domingo, 31 de março de 2013

poema da noite






Silente abandono

O céu chora palavras
Num enegrecido volume
De nuvens densas
De vontade e tristeza

Sinto a alma ranger
O corpo inteiro esmorecer
A noite achegar-me
Convidando-me ao abandono
À solidão que me conforta

Deixo-me estar em silêncio
Porque a vida dói-me mais
Quando falo
Ou escrevo.

(BAR)

quinta-feira, 28 de março de 2013

"Poesias são borboletas da alma; tesouros da ausência; relicários da loucura." (BAR)





Canto amargo


Eu quero o canto doce e amargo
De um amor humano que nada espera
Nem lindo verão nem linda primavera
P’ra este instante é que eu o aguardo

Se por ventura a alma me inunde docemente
Com promessas sonoras de eternidade
Terei apenas a certeza de que mente
Como os amantes que só dizem a verdade

Se relutante inda em minh’alma permanecer
Silenciarei meu coração por toda a vida
Nem mais um verso haverei de escrever

E tendo então a alma um canto de despedida
Quando chegar-me a hora de morrer
Direi do amor só conheci a dor maldita

(BAR)





Confissão

Se me amas como dizes realmente
Confessa-mo no silêncio de teu coração
P’ra que só eu saiba desta confissão
E possa então dormir alegremente

(BAR)





Contradição

Se me amas com a mesma veemência
Com que me declaras tua dor
Então me dizes por que tão funda carência
Se a ti dedico todo o meu amor?

(BAR)

quarta-feira, 27 de março de 2013

"Há homens que já nascem póstumos." (Friedrich Nietzsche)


               


                  Nietzsche e a verdade oculta no homem

Pretendo, neste texto, discutir a problemática do conceito de verdade, em filosofia, a partir da contribuição de Nietzsche. Esse empreendimento, no entanto, não dispensa considerações sobre o legado dos antigos gregos. Revisitar o modo como os antigos gregos entendiam a verdade é importante, entre outras coisas, para a compreensão da crítica avassaladora que Nietzsche lançará ao ideal de verdade de que nós, modernos, somos herdeiros, pelo menos desde que Sócrates e seu ideal de racionalidade entraram em cena no mundo grego clássico. É na esteira dessa racionalidade clássica que Nietzsche desenvolverá sua filosofia com um martelo destrutivo.
Começo notando que nossa concepção de verdade – a do pensamento ocidental – formou-se a partir de três fontes: a grega, a latina e a hebraica. Vou referir e comentar, para os meus propósitos, apenas a concepção grega. Assim é que, em grego, a verdade se diz alétheia, que significa “o não esquecido”. Por extensão de sentido, alétheia passou a recobrir as noções de “não-escondido”, “não-dissimulado”. A verdade é, portanto, a automanifestação do ser ou da realidade, é seu desocultamento, seu desvelamento. Segundo Chauí (2008: 95), “a verdade é o que vemos numa contemplação, o que se manifesta, o que se mostra para os olhos do corpo e do espírito”. Alcançamos a verdade, quando atingimos a essência das coisas pelo entendimento. Quando a essência dos seres se revela, dizemos estar de posse da verdade. A verdade é, portanto, o desvelamento do ser, de tal sorte que identificamos a verdade com o ser e a falsidade com o parecer ou a aparência. Os antigos gregos nos ensinaram, então, que o verdadeiro é o ser e o falso o parecer (o que aparenta ser o que não é) (Chauí, 2008: 96).
Tão cara aos gregos tanto quanto a nós hoje, particularmente aos que se dedicam às ciências, é o conceito de evidência, intimamente ligado ao de verdade. Na realidade, só dizemos que atingimos a verdade, quando estamos de posse das evidências. A evidência é a manifestação clara da essência das coisas e do ser. É o desvelamento do ser das coisas. Desse modo, a evidência é o critério da verdade. A respeito da evidência, podemos ler, em Metodologia científica (2007), de Cervo et.al., o seguinte:

“(...) Evidência é manifestação clara, é transparência, é desolcultamento e desvelamento da natureza e da essência das coisas. A respeito daquilo que se manifesta das coisas, pode-se dizer uma verdade”.
(p. 11)


