segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Se deus queria que as pessoas acreditassem nele, por que então ele inventou a lógica?" ( David Feherty)


  

             Lewis e a pedagogia divina do sofrimento


“O ateísmo não chegará muito longe simplesmente atacando crenças religiosas. Em vez disso, temos, antes de tudo, de defender a razão, e então criticar a religião dentro desse contexto. Se você compreender que a maior parte das pessoas adota a religião por razões psicológicas em vez de intelectuais, compreenderá por que penso que ataques diretos, frontais à religião muito raramente persuadem alguém ao ateísmo. Se – como ateus têm indicado por muitos anos – a religião é uma muleta emocional e psicológica, então não se consegue que uma pessoa fique em pé simplesmente chutando a muleta – isso fará a pessoa agarrá-la ainda mais. No lugar disso, precisamos primeiramente convencer a pessoa de que a muleta é desnecessária, mesmo prejudicial. E, então, será possível convencê-la de que é capaz de viver muito melhor sem a muleta. Assim, não é necessário chutá-la – neste ponto, a própria pessoa a jogará fora...”


Diante de mim, refletido, na tela de meu computador, um artigo científico cujo autor pretende relatar o caso de uma criança portadora da síndrome de Currarino. Consiste a síndrome numa doença rara causada por uma mutação no gene HLXB9, que combina a agenesia parcial do sacro (ausência parcial do osso localizado na parte posterior da bacia), tumoração pré-sacral e malformação anorretal ou atresia anal. 
Minha infância transcorreu bem. Até onde posso me lembrar, dos meus oito anos até então, não vivi uma vida de privações. Minha infância e adolescência foram experienciadas com brincadeiras, namoricos e muitos amigos. Aos meus pais e familiares (avôs paternos e madrinha, especialmente) devo os cuidados que me foram dispensados e o amor com que me acolheram. Contam eles que eu fora uma criança tranquila e sem revoltas. Fui criado na tradição católica e acreditei em Deus durante grande parte de minha vida (até um pouco mais de 27 anos). Em breve, completarei 31 anos. Tornei-me ateu com 27 anos, não sem levar, realmente, a sério as objeções que alimentava contra os preceitos da Igreja Católica. Eu era um cristão razoavelmente lúcido, muito embora conservasse algumas crenças a mim ensinadas por força das experiências de doutrinação em que me envolvi (ou nas quais fui envolvido), a saber, no catecismo, ao final do qual obtive a comunhão, e na crisma, sacramento  que visa a confirmar a fé cristã. No entanto, em nenhum dos dois casos, minha resolução foi motivada por convicção de fé. A comunhão foi uma iniciativa de meus pais, que, à época, me convenceram a fazê-la dizendo que meus primos também a fariam. E nós, juntos, realmente, frequentamos as salas de ensino doutrinário, a despeito de eu e meus primos nos entretermos com uma brincadeira não muito apropriada à circunstância, que consistia em dobrar uma folha de caderno, desenhar sobre a superfície de cima frutas, dispostas uma ao lado da outra, e na superfície inferior, desenhar genitálias feminina e masculina, bunda e seios, dispondo os desenhos de modo que cada um corresponda a uma fruta. Evidentemente, o participante não poderia saber qual das partes do corpo humano a fruta escondia. Então, um de nós teria de escolher a fruta e verificar que parte do corpo ela escondia. Quem fosse surpreendido pela genitália masculina era alvo de gozação. Éramos muito dispersos, de sorte que a supervisora - uma paroquiana responsável pela disciplina dos noviços da fé cristã - chegou a se queixar com os nossos pais.
Dos encontros da crisma, no entanto, participei quando já adulto. Contava 25 anos. Não fui, contudo, motivado pela fé, mas com a intenção de fazer amigos e superar uma fase aterradora de depressão, que se arrastava havia uns dois anos. 
Durante o período em que cursava o mestrado, tomei contato com livros cujos autores sustentavam posições ateístas. Um dos primeiros livros que li foi escrito pelo filósofo Michel Onfray. Seu livro intitula-se de Tratado de ateologia. A essa altura, eu já gostava de ler livros de filosofia. A filosofia abriu-me o caminho para eu acolher as alegações ateístas. Cuidei-as muito convincentes e resolvi me aprofundar nos estudos sobre religião e teologia. Comecei a aprender mais sobre a Bíblia (refiro-me à História de sua fabricação). Debrucei-me sobre os trabalhos de estudiosos dos cristianismos primitivos e da Bíblia – autores, muitos dos quais ainda cristãos, que se interessam por estudar a História do cristianismo e da Bíblia de um ponto de vista crítico, e não devocional. Os estudos que empreendi - e venho empreendendo – forneceram-me ferramentas argumentativas poderosas que contribuíram para consubstanciar meu ateísmo. Percebi, à medida que avançava nos estudos, que me aproximava da verdade e que a “verdade” alegada pelo cristianismo (e por qualquer uma das duas outras grandes religiões monoteístas) era uma ilusão, uma mentira. 
          Devo lembrar que, àquela altura, eu ainda era um crente em Deus e conservei minha crença até o momento em que me permiti ler um livro em que um filósofo, declaradamente, ateu, lançava uma saraivada de críticas ao cristianismo. O nome do filósofo é Michel Onfray e o de seu livro é Tratado de ateologia. A essa altura, eu já gostava de ler livros de filosofia. A filosofia abriu-me o caminho para eu acolher as alegações ateístas. Cuidei-as muito convincentes e resolvi me aprofundar nos estudos sobre religião e teologia. Comecei a aprender mais sobre a Bíblia (refiro-me à História de sua fabricação). Debrucei-me sobre os trabalhos de estudiosos dos cristianismos primitivos e da Bíblia – autores, muitos dos quais ainda cristãos, que se interessam por estudar a História do cristianismo e da Bíblia de um ponto de vista crítico, e não devocional. Os estudos que empreendi - e venho empreendendo – forneceram-me ferramentas argumentativas poderosas que contribuíram para consubstanciar meu ateísmo. Percebi, à medida que avançava nos estudos, que me aproximava da verdade e que a “verdade” alegada pelo cristianismo (e por qualquer uma das duas outras grandes religiões monoteístas) era uma ilusão, uma mentira.
O tema deste texto é o problema do sofrimento e do mal no mundo, compreendido no interior de uma problemática que encerra a possibilidade da existência de um Deus tal como o representado pelas três grandes religiões monoteístas (o judaísmo, o cristianismo e o islamismo). Quando me refiro a Deus, no entanto, tenha em conta o leitor que me refiro ao Deus judaico-cristão (que não difere, ontologicamente, do Deus de Maomé); mas  vou optar por me concentrar na concepção desse Deus plasmado no imaginário da tradição judaico-cristã (que me é familiar), cujos textos fundadores são o Antigo e Novo Testamento. Usei (e poderei usar novamente) a palavra “imaginário” para me referir à fonte donde se origina a ideia de um Deus pessoal, transcendente, dotado de três qualidades principais, a saber, a onipotência, a onisciência e a perfeição moral (bondade perfeita), sem qualquer insinuação à credulidade de quem creia em tal Deus. Se me refiro ao imaginário, aqui, é porque pretendo sinalizar para o fato de que não há evidências de que Deus exista. Deus é desprovido de realidade objetiva; não se presta a uma experimentação empírica, muito embora possa ser submetido ao crivo da razão. A essa empresa se lançou David Hume, muito embora seu esforço argumentativo visasse à conclusão segundo a qual os dogmas da religião carecem de fundamento racional.  Hume, como cético, propunha, em face da impossibilidade de estabelecer atributos positivos para Deus, a suspensão do juízo.
Quando filósofos, como ele, levantam a questão de Deus, tomam-no objeto apenas para o pensamento. Entendo, por imaginário, um conjunto de representações, crenças, desejos e sentimentos com o qual uma comunidade de pessoas entende a realidade e a si mesmas (Marcondes, 2008, p.143).
Saliento, também, que, ao usar a palavra Deus acompanhada de seu qualificativo judaico-cristão, quero com isso mostrar que se trata de uma forma de Deus específica, que tem, pois, uma História, que remonta a, mais ou menos, 2000 a.C (tempo em que viveram os patriarcas judaicos Abraão e Moisés); uma História cujas raízes se prendem ao antigo Oriente Médio. Resgatar dados sobre a historicidade de Deus nos ensina sobre duas coisas importantes:

1a) A universalidade do Deus judaico-cristão é um fato histórico, e não transcendente à história. O Deus dos hebreus era o Deus das doze tribos de Israel. Em virtude do contato com outras culturas e com seus deuses, os hebreus fortaleceram o sentimento de universalidade de Deus. Afirmar a universalidade de Deus significava afirmar o sentimento nacionalista do povo hebraico. É digno de nota que os profetas hebreus tenham se preocupado com o fato de certas pessoas passarem a adorar outros deuses, como o deus Baal. Isso enfureceu um profeta como Elias. Tendo sido conquistados pelos babilônicos, os hebreus que adoravam Baal decidiram restituir sua crença no Deus judaico. Àquela época, os eventos históricos eram interpretados à luz de uma teologia que entendia que Deus intervinha na história. Um profeta como Elias culpava os hebreus por abandonar a fé em seu Deus, do que resultou a conquista de suas terras pelos babilônicos.

2a Não há razão convincente para negar que divindades de outros povos como, as dos hindus, não possam também ser consideradas postulantes ao locus de divindades reais. Assim, quando falo de Deus, estou me referindo a esse Deus judaico-cristão, que, por razões sócio-históricas e ideológicas, se universalizou, alcançando o posto de “único Deus que existe”. Todo cristão e todo judeu será, então, um ateu em relação às outras divindades cultuadas por outras comunidades humanas.

É claro que se se admitisse que todas as divindades ainda cultuadas nas diversas e plurais culturas são reais, restaria o problema de conciliar estas divindades num sistema metafísico coerente. Questões como “quem seria a autoridade superior? O Deus dos cristãos?” não poderiam ser deixadas de lado. Ateus militantes, na verdade, não sugerem que isso seja possível. Na verdade, ou apenas um dos sem-número de deuses existe, ou nenhum deles existe.

