrimento. Um abraço reconfortante é mais humanizante e consolador do que quaisquer palavras prontas, empacotadas, já-dadas pelos ensinamentos teológicos sobre Deus e seus caprichos, mascarados como “propósitos escusos” na ideologia cristã. É mais nobre reconhecer-se no sofrimento daquele amigo como ser humano também que se identifica com sua condição humana destinada ao sofrimento. Ser cúmplices no sofrimento. Ser humano no sofrimento humano, que é sofrimento consciente.
Solidariedade do humano com o humano no sofrimento exige que não elaboremos justificativas assentadas em alguma metafísica. Basta o sofrimento e a vida que precisa ser vivida. Pense-se nas teodiceias já forjadas por filósofos e teólogos cristãos que visam a justificar a quantidade de sofrimento que recai sobre os justos e inocentes. Pense-se nas tentativas ignominiosas pelos proponentes de teodiceias de justificar o sofrimento de crianças. Acho repulsivo tal esforço da razão contaminada pela fé. A razão deve ser, nesse caso, amordaçada, para que seu portador não se torne cúmplice num sofrimento sem sentido. Calemos a razão que serve à elaboração de justificativas inaceitáveis ao coração, refutáveis à luz de um exame cuidadoso, para deixar falar o amor, o sentimento de solidariedade e de desespero. Por que não? Viver é também desesperar-se. Desespero preferível, porque autêntico, a esperanças ilusórias. Deixemos o amor que conforta comandar o bom-senso, e não a fé (esse consolo da ausência, da mentira, da fantasia). O silêncio de um abraço em face da presença da morte comunica ao outro a cumplicidade do humano na dor, no sofrimento e no desespero que essa presença nos causa.



Anexo             

                               
                              Nietzsche, um ateu?


Há quem entenda que Nietzsche não era um ateu num sentido forte, isto é, no sentido de ser alguém que negava qualquer metafísica ou um princípio primeiro e absoluto que seja causa de tudo. Mas não se pode negar que Nietzsche, num sentido mais fraco, era um ateu, porque concordaria em negar existência a qualquer divindade. Certamente, sua veia ateísta torna-se protuberante em sua crítica ao deus cristão reconhecido por ele como deus antropomórfico. Os homens criaram Deus à sua imagem. Nietzsche critica justamente esta ilusão nos homens: eles não se reconhecem mais como os verdadeiros criadores de Deus. Não há por que culpá-los disso; o cristianismo já se encarrega de impingir-lhes a culpa original. Pobres homens ignorantes ou semiconscientes dos processos históricos entretecidos pelos fios robustos e falsificadores da ideologia, que, posicionando-os como produtores e produtos do devir histórico, lançam sobre a sua consciência o véu da obscuridade! Para Nietzsche, Deus é um ideal de super-humanidade no homem.

“Esse o ateísmo de Nietzsche. Combatia o deus criado pelos racionalistas, o deus definido por atributos. Nietzsche negava os atributos, porque o atributo já é um limite. Deus não poderia cingir-se às bitolas [medidas, padrões] pretensiosas da razão humana”.
(p. 65)


Chamo atenção para o fato de que Nietzsche, ao estender as garras de sua crítica aos atributos de Deus, assume-o não mais como um ser (transcendente), mas como um sujeito da linguagem. Um sujeito de que o homem predica atributos.


“(...) interpretar Deus, defini-lo, criar uma ciência como a teologia, é ofendê-lo. O silêncio em torno de seu nome é mais nobre. O crente é, por isso, um explorador de Deus. O ateísmo nietzschiano é, assim, uma devoção respeitosa”.
(p. 66)

Talvez nem devoção, talvez nem tão respeitosa. Porque Nietzsche destitui Deus de seu lugar elevadamente simbólico: Deus não é mais o Ser Supremo, Absoluto, Ser Criador. Uma devoção respeitosa não lhe autorizaria a operar, pelo uso da razão, tal sacrilégio.
Ao se voltar com ferocidade crítica para o cristianismo, é verdade que Nietzsche o condenava por aviltar o mundo e a condição humana, por transformar aquele num vale de lágrimas. Pretendeu convocar os crentes a que amassem o mundo. Pretendeu restituir o homem a terra, fincar-lhe as raízes no mundo. Mas também é verdade que Nietzsche, em muitos momentos, exaltou o cristianismo, certamente pelo seu caráter social-revolucionário. Há, portanto, essa ambivalência em sua crítica.

Em suma, a crítica ao cristianismo levada a efeito por Nietzsche pode ser resumida no que se segue:

“Em vez de construir na terra o Reino dos Céus, postergou-o para o infinito, e acusou o mundo de todos os males e o homem de todas as infâmias. E o que o homem tinha de mais puro e de mais belo, que eram e são os seus instintos, essas forças misteriosas que o trazem em constante defesa e lhe permitem usufruir a vida, veste-os de cores negras, desmerecendo-os. A natureza dos sentimentos, a ingenuidade das atitudes passaram a ser crime, pecado, afronta”.