A esta altura, convém distinguir evidência de certeza. A certeza pressupõe um estado de espírito, portanto implica a adesão de alguém a um determinado ponto de vista ou a uma verdade. Quem diz ter certeza não teme o engano. A certeza surge quando o espírito dispõe de evidências. A certeza é dependente das evidências.
Opiniões, por sua vez, que são um tipo de crenças, têm caráter subjetivo e resultam de uma avaliação superficial das coisas ou dos fatos. Quem opina, não dispondo de certezas, teme o engano. Opiniões não pressupõem um exame cuidadoso sobre a realidade a que se ligam. Elas dispensam um exame crítico e justificativas teóricas e são relativas a quem as exprime. Quem opina considera algo como verdadeiro, sem, contudo, estar certo de que alcança a verdade. Platão – e nesse tocante, o acompanhava Aristóteles - via as opiniões (doxa) como produtos dos sentidos, portanto, sujeitas à variação, à ilusão e ao erro. Nesse sentido, as opiniões se opõem ao conhecimento, ao pensamento racional e à ciência.
Há três teorias de verdade muito conhecidas: a da verdade como correspondência, a teoria pragmática de verdade e a da verdade como coerência. Na verdade, poderia apontar uma quarta, a da verdade como redundância. É a primeira que me interessará aqui, no entanto. A teoria da verdade como correspondência reza que a verdade resulta da correspondência ou de alguma espécie de fidelidade descritiva do pensamento/proposição com a realidade. Dito de outro modo, a verdade é produto da correspondência entre a proposição e o fato. Na Idade Média, Tomás de Aquino entendia ser a verdade a adequação da coisa ao intelecto. Atualmente, é preferível falar em proposição. A verdade é a correspondência da proposição com a realidade que ela descreve ou representa. Por conseguinte, se digo “Está chovendo”, enuncio uma verdade se e somente se de fato estiver chovendo. Quando digo “está chovendo”, eu assumo que “é verdade [que está chovendo]”. Nesse momento, surge o problema do portador da verdade. A verdade se acha nas pessoas? Nos fatos? Nas proposições? Parece razoável admitir, em princípio, que apenas proposições podem ser verdadeiras ou falsas; seres e coisas podem ser reais ou irreais. Mas não segue daí que as proposições portariam a verdade; a verdade se acha no sentido delas, no que dizemos por meio delas, mas não sem o concurso da realidade. Não basta dizermos que “fantasmas existem” para daí concluir que é verdadeiro que eles existem. Isso seria absurdo. Só poderíamos aceitar a declaração “é verdade [que fantasmas existem]” se dispuséssemos de evidências para tanto. Proposições como estas em que se predica de coisas de cuja existência duvidamos ou cuja existência rejeitamos nos levam a considerar a posição dos coerentistas.
A teoria da verdade como coerência reza que a verdade depende de que haja coerência entre as crenças, ou entre as proposições dentro de um sistema de crenças específico. Para que se obtenha a verdade, é necessário que nenhuma crença entre em contradição com uma outra crença ou com um conjunto de crenças; as crenças precisam estar harmonizadas entre si. Teorias coerenciais da verdade se baseiam na concepção de Hegel, para quem a verdade é o todo. Destarte, uma proposição é verdadeira se estiver de acordo com nossos sistemas de crenças sobre o modo como o mundo funciona. Claro é que tais sistemas de crenças são construídos em nossas experiências socioculturais, de modo que grupos culturais diversos podem alegar ser detentores de verdades claramente inaceitáveis ou não reconhecidas como tais por outros grupos. Uma tribo africana pode assumir que é verdade que o pajé cura as doenças causadas pelos maus espíritos e nós, indivíduos do mundo “civilizado”, imersos numa cultura tributária da visão cientificista de mundo, e que compartilham outros sistemas de crenças (ainda que metafísicos), tenderíamos a considerá-los completamente enganados. Os coerencistas precisam lidar com algumas objeções, tais como o reconhecimento de que não basta haver coerência entre as proposições e as crenças para a obtenção da verdade; a realidade também precisa se pronunciar, caso contrário teríamos de assumir que as proposições de um contos de fada são verdadeiras, pelo simples fato de que elas são coerentes entre si, no interior da narrativa.
Eu gostaria de estender essas reflexões para o âmbito das teorias científicas e compreender nesse domínio em que medida podemos dizer que as teorias produzidas pela ciência podem revelar alguma verdade. Isso, todavia, me levaria muito além dos meus propósitos, de modo que deixarei muitas questões em aberto.
Disse que a realidade também precisa se pronunciar... Mas o que é a realidade? Ela pré-existe aos homens? Deve-se falar em uma ou muitas realidades? A realidade é algo dado, já classificado, pronto para ser compreendido? Ou é algo que se constrói, algo que é produzido num complexo de relações entre os seres humanos? Já tive a oportunidade de escrever sobre isso. A realidade é fabricada na inter-relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. A realidade humana é, fundamentalmente, uma realidade simbólica, entretecida de significados. Tanto a verdade quanto a realidade são construídas em processos intersubjetivos de produção de significados. Convém ponderar nas palavras do linguista Marcuschi (2005):

“As pessoas concordam intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de forma parecida quando vivem na mesma cultura. Assim, o conhecimento objetivo, a verdade, a categorização etc., surgem como fruto de uma triangulação entre dois indivíduos e o mundo sem a necessidade de uma relação direta da mente com mundo e sim a coerência na relação com o mundo.”
(pp.58-59)


Que fique claro que não se está negando a existência de um mundo exterior à mente, de um mundo acessível à experiência sensorial (ainda que possa ser aí, muita vez, distorcido). Este mundo dos objetos, das coisas que nos cercam existe, mas ele não é dado, não está organizado, pronto a priori. Marcuschi corrobora esta ideia, notando que:

Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta e universal, e a mesma para todo o sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (...). E a concordância geradora do consenso é o ponto de interseção que produz a crença objetiva.

(p. 69)


Trata-se, para Marcuschi, de colocar a objetividade como produto da intersubjetividade. Nietzsche chamaria essa objetividade de ficção. Portanto, uma ficção produzida nas relações culturais entre sujeitos situados historicamente. Assim é que “o mundo, dirá Marcuschi, não é um grande supermercado com gôndolas universais divinamente mobiliados” (p. 67), e aos homens não cabe apenas mobiliá-lo.  Tampouco a linguagem é um instrumento transparente, preciso, claro pelo qual o mundo seria revelado a nós. Ao contrário, ela é caracterizada pela opacidade (de modo que o sentido não é auto-evidente, não está na superfície do discurso, como algo de que poderíamos nos apropriar imediatamente); ela não permite o acesso transparente ao mundo; tampouco a uma verdade absoluta.
Se levarmos em conta o que nos ensina Marcuschi, seremos forçados a concluir que as verdades são produções discursivas, produções elaboradas nas práticas intersubjetivas pelo uso da linguagem, muito embora tendo o mundo como interseção e as mentes, constituídas de tal modo que podem operar em relações intersubjetivas.
Não espero tenha esgotado todas as questões aí envolvidas; longe disso. Preciso, contudo, me apressar em trazer à cena discursiva o filósofo Nietzsche, o protagonista de minha discussão sobre o tema da verdade. Começarei, apresentando-o.

1. Quem foi Nietzsche?

Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão (nascido na Prússia), é considerado um dos pensadores mais originais do século XIX e bastante influente na modernidade. Sua obra toma como ponto de partida uma reflexão sobre a cultura grega antiga e sobre sua influência no pensamento ocidental. Vale reiterar: é precisamente da filosofia grega que Nietzsche parte para construir todo um novo modo de pensar a história, a arte, a vida e o homem.
Um crítico feroz do passado, Nietzsche também pode ser considerado um profeta de um mundo novo, de um mundo renovado, de uma história futura depurada dos entulhos de séculos e milênios. Um dessacralizador dos valores tradicionais, Nietzsche considerava-se um genealogista, por arvorar-se em crítico ferrenho da origem dos valores morais e das categorias filosóficas que mascaram tais valores com vistas a satisfazer interesses particulares. Como tal, propunha uma “transvaloração”, ou melhor, “uma transmutação de todos os valores”. Para ele, os valores predominantes eram os dos fracos, os dos decadentes e sua criação negava a vida, o “querer-viver”. Por conseguinte, Nietzsche se notabilizou formulando uma crítica profundamente causticante e radical aos valores tradicionais da cultura ocidental, ao conservadorismo, ao cristianismo e à visão burguesa de mundo. Considerado o mestre da suspeita, ele desenvolveu uma filosofia demolidora. Dizia ser necessário filosofar com um martelo.
Em Nietzsche, não encontraremos fatos, apenas interpretações. Para ele, não há fatos, apenas interpretações. Não há transcendência; tão-só imanência e aparência que, no mais, se identifica com o ser. A lógica, uma ficção, não é senão produto dos instintos. Não há um ‘eu’ indiviso, senhor de si, tampouco sujeito, autônomo e livre.
Ao revisitar a filosofia grega e refletir sobre sua influência decisiva no pensamento ocidental, Nietzsche identifica dois elementos que a fundamentam: o espírito apolíneo (de Apolo), que representa a ordem, a harmonia, a razão; e o espírito dionisíaco (de Dionísio), que representa o sentimento, a emoção, a ação. Segundo Nietzsche, entre nós, o primeiro espírito teria predominado asfixiando tudo que fosse “afirmativo da vida”.
Considerado “irracionalista”, politicamente suspeito, Nietzsche foi um poeta notável, embora tenha sofrido uma crise de loucura (não se sabe se devido ou não a sífilis), alternando momentos de profunda lucidez com momentos de incoerências e contradições. Não cessou de denunciar a inanidade dos valores humanistas, dos direitos humanos, da igualdade democrática. Sua obstinação no ataque aos “ídolos” da religião, da ciência foi marcante em sua empresa filosófica. Segundo Luc Ferry (2010),