Passo, então, a me ocupar da discussão a que me proponho neste texto. Já referi o tema, mas preciso pormenorizá-lo. Estou interessado em examinar criticamente a tentativa empreendida pelo filósofo cristão C.S. Lewis, em seu livro O problema do Sofrimento, de dar conta da questão: como é possível existir um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom, apesar da evidente presença do sofrimento e do mal no mundo. Outra obra na qual repousarei minha argumentação é o trabalho de David Hume, intitulado de Diálogos sobre a religião natural, cuja publicação se deu três anos após a morte do filósofo. Seus amigos receavam que a publicação ainda em vida pudesse acarretar-lhe problemas com a Igreja e atrair a revolta de contemporâneos religiosos.
No texto de Hume, Filo é uma das personagens do diálogo. Ela se alinha com a perspectiva ateísta. Para Filo, da observação do fato inegável do sofrimento no mundo é razoável inferir a inexistência de um Criador moralmente perfeito. Gostaria de que o leitor atentasse para este passo, em que Filo nos apresenta a problemática da teodiceia (a tentativa de justificar a existência de Deus, em que pese o reconhecimento do sofrimento e do mal no mundo):


“Não é o mundo, considerado em geral e do modo pelo qual aparece nesta vida, diferente, pois, daquilo que um homem ou um ser igualmente limitado deveria esperar, previamente, de uma Divindade muito poderosa, sábia e benevolente? Somente um estranho preconceito levaria a afirmar o contrário. E disso concluo que, por mais consistente que o mundo possa ser com a ideia dessa Divindade – dadas certas suposições e conjunturas -, ele jamais será capaz de nos proporcionar uma inferência concernente a sua existência. A consistência não é negada, de modo algum, somente a inferência”.
(p. 69)

Filo, inicialmente cauteloso, vai, mais adiante, sugerir que um Deus perfeitamente bom deveria desejar nossa felicidade. Até aqui, ele está ocupado em responder a sugestão de Cleantes (seu interlocutor) de que o mundo fora criado por um Deus bom e que podemos inferir isso com base na observação do próprio mundo. Não convencido disso, dada a irrecusável evidência do sofrimento no mundo, Filo apresenta quatro hipóteses pelas quais podemos explicar o que causou o universo:

1a) haveria uma causa primeira boa;
2a) haveria uma causa má;
3a) haveria duas causas: uma boa e uma má;
4a) haveria uma causa indiferente.

Deixarei ao leitor o trabalho de meditação. Limito-me a dizer que Filo conclui ser a última hipótese mais plausível. Mas é bom lembrar que a posição de Filo é a de negar a existência de Deus. Em Deus e o Alcance da Razão (2010: 27), Wielenberg, esclarece-nos acerca da posição de Filo: “(...) não deveríamos [dirá Filo] dar crédito aos resultados do raciocínio humano quando este trata da religião – mas em relação ao âmbito em que a razão é confiável, esta nos diz que o Deus do monoteísmo não existe”. Ou seja, para Filo, quando raciocinamos com nos postulados religiosos, a razão perde confiabilidade e assumimos uma série de ideias que entram em conflito entre si. Vejamos outro excerto em que mais clara ainda fica a posição de Filo:

“Por que existiria, afinal, qualquer miséria no mundo? Não por acaso, certamente. De alguma causa, então, provém. Será proveniente da intenção da Divindade? Mas ela é perfeitamente benevolente. Será contrária a sua intenção? Mas ela é onipotente. Nada pode abalar a solidez deste raciocínio, tão conciso, tão claro, tão decisivo, a menos que se declare que esses assuntos excedem a toda capacidade humana, e que nossos padrões habituais de verdade e falsidade não são a eles aplicáveis; um tópico sobe o qual venho continuamente insistindo”.

(p. 66)

Nesse trecho, parece que Filo assume uma posição mais moderada, à semelhança de um agnóstico. Alguns cristãos, e as autoridades religiosas endossam esse ensinamento, ao qual recorrem sempre que não conseguem explicar algum problema ameaçador de sua fé, alegam que ao homem não é possível compreender os propósitos de Deus, muito embora todos concordem em que tais propósitos são orientados em benefício do crente. “Deus escreve certo por linhas tortas” – esse ditado, aliás, é uma versão popular sintética do entendimento de Lewis sobre o porquê do sofrimento no mundo. Não vou me apressar, no entanto.

O dilema com que cristãos como Lewis têm de lidar tem a seguinte estrutura lógica. Lembro que sua versão mais antiga remonta a Epicuro (341-270 a.C). Cito-o a seguir:

1. Se Deus existe, então ele é onipotente, onisciente e moralmente perfeito;
2. Se Deus é moralmente perfeito, então ele deseja que não exista sofrimento no mundo;
3. Se Deus é onipotente e onisciente, então ele pode fazer com que não exista sofrimento no mundo;
4. Logo, se Deus é onipotente, onisciente e moralmente perfeito, então não existe sofrimento no mundo;
5. Mas existe sofrimento no mundo.
6. Portanto, Deus não existe.

Atualmente, filósofos há que propõem distinguir entre o problema lógico do mal e o problema evidencial ou probalístico do mal. O problema lógico nos leva a aceitar a incompatibilidade entre a existência do Deus monoteísta tradicional e a existência do mal. Em outras palavras, quando consideramos as representações discursivas sobre o Deus dos monoteísmos e as confrontamos com o fato irrecusável do sofrimento ou do mal no mundo, somos levados a admitir que um Deus tal é impossível. O problema evidencial implica a assunção de que os males deste mundo constituem evidência contrária à existência de Deus. Num ou noutro caso, a existência de Deus é, ao menos, assaz improvável.
Antes de descer a considerações do admirável esforço empreendido por Lewis a fim de provar a existência de Deus e explicar por que um Deus tal permitiria o sofrimento, convém dizer algumas palavras mais sobre a posição da personagem Filo.
Em face de seu interlocutor Cleantes, Filo, posicionando-se na perspectiva de um ateu, apresenta uma prova dedutiva da inexistência de Deus com base na evidência do sofrimento. Entanto, ele se recusa a apresentar a prova como certa, já que se mantém cético quanto à possibilidade de a razão humana alcançar uma compreensão da natureza de Deus. Destarte, Filo coloca Cleantes num dilema: em face do problema do sofrimento e da determinação da natureza de Deus, ou seu interlocutor abandona sua crença no desígnio divino, ou reconhece que esse Deus perfeito não existe (o que o levaria a rejeitar totalmente seu teísmo).
Preciso fazer uma digressão. Usei a palavra “prova”, a qual eu fiz acompanhar-se da palavra “dedutiva”. Espero fique claro que uso a palavra “prova” no sentido de “prova racional”, e não prova empírica. A palavra “prova” denota todo recurso empregado para demonstrar que uma coisa é o caso. Uma prova pode ser dada racionalmente, caso em que se procura convencer, pela demonstração, da verdade ou aceitabilidade de uma proposição. Do ponto de vista experimental (empírico), prova-se que uma hipótese é verdadeira quando a confrontamos com os fatos. Se eu quisesse provar a uma pessoa que a água ferve quando chega a 100o, bastaria que eu fervesse a água medindo sua temperatura.
Por que essas observações sobre o conceito de prova são importantes? Porque é comum ouvir que não se pode provar que Deus não existe. Em primeiro lugar, quero dizer que, do ponto de vista lógico, nos esforçamos por provar que algo é, isto é, buscamos provar a existência de alguma coisa. Por isso, filósofos há que sugerem que o ônus da prova recai sobre quem acredita em que Deus existe. É sobre quem afirma “x é verdadeiro” que recai o dever de prová-lo. Para ser mais preciso, a responsabilidade pela prova recai sobre quem afirma a veracidade de uma proposição. Mas não é absurdo pretender provar justamente a inexistência de Deus pelo recurso a uma argumentação estritamente racional. O que ocorre é que tanto teístas quanto ateístas só podem lançar-se ao empreendimento da prova pelo viés da razão, e não pelo viés empírico, baseando-se no método experimental. Na ausência de um objeto observacional, que há para submeter a algum teste experimental?  A ciência não pode provar a existência de Deus, dizem. Evidente. Mas não por uma limitação da ciência, nesse caso, mas pela própria natureza imaterial do próprio objeto (e acrescentaria natureza conceitual autocontraditória, já que se acredita ser Deus incognoscível, o que suscita a questão:  como pretender demonstrar aquilo que é inacessível ao entendimento ?). Deus não se coloca como objeto para a ciência. Todo método científico inclui, necessariamente, a etapa da observação. Deus não se presta à observação. Isso é óbvio, eu sei, mas explicitá-lo é necessário para que eu consiga convencer o leitor de que em matéria de Deus só podemos oferecer provas, quer favoráveis, quer contrárias à existência de Deus, se aquiescermos a que só é possível fazê-lo pelo viés da argumentação racional.
Eu estou convencido de que a balança das provas pesa mais em favor do ateísmo do que do teísmo. Vejamos como C.S. Lewis aborda a questão da teodiceia.

1. Lewis e a pedagogia divina do sofrimento

Em seu O problema do mal no Antigo Testamento (2012), à página 29, Luiz Sayão, teólogo e hebraísta refere, entre os diversos tipos de teodiceia, o a teodiceia pedagógica. É sobre essa teodiceia que Lewis calcará seus argumentos. Antes de evocá-la, convém lermos a passagem em que Sayão nos ensina sobre o conceito de teodiceia:

“(....) quando se procura justificar a Deus, tentando salvaguardá-lo com respeito a uma responsabilidade direta com respeito ao mal, constrói-se uma teodiceia. A tensão entre a realidade de Deus e a realidade do mal tem se mantido na história do pensamento ocidental. Naturalmente, esse problema é discutido e compartilhado pelas principais religiões monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo”.