“O homem – o verdadeiro Satã – criara o seu próprio inferno, porque se negava a si mesmo”.

(p. 67)


Novamente aqui, vale a lógica: afirmação de Deus significa negação do homem.
A coluna dorsal, assim me parece, da filosofia de Nietzsche consiste em seu princípio dionisíaco de afirmação da vida. À luz desse princípio, é possível entender a crítica de Nietzsche ao cristianismo e ao Deus cristão. Afirmar a Deus é negar o homem. Negá-lo em dois sentidos: primeiro, é negá-lo como agente da história, negá-lo, portanto, como único responsável pela fabricação, ao longo de milênios, da ideia de Deus; segundo, é negá-lo como ser mundano, como ser natural dotado de instintos que lhe são como forças criativas, forças que alimentam sua vontade de poder (de dominar), com a qual ele pode apossar-se da vida, agarrar-se a ela, enraizar-se no mundo, assumir-se como - para lembrar Heidegger - um ser-aí.
Ao concentrar sua crítica nos atributos de Deus, Nietzsche não só reconhece em Deus a marca da humanidade do homem (uma humanidade idealizada, elevada à máxima potência), mas também a presunção humana que se esconde na crença de que pode determinar a natureza de Deus. Vaidade, um dos pecados definitivamente censurados pelo cristianismo! Por isso, para Nietzsche, os crentes são ofensivos a Deus ao cuidarem-se conhecedores da sua natureza, ao cuidarem-se capazes de lhe fixar arestas, limites, contornos, por meio da atribuição de qualidades que não são senão marcas linguísticas deixadas pela razão humana.
O leitor atento consegue escutar a voz concordante de Feuerbach?

sábado, 27 de abril de 2013

"O amor-próprio é o lugar vazio do amor" (BAR)


      