“Ele surge como o primeiro, para não dizer o único, a responder aos desafios de uma existência “humana, humana demais”, de uma vida, enfim, liberta das miragens da fé em algum ideal superior. Uma filosofia não mais do céu, mas da terra (...)”.

(p. 63)


Admirá-lo, sim, pelo menos naquilo que soube celebrar: a afirmação da vida, o humano demasiado humano! Mas jamais endeusá-lo! Estudá-lo para tentar compreender a profundidade e originalidade de seu pensamento, sem deixar de identificar aquilo que o torna nocivo, desconfortante para nós – ou pelo menos para os que dentre nós acolhemos os valores democráticos e humanistas. Sim, porque Nietzsche foi um antidemocrático. Como humano, demasiado humano, também escreveu tolices e cometeu erros. Em O Crepúsculo dos Ídolos, no capítulo em que ele se dedica ao problema de Sócrates, se topa um trecho em que podemos encontrar todos os elementos de uma posição claramente fascista, o que explicaria a sedução que seu pensamento exerceu sobre os nazistas.

“Sócrates pertencia, por sua origem, à mais baixa camada do povo: Sócrates era o populacho. Sabe-se, vê-se ainda como era feio... Afinal, Sócrates, era grego? A feiúra é frequentemente a expressão de uma evolução cruzada, entrevada pela mestiçagem... Com Sócrates, o gosto grego se altera em benefício da dialética. O que acontece exatamente? Antes de tudo, é um gosto distinto que é derrotado. Com a dialética, o povo consegue levar vantagem... O que precisa ser demonstrado para convencer não vale grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda é de bom-tom, em todo lugar em que não se “raciocina”, mas se ordena, a dialetização é uma espécie de polichinelo. Riem dele, não o levam a sério. Sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser levado a sério...”


Confesso que, em algumas ocasiões em que li Nietzsche, experimentei um profundo desgosto, decepcionei-me. E questionava: como pode ser tão lúcido em vários momentos e em outros tão moralmente ultrajante? Luc Ferry, comentando este trecho de Nietzsche, escreve:

“É difícil, hoje, ignorar o que um discurso como esse pode ter de desagradável. Todos os ingredientes da ideologia fascista parecem estar aí entrelaçadas: culto da beleza e da “distinção” do qual o “populacho” está por natureza excluído, classificação dos indivíduos segundo suas origens sociais, equivalência entre povo e feiúra, valorização da nação, no caso, a Grécia, suspeitas dolorosas de uma impossível mestiçagem, supostamente explicativa não se sabe de que decadência... Não falta nada. Não fique, contudo, com essa primeira impressão. Não que ela seja – que pena! – inteiramente falsa. Como aliás, já lhe disse, não foi por acaso que os nazistas retomaram Nietzsche”.

(p. 207)


Luc Ferry prosseguirá buscando estimular seu leitor a permanecer nas páginas de seu livro a fim de compreender o pensamento de Nietzsche, não obstante o desagrado que a passagem referida cause nele e no leitor. E passagens como estas não rareiam na obra do insigne filósofo alemão, infelizmente. No entanto, não nos apressemos em fazer delas razão suficiente para rejeitar toda a filosofia de Nietzsche; elas apenas nos advertem de que mesmo as mais brilhantes mentes foram capazes de produzir disparates. Filósofos não são imunes aos preconceitos de sua época, muito embora nos sintamos justificados em esperar que eles sejam os mais habilitados a percebê-los, criticá-los e rejeitá-los. De qualquer modo, o que devemos ter em conta é que os filósofos também erram, como errou Tomás de Aquino ao escrever contra as mulheres... É preciso lê-los, portanto, com senso crítico aguçado antes mesmo de admirá-los; examiná-los e compreendê-los, antes de condená-los. Não precisamos ser sempre condescendentes com suas ideias e visões de mundo. Devemos discordar deles, sempre que as ideias e crenças sustentadas ferirem o sentimento predominante de nossa época, os valores que nos são caros, as virtudes que admiramos, a ética por cuja elaboração e manutenção lutamos. Como antidemocrático, Nietzsche simpatizava com os valores aristocráticos. Se, por um lado, ele se opunha ao igualitarismo e à emancipação das mulheres, condenava o movimento anti-semita então crescente na Europa à época.
É preciso que compreendamos que Nietzsche nunca esteve interessado em buscar ou descobrir uma racionalidade no caos que é o mundo (ele entendia o mundo como um caos). O universo ou a Vida, para ele, é um complexo tecido de forças contraditórias. Nietzsche as identifica chamando-as de forças reativas e forças ativas. No domínio intelectual, as forças reativas se encarnam na ciência e na filosofia clássica (para ser mais exato, se encarnam “na vontade de verdade” que as anima). As forças ativas, por sua vez, atuam na arte e se revelam no espírito aristocrático. Proponho, então, que tenhamos em conta essa oposição, doravante.
A esta altura, sinto necessidade de encontrar uma chave para começar a desbravar as florestas densas do pensamento de Nietzsche, sem pretender a exaustão. A chave que escolherei será a linguagem. Começarei, portanto, considerando como Nietzsche entendia a linguagem para, então, a partir desse domínio de reflexões, dar a saber como ele pensou a verdade, o homem, a história, a ciência e a arte. Não custará ao leitor perceber que esses temas estão interligados.

