quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Quero um poema que não precisa ser escrito...




Quero um poema...

Quero um poema que sangre
Palavras
Um poema que pronuncie a desmesura
Do Vazio
Um verso apenas de contra-senso
Que proclame toda falta de sentido
Quero um poema que minta
A Eternidade
Que anuncie a Verdade
Sem Salvação
Quero um poema maior que o mundo
Que cante a noite – recanto da sombra
Que exalte a vida
Grávida da morte!
Que cante o amor – altar dos ingênuos
Quero um poema que cale
Na dor

(BAR)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Evangelhos gnósticos


                             


                           O gnosticismo cristão

Precisei tornar-me ateu para interessar-me pelo estudo de religiões. Tornando-me ateu, passei a me interessar, particularmente, pelo aprendizado e compreensão da história do cristianismo, religião cujos preceitos e valores entraram a fazer parte de minha formação socioeducacional desde muito cedo. E os caminhos ateístas me levaram a ler livros de teologia cristã.  Hoje, sei mais sobre o cristianismo do que sabia no tempo em que eu era um cristão católico. Não há por que estranhar essa minha postura, já que toda rejeição a um sistema de ideias, valores e crenças que não nos parece mais satisfatório para explicar o mundo e dar sentido à vida deve assentar num exame que demonstre seus pontos problemáticos. Em outras palavras, não me bastava declarar-me ateu; sentia a necessidade de justificar meu ateísmo e sustentá-lo com base num esclarecimento sobre a fé que havia abandonado, um esclarecimento que fosse superior ao saber que qualquer cristão comum declara ter sobre a doutrina que subsidia sua fé. Acredito que um ateu que não conseguiu acumular os conhecimentos necessários na base dos quais possa desenvolver, sempre que necessário, uma argumentação sólida e eficaz contra o proselitismo dos cristãos, provavelmente, será visto como um problemático (no sentido pejorativo) ou como uma “ovelha desgarrada” em favor de quem a comiseração cristã se encarregará de fazer orações. Assim, aos olhos de cristãos piedosos e redentores, um ateu que necessita de orações é um indivíduo que se afastou de uma suposta verdade inquestionável e que precisa voltar a reconhecê-la, caso pretenda gozar da salvação.
Como eu pretendesse responder aos que, por ventura, me considerassem uma pessoa desditosa, para quem a vida, tendo abandonado a fé, não faria mais sentido, cuidei que proveitoso seria aprender sobre a história e os dogmas do sistema doutrinário a que meu espírito não podia mais submeter-se.
Somente o conhecimento pode combater a fé. Quem tem fé tem tão-só confiança em que seja verdadeiro o sistema de ideias e crenças que a sustenta, mas não detém o conhecimento do valor de verdade desse sistema. Por exemplo, esse sistema pode incluir o dogma segundo o qual Jesus Cristo reunia em si mesmo as naturezas humana e divina. Que Jesus fosse humano não se discute, mas que tenha sido uma encarnação de Deus, ninguém pode saber. Isso é matéria para a fé, ou seja, quem tem fé confia em que seja verdadeiro que Jesus Cristo tinha natureza divina. Diga-se, de passagem, uma visão que não encontrou unanimidade entre os primeiros seguidores de Jesus nos primórdios da era cristã. Houve, posteriormente, historiadores bíblicos que argumentaram no sentido de que as Escrituras não permitem sustentar tal crença. No entanto, essa foi a crença que se tornou ortodoxa.
Defenderei, aqui, a ideia de que a crítica à fé pode ser desenvolvida percorrendo-se dois caminhos que não são, necessariamente, estanques: um dos quais nos leva a examinar as Escrituras, a história de sua fabricação e as condições socio-históricas e ideológicas nas quais se desenvolveu o cristianismo (termo que engloba um espectro grande de variedades, hoje, e na Antiguidade); o outro nos leva a examinar, por meio de um confronto, as representações e afirmações sobre Deus com as nossas experiências de mundo, tendo em conta o modo como o mundo funciona, como a realidade é (e não como desejamos que fosse).
Ilustrarei como podemos percorrer esses dois caminhos para fazer a crítica. Emprego a palavra crítica no sentido rigorosamente filosófico, a saber, um exame racional pormenorizado das coisas, sem preconceitos ou prejulgamento. Quando criticamos, por exemplo, uma ideia, um costume, uma obra de arte, fazemos deles uma avaliação detalhada.
Começo por uma constatação que, de imediato, me surpreendeu, não sem agrado. Lendo o livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman, se me deparou a seguinte passagem, que se segue ao subtítulo QUEM ESCREVEU OS EVANGELHOS? Convém reter que, a essa altura, Ehrman já havia tratado das contradições existentes entre os quatro evangelhos e já havia nos contado sobre suas experiências no Seminário Teológico de Princenton (instituto onde sua visão sobre a Bíblia mudou drasticamente). Leiamos o trecho abaixo:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisas que os pastores costumem contar às congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a elas. Mas, se isso é verdade, quem então os escreveu?”

(p. 118)
(ênfase no original)


Ehrman desenvolverá uma argumentação lúcida que visa a nos fazer entender as razões por que se pode afirmar com certeza que os quatro evangelhos que constam do cânone e que chegaram até nós não foram escritos pelas pessoas cujos nomes figuram em suas páginas. O grande número de contradições entre os escritos evangélicos indicam que seus autores não foram testemunhas oculares dos acontecimentos relatados. Citem-se alguns exemplos de inconsistências, referidos por Ehrman. Por exemplo, em Mateus, conta-se que Jesus foi concebido por uma virgem:

23. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco. (Mt. 1: 23)

Em João, não há referência à crença em que Jesus teria nascido de uma virgem. Em João, lemos o seguinte:

1. No princípio, era o Verbo; e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus.
(Jo 1: 1)

O Verbo a que se refere o autor de João é Jesus.
Segundo Ehrman, em Mateus, não há qualquer referência à natureza divina de Jesus. Mateus simplesmente silencia a respeito da crença de que Jesus era Deus. Em João, ao contrário, Jesus se identifica com Deus. Em Mateus, Jesus anuncia a bem-aventurança futura no Reino de Deus; em João, Jesus prega sobre si mesmo, destacando sua divindade.
É interessante notar que, no catolicismo, os dois dogmas são aceitos: o do nascimento de Jesus de uma virgem e o de sua natureza divina. Buscou-se, assim, conciliar as duas visões diferentes de dois autores que não foram discípulos de Jesus.
Não tenho a intenção de apresentar todas as evidências fornecidas por Ehrman para sustentar a afirmação de que nenhum dos evangelhos que compõem a Bíblia cristã foi escrito por discípulos que conviveram com Jesus. Convido o leitor a verificar por si mesmo. Compreendamos, no entanto, a razão por que se disseminou a crença de que os autores dos evangelhos foram realmente os apóstolos de Jesus? Leiamos o que nos ensina Ehrman abaixo:

“Por que surgiu a tradição de que esses livros foram escritos por apóstolos e por companheiros dos apóstolos? Em parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas oculares e companheiros das testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merece a confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na vida de Jesus. Mas a realidade é que não é possível confiar em que as testemunhas ofereçam relatos historicamente precisos. Elas nunca mereceram confiança e ainda não merecem. Se testemunhas oculares sempre fizessem relatos historicamente precisos, não teríamos a necessidade de tribunais. Quando precisássemos descobrir o que realmente aconteceu quando um crime foi cometido, bastaria perguntar a alguém. Casos reais demandam muitas testemunhas, porque seus depoimentos diferem entre si. Se duas testemunhas em um tribunal divergissem tanto quanto Mateus e João, imagine como seria difícil chegar a um veredicto”.