                A ingenuidade do amor-próprio


Não raro, topo com frases como “Devemos ter amor-próprio em primeiro lugar”, “Antes de querer que alguém me ame, tenho de me amar primeiro”, em redes sociais de relacionamentos da internet. Basta-nos dar uma olhada no conjunto de postagens do facebook para nos certificar da farta frequência com que frases como aquelas se estampam nesse ambiente de relacionamentos virtuais.
Hoje, uma lamparina me acendeu na alma. Suspeitei (não desde o princípio) de que há algo que precisa ser revelado aí. Será que uma frase como “Devemos ter amor próprio em primeiro lugar” encerra uma crença verdadeira, em algum sentido? Estou falando em verdade aqui e peço que o leitor não escute Nietzsche (aliás, sempre que emprego a palavra “verdade” já não é mais Sócrates, através de Platão, que se me afigura ao espírito, ou melhor, o discurso deles, mas Nietzsche, a sussurrar-me que a verdade é uma ficção, ou mesmo Foucault, que me lembra que a verdade é construção de um trabalho histórico). É por isso que eu não descurei do uso de em algum sentido. Assim, suponho que uma crença é verdadeira se tiver alguma utilidade para quem a sustenta. Claro, isso não exclui a possibilidade do engano, do erro. Não quero me concentrar na questão da verdade. Para os meus propósitos, basta-me assumir que a verdade é uma espécie de caleidoscópio. Tem muitas regiões, muitas faces. A verdade é multifaceta. No entanto, ela não se reduz a cada uma de suas partes. A verdade, com Hegel, é o todo. É possível que nos apropriemos de parcelas da verdade, sem que estejamos de posse da verdade.
Prossigo.
O que me chama atenção nesses enunciados? Em primeiro lugar, a pessoa que os produz supõe que a experiência do amor próprio (tentarei defini-la mais adiante) antecede à experiência de amar ao outro e de ser por ele amado. Nada mais longe da verdade, conforme tentarei mostrar. Vou, contudo, protelar, por ora, o desenvolvimento dessa questão. Em segundo lugar, consigo ver aí a ignorância do eu sobre sua própria constituição. Quero dizer que a pessoa que produz “Devo me amar em primeiro lugar” ignora o fato de que o próprio sentimento que tem de seu eu, a imagem que tem de si é produzido ou é construída na relação com o outro. Vou-me esforçar por desenvolver essa concepção, de agora em diante. Posteriormente, retorno ao problema do amor próprio, ocasião em que procurarei avaliar o seu significado, a sua função e consequências para o eu. Não deixarei de definir os conceitos, que cuido importantes para a compreensão das questões suscitadas e discutidas aqui – certamente, um deles é o de imagem.
Cismando, identifico algo de fascinante na experiência do eu. É dela que passarei a tratar doravante. O que acho fascinante é que, se, de um lado, temos, a partir da sensação e percepção de nosso corpo, um sentimento bastante concreto do nosso eu; por outro lado, basta que alguém nos inste a nos descrever a nós mesmos, a falar sobre quem somos e como somos, que nos vemos em face do desconhecido. Alguns de nós sentem dificuldade para falar sobre si mesmos. Essa experiência é corroborada pela psicanálise. Lacan, por exemplo, dizia ser o eu “o lugar do desconhecimento”. No momento em que tenho a certeza de ser eu mesmo na experiência de meu corpo sentido e vivido, essa certeza mascara a minha ignorância sobre o que eu sou e de onde eu venho. Mas ponho freio no comboio de pensamentos que avança depressa. Vamos com calma. É o “eu”, ou melhor, o que é o “eu” a questão sobre a qual me debruço agora. Entra em cena o conceito de experiência. Não farei rodeios. A experiência é forma de conhecimento imediato e vivido. Podemos ter experiências externas, que envolvem nossa relação com o mundo, e experiências internas de nossos estados mentais, de nossas emoções e sentimentos. Implicadas na experiência estão as sensações e as percepções. É porque estão englobadas nas experiências que preciso defini-las. Na verdade, sensações e percepções são formas de experiência. Então, por sensação deve-se entender a experiência de perceber pela aplicação dos sentidos. Não vou descer a pormenores sobre sua dimensão fisiológica. Basta-nos entender que a sensação nos fornece as qualidades exteriores e interiores, a saber, as qualidades das coisas e os efeitos que essas qualidades exercem em nós. Na sensação, sentimos, ouvimos, degustamos, etc. O organismo reage aos estímulos exteriores, sem que consiga distinguir com clareza os estímulos exteriores do sentimento interior que eles provocam. Há na sensação, em suma, a interação do físico e do psíquico.
No tocante à percepção, consiste ela no processo ou resultado dele em que tomamos consciência de objetos, de relacionamentos e eventos por meio dos sentidos. A percepção envolve atividades cognitivas tais como reconhecer, observar, discernir, identificar, etc. Há na percepção – e isto é importante! – uma interpretação e organização dos estímulos recebidos que, durante o processo mesmo de perceber, se transformam em conhecimento dotado de significado. Reitero: perceber é interpretar. Se digo “percebo que você não me ama”, faço uma interpretação, com base em minhas experiências (em que estão envolvidas sensações), sobre como me sinto em relação ao outro e como vejo o outro na sua relação comigo. No caso, percebo (interpreto) a ausência de amor dele por mim. Percebo uma lacuna, atribuo um sentido àquela experiência, àquela relação: trata-se para mim de uma relação marcada pela carência de amor, pelo vazio que experimento na alma pela falta do amor correspondido.