1. A linguagem como metáfora

Enceto esta seção, evocando a lição de Saussure sobre a natureza arbitrária do signo linguístico. Como se verá, não é propriamente dessa relação que se ocupa o pensamento de Nietzsche, mas a lição de Saussure nos ajuda a situar o problema da linguagem em Nietzsche.
Ferdinand Saussure nos ensinou, no início do século XX, que o signo é resultado de uma relação dicotômica entre duas faces: o significante e o significado. O significante, para o mestre genebrino, se definia como “a imagem acústica do som”, a impressão psíquica do som, não o som em si; o significado não mais era do que o conceito. Em filosofia, sem pretender considerar as nuances que toma nos pensamentos dos filósofos, o conceito se define como uma representação mental dos objetos de nossa percepção. Pelo conceito, designamos os ‘dados’ de nossa experiência sensorial. Saussure, então, entendia que a ligação entre o significante e o significado era arbitrária. Melhor seria dizer, notariam os estudiosos da Escola de Praga, convencional. De qualquer forma, com a qualificação “arbitrária” queria dizer Saussure que não havia um vinculo natural entre o significante e o significado; na verdade, esse vínculo era estabelecido pelos homens na base de um consenso social. Assim, por exemplo, não há nada na palavra “cavalo” que me leve a inferir, por uma relação natural, o significado ‘equino’, tampouco, a princípio, há algo que impediria que “cavalo” designasse o que entendemos por “árvore” (o que impede é a convenção social estabelecida em torno da ligação entre o significante e o significado; o indivíduo sozinho não pode romper radicalmente com esse laço determinado por convenção). Destarte, não obstante ter Saussure estabelecido como objeto de estudos para a então ciência nascente, a Linguística, a língua tomada em si e por si mesma, sem qualquer relação com o social, não deixou de reconhecer ser ela uma realidade social. Mas deixemos Saussure e retomemos a Nietzsche.
Como Nietzsche entendia a palavra (que em Saussure identificava-se com o signo, muito embora signo não seja redutível a esse estrato gramatical)? Nas palavras do filósofo, em Sobre Verdade e Mentira lemos:

“O que é uma palavra? é a reprodução de um estímulo nervoso em sons. Mas deduzir do estímulo nervoso uma causa fora de nós é já o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da razão”.

(p. 30)


A preocupação de Nietzsche repousa em saber se a designação revela, de fato, as coisas do mundo. Em outras palavras, se a linguagem diz o mundo tal como é realmente. A resposta de Nietzsche é negativa e a justificará notando que a linguagem opera na base de metáforas. A primeira metáfora é a própria reprodução de um estímulo nervoso em uma imagem; a segunda é a transformação desta em som. Embora estejamos acostumados, por força da tradição escolar, a pensar na metáfora como uma figura de linguagem, um recurso de linguagem que caracteriza estilos literários, já foi mostrado, nos estudos linguísticos, que as metáforas estão na base dos processos semânticos da linguagem. Digamos, em termos filosóficos, a essência da linguagem é ser metafórica (bem como polissêmica, e Nietzsche bem o notara). Veja-se a quantidade de formas metafóricas que impregnam a nossa linguagem do dia-a-dia (p.ex. abra seu coração, tenha a mente aberta, ver uma luz no fim do túnel, pescar ideias, não cair a ficha, luz da vida, etc.). Por metáfora, Nietzsche entenderá, portanto, essa transformação de uma coisa captada pelos sentidos em uma imagem e desta em som.


2. Verdade, ciência, arte em Nietzsche

Assim, dirá Nietzsche, que a linguagem é uma metáfora para as coisas e que ela não espelha a realidade tal como é, mas serve tão-só para expressar as relações dos homens com essa realidade. O homem, pelo esquecimento, acredita ser capaz de atingir a verdade através da linguagem. A verdade é fruto desse esquecimento. Por isso, para Nietzsche, a verdade é uma ilusão, embora necessária, porque serve à sobrevivência.
De que esquecimento se trata, perguntará o leitor? Aquele segundo o qual são os homens que produzem as metáforas (palavras). Iludidos, os homens acreditam haver uma relação de causalidade entre a palavra e o objeto designado. Institui-se uma mentira social, necessária, no entanto, para a própria organização social e sobrevivência dos homens. O mentiroso é aquele que se usa das palavras, se vale de designações que contrariam as convenções estabelecidas. É somente em estado de rebanho, dirá Nietzsche, vivendo em sociedade, que os homens, por meio do engano, buscam a verdade. A linguagem lhes possibilita estabelecer normas de conduta dentro das comunidades.
A verdade em si, portanto, é inacessível ao intelecto humano, justamente porque ela não é outra coisa senão produto de operações metafóricas que entram na base de suas abstrações (conceitos).
Nietzsche reconhece nos homens um desejo de verdade; ele admite que os homens precisam buscar a verdade, porque disso depende a possibilidade mesma de viverem em estado de rebanho e de sobreviverem. Todavia, a “vontade de verdade” mascara uma face moral (e Nietzsche gostava de pôr a nu justamente o que está encoberto) que se define pela oposição entre verdade e aparência. Essa oposição leva a que se afirme uma vida além-mundo e se negue a vida mesma vivida neste mundo. A verdade é tomada, assim, como um valor superior e a ciência se torna a expressão mais alta dessa busca pela verdade, tomada como absoluta e à espera para ser descoberta.
A ciência concebe o mundo dotado de uma ordem mecânica, que funciona através de leis que, se compreendidas, permitem o acesso à verdade. Mas, dirá Nietzsche, que o mundo é um caos, que a lógica não se acha no mundo, mas nos homens. São eles que logicizam o mundo. São eles que projetam relações de causalidade entre os acontecimentos do mundo. A ciência está fundada na crença na vontade de verdade, de tal modo que a verdade ganha um valor superior, o que levou Nietzsche a reconhecer que a ciência não conseguiu liquidar Deus. A ciência tem seu Deus e ele se expressa na busca a todo custo pela verdade. A ciência professa uma fé no valor metafísico da verdade. A verdade é divina no domínio de referência científico. A ciência, ou melhor, os cientistas (note o processo metonímico aí: usar “ciência” para designar ‘aqueles que fazem ciência’) tendem, sem se darem conta disto, a endeusar a verdade, a tratá-la como algo transcendente (no sentido comum), embora acessível pelo método científico.
Em A vontade de Potência, lemos o seguinte:

“A vontade de verdade é uma crença – crença na superioridade da verdade – e é nela que a ciência se funda. Não há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais valor do que a aparência, a ilusão”.