(p. 119)


Os quatro evangelhos foram escritos anonimamente e os títulos que trazem estampados (p. ex. “o Evangelho segundo Lucas”) foram acrescentados por escribas, posteriormente à produção dos textos. A intenção era esclarecer o público sobre quem se acreditava ser seus autores. Ehrman argumenta que a própria expressão “segundo x” indica que não se trata do próprio autor, já que o próprio autor não se referiria a si mesmo na terceira pessoa. Trata-se, na verdade, de um acréscimo feito por uma pessoa que acreditava que o autor foi um dos discípulos de Jesus. Foi assim que surgiram outros milhares de evangelhos que não entraram para o cânone, como os de Tomé, de Filipe, de Judas, etc.
Qualquer um que acompanhasse os argumentos aduzidos por Ehrman chegaria, com ele, à conclusão de que a Bíblia é um conjunto de livros produzido por mãos humanas; é uma obra humana, demasiado humana.
Todas as evidências apontam para o fato irrecusável, à luz da razão, de que a Bíblia não foi inspirada por Deus. A inspiração divina pressuporia uma exatidão dos textos, uma coerência entre as visões teológicas adotadas por seus autores, ou seja, uma unidade de concepções teológicas.
Na medida em que reconhecemos que Marcos, Mateus, João e Lucas não são os verdadeiros autores dos evangelhos, começamos aprender sobre um costume bastante comum na Antiguidade: o das fraudes literárias. Delas tratará Ehrman.
O segundo caminho, que tange ao confronto entre as representações de Deus, na memória discursiva teológico-cristã, e o modo como o mundo ou o universo funciona, pode ser percorrido pela reflexão sobre fatos  que invalidam a crença na existência de um Deus todo-poderoso e bom. Nesse domínio, devemos nos esforçar por desenvolver argumentos assentados na lógica. Assim, dada as premissas:

p.1 Deus criou o universo e tudo que nele há
p.2 Deus é todo-poderoso e bom

É forçoso que as levemos em conta quando confrontamos as representações de Deus como um criador e um ser todo-poderoso e bom com os fatos do mundo. Agora, vejamos os fatos. Sabemos que o Universo é indiferente ao nosso desejo de felicidade e segurança. Sabemos que os asteróides existem e que são potencialmente perigosos. Um deles dizimou os dinossauros. É razoável acreditar na possibilidade de que um asteróide, algum dia, possa colidir com a Terra, extinguindo todos os seres vivos que a habitam. Muitos asteróides passam pela Terra e muitos continuarão passando. A ideia de que o Universo foi criado por um designer inteligente e bom pressupõe que toda a sua criação tem de ter um propósito e que esse propósito seja benéfico. Isso é uma exigência lógica da própria definição desse ser. Ora, como podemos sustentar que os asteróides sejam alguma coisa produzida com um propósito bom? Na verdade, como podemos sustentar que há algum propósito subjacente à criação de um asteróide? Asteróides são objetos compostos pelos restos de outros grandes objetos, restantes da formação de planetas. Eles não existem para um propósito, muito menos para um propósito benéfico. Eles entram na formação de outros planetas e satélites e seu movimento se dá nas órbitas de Júpiter e Marte. Alguns eventualmente alargam suas órbitas, aproximando-se de planetas como a Terra e Vênus.
Ora, um Deus todo-poderoso, bom e onisciente reconheceria que tais objetos espaciais são ameaçadores e dotados de um imenso poder de destruição e, portanto, não os teria criado. Mas o fato é que os asteróides existem!

O desafio gnóstico

Imensa era a variedade de cristianismos primitivos. Prova disso surgiu quando da descoberta por trabalhadores agrícolas no Alto Egito de um punhado de livros produzidos por outros grupos cristãos cujos ensinamentos divergiam muito das visões proto-ortodoxas. A biblioteca de Nag Hammadi abrigava um vasto conjunto de livros, vários do quais encerravam concepções sobre Deus, sobre o mundo, sobre Cristo e sobre religião muito diferentes das perspectivas da proto-ortodoxia. Entre os livros, se acharam evangelhos supostamente escritos por Filipe e João, filhos de Zebedeu, por seu irmão Tiago, e seu irmão gêmeo Tomé. Também esses livros eram falsificados. A maioria dos textos se baseava na crença de que não havia apenas um Deus bom e grandioso que criou um mundo bom. Outros afirmavam, explicitamente, que o mundo não era bom e que resultava de um erro cósmico. Esse mundo fora criado por uma deidade inferior e ignorante, que era identificada, por engano, com o Deus verdadeiro e Todo-poderoso.
Os grupos gnósticos apelavam para a necessidade do “auto-conhecimento” como um meio de alcançar a verdade. A salvação só se alcançaria pelo conhecimento (gnose), que, no entanto, é secreto e reservado a uma elite espiritual. Conforme observa Ehrman,

“Documentos assim expressam o que muitos, ao longo da história, conhecem tão bem por experiência própria – os famintos, os doentes, os aleijados, os oprimidos, os abandonados, os inconsoláveis. Este mundo é miserável. Se há alguma esperança de libertação, não virá de dentro deste mundo por meios terrenos, como, por exemplo, melhorando o bem-estar social, colocando mais professores nas salas de aula ou investindo mais em recursos nacionais para a luta contra o terrorismo. Este mundo é um poço de ignorância e sofrimento, e a salvação não virá por meio de sua melhora, mas escapando-se completamente daqui”.