Entende-se por teodiceia, portanto, o esforço despendido no trabalho racional que visa a provar a existência de Deus buscando compatibilizá-la com a evidência do sofrimento no mundo.
Compreendamos a teodiceia pedagógica, para, posteriormente, penetrarmos a argumentação que desenvolve Lewis nesse sentido. De acordo com a perspectiva que encara o sofrimento como um método pedagógico, defende-se que Deus permite o sofrimento e faz uso dele com vistas a provocar um bem maior, qual seja, o desenvolvimento da compaixão e do caráter. É parte da suposição de Lewis que as pessoas que se desviam do caminho de Deus precisam desenvolver um senso de moral e sentimentos de compaixão afinados com a vontade de Deus. Implícita aí está também a ideia de que o fundamento da moral está em Deus.
Será necessário, em tempo, distinguir entre o mal moral (produzido pelos seres humanos) e o mal natural (cujas causas se ligam à natureza). É mister frisar que a natureza não é má; não podemos atribuir a ela qualquer responsabilidade moral. Bem e mal são valores excluídos de seu domínio. Quando se fala de “mal natural”, quer-se referir aos males que não são provocados pelos seres humanos uns aos outros, entre eles estão os causados por terremoto, vulcões, doenças, etc.
Sabemos que grande parte do sofrimento deste mundo é causado pelos fenômenos naturais. A pergunta que não cala, quando reconhecemos esse fato, é: Deus não deveria ter criado um mundo cuja ordem natural não pudesse acarretar sofrimento e ameaça à vida dos seres conscientes deste mundo? Incluo aqui os animais de consciência mais desenvolvida capazes de sentir dor, ou em outras palavras, dotados de um sistema nervoso. Quase nunca se leva em conta, no discurso cristão, o sofrimento dos animais. Pense-se na cadeia alimentar. Vale meditar sobre as palavras lúcidas do filósofo Xavier R. Ventós, que observa sobre a Criação divina, em seu Deus entre outros inconvenientes (2011):

Essa religião [o cristianismo], pensada para explicar o mal ou justificar a dor humana, não faz o menor esforço para dar alguma justificativa para a dor animal. Nada que justifique a necessidade dessa aterradora carnificina que é a Criação (aliás, “cadeia alimentar”), segundo a qual toda espécie foi criada para viver da destruição e do sofrimento das que estão abaixo dela. Uma divina carnificina, da qual todos os seres animados serão vítimas enquanto não chegarem os tempos profetizados por Isaías, quando coexistirão pacificamente o lobo e o cordeiro, o bezerro e o leão, a criança e a serpente”.

(p. 31)
(ênfase no original)


Lewis, evidentemente, não se preocupa com o sofrimento dos animais. O exemplo referido pelo filósofo espanhol é ilustrativo do fato de que quando se acredita cegamente ou irrefletidamente na existência do Deus judaico-cristão quase nunca se atenta para a forma como o mundo é. A observação da cadeia alimentar, do modo como os animais se relacionam com vistas a garantir a sobrevivência lança dúvida sobre a crença numa criação com propósito. A mesma dúvida pode ser extensiva à observação de que o universo é composto por objetos (asteróides) potencialmente ameaçadores à vida na Terra. Valeria se perguntar qual é o propósito benéfico subjacente à existência dos asteróides. Quem negaria serem eles potencialmente capazes de provocar um sofrimento aterrador, caso atinjam a Terra?
Sayão apresenta três objeções à teodiceia pedagógica. As três podem ser direcionadas a Lewis, embora as duas últimas pareçam pesar mais contra ele. Contudo, precisamos, primeiramente, compreender os argumentos aduzidos por ele. Vejamos quais são as três objeções, então:

1a objeção Há muitas experiências boas que dispensam um sofrimento prévio para que sejam desfrutadas. Por exemplo, a saúde;

2a objeção Não está claro que o sofrimento produza alguma melhora de caráter ou algum aprendizado. Ao contrário, muitas vezes o que se dá é justamente a revolta ou o ódio daquele que é vitimado;

3a objeção Muitas vezes, não há aprendizado e o custo do sofrimento é alto. Por exemplo, o tsunami de 2004 provocou um sofrimento imensurável nos familiares das vítimas. Que tipo de aprendizado ou benefício se pode colher disso?

Sayão observa que, numa guerra, em que milhares de pessoas morrem, não se pode sugerir haver algum aprendizado e questiona: “que tipo de pedagogia é essa que mata seus próprios alunos?” (p. 29).

Consideremos, doravante, o que C. S. Lewis tem a nos dizer sobre como conciliar a crença na existência do Deus judaico-cristão com a evidência do sofrimento e do mal no mundo. Começo, pois, observando que Lewis, conquanto tenha sido educado como cristão, não tardou em abandonar sua fé, em seu internato na Inglaterra. Ele mesmo conta, numa obra biográfica, que desenvolveu a convicção de que “a religião, em geral, apesar de completamente falsa, era um crescimento natural, um tipo de tolice endêmica na qual a humanidade tende a errar” (Lewis, 1955. apud. Wielenberg, 2010 pp. 30-31). O retorno ao cristianismo se deu por um percurso filosófico que incluiu uma série de mudanças em sua posição filosófica: de uma concepção materialista do mundo para uma concepção idealista; posteriormente, de uma concepção idealista para uma concepção panteísta; desta para o teísmo; e, finalmente, do teísmo para o cristianismo.
A revelação que fizera, em carta ao amigo Arthur Greeves, já nesta nova fase como cristão recobrado ao rebanho, sinaliza de modo surpreendentemente curioso quanto seu pensamento pode estar disposto a torcer a lógica e abusar da razão: “A história de Cristo é, simplesmente, um mito verdadeiro, um mito que opera em nós do mesmo modo que outros, mas com esta enorme diferença: ele realmente ocorreu”. (Hooper (ed.), 1931. apud. Wielenberg, 2010, p. 31).
Lewis exporá sua perspectiva da teodiceia, com claro apelo pedagógico, apoiando-a em três conceitos-chave, segundo ele: a onipotência de Deus, a bondade de Deus e a felicidade do homem.
O filósofo inglês rejeita a concepção popular de onipotência divina, argumentando que Deus não pode fazer tudo, mas apenas as coisas intrinsecamente possíveis. Nesse sentido, concluirá ele, Deus não pode criar um quadrado redondo. Seu argumento remonta a Tomás de Aquino, que escrevera em sua Suma Teológica “nada que implique uma contradição cai sob o domínio da onipotência de Deus” (apud. Wielenberg, 2010: 34).
O reconhecimento de que o conceito de onipotência exclui a criação de coisas logicamente impossíveis, como um quadrado redondo ou um triângulo de quatro lados, é um sinal claro de como atribuímos a Deus uma mente que precisa operar com base em nossos padrões de raciocínio. Isso nos revela mais um aspecto de sua natureza, reconhecidamente, antropomórfica.  Como nós, seres humanos, não podemos conceber um quadrado redondo e como nunca tivemos a experiência sensorial de um quadrado redondo, concluímos que a criação de um quadrado redondo por Deus é intrinsecamente impossível. E é impossível pela mesma razão que o é para nós. Parece que Deus, enquanto objeto de pensamento, não pode abusar demais da lógica. Deus pode tudo, exceto implodir a lógica humana. Deus precisa ter algum grau de racionalidade para ser pensável. Novamente, se compreendemos que é Deus que foi “criado” à imagem e à semelhança do homem, ficará claro por que acreditamos que Deus não seja capaz de criar um “quadrado redondo”.
Malgrado a impossibilidade de a onipotência de Deus não ser extensiva à criação de quadrados redondo, não vejo a pertinência desse argumento, quando consideramos a problemática do conceito de onipotência vinculado ao problema do sofrimento no mundo. Creio em que, quando pensam na onipotência de Deus, não ocorre aos cristãos a impossibilidade de Deus criar coisas como “quadrados redondo”.  No entanto, do ponto de vista lógico, é válido pretender que o conceito de onipotência é absurdo. Quando refletimos sobre esse atributo de Deus, somos forçados a considerar a questão: o que um ser onipotente poderia ou não fazer? O próprio conceito de onipotência implica a possibilidade de ele fazer qualquer coisa sem qualquer interdito, de acordo com a sua livre vontade. A rigor, só Deus tem livre-arbítrio. Se Deus pode realizar qualquer coisa, então ele pode impor limites à sua capacidade de agir. Logo, ele não seria capaz de executar toda e qualquer ação. Assim, poderia Deus criar uma pedra cujo peso excedesse em muito a sua capacidade para levantá-la? Se a resposta for “sim”, então há uma coisa que Deus não poderia fazer: levantar a pedra. Se a resposta for não, então também há uma coisa que não pode fazer: criar esta pedra. Em suma, o paradoxo da onipotência tem a seguinte estrutura:
1. Ou Deus consegue ou não consegue criar a pedra que não é possível erguer;
2. Se Deus consegue criar a pedra, não é onipotente (porque não conseguirá erguê-la);
3. Se Deus não consegue criar a pedra, não é onipotente (porque não consegue criá-la);
4. Logo, Deus não é onipotente.

O paradoxo ilustra o absurdo do conceito de onipotência. Mas ele também se revela ilusório quando confrontamos, por exemplo, o que o autor de Mateus 17:20, nos diz com o que sabemos sobre como é a realidade:

“Mateus 17:20 “...Em verdade vos digo: se tiverdes fé, como um grão de mostarda, direis a esta montanha: Transporta-te daqui para lá, e ela irá; e nada vos será impossível”.

Essas são as supostas palavras de Jesus que falava como uma autoridade divina. Se confiarmos no que disse Jesus, podemos esperar que o Deus onipotente de cujos grandes feitos nos fala será capaz de regenerar a perna de um amputado. Se o rabo da lagartixa se regenera quando cortado (e por alguma razão Deus decidiu negar a nós, seres humanos, essa capacidade), não poderia ele fazer crescer a perna desse amputado? Se a regeneração é uma possibilidade prevista na natureza, de que certas espécies de animais se beneficiam, por que não seria uma possibilidade prevista no poder de Deus? A regeneração da perna de um amputado não só seria um milagre (já que uma manifestação de um poder que viola as leis naturais), mas, sem dúvida, uma prova da onipotência de Deus. No entanto, por mais que oremos, a perna desse amputado não se restituirá diante de nossos olhos e por mais que oremos, o ente querido que faleceu não retornará a vida. Voltemos à posição de Lewis.
Resumidamente, para o filósofo, o conceito de onipotência recobre a capacidade para produzir situações intrinsecamente possíveis. Para ele, entre as situações intrinsecamente impossíveis de serem produzidas está uma sociedade cujos indivíduos fossem livres e incapazes de infligir sofrimento uns aos outros. Há alguns pressupostos que precisam ser externados aqui:

1pp. Os homens são dotados de livre-arbítrio;
2pp. O livre-arbítrio envolve a capacidade de decidir entre o bem e o mal.