Tenho de lembrar, contudo, que as sensações não são experienciadas isoladamente. São muitas as sensações que experienciamos e elas nos afetam em conjunto simultaneamente. Cabe à percepção reuni-las. É a percepção, que envolve interpretação, que constitui a síntese das sensações simultâneas. Assim, sentimos o quente (que embora seja uma propriedade da coisa, não existe sem que antes tenhamos contato com uma coisa quente; o quente existe quando o sentimos), mas percebemos que a água é quente. Nesse caso, elaboramos um juízo (associamos um predicado a um sujeito pela cópula “ser”) com base numa experiência sensitiva. Percebemos então que a qualidade ‘quente’ está contida na água, ou está associada a ela. É na experiência perceptual que os conceitos de “água”, “é” e “quente” nos são dados. Não me parece difícil concluir que temos sensações na forma de percepções, já que aquelas surgem na experiência reunidas num dado momento.
Agora podemos avançar. Vou me deter a meditar sobre o que é o “eu”. Para tanto, sigo a trilha do psicanalista e psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009).
Defini a experiência justamente porque intento levar o meu leitor a compreender que a maneira como experienciamos o mundo é determinante do modo como pensamos. Nossos pensamentos, ideias, concepções, visões de mundo são determinados por nossas vivências.
A primeira observação fundamental que deve ser feita sobre a natureza do eu é que é produto de uma interpretação. Eu sou como eu mesmo me interpreto. O eu é uma entidade imaginária. O eu é uma imagem. Isso não é tudo que podemos dizer do eu, evidentemente. Mas, antes de prosseguir, preciso definir o conceito de imagem com que eu estou desenvolvendo estas reflexões. O primeiro campo experiencial que a ideia de imagem sugere é o da visão. De fato, há imagens visuais, mas também há imagens auditivas, olfativas, há imagens sensoriais (que resultam de uma transposição psíquica da percepção de um objeto exterior). Imagem, então, não se reduz ao campo visual.
Para Nasio, que se situa no domínio da psicanálise, não há imagem sem um investimento afetivo. Dentre os diferentes conceitos de imagem que o autor nos apresenta, destaco o de duplo que se imprime na consciência quando temos uma sensação afetiva importante para nós (produz-se aqui uma imagem mental consciente). Chamo atenção para a expressão sensação afetiva. Veremos que a construção das imagens do eu e do outro envolve sensações, sentimentos, afetividade, não só crenças, julgamentos e opiniões.
Na perspectiva de Nasio, não há imagem que não seja deformada. E aqui lembro que, em psicanálise, toda interpretação é uma forma de distorção. A imagem que o eu constrói de si na relação com outro será permeada de distorções e de enganos.
Voltarei à perspectiva de Nasio, um pouco mais adiante. Creio ser necessário agora precisar, sob a perspectiva da psicologia cognitiva, o que se deve entender por imagem.
O que precisa ficar claro é que a imagem é uma representação de uma experiência sensorial exterior produzida por e em nossa mente. Ela é recordada, sem a necessidade de alguma estimulação externa. Chama-se mentalização ao processo pelo qual se vão produzindo cognitivamente informações sensoriais provenientes dos cinco sentidos, de modo individual ou coletivo. Essas informações são os materiais de que são feitas as imagens mentais. Pode-se falar também em uma mentalização visual, caso em que a imaginação envolve a sensação de termos na mente “retratos”. Esses “retratos” (imagens) podem ter origem na memória de experiências visuais anteriores ou de sínteses produzidas pela imaginação.
Finalmente, temos também a imagem corporal. Esse tipo de imagem é uma pintura mental ou um quadro mental que uma pessoa faz de seu próprio corpo em sua totalidade, nela incluídas características físicas e funcionais, bem como suas próprias atitudes com relação a essas características.
Voltarei, como disse, à concepção de Nasio de imagem. Ela supõe uma relação do eu com o próprio corpo. Aliás, a experiência que o eu tem de si envolve a imagem que constrói de seu próprio corpo. Nasio vai escrever: “considero a imagem do corpo a própria substância do nosso eu” (p. 54).
De minha parte, penso que a imagem, sem deixar de ter um aspecto simbólico e psíquico, é uma representação, para a qual concorrem crenças, julgamentos, opiniões, sensações, sentimentos, com base em nossa experiência sensório-perceptiva (que envolve sensações em forma de percepções). Mas também, na medida em que não penso o eu como, por exemplo, pensara Descartes - uma entidade abstrata, um pensamento, uma certeza de si – senão como um “eu” simbolicamente ancorado num corpo (é uma imagem que se constrói supondo uma relação com a imagem do corpo), a produção da imagem supõe um corpo dotado de um cérebro estruturalmente adequado para tanto.