(p. 172)


Os gnósticos acreditavam que nós não fomos criados para viver neste mundo. Na verdade, nós fomos aprisionados aqui pela divindade ignorante e inferior que o criou. Para escapar a essa prisão terrena, os gnósticos propunham que devemos conhecer quem somos, de onde viemos e o que nos tornamos. Segundo esses cristãos, nós viemos do reino de Deus.
Não é correto entender o gnosticismo como um todo homogêneo. Havia diversas formas de gnosticismo, bem como há diversas formas de cristianismo.
Vejamos como os gnósticos e os escritores bíblicos pensavam o problema do mal no mundo. Para os primeiros, o mundo material é essencialmente mau. Tal mundo não fora criado por um Deus bom que declarou boas as coisas que criou, tal como se relata no Gênesis. É claro que judeus e cristãos não acreditavam ser o mundo perfeito, mas explicavam a origem do mal de modo diferente. Eles acreditavam que o mal provinha do pecado humano.
O gnosticismo é um movimento cristão que surgiu no interior do judaísmo, embora deste tenha divergido em alguns pontos da doutrina, sem, contudo, abandonar visões e matérias judaicas e cristãs. Particularmente interessante é a apresentação que faz Ehrman, em Os Evangelhos Perdidos (2008), da carta de Ptolomeu, um discípulo gnóstico de Valentim, a uma mulher, provavelmente, cristã proto-ortodoxa, nas quais encontramos as posições gnósticas sobre o Velho Testamento.
Antes de começar a apresentar o que tinha a dizer Ptolomeu sobre o Velho Testamento, convém lembrar que havia, naqueles tempos, uma ampla variedade de entendimentos do Velho Testamento entre os grupos cristãos. Os ebionitas acreditavam que o Velho Testamento era a sagrada Escritura em que se deveria basear o cânone cristão; para Marcião (de onde provém o termo “marcionitas”), o Velho Testamento recobria apenas as Escrituras do Deus judaico, não do Deus de Jesus; portanto, não poderiam ser incluídas no cânone.
Ptolomeu, a seu turno, concentra suas críticas nos cinco primeiros livros do Velho Testamento (conhecido como “Pentateuco”). Discordava de duas visões correntes acerca de quem estabeleceu a Lei. Os cristãos proto-ortodoxos defendiam que a Lei fora estabelecida pelo Deus, que é Pai. Alguns grupos gnósticos, ao contrário, entendiam que ela fora estabelecida pelo diabo. Para Ptolomeu, ambas as visões são equivocadas.
Ptolomeu – e nisso devemos reconhecer-lhe o bom-senso – entendia que o Velho Testamento não poderia ter sido inspirado por um Deus bom e perfeito, já que seus textos incluem uma série de recomendações imorais que não são dignas de um Deus bom e perfeito, como as dadas aos israelitas, que deveriam assassinar os canaanitas que viviam na terra que lhes fora prometida àqueles. Por outro lado, não poderia ter sido inspirado pelo diabo, já que inclui alguns preceitos bons e justos. Para mim, isso encaminha à conclusão de que o Velho Testamento foi produzido por homens, seres essencialmente contraditórios. Mas Ptolomeu não poderia, evidentemente, chegar a essa conclusão. Se nem era o Deus verdadeiro nem o diabo o autor, quem teria sido então?
Ptolomeu observa que os Dez Mandamentos devem ter sido estabelecidos pelo Deus verdadeiro. Todavia, há outras leis que não provieram desse Deus, no que Jesus parecia estar de acordo. Escreve-nos Ehrman a esse respeito o seguinte:

“(...) apenas algumas leis da Escritura vêm realmente de Deus. Porém, até mesmo essas leis divinas são de três tipos. Algumas são perfeitas, como os Dez Mandamentos, por exemplo. Outras são manchadas pela paixão humana. Por exemplo, a lei de retaliação, “olho por olho, dente por dente”, é “entrelaçada com injustiça”, porque, como destaca Ptolomeu, “aquele que é segundo em agir injustamente ainda assim age injustamente, diferindo apenas na ordem relativa na qual ele age, e cometendo o mesmo ato” (5:4). Terceiro, há algumas leis da Escritura que devem ser claramente interpretadas de forma simbólica, e não literal”.

(p. 196)



Uma dessas leis que devem ser interpretadas simbolicamente é a da circuncisão. Para Ptolomeu, ela não deveria ser interpretada como uma ordem para que retirassem o prepúcio dos meninos, mas como uma indicação da necessidade de destinar o coração a Deus. A lei do Sabá não tem nada que ver com abster-se de trabalhar no sétimo dia, mas de evitar a prática do mal; e a lei do jejum não é uma prescrição para que se passe fome, mas para que se abstenha de maus hábitos.
Com base no ensinamento de Jesus sobre o Velho Testamento, Ptolomeu conclui que a Lei implica um ser divino e justo, mas não um Deus único verdadeiro e perfeito. A esse ser divino e justo, Ptolomeu chamou o Demiurgo, ou seja, o criador do mundo. Esse Demiurgo é um intermediário entre o Deus verdadeiro, bom e perfeito e o Diabo.
Ptolomeu estava convencido de que seus ensinamentos foram baseados naquilo que Jesus ensinou. Declara que seguiu a “tradição apostólica”. Ehrman, concluirá, como se segue:

Claramente, aqui está um crente sincero, que entendia que suas visões eram aquelas dos apóstolos e, por meio deles, de Jesus. Isso se aplica não apenas às suas visões da Escritura, mas àquelas do mundo divino e do lugar do ser humano neste mundo. Aqui temos uma evidência adicional, como se fosse necessária mais alguma, de que os perdedores na batalha para estabelecer a “verdadeira” forma de Cristianismo lutavam para descobrir a verdade e a certeza de que seu entendimento da fé residia no ensinamento dos próprios apóstolos de Jesus. Se as visões de Ptolomeu não tivessem sido citadas nos escritos de Epifânio, que as explicou somente a fim de atacá-las, poderíamos nunca ter percebido como elas eram claras, apaixonadas e íntegras”.

(p. 197)