Não tenho a intenção de fazer incursão no terreno obscuro do conceito de livre-arbítrio, em torno do qual se erigiu uma polêmica que remonta a Santo Agostinho. Coube a ele desenvolver o conceito de livre-arbítrio em teologia, introduzindo-o na problemática da teodiceia, com vistas a desculpar a Deus pela existência do mal moral no mundo. Grosso modo, Agostinho preconizava que o mal é destituído de realidade ontológica, ou seja, o mal não é um ser ou uma coisa; para ele, o mal é simplesmente a ausência do bem. O mal é carecido de substância. Para Agostinho, o problema do mal se vincula ao uso do livre-arbítrio pelo homem. O problema do mal é um problema que envolve a atualização da vontade livre do homem no mundo. O filósofo de Hipona responsabilizou os homens pelo mal no mundo. A fonte do mal, segundo Agostinho, se acha no homem.
Será prudente o leitor que mantiver reservas sobre ser verdadeira a proposição segundo a qual “o homem é dotado de livre-arbítrio”.  Minha posição é que o livre-arbítrio é um conceito enganoso. E, em consonância com Nietzsche, penso que ele é ilusório. Mas, vamos apreciar a definição de livre-arbítrio, oferecida por Marcodes & Japiassú (2008). No seu Dicionário Básico de Filosofia, os autores, no verbete livre-arbítrio, observam:

livre-arbítrio Faculdade que tem o indivíduo de determinar, com base em sua consciência apenas, a sua própria conduta; liberdade de escolha alternativa do indivíduo; liberdade de autodeterminação que consiste numa decisão, independentemente de qualquer constrangimento externo mas de acordo com os motivos e intenções do próprio indivíduo”.
(p. 168)

Se prestarmos atenção na definição de livre-arbítrio acima referida, percebemos que ela não dá conta das verdadeiras formas como nós, seres humanos, atuamos no mundo. Os próprios autores, no verbete liberdade, observam que é muito discutível que sejamos dotados de liberdade absoluta, em virtude dos condicionamentos psicológicos, biológicos e sociais. Se considerarmos, por exemplo, que vivemos em sociedades complexas, cujas relações são organizadas segundo um conjunto de normas, valores, convenções; em sociedades que incluem aparelhos de repressão (polícia, exército...); em sociedades em que formamos um senso de moralidade; em sociedades em que a hierarquização de grupos e indivíduos pode ser mais ou menos marcante e limitadoras de nossas possibilidades de atuação, se considerarmos, enfim, que nossa consciência é produto socio-ideológico e que, portanto, formou-se com o trabalho demorado e constante de inculcação de visões de mundo, crenças, hábitos, etc., dificilmente aceitaríamos a crença de que gozamos de liberdade absoluta ou de livre-arbítrio. Ademais, se os neurocientistas estiverem certos, o livre-arbítrio é realmente uma ilusão. Estudos recentes sugerem que o nosso cérebro toma a decisão antes de ela tornar-se consciente para nós (http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-livre-arbitrio-nao-existe-dizem-neurocientistas).
Seja como for, volto à suposição de Lewis de que é impossível a existência de uma sociedade de homens livres que fossem incapazes de infligir sofrimento uns aos outros. Para ele, escapa à alçada de Deus criar um universo assim, já que esse universo seria intrinsecamente impossível. Trata-se de uma posição bastante forte, que ignora aspectos sociológicos. Em primeiro lugar, há países no mundo em que os indivíduos vivem em democracias justas, gozando de um grau de liberdade satisfatório, e nos quais o índice de violência é baixo. Disso decorre que quanto maior for o desenvolvimento social de um país menor será a propensão de seus habitantes de violentar uns aos outros. Vejam-se os casos da Islândia, Noruega, Dinamarca e Japão.
Qual seria, me pergunto, a origem da impossibilidade de existir uma sociedade de homens livres incapazes de causar sofrimento e mesmo matar uns aos outros? A resposta me parece evidente: a natureza humana. Há um aspecto da natureza humana curioso. Todos nós reconhecemos que os seres humanos (não todos, é claro) são capazes de cometer as mais hediondas ações violentas. Os animais também podem parecer-nos, muitas vezes, bastante violentos. No entanto, somos os únicos capazes de perpetrar violência premeditada. Em virtude de nossa capacidade racional, podemos planejar como executaremos um crime. Acrescente-se a isso a possibilidade de agirmos, muitas vezes, de modo a provocar um mal quando nos deixamos dominar por nossos instintos agressivos. Em psicanálise, chamaríamos a estes de pulsões. Segundo Freud, nosso aparelho psíquico inclui uma grande carga de agressividade.
Se, de fato, estivermos interessados em compreender nossa impressionante e, por vezes, aterradora capacidade de sermos agressivamente ameaçadores uns aos outros, não me parece vantajoso ouvir os teólogos (que virão com uma resposta simples que remonta ao dogma do pecado original), mas levar em consideração o que têm a nos dizer, filósofos, psicólogos, psiquiatras, sociólogos, antropólogos, biólogos, etc.
Se nossa natureza pode nos pré-dispor a agirmos de modo moralmente inaceitável e se a nossa natureza foi criada por um Deus onipotente, é forçoso concluir:  primeiro, que Deus poderia ter-nos feito mais propensos à pacificação; segundo, que, não tendo feito,  é responsável por infligirmos sofrimento uns aos outros. Não estou defendendo um determinismo biológico, tampouco negando a responsabilidade humana. Um eminente filósofo francês ateu, Jean Paul Sartre, ensinou-nos que a liberdade implica responsabilidade. No que estou de acordo. Somos seres de autotranscendência e caracterizados por um distanciamento em relação à natureza. Mas não podemos negar a parcela de influência da natureza (estrutura genética) em nossos comportamentos.
É importante notar que a questão do livre-arbítrio, quando considerada numa perspectiva teológica, não pode ser redutível, caso pretenda reivindicar alguma contribuição relevante para a compreensão da natureza humana, à mera possibilidade de escolha livre. É preciso considerar a dimensão humana, pelo menos na perspectiva sociológica, psicológica e biológica, sob pena de seu representante incorrer em simplismos que o afasta da verdade sobre nossa condição no mundo.
Há ainda mais questões a levantar contra Lewis. Uma delas é: por que seria preferível gozar de mais liberdade à custa de mais sofrimento? Em outras palavras, o que torna uma sociedade livre tão notável a ponto de a preferirmos, mesmo que isso represente o aumento da quantidade de sofrimento? Há outras. Considere-se que nós somos dotados de paixões e elas favorecem, muitas vezes, o aparecimento da agressividade e à prática da violência (vejam-se, por exemplo, os crimes passionais). Como, então, sustentar que Deus não seja responsável pelo mal moral, se a prática do mal conta com a influência, por vezes, irreprimível das paixões agressivas? Há muitas razões, creio, quando consideramos os âmbitos socio-cultural e histórico, pelas quais as pessoas infligem sofrimento umas às outras, mas eu não entendo como podem ser redutíveis a meras escolhas arbitrárias de vontades livres.
Tenho uma péssima notícia aos otimistas levianos: enquanto houver homens vivendo neste planeta, não haverá paz mundial. Não se depreenda disso que somos seres incapazes de viver pacificamente, mas o fato de que a predominância da paz dependa de acordos, ou, em outros casos, de incursões militares, sugere que não somos naturalmente pacíficos e que a paz é uma conquista para qual se mobilizam esforços, quer diplomáticos (pelo diálogo), quer pelo uso do poder militar (pela força). Por isso, acho levianas as pessoas esperançosas de que chegará um dia em que nós, seres humanos, viveremos em paz. As guerras e conflitos, mesmo os de escalas menores, nos acompanham desde os primórdios da humanidade e continuarão conosco até que só reste um único homem sobre a face da Terra, o qual não teria com quem disputar e travar conflito. Infelizmente ou não, esse homem não sobreviveria Nesse tocante, discordo de Rousseau e acompanho Hobbes.
Antes descer a considerações sobre o próximo ponto de que se ocupa Lewis, qual seja, o da bondade divina, gostaria de chamar a atenção para a tensão lógica que existe entre os conceitos de onipotência e onisciência. Ao considerá-la, peço que o leitor tenha em conta a problemática teológica do livre-arbítrio.
Sabemos que uma pessoa como Hitler existiu. Sabemos que Hitler foi responsável por ordenar a execução de seis milhões de seres humanos no ano de 1945. Sabemos que Hitler foi um megalomaníaco genocida e o líder de um dos mais horrendos regimes político-nacionalistas e anti-humanistas que já existiu. Não disponho de muito conhecimento sobre sua biografia. Mas seria interessante considerar algumas informações relevantes. Parece que Hitler tinha vergonha de suas origens humildes, quando criança. Não nutria afeição pelo pai, que o educava com severa disciplina. Amava a mãe. Foi um rapaz inteligente, embora mal-humorado. Após seu ingresso na escola secundária de Linz, conheceu um professor chamado  Leopold Poestch, um declarado antissemita. Hitler o admirava. Com Poetsch, Hitler começou a acalentar ideias favoráveis ao pangermanismo.
No tocante a sua relação com o pai, Hitler, embora o respeitasse, não escondia seu desagrado com a sua postura autoritária. Hitler queria tornar-se um artista; interessavam-lhe a pintura e a arquitetura. O pai, no entanto, desejava que ele se dedicasse à carreira pública.
Tendo morrido o pai, Hitler prestou exames para admissão à academia de Artes de Viena, mas foi reprovado. No entanto, posteriormente, decidiu pintar paisagens de Viena e foi bem-sucedido em seu empreendimento, ganhando bastante dinheiro como pintor. Foi em Viena, contudo, que Hitler tornou-se um ativista antissemita. Naquela época, o antissemitismo era arraigado na cultura católica do sul da Alemanha e na Áustria, onde Hitler cresceu.
Para os meus propósitos, bastam essas informações sobre a vida de Hitler, antes de ele ficar conhecido como um dos piores ditadores da História.
Um historiador, um biólogo evolucionista e um psicólogo poderiam aventar explicações sobre as causas que teriam levado Hitler a se tornar o homem tão terrível quanto foi; e aqueles acostumados ao exercício do raciocínio logicamente bem estruturado poderiam ficar convencidos delas. Mas como poderia nos satisfazer um teólogo? Um teólogo teria de lidar com o complicado problema de conciliar a onisciência de Deus com o fato de Hitler ter-se tornado a pessoa que se tornou. Ele teria de lidar com fatos bem estabelecidos como o de que nossos comportamentos contam, em parte, com uma base genética. E seria Deus o construtor da estrutura genética da cada um de nós. Vou-me deter no problema.
 Se Deus é onisciente, ele sabia o que Hitler faria, ele sabia o que Hitler se tornaria. Sucedeu-me agora de propor uma analogia, mas ela não daria conta da dimensão do absurdo da compreensão de Deus como um ser ao mesmo tempo onipotente e onisciente. Ainda assim, proponho que se pense na seguinte situação: descubro que alguém tentará assassinar uma pessoa próxima a mim. Como sou uma pessoa moralmente correta e assassinato me repugna, sinto-me obrigado a fazer alguma coisa. Decido acionar a polícia e alertar a possível vítima sobre o perigo que corre. Meu poder de ação tem limites; por exemplo, por temer pela minha própria vida, não poderia deixar que o potencial assassino sequer suspeitasse de que eu sei de seu plano atroz.
A situação de Deus, no entanto, é muito diferente, quando consideramos o exemplo de Hitler. Deus sabia antes mesmo de Hitler nascer o que ele seria capaz de fazer e, ainda assim, permitiu que existisse. Alguém poderia objetar que o fato de Deus saber a quem  Hitler se tornaria não constitui coação sobre Hitler. Em outras palavras, alguém poderia argumentar que o fato de Deus saber de antemão o que Hitler faria não constitui limite à liberdade de escolha dele. No entanto, quem quer que argumentasse nesse sentido revelaria não entender o que realmente significa dizer “Deus é onisciente”.  Em primeiro lugar, devemos notar que a onisciência de Deus se prende ao seu papel como Criador do universo. Espera-se que o Criador seja portador de todo o conhecimento necessário para criar um Universo tão complexo como o nosso. Um Ser dotado de uma inteligência sobre-humana, infinita e que a emprega para a fabricação de um organismo tão maravilhosamente complexo como o organismo humano é certamente um ser dotado de um conhecimento extraordinariamente admirável. Esse ser, sendo também onisciente, é dotado da capacidade de conhecer o destino dos organismos complexamente conscientes que criou.
Se Deus sabia qual seria a participação de Hitler na história, antes mesmo de ele chegar a existir na Terra, e se queremos manter que Hitler tinha o livre-arbítrio, graças ao qual poderia escolher não ter feito o que fez, como, então, explicar como foram possíveis as condições socioculturais, históricas, psicológicas e biológicas que muito influenciaram as ações nefastas do ditador? Ilustremos com a seguinte imagem: Deus criando um ser humano, dotando-o de uma natureza, enviando-lhe em um meio sociocultural em que convivesse com pessoas tais que exerceriam uma forte influência sobre seus comportamentos, pensamentos e caráter. Deus saberia, por exemplo, se essa pessoa teria propensão a ser mais egoísta, se seria ou não solidária, se poderia desenvolver psicopatia. Faço aqui uma pequena digressão para lembrar a complexidade de nossa natureza e comportamento. Não se pode pretender compreender a natureza humana sem considerar suas dimensões biológica, psicológica e sociocultural. Há muitos fatores envolvidos no comportamento humano e, presumivelmente, a onisciência de Deus o coloca como o mais exímio conhecedor de todos esses fatores e de como esses fatores se relacionam para fazer de cada um de nós o que somos.
Estou me esforçando por fazer ver ao leitor que o conhecimento prévio de Deus sobre quem seria Hitler (conhecimento pressuposto em sua onisciência) está intrinsecamente ligado à sua competência como Criador não só do ser humano Hitler, mas das condições de sua existência. No momento em que Deus cria o ser humano que viria a ser conhecido na História como Hitler e produz as condições de sua existência na História, ele, Deus, é já, nesse momento, detentor do saber a respeito de como o curso dessa existência se desenvolveria.  A onisciência de Deus está vinculada ao próprio ato de criação e é uma qualidade inalienável do criador no momento em que cria. Como não responsabilizar a Deus pelas ações hediondas de Hitler? Como não ver que, no momento em que Deus produz as condições de existência de Hitler, ele o faz de tal modo que elas não possam contrariar a sua onisciência? E me dou conta de que deixo escapar algo importante, em meu raciocínio: a onisciência de Deus não é posterior à criação, o que não faria sentido. Deus não cria para depois concluir que sabia, desde o início, que os acontecimentos se dariam contrariamente à sua vontade, que visa ao bem. Isso é mais absurdo! E também Deus não é um tipo de engenheiro que, após projetar e supervisionar a produção de uma embarcação, não sabe que rumo ela tomará quando lançada ao mar.  Cristãos costumam dizer que “Deus está no controle”. A crença de que ele é um criador onisciente o responsabiliza totalmente pela existência de Hitler.
Concluímos que:

1) Se Deus é onisciente, ele sabe tudo que acontecerá e de que modo acontecerá, antes mesmo que aconteça;

2) Se Deus é o único criador de tudo, ele é responsável por tudo que criou e pelo curso de tudo que criou;

3) Deus sabia previamente, ao criar Hitler, o que Hitler seria capaz de fazer e sabia que ele o faria;

4) Os feitos de Hitler eram parte do conhecimento prévio de Deus no momento mesmo em que Deus o criava;

Podemos, então, perguntar:

Se Deus é onipotente e moralmente perfeito e se é onisciente, por que fez Hitler existir?

Ao criar Hitler, Deus combinou uma natureza corruptível com condições tais que desencadeariam sua corrupção. Isso limita o âmbito de atuação livre de Hitler, já que sua natureza foi projetada para ser suscetível às más influências oriundas das condições em que passou a existir. E tudo isso fazia parte do plano de Deus.


O sofrimento como um método pedagógico de Deus

Nesta seção, considerarei, em primeiro lugar, a perspectiva de Lewis sobre a bondade divina e a felicidade humana. Posteriormente, analisarei seus argumentos em favor da tese segundo a qual Deus se utiliza do sofrimento como um método pelo qual pretende fazer com que as pessoas retornem a ele, podendo, assim, aproximar-se à perfeição e gozar da genuína felicidade. Em tempo, explicitarei os pressupostos sobre os quais repousa essa tese.
Desde já, antes mesmo que eu ataque o problema, quero que o leitor tenha em conta a seguinte questão: de que modo o sofrimento causado pelo tsunami de 2004 que atingiu vários países, próximos à Ilha de Sumara, Indonésia, em 2004, poderia funcionar como um método divino para produzir um bem maior? Transcrevo abaixo, na íntegra, o trecho de Wielenberg sobre esse triste episódio , no qual nos conta:



“Domingo, 26 de dezembro de 2004, um terremoto ao largo da costa ocidental da Ilha de Sumara, na Indonésia, provocou um forte tsunami que atingiu, em seguida, vários países, matando mais de 200. 000 pessoas. Os países mais duramente atingidos incluíam a Indonésia, a Tailândia, o Siri Lanka e a Índia. O tsunami atacou sem qualquer alarme, ou muito pouco. Populações foram varridas da face da terra e famílias inteiras foram lançadas ao mar. As vítimas estavam tão assoladas que pouca tentativa foi feita para identificar a maioria dos cadáveres. Em vez disso, os corpos eram rapidamente enterrados em valas comuns.
Na sequência do desastre, um dos tópicos para os quais as mídias populares voltaram sua atenção foi o problema do mal, um problema que filósofos e teólogos refletem há mais de dois milênios. O problema do mal é frequentemente colocado como uma questão. Se existe um Deus todo-poderoso, onisciente e perfeitamente bom, então por que o mundo contém os diversos males que ele encerra? O problema pode ser colocado de modo mais forte, como um desafio: se existisse um Deus todo-poderoso onisciente e perfeitamente bom, então o mundo não deveria conter os diversos males que contém. Portanto, não existe esse Deus. Um artigo de uma página publicado em 10 de janeiro de 2005 em Newsweek, intitulado “Incontáveis almas clamam a Deus”, sugere que o desastre provocado pelo tsunami constituiria evidência que esse Deus não existe e termina do seguinte modo:

“Famílias inteiras, comunidades inteiras, incontáveis passados e futuros foram obliterados por essa força perturbadora do tsunami. Não é milagre algum que inúmeras vozes, de Sumatra a Madagascar, clamem a Deus. O milagre, se algum existir, poderia ser o fato de muitos ainda acreditarem”.
(pp. 19-20)