Não percamos de vista a questão do eu. Estamos nos interrogando sobre o que é este eu e como ele se constitui, ou seja, como ele é percebido pela consciência do sujeito. Espero tenha ficado claro que o eu é uma criação resultante da interpretação que nós fazemos de nós mesmos. Essa interpretação implica uma auto-reflexão. Quando nossos pensamentos se voltam sobre nós mesmos, vamos construindo uma imagem do nosso eu.
Um eu pré-consciente não nos é acessível. O eu não constitui a totalidade da consciência, não se identifica com ela. Sartre via no eu um objeto da consciência e, provavelmente, inspirado em Freud, disse que o eu não é proprietário da consciência. Se não é proprietário, o que é então? Para o filósofo existencialista francês, o eu é um objeto da consciência e, como tal, pode ser reinventado. Essa concepção acena, em outros termos, com a ideia de que o homem é um projeto, de que é livre e de que pode reinventar-se continuamente.  
Uma ideia que já foi bastante repisada por mim, mas que se me demonstra fundamental para a compreensão do que é o “eu” é a de que o eu só se reconhece na relação com o outro. Só há eu quando colocado diante do outro. O outro dá ao eu o sentimento de si, uma autoconsciência. Nessa relação, observa-se uma constituição recíproca do eu e do outro, num jogo interativo de produção de imagens: imagem que o eu tem de si na relação com o outro; imagem que o outro constrói do eu com que se defronta; imagem que o outro tem de si mesmo; e imagem que o eu constrói do outro. É possível haver sobreposição de imagens: posso construir uma imagem da imagem que o outro faz de mim; ou construo uma imagem sobre a imagem que o outro faz de si.
A esta altura, acredito tenha ficado clara a ideia de que o “eu” não é um ser, não é uma coisa dentro da nossa cabeça. É, sem dúvida, um sentimento de si, um sentimento subjetivo de existir (Nasio, 2009, p. 55). Mas esse sentimento está longe de nos ser transparente à consciência. Lembro Lacan: “o eu é o lugar do desconhecimento”.
Mas voltemos a Sartre. Se, como pensava esse filósofo, o eu é o lugar da ausência, do nada, um lugar do silêncio do significante, disso se segue que sou o que os outros pensam a meu respeito. Isso é uma parte do que parece ser verdadeiro. A outra parte é que sou aquilo que penso que sou também.
Concluindo: é apenas na relação, na troca e na comparação com o outro que eu me descubro (venho à tona), que me apresento a mim (ainda que não com total clareza). Não há, ao contrário do que insiste o senso-comum, como escapar à comparação com o outro, já que dela depende, em parte, a constituição de nosso eu.
O eu é, então, uma imagem, ou um lugar simbólico que se constrói dialeticamente na relação com o outro. O eu é um lugar de uma dialética significante já que supõe a relação com o outro com base na diferença, num universo estruturalmente significativo. Entendamos o que quero dizer com dialética entre o eu e o outro. Pensar dialeticamente é (desde Hegel) discernir por relações de contradição, visando a superá-las por sucessivas sínteses. Um objeto se define numa relação de contradição com outro objeto. Assim, o senhor é o não-escravo, ou seja, na relação com o escravo, o senhor se define pelo que não é: o senhor é o não-escravo. O mesmo raciocínio se aplica ao escravo. Ele se define na relação de contradição com o senhor: o escravo é o não-senhor. A contradição, diga-se de passagem, se distingue da oposição, por consistir numa negação interna de um dos termos da relação. Ao definir o senhor nega-se internamente a condição de escravo.
Tendo em conta o exposto, eu me defino por aquilo que não sou ou pelo modo como não sou. Eu sou com base naquilo que não sou. Eu me defino numa relação de contradição – se bem que entendo não ser sempre necessário negar o outro nessa relação; portanto, reformulando minha compreensão, eu me defino numa relação de contradição ou de diferença em relação ao outro. Estou consciente de que a contradição implicaria negar completamente o outro em mim, o que não parece ser sempre possível ou desejável. No caso ilustrado do senhor e do escravo, quando o senhor se define nega a humanidade ao escravo. Torna-o objeto de sua (do senhor) consciência subjetiva. Claro é que, embora seja superior ao escravo, o senhor precisa dele para se definir como tal. Dada a relação que se estabelece com base num poder opressor, que reduz o outro à servilidade, arrancando-lhe a humanidade, é mais correto falar em contradição e não de diferença ou oposição.
Não pretendendo avançar nesse terreno, o fato é que quando se diz “eu sou diferente de você”, o eu se apropria do espaço da diferença em relação ao outro para nesse espaço se definir. Nesse lugar da diferença, ele fabricará suas próprias significações, suas imagens; o eu significará a si mesmo.
Disse que não há possibilidade de evitar a comparação com os outros. Por conseguinte, observar significa observar (saber) que estamos sendo observados. Precht, em Amor – um sentimento desordenado (2012), nos ensina sobre a formação da consciência de si pelo eu:


“(...) Nosso si mesmo e nosso sentimento de autoestima alimenta-se da autoconfirmação. As características com as quais nos definimos, as forças, as fraquezas, as expectativas de nossa atratividade, nosso charme, e a impressão que produzimos vêm do xadrez social que jogamos com nosso ambiente (...) Observamos os outros e, nessa hora, observamos como somos observados” (p. 168, grifo meu).



Saliente-se neste trecho a importância da percepção sensorial, do olhar que nos é fonte de significados e objeto de interpretação. Ao olhar o outro e ao ser olhado por ele, interpretamos (produzimos sentidos) o modo como esse outro nos situa na posição de objeto-do-olhar. Há um jogo especular na relação do eu e do outro que se entreolham: o eu que olha e é olhado percebe-se, ao mesmo tempo, como observador (fonte da percepção óptica) e observado (objeto dessa percepção). No olhar do outro me vejo como num espelho. Quando interpreto o modo como o outro me olha, produzo uma imagem do meu eu a partir do modo de olhar do outro. Em outras palavras, observar o modo como o outro me olha é fazer uma interpretação cujo resultado é a produção de uma imagem de meu próprio eu.
Retendo ainda a ideia de que não é possível deixar de fazer comparação na relação com o outro, cabe dizer que o que sabemos sobre nós, ou seja, a nossa autoimagem se constitui com base na percepção da diferença existente entre nossos talentos, nossas capacidades, nossos valores, nosso caráter, e os talentos, capacidades, valores e caráter dos outros. Pode acontecer que na percepção dessa diferença nossas características sobressaiam às do outro; pode suceder também que tenhamos certas características que estão ausentes no outro.
A imagem especular que sugeri para explicar a relação entre observador e observado, indispensável à constituição do eu, redunda em que nossa autoimagem nada mais é do que reflexo, por vezes, resultante de uma espécie de filtragem da imagem que os outros constroem de nós. Nossa autoimagem vai sendo moldada, com o aproveitamento e o descarte de significados que compõem a imagem que o outro tem de nós. Em suma, minha autoimagem se molda a partir da imagem que o outro constrói de mim.
Evidentemente, essa imagem (representação) que o outro constrói de mim depende de seus julgamentos, de suas crenças sobre meu comportamento, minhas atitudes, minha fala, sentimentos, emoções, etc. A imagem que as pessoas afins tem de nós é, certamente, mais importante que a imagem que estranhos tenham de nós (dizemos, normalmente, pouco nos importar com o que pensam de nós aqueles com quem não temos qualquer proximidade). Claro que nos enganamos a nós mesmos ao declarar nossa indiferença ao que os estranhos a nós pensam a nosso respeito; e isso se deve, em parte, porque é com base no que os outros pensam de nós que definimos o nosso eu.
Por outro lado, é no pensamento que temos sobre o que somos que o eu se forja. O eu se reconhece como aquele que pensa ser. Ao colocar o pensamento na origem do surgimento do eu, estamos dizendo que o eu é representação, para cujo processo desempenha papel fundamental a imaginação.
Acima, fiz referência ao fato de que a representação da imagem do eu conta com sentimentos e emoções. A isso quero acrescentar que a atenção que os outros dispensam a nós é uma fonte de autoestima. Aqui, chamo atenção para o delineamento da questão principal desse estudo: o amor próprio. Uma verdade sobre a experiência amorosa que passa despercebida por homens e mulheres não familiarizados com a teoria psicanalítica nem com a filosofia, quando se ocupa do tema, é que, na experiência de amor, amamos no outro nossa própria imagem refletida nele (nesse caso, temos a componente narcísica do amor objetal). Também amamos uma imagem do outro que construímos (isso parece ser reconhecido pelas pessoas), mas o que não é tão evidente é o fato de que o amante ama a si mesmo na imagem que o amado constrói dele, amante. Segue-se daí que a autoestima dependa da atenção dispensada pelo outro; e mais – segue-se daí que o amor próprio depende de que sejamos objeto de estima pelo outro. Quero dizer que essa experiência de amor próprio não é algo que nos é dado desde que nascemos. Precisamos ser primeiramente amados para então, tendo experienciado o amor tanto na condição de fonte irradiadora quanto na condição de objeto desse amor, desenvolver o amor próprio. Estou ciente de que não defini ainda o que entendo por amor próprio. Por ora, estou supondo que o leitor sabe, com base no senso comum, o que significa o amor próprio.