(pp. 78-79)


A crítica de Nietzsche é uma busca por um mundo mais humano. Se a ciência se demonstrou incapaz de humanizar mais o homem, que alternativa poderia haver para ele? Eis que surge a arte, tão valorizada no pensamento de Nietzsche. Para ele, a arte não deixa de ser também uma mentira, mas uma mentira que confere profundidade à vida humana, preterindo, para tanto, da lógica. A arte transforma a visão que temos da vida. Ela causa um abalo, ensinará Nietzsche, na percepção que temos do presente. A arte leva em conta a ignorância natural do homem sobre si mesmo. Não tem ela pretensão de atingir alguma essência do homem, mas tão só a sua superfície. Mas é justamente ao fazê-lo, que ela aproxima o homem do homem. A arte torna a vida mais suportável.
Disse que o espírito dionisíaco se expressa na arte. E Nietzsche se vale dele para conduzir o homem a um retorno a si mesmo. Nietzsche se propôs a naturalizar o homem, livrando-o das sombras de Deus e de suas ilusões da razão. O homem que se reconhece no engano e reconhece o engano em que sua vida está imersa é um homem livre de seus ídolos (Deus, a verdade, a ciência, a razão, a lógica...).

3. Em cena, a História

As verdades são construções históricas. Nietzsche o reconhece. E um traço marcante que diferencia os homens dos animais é que aqueles vivem de modo histórico, ao passo que estes vivem de modo a-histórico. O homem tem consciência de seu passado e não esquece os momentos que viveu; ao contrário, os animais não podem recuperar o passado, eles estão completamente imersos no instante, no presente.
Ao resgatar o passado, os momentos vividos, pela memória, os homens podem experienciar profunda infelicidade. Para Nietzsche, a felicidade só poderia ser alcançada vivendo o presente. Há três tipos de história identificados pelo filósofo: a Monumental, a Antiquária e a Crítica.
A monumental encerra a descrição de fatos que são exaltados, que são considerados grandiosos. Nela, o passado é celebrado e a grandiosidade do presente depende deste resgate do passado e de sua celebração. Para Nietzsche, isso impede o progresso e faz com os homens depreciem o presente.
A antiquária lança o homem como participante do passado, mantendo nele vivas as lembranças dos instantes vividos. Mas aqui o passado é conservado no presente, o que impede a busca pelo novo, a aventura em desvendar o desconhecido. Os homens conservam a vida, mas não podem criá-la, isto é, buscar o novo. Nesse sentido, só tem valor o que é passado e é ele o modelo para viver o presente.
O sentido crítico da história, no entanto, é que permite o homem ser autêntico, dispensando a máscara de que se serve para sobreviver. Somente o sentido crítico da história o conduzirá adiante, a viver projetando-se para o futuro, que se tornará presente. Nesse sentido, o homem não precisa mais retornar ao passado monumental ou à sua forma antiquária para sentir-se plenamente realizado e vivo.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Poemas de outrora





Pecador

Sentes como tremes de ardor?
Sentes como sofres, pecador?
Sentes tudo quanto é Dor?
Sentes medo?
Sentes pavor?
Sentes Amor.

Sentes quão daninha é cega obediência!
Sentes quão gélido é o cárcere do Adorador?
Sentes a estupidez furtar-te o prazer?
Sentes a vida em teu esperar esvaecer?
Sentes o abandono, a vã Esperança
Que se hospeda inóspita em teu seio?
Sentes reivindicar a vida teu legítimo receio?
Sentes a univocidade do humano?
Sentes sacramentado o eterno profano?
Sentes o seio rasgar quão Divinal Dor?
Sentes medo?
Sentes pavor?
Sentes Amor.

(BAR)




Virgem do mar

Esta poesia é indecente... Quem o diz é tolo
Esta poesia é uma pálida virgem crente
Que a mão à concha pura leva em gozo
A Dioniso o corpo oferta impenitente

De noite, ao morcego vesgo que a escuridão
                                                          [abraça 
Sorri facínora diabolicamente extasiada...
Á serpente viscosa que sobre o corpo se arrasta
Doa-lhe ternamente os seios que o diabo agrada

Da manhã o véu plácido o acúleo lhe envolve
Numa angélica solidão num beijo abriga a reentrância
Do Mar por onde navegam os sonhos de infância

Esta poesia é uma virgem que no mar descobre
O Amor etéreo que dos Céus torna noiva o Inferno
- É a abelha de Éfeso que Minos enlaça terno.


(BAR)




Versos noturnos

Estes versos, ao meditar ufano
- Sombras que a claridade afaga
São profundos como um anjo
Que ao uivar da noite me guarda.

Salvando-me das penhas altas
Que em teus olhos arredios trazes
Os versos tristonhos como flautas
De Pã, cinge o infinito em teus altares!

À noite, vens como imagem flutuante
Caridosa, te aconchegar-me nos versos
Sinto-te o viço em verve, penetrante

Ouço-te a voz que caminha em regressos
Ao tempo de um amor que o seio arfante
Inundou de sonhos noturnos e re-versos. 

(BAR)

Memórias 1



                     

                              A Morte do Romântico
                               E a liquidez do Amor

O eminente crítico literário Alfredo Bosi expressou-se assim, acerca da temática dos escritores do Romantismo (2006: 93):

“A natureza romântica é expressiva (...). Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação”
(ênfase no original)

A menos que presenciemos nitidamente a vulgarização do sentido de ser romântico e, consequentemente, um novo modelo imaginário pós-moderno do que é ser romântico – decerto, ralo e trivial -, não me parece errôneo acreditar que as formas de existência românticas já feneceram. Os cadáveres do Romantismo jamais ressuscitarão e seus fantasmas há muito foram exorcizados.
Na sua obra Amor Líquido, um dos mais renomados sociólogos da atualidade Zygmunt Bauman (2004: 19)afirma:


“(...) a definição romântica do amor como “até que a morte nos separe” está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização”.


Zygmunt cuida haver uma ambivalência nos relacionamentos pós-modernos, a qual consiste no desejo de estreitar os laços, acompanhado da necessidade de, cada vez mais, mantê-los frouxos.
É preciso, em princípio, conter meu ímpeto verbal, a fim de que apresente algumas palavras que justifiquem a produção deste texto. Uma vez satisfeito o meu intento, darei a conhecer ao leitor os estágios nos quais se desenvolverão as minhas reflexões.
Hegel dizia serem páginas em branco as páginas felizes no amor romântico. E me sobejaram páginas vãs, algumas das quais recuperei da fogueira da depressão. Vivi segundo o governo de meu coração, durante muitos anos, e bebi do cálice da desilusão e sofrimento. Dei ouvidos aos devaneios de minha alma e acabei desditoso, descrente da possibilidade de experienciar um relacionamento inundado de um amor celestial, bem ao gosto dos Azevedos. Quiçá, a esta altura, na face, leitor, se lhe estampe um sorriso zombeteiro e se lhe afigure ao espírito que sou afeito a pieguice. Ou, talvez, endossando a afirmação de Zygmunt, acima referida, conclua ser meu desafogo o testemunho de um modo de ser e existir que se poderia chamar ‘brega’.
Alhures, esforcei-me por definir o que é ser romântico; por isso abstenho-me; apenas direi que não é romântico aquele que não vive exageradamente ou que “não vê numa gotícula de água toda a complexidade do oceano”.
A par de minha clara insatisfação e frustração decorrente de ter de me contentar com a insipidez amorosa pós-moderna, as palavras que faço deitar sobre estas páginas encontram sustento em minha insaciável necessidade de pensar, refletir, conhecer. Anuindo à verdade da afirmação socrática, segundo a qual “a vida não examinada não merece ser vivida”, emprego meu espírito na busca por compreender o declínio do amor, cujos padrões, para Zygmunt, foram baixados:


“Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões de amor, esses padrões foram baixados. Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome “fazer amor”.
(p. 19)

Este fato a que fez menção o sociólogo já me foi caro, consoante se pode perceber neste poema de minha autoria, que refiro abaixo:

Apoestasia

Que me vale bradar às rosas
Se no mundo as que vejo...perfumadas
Empinam as nádegas dengosas
Ao cravo que as querem tresloucadas?

Que me vale falar às flores
De delírios ou desamores
Se os corpos à vista dos mercados
Ufanos por cachês são desnudados?

E às que são inda mocinhas
Que vivem a falar das roupinhas
Das bocas que experimentaram nas festinhas?

E mesmo às que contam vinte
Se não lêem e às cegas vivem – andorinhas!
Silabam AMOR removendo as calcinhas!

(BAR)


A concepção do amor como uma forma de ‘negócio’, ‘um contrato com prazo de validade’ e dos relacionamentos como ‘formas descartáveis de existir’ (pois existir é manter relação com) já me sorria ao espírito, muito antes de eu conhecer a obra de Zygmunt, cujo valor para mim foi propiciar-me a oportunidade de levar a efeito o intento de realimentar algumas ideias sobre o amor na pós-modernidade, de modo mais sistemático e teoricamente mais consistente.
O rigor da reflexão filosófica exige que os pensamentos pautem-se por regras que o conduzam à formação de um todo coerente e compreensível; portanto, não-contraditório. A despeito do esforço espiritual empreendido na tentativa de se chegar, com exatidão, a esse todo, não se conclua daí que se esgote a realidade posta sob o exame do espírito. Todo estudioso deve ter em conta que a realidade é sempre mais complexa e abrangente e que o conhecimento humano não pode pretender esgotar-lhe a totalidade. A totalidade do real escapa à pretensão do conhecimento à totalização. Por conseguinte, estou ciente de que não esgotarei as questões que podem ser levantadas no tocante às experiências do amor pós-moderno. Urge traçar o plano de construção, doravante.
Em princípio, é necessário situar a temática na pós-modernidade e procurar compreender como o amor tem sido experienciado numa era caracterizada por avanços tecnológicos e consumismo. Em seguida, revisitarei o discurso filosófico sobre o amor e considerarei o que dele nos disse Platão, Descartes, Kant, Spinoza e outros autores contemporâneos cuja maior contribuição foi tratá-lo de uma perspectiva cognitivo-fisiológica. Na terceira parte, lançarei olhares sobre o capítulo apaixonar-se e desapaixonar-se, que se topa na obra Amor Líquido, de Zygmunt Bauman e avaliarei algumas de suas posições criticamente. A parte final encerra as conclusões a que chegarei e que, espero, venham corroborar a tese segundo a qual o amor da pós-modernidade é um amor de conveniência.


1. O Mal-estar da pós-modernidade

O título que encabeça esta seção é o nome da obra de Zygmunt Bauman, cujas lições nortearão nossa reflexão. Buscarei a brevidade tanto quanto possível; é necessário, contudo, sumariar o conteúdo do primeiro capítulo deste livro, o qual se intitula de O sonho da pureza. O autor advoga ser a pós-modernidade instaurada sob o ideal da pureza, que constitui “uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas” (p. 13).
A pureza a que se refere Bauman identifica-se com a ordem, a saber, situação em que cada coisa está em seu devido lugar. A ordem serve de um meio para regular e estabilizar nossos atos. Se um dado estado-de-coisas não se encontra organizado segundo o ideal de ordem (pureza), considera-se, pois, essa situação impura. O autor adverte-nos de que as coisas não são puras ou impuras por natureza; essas qualidades não intrínsecas a elas; são atributos resultantes de sua localização. Nesse tocante, esclarecedoras são as palavras seguintes:

“Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam a prístina pureza”.
(p. 14)


Evidentemente, observa Bauman, que cada época e cada cultura têm seu próprio padrão de pureza. Ao interesse pela pureza, associa-se o interesse pela higiene. Higienizar para manter a pureza – nisso consiste o objetivo da ação pós-moderna. No entanto, cada ordem encerra em si suas desordens. Cada modelo de pureza tem a sua sujeira, a qual precisa ser varrida inapelavelmente. Nesse contexto, todo esforço empreendido pelas sociedades pós-modernos é orientado para combater os estranhos.
Segundo Bauman – e este é um aspecto fundamental para a nossa discussão sobre o amor -, o mundo moderno é instável e sua constância está relacionada apenas à hostilidade a qualquer coisa constante. Elenco, abaixo, as características da pós-modernidade, que  pude inferir do trabalho do autor:

·         Inconstância e insaciabilidade;
·         Velocidade, movimento, perpetuidade;
·         Diversidade de estilos e padrões de vida livremente concorrentes;
·         Atuação massificante de um mercado para consumidores, que são seduzidos com infinitas possibilidades e promessas de constante renovação de felicidade;
·         Incessante busca por intensas sensações e inebriantes experiências;
·         Flutuação de identidades: veste-se e despe-se de identidades continuamente;

As utopias modernas, em geral, se afinam com a ideia de um “mundo perfeito”, a saber, um mundo que permaneça inalterado ou idêntico a si mesmo, de modo que o que se aprende hoje possa ser válido amanhã e para todo o sempre. Observa Bauman, que


“O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos”.
(p. 21)

Dentre os aspectos que caracterizam a era pós-moderna, destaque-se a influência do consumismo nos relacionamentos humanos. Mais adiante, dispensarei a devida atenção a esse problema. Por ora, atente-se para a descrição que faz o autor dos homens e mulheres pós-modernos:



“Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão frequentemente empolgados pelas repetidas ondas de “nostalgia”, acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas”
(pp.22-23)