Não tive a intenção de ser exaustivo na apresentação do diversificado pensamento gnóstico cristão. Apoiarei minhas conclusões, com as quais, espero, o leitor esteja de acordo, sobre esse trecho final de Ehrman.
Em primeiro lugar, é imperioso notar que o autor usa aspas em “verdadeira”, ao se referir à forma vitoriosa do cristianismo. Isso nos leva a considerar o fato de que não temos razões para assegurar que a perspectiva vitoriosa, a proto-ortodoxa, representada por figuras como Irineu e Epifânio, seja tão verdadeira quanto a de Ptolomeu. Espero que fique claro que o que pesou para a vitória dos proto-ortodoxos, que estabeleceram num cânone definitivamente, suas visões teológicas, foi seu poder (político e ideológico). A visão “verdadeira” é a visão dos grupos vitoriosos. Já as perspectivas dos perdedores foram qualificadas de heréticas ou falsas. Quão diferente, podemos supor, seria o Cristianismo, hoje, caso as visões defendidas por Ptolomeu predominassem sobre aos dos pais da Igreja primitiva.
Em segundo lugar, o próprio fato de que havia grupos cristãos, muito variados entre si, que tinham concepções diferentes sobre quem era Jesus, sobre a natureza de Deus (ou dos deuses) e do mundo material prova que foi por razões históricas que hoje, os cristãos, modernos assumem determinadas representações de Deus como “verdadeiras” e, supostamente, reveladas pelo próprio Deus. Como vimos, grupos de cristãos tinham compreensões diferentes de Deus, do mundo, do problema do mal e do sofrimento, de Jesus, etc. Ora, um Deus que pretendesse se revelar deveria fazê-lo de modo a evitar equívocos e diversidade de opiniões, por vezes, contraditórias a seu respeito.
É interessante notar também que a posição dos gnósticos, em face do problema do mal no mundo, era mais confortável, teologicamente, do que a dos israelitas, que tinham de conviver com o desapontamento sempre que se apercebiam de que seu povo sofria, sem que Deus interviesse. É verdade que os autores de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias e Amós buscavam explicar o sofrimento do povo de Israel, que sofrera com invasões militares, dificuldades políticas e sociais, culpando o próprio povo pelo pecado contra Deus. O sofrimento era, assim, na perspectiva desses autores, resultado da punição de Deus. Mas como explicar a permanência do sofrimento, mesmo quando as pessoas se voltavam para Deus? Essa visão também falha, porque não explica o sofrimento dos justos e a prosperidade dos perversos.
Os gnósticos, a seu turno, explicariam que o sofrimento é inerente à matéria de que o mundo foi feito; é produto de uma criação imperfeita, feita por uma divindade ignorante. Não suponho que os gnósticos estivessem com a verdade. Tanto eles quanto os demais cristãos buscavam compreender o mundo a partir de suas visões ideológico-teológicas. Mas notem a coerência interna da visão gnóstica. Uma vez reconhecendo ser este mundo impregnado de dor e sofrimento, os gnósticos não poderiam sustentar a crença de que este mundo tenha sido criado por uma divindade boa e perfeita. A alternativa foi elaborar uma teologia que ensinasse existirem dois deuses: um bom e perfeito, que não criou o mundo; e uma divindade era imperfeita e ignorante, que teria criado o mundo e capturado os seres humanos, aprisionando-os. Os gnósticos tinham um mito através do qual contavam o surgimento tanto do Deus verdadeiro e perfeito quanto da divindade imperfeita. Nós, seres humanos, proviemos desse Deus bom e perfeito, que nos reserva um reino de paz e felicidade.
Quando nos esforçamos por estudar e compreender fatos como os que apontei, que dizem respeito à formação do cristianismo, um movimento religioso marcado, ainda hoje, pela diversidade de dogmas, crenças e rituais, somos levados a perceber como tudo que se escreveu e se disse sobre Deus, Jesus, e seus feitos grandiosos, são ficções históricas produzidas por homens socio-historicamente situados, que buscavam respostas às suas dificuldades, em sua época. Se alcançamos essa compreensão, entendemos o que quero dizer quando sugiro que busquemos o enraizamento de Deus na história. O Deus transcendente (que existe além do mundo e do universo e independente destes) é um Deus de que não se ouviria falar se não existissem seres humanos para produzir história. A compreensão da história do Deus judaico-cristão ajuda-nos a entender também as razões por que ele não é um Deus unanimemente reconhecido no mundo. Há povos, comunidades que o ignoram. E os povos que o desconheciam passaram a professar a fé nele por força da opressão de povos colonizadores. Novamente, a história vem em socorro da real forma como esse Deus “se revela”. Um Deus do qual se diz ser bom, justo, perfeito, amoroso e todo-poderoso não deveria depender da ação opressora e violenta de grupos humanos para se tornar conhecido por comunidades humanas que, por razões culturais e históricas, o ignoravam até então. Veja-se o caso dos povos indígenas do Brasil de 1500, aos quais os valores do cristianismo (e, evidentemente, a crença, até então inconcebível nos padrões culturais desses povos, no Deus cristão) foram impostos por força da ação dos colonizadores portugueses.
Um Deus que pretendesse se revelar como único e verdadeiro deveria cuidar para que outras tantas comunidades de homens não viessem a cultuar outros deuses ou mesmo a abandonar qualquer crença em deuses. Os ateus existem. Não se trata de um Deus que deveria se impor e obrigar a todos devoção a ele. De certo modo, foi o que aconteceu: não que Deus tenha se imposto, é claro, mas sim homens que impuseram suas crenças em um único Deus que julgavam verdadeiro. Um Deus tão grandioso quanto o Deus cristão simplesmente seria capaz de revelar-se, de modo que todos os homens se tornariam convencidos de que só há um único Deus e, certamente, o meio pelo qual se revelaria não poderia consistir em  “inspirar” Escrituras produzidas por seres humanos tão suscetíveis ao erro e à corrupção, tampouco por meio de apropriações de terras alheias e jugo de seus habitantes, mediante a força da opressão e violência.









terça-feira, 11 de dezembro de 2012

"O sexo é o alívio da tensão. O amor é a causa." (Woody Allen)







Morangos


O teu amargo me sabe doce
Doce como devem ser os morangos
Colhidos e levados à boca salivosa
Que goza de tua nudez perturbadora

(BAR)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O girassol, em muitas culturas, é considerado o símbolo solar da grandeza.






Poente

Quero a rosa que jaz no jardim da saudade
O girassol que ostenta a face do sol
O grão de que emana a dor da vida
Que morre silente e ignota
Quando tinge o céu o arrebol

(BAR)

"A crença no milagre conduz ao ateísmo e não à fé." (Spinoza)



                           
                              A corrupção intelectual pela fé


Prejuízos acarretados pelo pensamento religioso:

1. Conformação do pensamento ao sistema de crenças;
2. Dificuldade em elaborar ou acompanhar raciocínios que contrariam as crenças estabelecidas no sistema doutrinário;
3. Dependência emocional;
4. Incapacidade de exercer autonomia intelectual.

A experiência que vivi recentemente parece confirmar esses quatro prejuízos. Quando me esforçava para mostrar a incongruência entre a crença de que existe o diabo e a crença de que Deus existe, meu interlocutor foi incapaz de acompanhar-me o raciocínio, muito simples, por sinal. O diálogo sucedeu mais ou menos assim:

Eu – Deus criou tudo que há, digo, o mundo, o universo. Deus é o princípio e o fim de todas as coisas. Antes do universo, havia apenas Deus. Está de acordo?

A – sim.

Eu – Se Deus criou tudo que há (o mundo e o universo), de onde surgiu o diabo?

A – o diabo é um anjo decaído do céu.

(note que não perguntei sobre a identidade do diabo, quem ele é. Perguntei sobre sua origem)

Eu – Não, isso é parte de uma narrativa que nos foi contada nas vivências de nossa fé. Quero dizer como ele passou a existir, se Deus criou tudo que há?

(meu interlocutor foi incapaz de acompanhar meu raciocínio; precisei, então, prosseguir...)

Eu – Bem, se Deus criou tudo que há, é correto concluir que Deus criou o diabo. Você nem nenhum outro cristão aceitariam essa conclusão, é claro.