“É nossa imagem no olhar do outro que nos empresta nossos próprios contornos. E a imagem mais importante entre todas é aquela refletida por uma pessoa que nos é mais importante que todas as outras, aquela que amamos e nos ama (Precht, 2012, p. 169)


O trecho nos leva a entender a importância do amor dirigido ao outro como condição para que possamos amar a nós mesmos. É interessante notar que a experiência do amor próprio supõe que o eu seja, ao mesmo tempo, fonte e objeto do amor. O eu se desdobra num outro que se identifica com o si. É um eu outro de si mesmo. Logicamente, a fonte só pode irradiar amor sobre si mesma se produz uma imagem de um outro de si, que é objeto do amor. A essa altura, o leitor poderia se perguntar se a emergência desse outro como objeto no amor próprio não instituiria uma diferença em relação ao eu. Eu diria que é isso mesmo, porque o eu que ama a si mesmo ama uma imagem de si (um duplo de si). Para mim, nesse amor, o que é colocado no altar do eu como objetos de seu amor são seus valores, suas características mais caros; os traços desagradáveis acusados pelos outros ou eventualmente reconhecidos pelo próprio eu não entram no escopo do seu amor. A imagem do amor próprio é depurada de tudo quanto aos olhos do eu não é sequer digno de sua própria estima. Uma imagem bastante sugestiva pode ajudar na compreensão do que tento explicar. Imagine que o amor-próprio, à semelhança de um holofote, ilumine para a consciência do eu apenas os traços positivos, prestigiados, agradáveis de sua personalidade. É sobre o terreno dos tesouros do eu que recai a luz do amor próprio. Em suma, no amor-próprio, surge uma imagem-outro-de-mim depurada que passo a amar. A consciência do amor-próprio é uma autoconsciência do amor a um eu ideal que é outro de si.
Ainda me concentrando na relação entre eu e o outro, noto que Hurssel, dando-se conta da capacidade de o ser humano observar o modo como é visto no olhar do outro, cunhou a expressão “empatia dirigida”. Assim, “eu posso entender que o outro entendeu que eu o entendi” (Precht, p. 168). Nesse sentido, importa ver que, no momento em que eu reconheço que o outro reconheceu que eu o entendi ou o compreendi, eu me coloco no lugar reservado a mim no reconhecimento pelo outro da compreensão que tive dele. Daí a empatia dirigida: uma empatia (perceber como uma pessoa sente), mas dirigida a si mesmo. Em outras palavras, no reconhecimento pelo outro de que eu o entendi, há um lugar que posso ocupar como imagem valorizada pelo outro; nesse lugar concentro minha estima, ou é desse lugar que eu me estimo.
Agora, posso lançar olhares novamente sobre a lição de Nasio. Para Nasio, a imagem do corpo é a essência do eu (p. 54). Mas o autor adverte que não devemos identificar o nosso eu com nosso corpo de carne e osso. Na verdade, o que somos resulta do que sentimos e vemos de nosso corpo. O corpo é, assim, o centro para o qual se dirigem nossos sentimentos e nosso olhar e é na base dessa experiência do corpo que o eu se constitui. Nasio escreverá “sou o corpo que sinto e o corpo que vejo” (p. 54).
O leitor deve reter que Nasio introduz o papel da percepção do corpo na constituição do eu. O eu não deixa de ser encarado, por exemplo, como “uma ideia íntima”, mas é uma ideia íntima forjada do corpo. O eu é a representação mental de nossas sensações corporais. Mas essa representação “é mutante e incessantemente influenciada por nossa imagem do espelho” (ib.id.). Desse último enunciado concluímos que para a construção da imagem do eu é determinante a imagem do corpo percebida pelo eu defronte de um espelho (que não precisa ser a superfície vítrea que temos em casa diante da qual vemos nossa imagem; esse espelho que me dá a imagem de meu corpo pode ser e, por vezes, o é o “outro” presente à minha consciência ou como presença simbólica em meu inconsciente). Isso explica que pessoas obesas possam desenvolver uma subestima de si mesmas. A imagem do seu eu poderá ser muito pouco atraente. Evidentemente, essa baixa autoestima será influenciada e agravada pela insatisfação do eu em não atingir os padrões de beleza que o Outro encarna. Ou seja, o seu desejo, ainda que inconsciente, de atingir os padrões de beleza estabelecidos em sua cultura moldará a imagem que o eu construirá de si. Por vezes, são os obstáculos impostos por sua constituição genética que, inviabilizando a satisfação do desejo interiorizado pelo eu por força daqueles padrões, motivam a construção de uma imagem depreciativa do eu.
Nasio reconhece dois tipos de imagens de que se constitui o eu: imagens corporais e imagens mentais. Esses dois tipos de imagens, embora diferentes, são indissociáveis. O eu é tanto a “imagem mental de [suas] sensações corporais [quanto] a imagem especular da aparência do [seu] corpo” (p. 55). Nasio destaca a importância de considerar o sentir o corpo e reconhecer seus movimentos diante do espelho como experiência inegável de ser um eu. Acompanhemos as palavras do autor no trecho abaixo:

“O que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos (p. 55)”.