A frouxidão dos vínculos estabelecidos nos relacionamentos decorre, em parte, ou melhor, é favorecida, segundo Bauman, por “um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita” (p. 23). Note-se aqui a insaciabilidade do homem pós-moderno referida em nosso elenco de características da pós-modernidade. O mercado incita o apetite dos consumidores, que passam a conservar um desejo por sensações cada vez mais intensas e por novas experiências.
As pessoas que se tornam incapazes de amoldar-se aos padrões estabelecidos pelo mercado configuram a classe dos consumidores falhos, portanto, excluídos. Como o conceito de liberdade, na pós-modernidade, está associado às esferas de consumo (na medida em que o indivíduo livre é definido em termos de poder de escolha do consumidor), os consumidores falhos, de acordo com a lógica do mercado, são indivíduos incapazes de ser livres.
À questão da sociedade de consumo e sua relação com as formas de experienciar o amor, na pós-modernidade, dada a sua relevância, será dedicada a próxima seção. Antes de levar a cabo as nossas considerações sobre a pós-modernidade, deve-se ter em conta que a busca pela pureza expressa-se numa tendência cada vez maior de tratar problemas socialmente produzidos como crimes. Lembrou-me a canção “problema social”, interpretada por Seu Jorge, da qual um dos versos diz “se eu pudesse, eu não seria um problema social”, numa clara referência à situação dos meninos de rua, rotulados pela sociedade como um “problema” e, não raro, tratados como casos da alçada da polícia.
Por fim, a (pós)-modernidade caracteriza-se por uma rejeição à tradição. Destarte, ensina Bauman:


“A modernidade viveu num estado de permanente guerra à tradição, legitimada pelo anseio de civilizar o destino humano, num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra seus próprios princípios”.
(p. 26)

Devemos pensar sobre o amor à luz da concepção segundo a qual a era pós-moderna se funda na busca cada vez mais premente pelos indivíduos de prazer – um prazer, todavia, fugaz, insuficiente, cuja qualidade consiste em conservá-los na insaciabilidade do desejo.


1.2. Relacionamentos consumistas

Pode-se identificar, com Featherstone (1995), três principais grupos de teorias que se ocupam da questão da cultura do consumidor: o primeiro dos quais entende a cultura do consumidor como consequência da expansão do capitalismo, que gerou o aumento da produção por meio dos métodos tayloristas e fordistas. Nesse contexto, a criação de novos mercados serve para “educar” as pessoas, tornando-as consumidoras. Tal “educação” se dá mediante mecanismos de sedução e manipulação ideológica operados pelo marketing e a propaganda. Donde se segue uma consequência considerada negativa por alguns teóricos, qual seja, o abandono de valores e tipos de relações que eram, então, encaradas como verdadeiras e autênticas.
Ainda aqui avulta a importância de se considerar o conceito de indústria cultural, advindo da Escola de Frankfurt. Featherstone procurou estudar a transformação da cultura em mercadoria, por força da atuação da indústria cultural. Esse processo leva à formação de consumidores culturais e à redução do valores da alta cultura aos mais baixos níveis.
Com Jean Baudrillard (1995), a sociedade de consumo passa a ser compreendida do ponto de vista do valor simbólico da mercadoria. O signo é a mercadoria. A sociedade pós-moderna caracteriza-se, assim, pela saturação das imagens. Como ensina Barbosa (2008: 39):

“O presente se torna o tempo permanente e as imagens são unidas cacofonicamente, sem qualquer preocupação com uma lógica histórica que as reúna numa narrativa cronológica e espacialmente coerente”.


O segundo grupo, que encerra os modos de consumo, refere-se ao uso de mercadorias para demarcar relações sociais. As mercadorias tornam-se sinalizadores de posição de prestígio; os seus consumidores, ao se apropriarem delas, ganham status sócio-econômico pela transferência para si mesmos das propriedades simbólicas que as caracterizam. Para Bourdieu, as práticas de consumo situam-se no cerne da criação e manutenção de relações de poder, tais como dominação e submissão.
Finalmente, no terceiro grupo, se nota o consumo de sonhos, imagens, prazeres, estilos de vida. A preocupação dos estudiosos repousa em estudar os aspectos emocionais que estão relacionados ao consumo; trata-se de investigar os desejos e os sonhos que são estimulados no imaginário da cultura do consumidor.
Segundo Barbosa (p. 44), citando Featherstone, existem forças contraditórias na sociedade contemporânea que estimulam a produção e o trabalho árduo na mesma proporção que prometem prazer e satisfação dos desejos.
Campbell (2000), a seu turno, entende ser a sociedade de consumo caracterizada fundamentalmente pela insaciabilidade de seus consumidores. Houve, no hedonismo moderno, um deslocamento da preocupação que, outrora, centrava-se nas sensações, para as emoções. O controle absoluto recai sobre a imaginação do indivíduo. O consumismo preenche o lugar ocupado pela emoção e pelo desejo no domínio da subjetividade. Sua característica basilar é um irrestrito individualismo. Cabe aos indivíduos decidi quais bens e serviços desejam obter.
Campbell e Bauman divergem no que toca às consequências do consumismo na vida dos indivíduos: o primeiro considera o consumismo responsável por resolver a famigerada e tão debatida “crise de identidades”; já o segundo entende ser o consumismo capaz de causar a degradação social.
O objetivo fundamental do consumismo é a satisfação do prazer imaginativo que a imagem do produto estimula. Assim é que o prazer não decorre do acúmulo e consumo de bens, já que o descarte é rápido e incessante, mas da busca pela novidade. Um fato ilustrativo dessa obsessão social pelo novo é a rapidez com que novos modelos de celulares, com designe e funções sofisticadas surgem no mercado: há celulares que filmam, tiram fotos e ainda permitem acesso à internet. A rapidez com que esses produtos são descartados, já que novos modelos são oferecidos aos consumidores, patenteia a dissociação do valor de uso ao valor de troca e sua imediata associação com valor simbólico. Assim, caracteriza-se um estilo de vida, o qual, a seu turno, indica uma individualidade ou estilo pessoal. Como observa Barbosa,


“A roupa, o corpo, o discurso, o lazer, a comida, a bebida, o carro, a casa, entre outros, devem ser vistos como indicadores de uma individualidade, propriedade de um sujeito específico, ao invés de uma determinação de um grupo de status”.
(p. 23)
]

As discussões sobre o consumismo levam alguns estudiosos a se perguntarem sobre as condições que produzem a necessidade de consumo cada vez maior. Assim, a questão é: as pessoas são naturalmente insaciáveis e, portanto, propensas a consumir ou o aumento do poder aquisitivo leva a uma tendência irresistível ao consumo desenfreado?
Creio em que a resposta a essa questão não escusa a observação de que o desejo, a sensação de insaciabilidade são produzidos pelo mercado. Parece-me que os indivíduos são condicionados a consumir mais e mais. Tal condicionamento se dá, especialmente, pelo poder das imagens, por meio da publicidade, do marketing e da televisão.
Há, evidentemente, uma distância intransponível, entre o imaginário e a realidade, de sorte que, não experimentando na vida real os prazeres que povoam seu imaginário, o desencanto nos indivíduos é inevitável; do que se segue que, a fim de superá-lo, eles se põem a consumir mais e mais produtos. O consumo encontra sua força motriz justamente na manutenção do estado de insaciabilidade dos sujeitos, com a promessa de que ela poderá ser satisfeita com a aquisição de um novo produto.
A próxima seção é destinada à reflexão sobre o Amor, a qual será conduzida pelo que nos legaram filósofos como Platão, Spinoza, Descartes e Kant, e outros estudiosos contemporâneos.