(prossegui...)

Eu – Mas se o diabo existia junto a Deus e independente de Deus (por alguma razão inexplicável), por que Deus não foi capaz de destruí-lo? Se Deus é todo-poderoso e bom, não deveria ele ter dado cabo do diabo, cuja existência só se destina a fazer o mal?  - e é claro que Deus não é autor do mal e nem pode ser conivente com ele.
Meu interlocutor ficou a me olhar com certo espanto (não sei o que lhe ocorria dentro da cabeça). Não sei se minha tentativa de esclarecê-lo sobre o absurdo da manutenção de duas crenças conflitantes entre si (a de que Deus existe e a de que o diabo também existe) logrou êxito.
Fico pensando que, embora haja certo distanciamento intelectual entre mim e meu interlocutor, tanto eu quanto ele somos seres humanos capazes de usar nossa razão para operar raciocínios dedutivos simples.
Quem acredita num deus todo-poderoso (ainda que essa ideia acarrete outros sérios problemas de lógica) e, ao mesmo tempo, bom não pode, por coerência, acreditar em possessões demoníacas. Afinal, se possessões demoníacas são possíveis, então o demônio existe e Deus é incapaz de extingui-lo. Logo, Deus não é onipotente. Se é possível ao demônio apossar-se de nossos corpos, a fim de nos prejudicar, e Deus o permite, então Deus não é bom. É forçoso concluir que as crenças no diabo e em Deus são inconciliáveis. Se alguém crer que um Deus tal como é representado pela teologia cristã existe, não pode acreditar na existência do diabo.
Eu defendo que o problema maior da fé é que ela sustenta certo número de crenças que se sedimentaram na mente de uma pessoa e que se conservam ao abrigo da reflexão. Ou seja, esse conjunto de crenças se engessa e não é, em momento algum, submetido ao crivo da crítica (entenda-se “ao exame racional”). Por outro lado, também defendo que a fé se sustenta  não só na ignorância do fiel sobre a História de sua própria fé (ele desconhece, em geral, como o seu livro sagrado veio a se tornar um livro; como sua religião se constituiu através dos séculos, etc.), mas também sobre as formas de funcionamento do mundo. Não pretendo aqui demonstrar de que maneira o conhecimento histórico sobre a religião cristã contribui para a formação de uma consciência crítica. Mas eu acredito que saber coisas do tipo “como se deu a constituição do cânone do Novo Testamento”, “que os quatro evangelhos que entraram para o cânone não foram redigidos pelos supostos apóstolos de Jesus”, “que tais escritos que hoje figuram em nossa Bíblia são produtos de um trabalho incansável de copistas (que produziram cópias de cópias) e que os originais se perderam”, etc, levanta, ao menos, uma suspeita quanto à credibilidade dos registros dos atos de Jesus, e  também quanto ao valor de verdade das lições teológicas que encontraram alicerce nesses textos falsificados. Acrescente-se a isso o saber sobre a existência de milhares de cristianismos primitivos, como as seitas gnósticas, que competiam com a forma de cristianismo ortodoxo que ia se desenvolvendo e que acabou sendo a forma vitoriosa.
O religioso acredita, por exemplo, em milagres, mas ignora que, ainda que ore, uma pessoa cujas pernas foram amputadas não terá seus membros originais restituídos (digo, ele poderá orar e não verá com os próprios olhos as pernas dessa pessoa crescendo novamente com perfeição, como acontece com o rabo da lagartixa, que se regenera, depois de ser cortado). Mas ele também precisa ignorar, por exemplo, que a natureza não é perfeita. Na verdade, ele se alimenta da ilusão de que ela seja perfeita em algum sentido. No entanto, os furacões destroem cidades e matam pessoas inocentes. Um meteorologista lhe daria uma explicação adequada sobre o que são os furacões e sobre suas causas. Se ele perguntasse a um padre como explicar que existam furacões num mundo criado por um Deus bom, o máximo que poderá ouvir é “isso é um mistério”. É claro que não há mistério nenhum. Um mundo com fenômenos naturais tão nocivos e desastrosos, repleto de doenças – um mundo em que as bactérias é que predominam, quantitativamente, sobre todas as outras formas de vida mais complexas, causando-lhes sérios danos – não pode ser um mundo criado por uma divindade boa. Isso é uma evidência inconteste de que não existe deus nenhum. Olhe para o mundo! Leibniz estava errado: não se trata do melhor dos mundos possíveis. Qualquer um de nós, sem muito esforço poderia imaginar um mundo melhor. Por exemplo, um mundo onde as pessoas nascessem sem doenças congênitas seria melhor do que este mundo em que crianças (milhares delas) nascem com doenças congênitas. O sofrimento dessas criaturas inocentes é injustificável. A implicação disso é clara (ou deveria ser). Se Deus é o responsável pela encarnação de cada um de nós (penso que não seria errado assumir, em consonância com o pensamento cristão, a crença de que Deus se encarrega de infundir cada alma num corpo, destinando o conjunto à vida, quando da concepção, por um ato sexual entre um homem e uma mulher), por que razão permite que crianças nasçam com doenças congênitas. Se ele criou tudo que há, por que razão encheu este planeta de bactérias e vírus (como o da AIDS), dos quais nem as crianças pequenas estão livres?  Crenças religiosas não descrevem nenhum estado-de-coisas do mundo.
Eu acredito que, se fossem proporcionadas às pessoas que creem em Deus e participam das cerimônias de sua religião, oportunidades de estudar seriamente seus livros sagrados (a Bíblia, em nosso caso) - não com a supervisão de um sacerdote ou líder religioso, cuja intenção, provavelmente, seria moldar o leitor à leitura devocional (e não crítica), mas com o acesso à leitura de outros livros, escritos por especialistas na história do cristianismo e na Bíblia, e que contribuiriam para iluminar esse estudo -, elas poderiam, ao menos, tirar conclusões por si mesmas e decidir se deveriam permanecer fiéis à crença na existência de um Deus, que, não obstante, veriam, sem muitas dificuldades,  tratar-se de uma construção sócio-histórica e ideológica, ou se deveriam rejeitá-la de algum modo.
Por incrível que pareça, há quem acredite que a amputação de pernas possa ser uma bênção. Não há contra isso raciocínios eficazes. O fato de uma pessoa acreditar que alguma forma de sofrimento, de dano à saúde, ao bem-estar, à vida possa significar algum tipo de benefício para o paciente (no caso, um amputado) é um sinal claro do efeito da contaminação do vírus da fé. O sofrimento passa a ser um valor, ou seja, passa a ser útil. Diz-se comumente que o sofrimento acarreta alguma modificação positiva no modo de ser de uma pessoa. Eu diria que isso não é verdade. Há pessoas que, depois de muito sofrer, se tornam amarguradas, se deprimem, se revoltam; outras ainda tentam suicídio. O sofrimento jamais pode ser pensado como valor, como útil ou benéfico, em algum sentido. Todo esforço vital de uma criatura com algum grau de consciência, dotada de um sistema nervoso, será no sentido de evitar o sofrimento. A menos que você seja um masoquista, não encontrará benefício nenhum em sofrer. Mas, é claro, que não escapamos ao sofrimento em alguma medida. O sofrimento tece as malhas da existência. Todas as religiões o reconhecem como um fato incontestável. O problema é que o cristianismo, que se alicerça na crença de que Cristo sofreu e morreu para a salvação de toda a humanidade, ensina que há valor no martírio, no sofrimento. Aos olhos dos cristãos, o sofrimento que se abate sobre um indivíduo deve ser uma razão para que ele não abandone a fé ou a questione. O sofrimento, segundo essa visão indecente, deve justificá-la. A lógica, subjacente a esse ensinamento é: quanto maior seu sofrimento maior deverá ser a sua fé. Se você está sofrendo é sinal de que sua fé está frágil e precisa ser fortalecida. O sofrimento é um sinal para que você se volte para Deus, se resigne ao seu poder; demonstre a ele que você continua confiante na providência dele, apesar de tão pungente sofrimento que sobre si tenha se abatido . Na lógica com que se busca encerrar a consciência humana nos calabouços da fé, o sofrimento é um valor; o sacrifício é honroso. Ou, o que dá no mesmo, o sofrimento é um artifício pedagógico aplicado por Deus para que você "se apresente a ele e se prostre perante sua majestade". Um claro ensinamento formador de consciências submissas, dependentes, aviltadas. 
Ontem mesmo assisti, no programa Esquenta, uma moça cujos membros inferiores foram amputados. Ela é uma atleta paraolímpica, que foi medalhista e conseguiu dar uma casa para a sua mãe. Ela agradecia a Deus a sua condição, porque acreditava que, graças a essa condição, ela pôde realizar o sonho de presentear a mãe com uma casa. Ora, não lhe passou pela cabeça o fato de que era ela mesma a única responsável pelo seu sucesso. Não se deu conta de que seu talento para arremessar discos independe de sua condição como portadora de uma deficiência. Provavelmente, ela conseguiria o mesmo êxito se tivesse as duas pernas. Seu talento  se atualizou não porque ela se tornou uma cadeirante. Seu sucesso aconteceria sendo ela deficiente ou não. Bastaria treinar, se dedicar como todo atleta. Nenhum sucesso compensa as dificuldades que têm de enfrentar pessoas que vivem na condição em que ela vive. Não pode ser ele razão suficiente para preferir a condição de deficiente físico a uma vida sem as dificuldades decorrentes desta condição. Há muitas pessoas que enfrentam tais dificuldades e são desprovidas de seu talento. Possivelmente, possuam outros e o expressarão a fim de superar suas dificuldades.
O valor não está em sofrer, mas na forma como encaramos o sofrimento e nos meios de que nos valemos para suportá-lo ou superá-lo. O valor está no que faremos com os efeitos do sofrimento em nossa vida. Algumas pessoas, como a medalhista a que me referi, não se resignam a chorar o infortúnio de ter suas duas pernas amputadas. O valor está na força com que levamos adiante a vida, apesar dos sofrimentos, às vezes, incontáveis. A psicologia tem um nome para isso: resiliência.
A alienação religiosa se manifesta também nesta outra maneira de interpretar os fatos da vida. A pessoa crê que não é a única responsável pelos seus feitos e passa a atribuir a responsabilidade a um Outro que a transcende (Deus) e se resigna à crença de que esse Deus lançou mão do recurso ao infortúnio, ao sofrimento para beneficiá-la. Novamente, ao sofrimento se agrega valor. O valor humano é mascarado. A verdade é que essa pessoa, como tantos milhares de pessoas, foi capaz de, apesar das dificuldades que teve de enfrentar, superá-las. É isso que devemos valorizar e admirar. Nada disso tem a ver com um propósito divino. Acho extremamente curioso o fato de os religiosos, ao mesmo tempo em que se julgam sabedores da "verdadeira" natureza de Deus, de suas intenções e desejos, quando não encontram, no corpo de crenças em que seu discurso ganha forma e poder, as razões para justificar certas ocorrências do mundo que perturbam o que pensam saber a respeito de Deus, limitam-se a dizer coisas como “Deus age de modo escuso”, ou “não são  claros os seus propósitos”. É nessas ocasiões que a imaginação mostra sua majestade: qualquer um pode especular sobre quais são as intenções de Deus, os modos como ele se relaciona com o mundo, como ele se revela, etc. A história dos cristianismos é uma prova disso. Havia, nos séculos II e III a.C, grupos cristãos que acreditavam que esse mundo fora criado por uma divindade má ou inferior; que o Deus revelado por Cristo nada tinha a ver com a criação do mundo. Dessa forma, eles buscavam explicar por que havia tanto mal e sofrimento num mundo criado por um Deus todo-poderoso e bom (ainda vou escrever um texto tratando deste assunto). O leitor poderá tomar conhecimento dele no livro Evangelhos Perdidos, de Bart. D. Ehrman. 
Creio muito interessante saber como grupos cristãos gnósticos, a fim de sustentar sua fé, lançavam mão de argumentos fantásticos e bem afinados com os seus pressupostos de fé. Assim é que, ao invés de concluir pela inexistência de Deus (coisa inaceitável, evidentemente), recorriam a outras convicções, como a que mencionei. Certos grupos gnósticos assumiram a crença de que este mundo não fora criado pelo Deus revelado por Cristo, mas por uma divindade inferior ou má. Vejamos este trecho em que Ehrman nos ensina sobre o que os gnósticos pensavam sobre nossa natureza e sobre nossa existência neste mundo:

“(...) não pertencemos a este mundo terrível. Viemos de outro lugar, o reino de Deus. Fomos capturados aqui, aprisionados e quando aprendemos quem realmente somos e como escapar, poderemos então retornar para nosso lar celestial”.
(p. 173)



Pelo menos, os gnósticos reconheciam quão trágica é a vida neste mundo, mas não explicavam (até onde eu sei) por que o Deus verdadeiro, que se encarnou num homem a quem tomou para filho, permitiu que uma divindade ignorante e inferior criasse o mundo e aprisionasse nele os seres humanos (e os outros animais também é claro). Penso que não é custoso concluir que, se Deus quisesse realmente fazer-se conhecido da humanidade, se apresentaria de modo inequívoco, pondo a nu suas intenções, esclarecendo a todos a sua magnitude,  impedindo, assim, que muitas visões sobre sua natureza, sobre seus atos e ensinamentos se proliferassem e tomassem formas até conflitantes, ao longo dos séculos.
Se há beleza no trágico, isso se revela na capacidade de os seres humanos trabalharem no sentido de produzir os recursos que os ajudam a superar seus sofrimentos. Evoluímos para sobreviver mais e melhor a uma existência absurda e muitas vezes hostil. Buscamos sentido num Universo sem sentido. Eis a beleza!




quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

"As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo." (Ludwig Wittgenstein)


                       

                               Para além da gramática
                A estruturação do mundo pela linguagem


O objetivo das aulas de língua portuguesa na escola é desenvolver as habilidades de leitura e produção textual dos estudantes. Há espaço para atividades de reflexão sobre a gramática? Desde que compreendida como um mecanismo estrutural emergente do texto. Desde que seja pensada como um sistema de regras que ativamos para a produção de textos com vistas a produzir sentidos. Desde que não seja considerada como algo à parte dos processos comunicativos que tomam forma em textos.
Não me surpreende, contudo, que os exames de concursos públicos ainda sejam elaborados com questões que exploram fatos de gramática em frases amputadas, em fragmentos de texto desprovidos de funcionalidade. O que se oferece são cadáveres linguísticos para análise e taxionomia gramaticais.
Recentemente,  me pediram para eu explicar o que é um predicado nominal. A pessoa interessada na explicação está estudando para o concurso do Banco do Brasil. Silenciei e, rapidamente, comecei a lhe explicar do modo mais simples possível. Me apoiei sobre o aspecto formal e lhe disse que o predicado nominal se forma por um dos verbos de ligação (ser, estar, permanecer, ficar, parecer, tornar-se, continuar, andar) e por um adjetivo, ou substantivo, ou numeral, o ou pronome, que se dispõe à direita. Isso, contudo, não explica o que significa  o conceito de predicado nominal. Afinal, não explica a diferença entre predicado verbal e predicado nominal. Tanto num quanto noutro há um verbo.
Imagine-se que o professor dissesse que o predicado nominal se forma pela combinação de um dos verbos de ligação referidos acima e um predicativo. Bem, nesse caso, ele teria de explicar o que é um predicativo (na GT, predicativo do sujeito). E se ele recorrer às gramáticas normativas mais representativas pode ou não encontrar uma resposta satisfatória, ou, pode não encontrar resposta alguma. Predicativo cujo conceito, nas teorias de base funcionalista, é recoberto pelo termo predicador, é o elemento da oração responsável pela predicação. E predicação é um conceito que não é explicitado na tradição gramatical. Nas três principais gramáticas de nossa língua, não se nota uma definição de predicação. Seus autores parecem partir do pressuposto de que seus leitores já sabem o que é predicar. Mas predicar é uma noção que tem uma longa história no pensamento linguístico, remontando às reflexões de Aristóteles sobre lógica. Predicar é, grosso modo, emitir um juízo sobre um sujeito. Na frase “Felipe é meu amigo”, há uma predicação, já que se informa algo sobre “Felipe”. O conceito aristotélico de predicação é mais abrangente, todavia. Não vou me estender sobre pormenores.
Atualmente, ao contrário do que sugeria a lógica proposta por Aristóteles, toda predicação inclui necessariamente um verbo, embora nem sempre seja desempenhada por um verbo. No caso de frases como “Felipe é meu amigo”, o predicativo (ou predicador) é “meu amigo”, e não o verbo “ser”.
Mas por que não é o verbo “ser”? É que a noção de predicação consiste no estabelecimento de relações entre termos e na aplicação de propriedades a esses termos. O predicador desempenha os seguintes papéis:

a) é ele que seleciona seus argumentos;
b) é ele que estabelece a relação entre esses argumentos;
c) é ele que faz restrição de seleção quanto à classe semântica desses argumentos.

Há, portanto, duas dimensões, intrinsecamente ligadas, no fenômeno da predicação: uma semântica, que diz respeito ao fato de o predicador fazer restrição quanto à classe semântica dos seus argumentos e de lhes fixar determinados papéis semânticos (agente, paciente, etc); a outra, sintática, que diz respeito ao fato de o predicador estabelecer uma estrutura relacional constituída de um certo número de lugares vazios a serem preenchidos por seus argumentos. É o predicador que determina os argumentos que devem ocupar os espaços a eles destinados na oração.

Assim, por exemplo, tome-se o verbo “rasgar”. O verbo “rasgar” instaura uma estrutura de relação em que um ou dois argumentos podem estar implicados. Vou representar os argumentos pelas letras X (sujeito), Y (complemento 1), Z (complemento 2):

a) X rasgou.
b) X rasgou Y

(1) A camisa rasgou.
(2) Pedro rasgou a camisa.


Note-se que, quando usado sem complemento, o verbo rasgar exige um substantivo [- animado] e [+ rasgável] para preencher a posição de sujeito. As propriedades (semânticas) - animado e + rasgável são importantes por que restringem o uso dos substantivos que podem ocupar a referida posição. O sujeito aí cumpre o papel semântico de paciente (sofre a ação). Os traços explicam por que uma frase como “A madeira rasgou” é semântica e cognitivamente inaceitável. O substantivo “madeira” não comporta a propriedade + rasgável. Por outro lado, a inaceitabilidade da frase “Pedro rasgou”, decorre do fato de que o substantivo Pedro comporta o traço semântico + animado. É o verbo “rasgar”, enquanto predicador, que prevê o uso de substantivos dotados de determinados traços, nas duas estruturas que estabelece. Em (2), temos uma estrutura sintática em que se acham articulados dois elementos: um, na posição de sujeito; e outro, na posição de complemento. Nesse caso, o termo que ocupa a posição de sujeito pode ser o agente, ou seja, pode representar a entidade animada que age intencionalmente (pode porque nem sempre o interpretamos como agente; dependendo do contexto, interpretamos “Pedro rasgou a camisa” como “a camisa do Pedro rasgou”, sem que Pedro tenha intencionalmente rasgado sua própria camisa); enquanto a posição de complemento será ocupada por um substantivo na função de objeto que comporta a propriedade [+rasgável]. Uma frase como “Pedro rasgou a pedra” é inaceitável, porque, embora satisfaça a condição adequada para o preenchimento do sujeito nesse caso (sujeito agente), não satisfaz a condição de preenchimento do complemento, posição que deveria ser ocupada por um substantivo que comporta o traço [- rasgável].