A percepção de nosso eu, como se vê, é perturbada por uma nebulosa, de modo que se torna extremamente difícil produzir uma percepção límpida e profunda do nosso eu. Nasio nos leva a concluir que “não existe um eu puro; o eu resulta sempre de uma interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e vemos de nosso corpo” (p. 56).
Já mencionei que, na psicanálise, a interpretação é sempre uma atividade de distorção. Logo, segundo Nasio, dizer que a imagem do corpo é a substância do eu é, na verdade, dizer que é a substância deformante do eu. Instáveis e afetivas, as imagens deformadas de nosso corpo acarretam uma imagem distorcida de nosso eu.
Não considerarei o papel da protoimagem inconsciente no processo de constituição do sentimento do eu. Pretendo, assim, evitar me delongar mais ainda.
O que é o amor-próprio? Para definir o amor-próprio, devemos definir previamente o amor. Não farei incursão nesse domínio, é claro. Basta entender o amor como uma estima protetora. No caso do amor-próprio, trata-se de uma estima protetora diante da qual o eu se coloca como objeto a ser protegido. Protegido contra quê? Contra os efeitos danosos das frustrações, dos dissabores, das decepções, dos traumas legados pelo amor objetal. O amor-próprio é um sentimento de defesa de si mesmo erigido pelo eu contra as intempéries da vida. O amor-próprio não é o amor-eros, ou seja, o amor paixão. Também não entendo ser o amor-próprio um tipo de amor narcísico. Não vejo que haja nele um investimento libidinal. Não entendo haver um regresso da libido ao eu. Simplesmente porque o amor-próprio emerge num momento de crise do eu. Quem o afirma precisa dar testemunho de sua autossuficiência (ilusória) em face do outro.
O amor-próprio emerge de um lugar marcado pela solidão, pela frustração, pela decepção decorrentes da carência de amor que supõe a presença imaginária do outro. Estou de acordo com Precht quanto ao fato de que o amor é campo de desordens  (tanto no sentido de que é impossível explicá-lo com base numa única ordem de fatores quanto no sentido de que provoca desorganização de nossas sensações e estados mentais). O amor é arena de instabilidades, de conflitos, de insegurança, mas também é o palco de necessidades, de anseios, desejos, projetos, de conforto, de segurança, etc. O que me parece ser constante nas experiências amorosas, cujas feições podem assumir contornos caricaturais, é a suposição de uma relação baseada na reciprocidade afetiva com o outro. A condição primeira do amor é que nos sintamos realmente amados pelo outro. Amor demanda amor. O leitor poderia objetar que é possível que uma pessoa esteja enganada ao sentir que o outro a ama. Como o sentimento envolve uma interpretação, uma percepção, essa percepção poderia redundar ilusória. Todavia, não creio que esse amor não correspondido perdure. O equívoco aqui me aponta outro caminho para pensar a condição do amor: talvez, a primeira condição do amor é só podermos amar pessoas em que nos vemos refletidos. Seja como for, penso que não há amor humano desinteressado; o amor humano é fonte de demandas.
Ninguém tem necessidade de desenvolver sentimento de amor-próprio quando está amando e sendo amado. A pessoa se satisfaz em ser objeto de amor do outro e ama a imagem ideal construída do outro. Ama também a imagem de si ideal refletida no outro. Essa atmosfera entretecidamente amorosa a satisfaz, a inebria. O amor correspondido dispensa a necessidade de amor-próprio.
No amor-próprio, o eu experimenta uma sensação ilusória de poder existir, de satisfazer-se sem carecer do afeto, da afeição, da estima do outro. O eu vive uma ilusão de satisfação, mas no silêncio do íntimo ruge-lhe a convicção de que o amor-próprio que declara sentir é precário para lhe dar significado e prazer – melhor ainda, para lhe dar potência de existir. Seu amor-próprio é uma máscara para a sua infelicidade em face da indiferença do outro. É uma couraça com que se protege da sua condição de ser consciente da solidão, do abandono e do terror de seu destino derradeiro: a morte inevitável.
O que me parece claro, portanto, quando consideramos a ideia do amor-próprio e da possibilidade de sua experiência é que só podemos amar a nós mesmos se um dia tivermos sido amados (não por nossos próximos, mas por outros que não os nossos). O fato de minha mãe me amar não é suficiente para que eu me ame. Talvez, porque eu cuide que não é um mérito para mim ser amado por minha mãe; o amor dela é, para mim, uma experiência a que ela está obrigada desde o meu nascimento. Não há mérito envolvido aí. Todavia, quando somos objeto do amor de um outro que não sentimos que deveria estar implicado numa condição de obrigação de nos amar, despertar-lhe o amor dele por nós é visto como um mérito nosso.
Insisto em que a experiência de amor objetal, ou seja, que supõe a relação com o outro, que implica o outro, precede a experiência de amor por si. Antes devemos amar um outro e experienciar a satisfação aí envolvida, perdemo-nos no outro e nos decepcionar com ele, perder o amor dele, para então erigir o altar do amor-próprio. No amor recíproco não há lugar para o amor-próprio.
O bebê não parece ser capaz de amor-próprio. Primeiro ele é amado; primeiro precisa ser amado, precisa do amor de sua mãe para sobreviver – amor que demanda cuidados, de que depende também sua subsistência material. É só depois, ao longo da vida, nas incontáveis experiências como sujeito, na adolescência e na fase adulta, tomando consciência de que o amor original, acalentado junto aos seios maternos, assume outras feições, outras formas, por vezes, frágeis, fluidas, inconstantes, repletas de adversidades, contrariedades, conflitos, e tomando consciência de que aquele amor original não encontrará uma imagem exata de si nas relações com os outros; enfim, é só depois que se dá conta de que o amor de sua primeira infância, para ele fonte de segurança, dá lugar a uma forma de amor cheia de riscos, potencialmente capaz de lhe trazer infelicidade, frustrações e traumas, é que passará a acreditar na possibilidade de satisfazer-se com o único amor do qual não se separará: o amor-próprio. Mas a esse amor não pode conferir mais valor ou poder do que ele pode comportar. É bem verdade que pode ser útil em ocasiões em que, sentindo-nos desprezados, rejeitados, só nos resta a solidão do amor por si. Mas ele não deixa de ser ilusório, ele não deixa de reclamar o amor do outro, o amor pela nossa imagem forjada no amor do outro. É só no amor do outro que posso me amar realmente.
O amor-próprio é a defesa, portanto, dos desditosos, dos infelizes, dos mal amados contra a frieza e indiferença do mundo ao seu sofrimento real. É a couraça de homens e mulheres encarcerados no egoísmo e no individualismo que se assenhoreiam de si. É a única fortaleza (ilusória) de homens e mulheres que vivem nas condições da liquidez do amor, em sociedades em que cada vez estão mais conectados e cada vez menos dispostos a perseverar em seus relacionamentos convencionais. O amor-próprio parece ser o único alimento disponível no mercado para saciar a fome desses homens e mulheres desnutridos que dormem acalentados pela crença de que suas conexões são suficientes para lhes fornecer, ao menos, um débil estado de satisfação e felicidade.