Antes que eu externe minhas objeções à forma anti-humanista e antinatural com que Lewis, mesmo apelando ao bom-senso, procura preservar sua crença na existência de um Deus todo-poderoso e moralmente perfeito, negando que a evidência da grande quantidade de mal e sofrimento no mundo não seja suficiente para provar que esse Deus não existe, impõe-se-me uma confissão: em alguns momentos, vacilei entre interromper este meu trabalho de Sísifo e levá-lo a cabo. Quanto mais refletia sobre a tese de Lewis, tese propalada por muitos cristãos levianamente, e sobre os argumentos apresentados para defendê-la comecei a me perguntar até que ponto um intelectual pode tornar-se tão indecente. Lewis, como outros tantos, ao argumentar que Deus se vale do sofrimento para coagir as pessoas a se submeter a ele (cristãos não concordariam com o uso da palavra “submeter-se” aqui, mas, de uma perspectiva não-ideológica, o que ocorre é a submissão da razão do fiel à fé nesse Deus), fere o sentimento de dignidade humano, é desrespeitoso com uma imensa quantidade de miseráveis e sofredores deste mundo. Ousa dizer que, afinal de contas, o sofrimento que Deus causa, mesmo a uma criança, é para o próprio bem ou dela ou de seus familiares. Para mim, isso é um escândalo! Todavia, como sentimentos não provam nada contra Lewis, assim como a suposta experiência emocional de Deus, alegada por muitos cristãos, não provam nada sobre a existência desse Deus, cuidei vantajoso exercitar meu pensamento crítico a fim de remover o véu que não permite ver que a solução de Lewis para o problema do mal no mundo quando tratado relativamente à crença na existência de um Deus tal como representado no imaginário judaico-cristã não resolve nada, senão mostra quão envenenada (para usar um termo de Christhopher Hitchens) pode tornar-se a consciência por força da doutrinação religiosa.  De passagem, convém lembrar que experiências emocionais não são argumentos, portanto, não valem numa discussão para a qual mobilizamos argumentos devidamente estruturados segundo os princípios da razão.
Se fiz apelo ao sentimento, é porque também espero que o leitor não o perca de vista, quando pensarmos na dimensão do sofrimento que assola os homens, mulheres e crianças deste mundo (e incluo no rol dos sofredores também os animais dotados de um grau maior de consciência e de um sistema nervoso central; animais que, assim como nós, são capazes de sentir dor). Na verdade, espero que você seja capaz de conduzir suas conclusões iluminando-as pelo sentimento de empatia (a capacidade que temos de “nos colocar no lugar do outro”, isto é, de perceber, ainda que não diretamente, o que o outro está sentindo) que muitos de nós, felizmente, compartilhamos. A solidariedade depende da empatia, depende de que nos sensibilizemos em face da dor e do sofrimento do outro.
Perturba-me, sinceramente, quando me dou conta de que um religioso, embora, evidentemente, sensibilizado com a triste ocorrência, pode assistir no noticiário o desastre causado por um terremoto, que ceifou milhares de vidas inocentes e pronunciar o nome de Deus, clamando-lhe misericórdia e amparo às famílias das vítimas. Todos somos impotentes e miseráveis em face de uma natureza tão poderosa e devastadora; a miserabilidade é intrínseca à condição humana; no entanto, muitos dentre nós somos apenas miseráveis que resistem pelo uso da razão (que aliás nos proporciona meios para que não sucumbamos a nossa miserabilidade; por exemplo, engenheiros japoneses trabalham para a construção de prédios que resistam aos abalos de terremotos (http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/alta+tecnologia+faz+predios+resistentes+a+terremotos/n1238156416631.html) . É a razão, o conhecimento e a tecnologia a serviço da sobrevivência humana. A força contra nossa condição miserável em face da própria natureza encontra-se na razão e no conhecimento.  Conhecemos para sobreviver. Outros dentre nós, entretanto, são miseráveis encarcerados na ilusão; ilusão que os impede de exercitar o raciocínio adequado, a reflexão crítica, o pensamento emancipador. Voltarei a esse ponto, no final do texto.
Antes de prosseguir, atente-se para a seguinte noticia:

Uma adolescente de 13 anos morreu e duas crianças ficaram feridas no deslizamento de uma encosta no alto do Morro do Palácio, no bairro do Ingá, zona sul de Niterói, durante o temporal atingiu a região metropolitana do Rio, na tarde de quinta-feira. Ela trabalhava como babá e estava levando um menino de três anos e uma menina de dois para a casa da mãe delas. Segundo testemunhas, a jovem recebeu todo o impacto da queda para proteger os dois. Chovia forte no momento do incidente.
De acordo com a doméstica Fabiana Gonçalves, de 31 anos, a sobrinha Julia Gonçalves Damaceno, estava no primeiro dia de trabalho como babá de duas crianças moradoras da comunidade. Estudante do 5º ano do Ensino Fundamental, ela saiu de casa por volta das 23h para levar os menores para a casa da mãe deles, que trabalha fora. Ao descerem uma escadaria, o muro da encosta desabou. A adolescente morreu na hora.
"Era o primeiro dia dela tomando conta das crianças. Para proteger da queda do muro, ela abraçou as duas. Minha irmã está em choque", relatou Fabiana, se referindo a Angélica Gonçalves Ribeiro.

De que modo esse sofrimento serve à promoção de um bem maior? Como é possível não imaginar que um Ser infinitamente inteligente e perfeitamente bom não seria capaz de concluir que fazer sofrer as pessoas não é o melhor meio de atraí-las? Se, como se pensa, Deus se vale do sofrimento para provocar nas pessoas atingidas a consciência de que precisam retornar a ele, então esse Deus se revela um completo ignorante em matéria de psicologia. Poderia ser possível a Deus aplicar seu método apenas a pessoas que já estivessem domesticadas pela religião, portanto, em pessoas cujo retorno a ele seria certo e imediato? Mas, se for assim, o método não satisfaz o objetivo pretendido, passando a servir de mero instrumento para a produção de sofrimentos injustificáveis, já que os religiosos já são devotados a Deus. O método só pode ser aplicado naqueles que se desviaram. Mas não  há injustos que prosperam e justos, religiosos ou não, que enfrentam os mais dolorosos sofrimentos? Veremos como se desenvolve o raciocínio de Lewis. Fiquem essas questões provocativas. É por meio delas que nossos pensamentos, doravante, precisam se orientar.

Lewis começa a tratar das questões da bondade divina e da felicidade humana distinguindo entre afabilidade e amor. Para Lewis, a afabilidade é o desejo de que as pessoas por quem a nutrimos vivam uma vida aprazível e confortável. No entanto, não é assim que Lewis entende a relação de amor entre Deus e nós. Lewis está, a essa altura de sua reflexão, preocupado em nos mostrar de que modo Deus nos ama. Para tanto, ele distingue quatro tipos de amor, qual seja, (1) o amor que tem um artista por sua criação; (2) o amor que temos por um animal (por exemplo, um cachorro); (3) o amor de um pai para com seu filho, e o (4) amor de um homem por uma mulher (Wielenberg, p. 43). Lewis diz que, em todos os casos, o amor supõe o desejo de que o objeto amado seja de certo modo. Em outras palavras, quando amamos queremos que o objeto amado (uma pessoa, por exemplo) se torne perfeito. Isso pode ser verdade para muitos de nós, mas também é verdade que a perfeição é uma ilusão e pretender que o outro que amamos se amolde ao nosso desejo pode não satisfazer a concepção que muitos têm do que seja amar.
Lewis se esforçará por nos convencer de que o amor que Deus nutre pelos seres humanos (ele não diz nada do amor de Deus aos animais) é um amor motivado pelo desejo de levá-los a aproximar-se da perfeição. Ilustra essa concepção o seguinte passo, tomado a Wielenberg:


“(...) porque Deus nos ama, Ele deseja que nos tornemos tão próximos da perfeição quanto possível. Isso significa que cada um de nós precisa ser transformado; e, como a pintura sensível imaginada por Lewis, percebemos de um modo importante: poderia dar a impressão de que a transformação se dá inteiramente em vista do interesse daquele que ama. Afinal de contas, uma grande pintura beneficia principalmente o artista; a própria pintura parece ganhar pouco com o negócio! A felicidade do amado ficou completamente fora da consideração de Lewis acerca do amo?”

(p. 44)



À pergunta que encerra o fragmento citado, Lewis responde negativamente, escrevendo “quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento, seremos de fato felizes”.
Para que compreendamos a posição do filósofo inglês, consideremos os pressupostos que estão em jogo em sua argumentação:

1pp. Há uma felicidade genuína, que não se alcança pelo gozo dos prazeres terrenos;
2pp. Essa felicidade genuína encontra-se no amor a Deus;

3pp. Deus deseja que gozemos dessa felicidade genuína;

4pp. Deus só pode dispensar amor a nós, quando nos tornamos aquilo segundo o seu desejo;

5pp. No entanto, Deus sabe que somos resistentes, graças ao pecado, a buscar a felicidade genuína.

Qual é então, segundo Lewis, a decisão de Deus? Ele fará uso do sofrimento de três maneiras. Preciso, antes, lembrar que Lewis, como típico cristão, num processo ideológico, mascarará algumas ideias com vistas a dar coerência a certas alegações que faz. Por exemplo, não podemos deixar passar despercebido o dogma cristão segundo o qual o mundo é lugar de pecado e, consequentemente, os prazeres do mundo (em geral, os que satisfazem o corpo) são condenáveis aos olhos de Deus. Ele não é anunciado, mas parece dar validade a alegações de Lewis como a de que a genuína felicidade não se obtém nos prazeres do mundo mas no encontro com Deus. A lógica é: nega-se a vida neste mundo e afirma-se a vida transcendente junto a Deus.
Prossigamos.

Após distinguir entre mal moral (provocado pelas ações humanas) e mal natural (provocado pela natureza), o filósofo descreverá três formas pelas quais Deus pode utilizar o sofrimento para nos “cutucar” (note-se o emprego da palavra “cutucar”, um claro recurso eufêmico, com teor ideológico, para mascarar a gravidade do impacto causado pela aplicação do método do sofrimento). Terá sido o tsunami de 2004 um mero “cutucão” de Deus?
O primeiro modo como Deus pode aplicar seu método é com o objetivo de provocar uma reforma moral nos sofredores. Deus utiliza-se do sofrimento para despertar os homens para que passem a viver uma vida de retidão moral. Vejam-se as palavras de Wielenberg a esse respeito:


“A dor pode funcionar como um tipo de despertador, estimulando a pessoa corrupta a engajar-se num autoexame que pode levá-la a reconhecer sua corrupção”.

(p. 47)


Cito abaixo o trecho em que o próprio Lewis, em O problema do sofrimento, procura expor seu ponto de vista, nesse tocante. Saliente-se que já encontrei parte desse trecho nos discursos de alguns cristãos.