2. O Amor na filosofia

É consabido que Eros é, na mitologia grega, uma divindade que representa o Amor. Nas diferentes versões das teogonias, Eros é considerado a força que organiza o universo e a que se atribui a responsabilidade da perenidade das espécies e da harmonia do Cosmos.
No Banquete, Platão distingue um Eros ou Amor espiritual e um Eros ou Amor sensual. Vou-me ocupar com a apresentação de algumas das concepções de Amor que se acham nos discursos dos participantes do diálogo platônico. A exposição será grosseira; não obstante, logrará sucesso se o leitor for capaz de perceber donde se originam as ideias sobre o amor que compõem o tecido ideológico da cultura ocidental.
Fedro foi o primeiro dentre os participantes a tomar a palavra. A certa altura, assim se expressou:

“Porque, de fato, o que deve orientar os homens que desejam viver uma vida honesta, isto não o dão nem as linhagens, nem as honrarias, nem a riqueza. Só o amor consegue dar isso. Que pretendo sugerir com isto? Que coisa deve orientar os homens? Julgo que às ações vis e desonestas se liga a desonra e às boas ações está ligado o amor”.
                     (p.103)

Nesse passo, está clara a associação entre ‘Amor’ e ‘Bem’: o amor é responsável pela boa conduta dos homens, por seus valores mais elevados.
Posteriormente, citando o caso de Alceste – figura lendária que morreu para a restituição da saúde de seu marido Admeto, que estava condenado à morte – Fedro concebe o amor como a maior de todas as virtudes. Trata-se do Amor sacrificial, que motiva o ser que ama a dar sua própria vida pela sobrevivência do ser amado.
A ascensão do Amor ao nível do sentimento mais nobre encontra seu ápice na seguinte passagem, na qual observamos  ser o Amor responsável por elevar o ser que o nutre à condição de ser divino:


“(...) o que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto amado, pois possui em si divindade; é possuído por um deus”.
(p. 106)


Pausânias, por sua vez, advertindo a Fedro, chama a atenção de todos para o fato de que as ações não são boas ou más em si; estas qualidades são atribuídas a elas, tendo em conta o modo como essas ações são vivenciadas. Há, em seu discurso, dois aspectos importantes: um deles é a associação do Belo ao Bem e do Feio ao mal. Assim, a ação bela é ação correta e boa; a ação feia é ação incorreta. O outro aspecto diz respeito a existência de duas espécies de Afrodite e, consequentemente, de duas espécies de Eros. Há uma Afrodite, denominada de Urânia, filha de Urânio – esta é mais velha; há outra, mais nova, chamada Paudemiana, filha de Zeus e Dione (Hera). Assim nem todo Eros é belo e louvável, mas o será se nos conduzir a um amor belo e louvável.
A Afrodite mais moça, considerada popular ou vulgar, define-se como o amor que toma por objeto o corpo. Este Eros é suscetível às inconstâncias do acaso. O Eros da Afrodite celeste, que participa unicamente do masculino, ama a inteligência e a força.1
 De uma perspectiva universalizante, Erixímaco, que era médico, conquanto admitisse a necessidade de desfrutar dos dois Eros, recomendou comedimento no desfrute do Eros vulgar, e acrescentou:



“(...) A própria organização das estações do ano se encontra sob a influência desses dois Eros. Se impera o Eros da ordem, a que me referi, e sob sua égide se concerta uma harmonia e boa combinação do quente e do frio, do seco e do molhado, os elementos compõem um bom ano e proporcionam saúde tanto aos homens como a todos os seres vivos e às próprias plantas. Mas, se, pelo contrário, é o Eros anárquico quem exerce domínio sobre as estações, então há muito estrago e muito prejuízo, pois de sua ação resultam geralmente pestes e muitas outras doenças, tanto para as plantas como para os animais”.
(p.117)


O mito do andrógino, que se topa também no Banquete e que se refere ao amor como busca por uma unidade, então, desfeita, ilustra a concepção do amor como busca por experienciar a unidade – unidade que não se realiza no sexo, mas o transcende; trata-se de uma unidade que, aos verdadeiros românticos como eu, é experienciada no calor dos espíritos, no perfume dos olhos, janelas da alma, e nas feições cuja beleza só pode ser percebida pelos sensores aguçados da sensibilidade transcendente.
Custa-me dissimular prazer ao compor estas linhas, pois o que meu espírito experimenta é um repugnante amargo; afinal, tomar o amor para objeto de interesse da razão é uma prática que tenho por inconveniente; no entanto, creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas fracassadas. As ideias de amor, que dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio lírico romântico.
Em Espinosa, “o amor é a alegria acompanhada da ideia imaginativa de uma causa exterior” (p. 41). Não é pela busca da unidade, ou melhor, da união com o ser do outro, que devemos entender o amor. Para o filósofo, pensar na existência do ser amado já é suficiente para que o amante experiencie contentamento.
O amor romântico, ao contrário do que entende o senso comum, é o amor da impossibilidade de preencher sua carência. Trata-se de um amor fugaz e ilusório. A impossibilidade de sua realização leva o amante à tristeza, ao desespero, à obsessão pela morte – fuga última a que recorre para findar as dores de sua alma. Sua característica basilar é, como cantou o poeta, o exagero: o amor romântico é o amor do exagero, da desmedida.
A personagem Werther, do romance de Goethe, declara: “Mais de uma vez me embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe da demência, e não me arrependi de nenhuma das coisas que fiz”. Esse fragmento dá-nos uma ideia clara da intensidade do amor romântico e de sua capacidade de contrariar a moral e a sensatez da razão. 



1. Há um claro desprezo votado à mulher na época clássica grega: a filha de um deus e de uma deusa era considerada inferior a outra que tivesse nascido apenas de um deus.