“A dor insiste em ser notada. Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossa dor: ela é seu megafone para despertar um mundo surdo. Um homem mau, mas feliz, é alguém que não tem a mínima noção de que seus atos não são “responsáveis”, de que não estão de acordo com as leis do universo”.

(p. 91)
(grifo meu)


Deixarei ao leitor o trabalho de meditar sobre essa passagem, já que não posso me alongar mais do que já o fiz. Mas levanto aqui uma questão sobre a que “leis do universo” se refere o autor. Não são, evidentemente, às leis físicas. Suponho que se refira ao que ele pensa ser “leis morais”. Mas é absurdo atribuir ao universo um senso de moralidade. O universo é indiferente ao certo ou ao errado, ao bem e ao mal. Tais valores só se aplicam a nós, seres humanos. Se, por outro lado, ele pensa essas leis do universo como leis morais criadas por Deus, como sustentar que Deus, ao obedecer a elas, seja um ser moral? Ora, para ser moral Deus não poderia ser ao mesmo tempo o autor da moral e seu seguidor. Se Deus segue os princípios morais que ele mesmo fundou como autoridade absoluta, ele só nos mostra que é um ser coerente. Esse é outro problema que Russell desenvolverá.
O segundo modo pelo qual Deus pode usar o sofrimento é provocando em nós a insatisfação com os prazeres do mundo. Deus desempenha o papel de um “estraga-prazer”. A essa forma de raciocinar subjaz a ideia cristã de que não é no mundo que se acham os prazeres genuínos de Deus. Leia atentamente a ilustração que Wielenberg nos dá desse raciocínio e perceba como ele está adequado à estrutura racional de muitos religiosos contemporâneos que acreditam “na conversão de Cristo”:

“Imagine uma criança que adora jogar vídeo-game. Essa criança adora tanto jogar vídeo-game que ela não pensa em nada mais; ela está totalmente feliz por jogar videogame até que os pais chegassem a casa. Suponha ainda que você sabe que a criança seria mais feliz e levaria uma vida mais completa se ela deixasse seu videogame de lado e empregasse suas energias em outra atividade. Uma maneira de induzi-la a fazer isso seria destruir o videogame. Se você pudesse, de alguma maneira, tornar o videogame enfadonho ou desagradável a ela, isso deveria motivá-la a procurar satisfação em outro lugar”

(p. 48)


Lewis supõe que somos como essa criança que adora jogar vídeo-game. Preferimos buscar prazer nas coisas terrenas a buscar a felicidade em Deus. Para ele, essa atitude decorre do mau uso do livre-arbítrio. Essa forma de pensar torna-se evidente na interpretação que um religioso poderia dar para o caso de um conhecido seu ter batido com o carro ou ter tido algum prejuízo no uso do veículo (por exemplo, o carro poderia enguiçar). Esse religioso poderia concluir que foi Deus quem agiu para chamar-lhe a atenção sobre a importância de não valorizar demais os bens materiais.
É notável o fato de que Deus não faz sequer as vezes de um negociador. Não há barganha. Deus não nos oferece um prazer em troca de outro. Por exemplo, Deus não nos garante que não passaremos por dificuldades de saúde na juventude, caso decidíssemos deixar de lado o vídeo-game, o carro zero ou qualquer produto de consumo que valorizamos. Os que lotam as igrejas parecem ser os que mais dores têm a contar. Por que não as pessoas poderiam ir a Deus pelo prazer em vez de pelo sofrimento?
Outra pergunta carece de resposta. O uso do sofrimento por Deus como meio de que retornemos a ele não é uma forma de coação? Se a resposta for afirmativa, então não seria razoável concluir que Deus interfere em nossa liberdade? Mas, se Deus nos dá o livre-arbítrio (não penso que nós gozemos de livre-arbítrio, como mostrei, mas faço o advogado do diabo), ele não o limita, no momento em que nos força pelo uso do sofrimento a buscar a ele?
O segundo modo de aplicação do sofrimento é extensivo às pessoas honestas, amáveis e moderadas (Lewis, p. 96). Escreve o filósofo inglês “Essa ilusão de autossuficiência pode ser mais forte em algumas pessoas muito honestas, amáveis e moderadas, e então, sobre essas pessoas, o infortúnio deve cair”.  Pode-se levantar uma pergunta contra Lewis, nesse tocante: Com base em que se pode sugerir que as pessoas honestas, amáveis e moderadas tenderiam a se tornar autossuficientes? A autossuficiência, se bem compreendida, pode revelar-se em pessoas cheias de brio e de arrogância, mas não vejo como possa manifestar-se como consequência de qualidades apreciáveis como a honestidade, amabilidade e comedimento. Mas não nos enganemos. O que Lewis não mostra, por meio de uma estratégia ideológica, é que a autossuficiência pode significar autonomia e autonomia não pode ser estimulada pela religião. Um dos postulados da Análise do Discurso desde Foucault é que as palavras mudam de sentido de acordo com a formação discursiva em que aparecem. Na formação discursiva do cristianismo (poderíamos dizer da religião), a autossuficiência significa ‘o sentimento de autonomia em relação a Deus’ e isso é considerado prepotência. Pessoas que acreditam ser capazes de guiar suas vidas sem recorrer a um conjunto de preceitos cuja legitimação se baseia na crença na existência de uma autoridade transcendente são pessoas que não procurariam congregações religiosas. Portanto, o sentimento de dependência é necessário para que a fé religiosa se conserve. A lógica da fé não poderia se revela, quando nos damos o trabalho de perscrutar as entranhas de seu discurso: Deus não suporta o homem que o dispensa e que se cuida autossuficiente. Substitua “Deus” por “poder da Igreja” e a raiz da fé se lhe saltará aos olhos! Algumas noções de ciência política devem ser esclarecidas aqui. Em primeiro lugar, a dominação é mais eficiente quando os subjugados são levados a não questionar a legitimidade do poder dominante. Em segundo lugar, quanto mais dóceis se tornam os subjugados, mais poderosa e duradoura se torna a dominação. Pessoas autossuficientes, no sentido que venho considerando aqui, são propensas ao exercício do pensamento livre, por isso, tendem a se rebelar. Em matéria religiosa, o pensamento dos leigos é refreado e, se avança, não vai muito adiante, porque preso aos grilhões da fé. O crente leigo é aquele que pensa com grilhões presos à alma. Vejamos que explicação dá Lewis ao sofrimento das pessoas que não o merece:



“Ficamos perplexos em ver a desgraça tombando sobre pessoas decentes, inofensivas e honradas [...]. Como posso dizer com suficiente ternura o que precisa ser dito? [...] A vida para essas pessoas e suas famílias se interpõe entre elas e o reconhecimento de suas necessidades; Deus lhes torna essa vida menos agradável”.
                                                        
                                                                (pp. 94-95)


Novamente, nesse trecho, deprecia-se o bem-estar na vida real. Portanto, segundo Lewis, não importa que você seja uma pessoa que prime pela retidão moral; sempre que a vida lhe aparecer demasiado aprazível, Deus estará pronto para lançar-lhe como uma flecha alguma espécie de dor, a fim de tornar a sua vida desagradável, a ponto de não lhe restar senão render-se a ele. Os cristãos novamente poderiam chiar, advertindo-me de que falo em submissão quando deveria falar de retorno livre a Deus. Em tempo, me ocuparei disso. Lewis não nos permite saber de que natureza é essa suposta felicidade genuína de que Deus é a origem. Ela não está clara para milhões de pessoas no mundo.
Não deveríamos nos surpreender com a representação de um Deus capaz de infligir sofrimento a um justo. A história de Jó, no Antigo Testamento, nos dá testemunho dessa representação. Vale aqui observar o seguinte: a história de Jó foi escrita com o propósito de discutir o problema do sofrimento no mundo. Assim, seu autor pretendia pôr em questão o porquê do sofrimento, muita vez, atroz dos justos, dada a existência de um Deus bom. Na verdade, o livro de Jó se divide em duas partes principais: num delas, se acham o epílogo e o prólogo, escritos em prosa; na outra, os diálogos. As questões tratadas são diferentes em cada uma das partes. Na primeira, a questão é: por que uma pessoa serve a Deus? Nos diálogos, a questão é: por que o ser humano sofre? Todavia, não parece ser a problematização do sofrimento num mundo criado por um Deus bom que é trazido à consciência do homem comum em igrejas, mas sim a lição segundo a qual devemos confiar em Deus em que pese os mais terríveis sofrimentos. Quanto mais sofremos mais devemos esperar em Deus! É isso que aprende um cristão. Chamo a isso, fazendo eco a Freud, pedagogia da neurose obsessiva torturante.
A terceira e última forma por meio da qual Deus inflige o sofrimento envolve a aceitação de um princípio lógico que se expressaria como “escolher implica saber que escolhe”. Se escolho, estou consciente de que escolho. Em ouras palavras, segundo Lewis, só escolho livremente x pela razão R somente se eu estou consciente de que escolho x pela razão R.  Agora, convém deter-nos no seguinte excerto em que Lewis aplica o princípio. Vejamos como ele desenvolve seu raciocínio no sentido de justificar a aplicação do sofrimento por Deus:


“Não podemos saber, pois, que estamos agindo, em qualquer condição e primariamente, em razão de Deus, a não ser que o conteúdo da ação seja contrário a nossas inclinações ou (em outros termos) penoso, e o que não sabemos que estamos escolhendo, não podemos escolher. O ato completo da rendição do “eu” a Deus exige, portanto, o sofrimento”.

(pp. 97-98)

A primeira parte do enunciado deixa entrever um pressuposto, qual seja, o de que “ajo em conformidade com a vontade de Deus, se e somente se minha ação contraria minhas disposições e interesses”. Por exemplo, se sou uma pessoa, normalmente, rancorosa, agirei em conformidade com aquilo que Deus deseja, se decido aceitar as desculpas daquele que me magoou, reatando o laço de amizade. Embora, a rigor, eu não possa “saber” diretamente se é isso que Deus quer que eu faça, eu tenho fortes razões, como crente, para acreditar que assim seja. Como nós, segundo Lewis, somos normalmente incapazes de saber o que Deus espera que façamos, o sofrimento se torna o único meio para que “despertamos”, ou melhor ainda, para que nos elucidemos sobre a correta decisão a tomar em direção ao bem maior que é a felicidade genuína em Deus. Em suma, o retorno a Deus depende de algum desprendimento pelo prazer e pela satisfação, acompanhado de uma resolução que contrarie nossas inclinações. O caminho que leva a Deus, segundo essa lógica cristã, endossada por Lewis, é quase sempre pedregoso.
O filósofo procura ilustrar essa perspectiva da escolha livre em direção a Deus, descrevendo a história de Isaac no Antigo Testamento. Na história, Deus ordena a Abraão que execute seu único filho, Isaac, oferecendo-o em sacrifício. Segue-se disso que


“Esse é seguramente um comando que traria, em seu cumprimento, uma imensa dor e nenhum prazer para Abraão; entretanto, ele continua a obedecer ao comando, até Deus suspender o processo no último momento. Nesse exemplo, Abraão pode estar seguro de que ele executou a ação porque ela foi ordenada por Deus, pois não existe qualquer outro motivo plausível. O caso de ação ser tão penosa para se realizar faz com que Abraão possa executar livremente a ação porque ela é ordenada por Deus”.

(Wielenberg, p. 51)


O exemplo a que recorreu Lewis não parece muito adequado. Para mim, Lewis não foi muito feliz, ao escolher essa história incrivelmente absurda e repugnante. Por um lado, ela parece ser claramente um mito, a menos que o leitor esteja disposto a suspeitar comigo da sanidade de um pai que tomasse essa resolução, por acreditar que Deus estava ordenando-lhe que a fizesse. Por outro lado, ela nos permite produzir outro sentido (aliás, tantos outros possíveis sentidos...). Ela pode antes depor contra um Deus moralmente perfeito do que a favor dele. Àquela altura, Moisés ainda não tinha recebido de Deus a tábua dos mandamentos. Abraão não podia acusar a Deus de desobedecer um mandamento que ele mesmo estabeleceu: não matarás! Como são muitos os autores bíblicos e como escreveram em épocas diferentes, é provável que quem reuniu as histórias do sacrifício de Isaac e da revelação dos mandamentos em Moisés não se deu conta de que comporia uma imagem de Deus moralmente inaceitável e logicamente contraditória. Como o mesmo Deus poderia desejar o assassinato e depois condená-lo? Se ele é imutável, não pode ordenar o assassinato e tempos depois condená-lo. Se o fundamento da moral, como creem os cristãos, é Deus é, no mínimo, plausível supor que ele deve ser o primeiro a dar o bom exemplo, seguindo-a.
Tolices à parte, Lewis faz outro uso da história, a fim de afiançar seu ponto de vista. Como todo texto é, potencialmente, aberto a múltiplos sentidos, Lewis procurou usá-lo para produzir um sentido que validasse sua crença de que só agimos livremente em direção a Deus quando essa ação contraria inclusive (como é o caso) nosso bom senso e nossas disposições amorosas (mesmo que sejam as de um pai pelo filho!).
Não é fácil, leitor, penetrar nos confins da consciência religiosa que se foi entretecendo nos discursos lhe dão forma. Vez por outra, precisamos vir à tona e desconfiar, levantando alguma questão desafiadora. Creio estar claro que o uso do sofrimento para que retornemos livremente a Deus não torna o retorno livre. A utilização do sofrimento como um meio para produzir a genuína felicidade humana é intrinsecamente impossível. Logo, Deus jamais poderia fazer isso.
Wielenberg nos chama atenção para um problema mais grave de que Lewis não dá conta: o problema do sofrimento não suficiente. O que fazer com aqueles dentre nós que estão distantes de Deus, mas felizes? Deus deveria deixar que fiquem a chafurdar-se na falsa felicidade? Se esse é o caso, disso se segue que Deus não os ama. Mas, se Deus os ama, não deveria usar seu megafone do sofrimento para despertá-los?
O problema do sofrimento não suficiente, ou não justificável, que a proposição de Lewis não resolve é, basicamente, o das crianças. Pensemos nas crianças que são torturadas; nas crianças que são acometidas de doenças graves, quer geneticamente herdadas, quer adquiridas ao longo da vida. Como compreender o sofrimento de crianças segundo a proposta de Lewis? Causar sofrimento a crianças, para as quais o conceito de Deus, de retidão moral e de iniquidade ainda não são conhecidos, não se justifica nem mesmo se isso fosse para defender o próprio Deus. Crianças em tenra idade não podem se entregar livremente a Deus do mesmo modo que não podem decidir em quem votar.
Se, por um instante, as pessoas desistissem da obsessiva busca por provar a existência de Deus, talvez conseguissem reconhecer o fato de que há muitas crianças que morrem sem ao menos viver o tempo suficiente para o desenvolvimento do discernimento necessário para entregar-se a Deus.
Não pense o leitor que Lewis não se esforçou por resolver o problema do sofrimento não-suficiente. Chegou a sugerir que a família pode representar à criança um obstáculo para que ela experimente a genuína felicidade, ou seja, para que ela busque a Deus. Portanto, para Lewis, o sofrimento da criança seria uma forma de comover a família para que busquem a Deus. Wielenberg, atento a isso, escreve:


“Poderia a vida plena de dor de uma criança que vive em agonia por poucos anos e então morre sem o menor vislumbre do entendimento do que lhe está acontecendo ser justificada pelos benefícios que essa vida (eventualmente) produz naqueles afetados pelo sofrimento da criança? Com efeito, que isso possa ser assim, é uma pílula amarga de engolir”.

(p. 74)


Em seguida, o autor nos convida a pensar numa situação em que devemos empregar nosso senso moral; afinal, pensar o sofrimento como um método de que se serve Deus para atingir um propósito é julgá-lo enquanto sujeito, enquanto pessoa cujas ações devem ser eticamente avaliadas.


“Suponha existir alguém que obterá a genuína felicidade se, e somente se, uma criança viver uma vida plena de dor durante poucos anos e depois morrer em agonia. À custa do sofrimento da criança, um Deus bom realizaria a genuína felicidade para essa pessoa? Para responder a essa questão devemos confrontar o sofrimento da criança com a genuína felicidade do adulto. A reposta de Agostinho, para a questão é afirmativa. Afinal de contas, a genuína felicidade dura para sempre, enquanto o sofrimento da criança é apenas temporário: “Uma vez que o sofrimento passou, será para a criança como se elas nunca tivessem sofrido”. Considero que a resposta a essa questão seja negativa. Creio que, mesmo que a felicidade tivesse mais valor do que o sofrimento da criança, a justiça requer que a felicidade seja recusada, pois não é a criança que adquire o grande bem da felicidade, mas outra pessoa. Uma pessoa cuja genuína felicidade somente pode ser adquirida por meio do sofrimento horroroso de uma criança não deveria receber a genuína felicidade.”

(p. 75)


Para concluir


Um estudo mais detido sobre o desenvolvimento da teodiceia pedagógica empreendido por Lewis revelaria, provavelmente, muitas outras inconsistências. Em alguns momentos, seus raciocínios me pareciam intoleráveis, quando confrontava as percepções que construí deles com os episódios de sofrimento que não cessam de ser noticiados pela televisão. Ademais, embora, algumas vezes, pretensamente sedutores, eles deixam escapar uma consciência sobre aspectos importantes da complexidade da vida social, cultural, psicológica e biológica do homem.
Precisei apelar à empatia do leitor, pois que, ao meditar sobre a tentativa de um apologista da fé cristã, como Lewis, de lidar com o problema do sofrimento no mundo, dei-me conta de que as especulações desenvolvidas podem afastar-lo demais da densidade emocional implicada no problema. Por exemplo, explicar o sofrimento de crianças com leucemia em hospitais com a ideia esdrúxula de que Deus estaria “cutucando” seus familiares, ou seja, usando o sofrimento da criança como um meio para que os seus pais se voltem para ele não é só racionalmente difícil de aceitar, mas também uma clara demonstração de insensibilidade, de frieza, na consideração do problema.
Lewis endossa uma pedagogia nefasta, porque propõe a resignação ao sofrimento. O que ele nos propõe é que aceitemos o sofrimento como um caminho que Deus nos abre para chegar a ele. E ele o faz apenas baseando-se na crença de que esse Deus existe e de que há uma genuína felicidade tão valiosa diante da qual a vida mesma perde seu valor.
Situo-me no terreno da razão, para insistir em que as afirmações de Lewis não podem ser verificadas. Lewis, como tantos outros teólogos, é um ser humano que não tem qualquer conhecimento de Deus. Isso é importante, porque nos alerta sobre o fato de que tudo que ele escreve sobre Deus são meras especulações sobre um objeto de pensamento que não existe na realidade empírica. Logo, as afirmações sobre qual é a natureza de Deus, sobre o que ele quer, como ele age não podem ser verificadas. Sequer são hipóteses, no sentido que lhe daria Popper.
Em alguns momentos, pensei quão despropositado é este meu esforço por criticar um sistema de ideias que me parecem claramente absurdas. No entanto, há milhões de pessoas neste país que o assumem como depositário de uma verdade transcendente.
Quem quer que leve a sério a proposta de Lewis deverá aceitar o que se segue: Deus é o autor de um jogo - o da vida. Ele o joga seguindo um único princípio “arrebanhar o maior número de pessoas para junto de si”. E ele o faz por meio de um método, que lhe pareceu o melhor, o do sofrimento. Assim, é Deus quem colocará no caminho de uma pessoa (mesmo sendo ela uma praticante da fé cristã) um assaltante disposto a matá-la, caso ela se negue a deixá-lo levar seu carro. Se isso não surtir o efeito desejado, é possível ainda que Deus, não satisfeito, lhe surpreenda com a notícia de que a esposa tem um câncer maligno. E os sofrimentos não cessarão até que a pessoa ou algum dos seus se renda a Deus. No jogo da vida de Deus, há um mundo repleto de recursos provocadores do sofrimento. Ele conta com uma natureza humana complexa, corruptível e minuciosamente estruturada para tornar viável a prática do mal mais excruciante possível e com uma natureza indiferente, amoral, que não cessa de dar amostras de seu arsenal destrutivo.