Esquematicamente, concluímos o seguinte sobre o verbo “rasgar”:

(1)   X   rasgar
Paciente
      [- animado] [+ rasgável]



(2) X        rasgar       Y
     Agente                Objeto
   [+ animado]          [- animado]
   [+ intencional]      [+ rasgável]


Para além de uma exercitação gramatical, no nível semântico-sintático, a análise da predicação patenteia o modo como nós experienciamos o mundo por meio da linguagem. Ela nos mostra como, valendo-nos da linguagem, organizamos nossas experiências de mundo numa estrutura dotada de sentido. Mostra-nos como o mundo é (re)construído, organizado estruturalmente mediante as categorias da linguagem. Assim, quando usamos um verbo como “rasgar” (uma categoria) para construir um estado-de-coisas do mundo, uma “cena” experienciada da realidade, sempre reconstruída a partir de uma dada perspectiva, temos, para que tenhamos sucesso comunicativo. quando da codificação de nossas experiências de mundo. construir nossos enunciados na base do modelo semântico-cognitivo e estrutural previsto por esse verbo.
Insisto neste ponto. O verbo “rasgar” descreve uma ação em que estão envolvidas entidades que desempenham, nessa parcela de mundo por ele descrita, determinados papéis. Cada qual comporta certo número de traços que dizem respeito às interpretações que fazemos das relações entre as coisas do mundo. Por exemplo, categorizamos um ser como agente se ele é capaz de executar intencionalmente uma ação. Categorizamos uma entidade como ‘paciente’ se ela sofre uma ação. E assim por diante.

Vejamos a frase abaixo:

(3) Eu guardei meus livros na estante.

Claro parece que o “eu” é o agente; “meus livros”, o objeto; e “na estante”, o lugar. Não tendemos a considerar “meus livros” como paciente, porque não sofre, a rigor, a ação, embora esteja implicado na ação.
Se quiséssemos determinar a predicação do verbo “guardar”, devemos ainda considerar sua estrutura relacional, a qual encerra três termos representados pelas variáveis X, Y e Z:

(3) X  guardar  Y em Z.

A preposição é exigida pelo verbo “guardar”. Através dela, conecta-se o constituinte “Z” ao verbo “guardar”.
Se nós invertêssemos a relação entre os termos, o resultado seria uma estrutura semanticamente inaceitável. Vejamos:

(3a) * O livro me (=eu) guardou na estante.

É que o verbo “guardar” exige que, na posição de sujeito, ocorra um substantivo [+ humano], na função de agente; e que, na posição de complemento, figure um substantivo [- animado] na função de objeto. Note-se que, nesse caso, o traço [+ humano] é mais restritivo que o traço [+ animado], o qual também pode se aplicar a animais. Um animal não pode guardar um livro na estante.

Voltemos ao exemplo “Felipe é meu amigo”. O predicador (ou predicativo, na GT) é “ meu amigo”. Seu núcleo “amigo” é que seleciona tanto o verbo “ser” (que expressa uma relação atributiva, ou seja, 'amigo' é uma qualidade que atribuo a Felipe) como o sujeito. Comunico, assim, que “Felipe” está incluído na classe de amigos que tenho. Em relação ao sujeito, “amigo” determina que essa função  seja preenchida por um substantivo [+ animado] (em geral, [+ humano]). Isso é importante, porque permite que expliquemos a inaceitabilidade de uma frase como “*O chapéu é meu amigo”.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

"A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo." (Fernando Pessoa)


                  


                    
                        Os limites de nossa liberdade

Se pretendemos refletir seriamente sobre a questão da liberdade humana, será prudente quem decidir orientar suas meditações com a premissa segundo a qual a liberdade é graduada. Assumir que a liberdade é graduada significa dizer que ela é uma experiência submetida a graus. Assim, evita-se, em princípio, a crença, comum entre muitos de nós, de que somos livres, sem fazer-se acompanhar o adjetivo livres de um advérbio modalizador, como relativamente.
Assumir que somos relativamente livres é a posição mais acertada quando percebemos que não faz sentido pensar a liberdade senão nas esferas de relações sociais. Situada nas malhas da vida social, a minha liberdade encontra seu primeiro obstáculo quando reconheço o direito que o outro tem de exercer a sua. Na tentativa de ampliar meu domínio de liberdade, acabo por reduzir as possibilidades de exercício de liberdade do outro. Em tais circunstâncias, instaura-se um conflito de interesses. Não haveria vida em sociedade se não houvesse mecanismos para regular e limitar o exercício de liberdade individual, a fim de não só resolver possíveis conflitos, como também não permitir que as pessoas ajam sempre, segundo sua vontade. Numa democracia, pelo menos formalmente, a liberdade de cada cidadão deve ser garantida pela Lei, mas também deve ser regulada por ela. Há outras formas de limitar ou anular nossa liberdade, como os mecanismos de coerção e de cooptar, conforme veremos.
Em seu Aprendendo a pensar com a sociologia (2010), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman destina um capítulo para tratar da relação entre poder, escolha e dever moral. Poder, escolha e dever moral  são dimensões inerentes à condição humana. Compreender como são experienciados em sociedade ajuda-nos a entender de que modo o exercício de nossa liberdade se expressa e é limitado.
Bauman está interessado em mostrar como as relações do tipo causa-efeito orientam nossas ações e decisões cotidianas. O autor principia sua discussão, observando de que maneira um evento causa outro. Se um evento X será sempre seguido de um evento Y, diremos que há entre eles uma relação sem exceção. Nesse caso, postulamos haver uma lei que determina que X causa sempre Y. Por outro lado, se um evento X causa, na maioria das vezes, um evento Y, diremos que há então uma norma que estabelece que uma vez X é quase certo que ocorra Y. Ao contrário da lei, a norma admite exceções.
Para o autor, explicações baseadas nos conceitos de lei e norma, com os quais explicamos as relações entre eventos do mundo, não se aplicam, sem problemas, ao domínio das condutas humanas. Neste domínio, os eventos são causados pela ação de pessoas dotadas de certa liberdade de escolha. Elas agem segundo propósitos determinados.
Serão todas as escolhas tomadas de modo consciente? Podemos tomar decisões que ocorrem num nível subconsciente ou inconsciente? Bauman acredita que sim e classifica as ações do tipo “irrefletidas” em ações habituais e ações afetivas.

Ações habituais são as que praticamos no dia-a-dia em virtude do hábito. Acordamos, calçamos chinelos, vamos ao banheiro, tomamos café da manhã, etc. Seguimos uma rotina e não nos preocupamos em pensar sobre esses atos antes de executá-los, exceto se a rotina é interrompida por algum imprevisto. Nesse caso, precisamos para tomar decisões conscientes. As condutas habituais são herança dos processos formativos de nossa cultura, isto é, dependem de processos de aprendizagem. Nelas, sentimo-nos desobrigados a calcular, pensar sobre as ações que praticamos. Segundo Bauman, “(...) elas só nos chamam a atenção quando algo não funciona, isto é, quando a regularidade e a ordenação dos ambientes em que as praticamos entram em colapso” (p. 99)
O segundo tipo de ações é as ações afetivas. Elas se originam das nossas emoções. Também nelas dispensamos cálculos racionais. São engendradas por impulso e ignoram a orientação da razão. Segundo o autor, uma ação é afetiva “quando permanece não reflexiva, espontânea, não premeditada, e quando nela se embarca antes de qualquer ponderação e argumentos ou projeção de consequências” (p. 100).
Por fim, o terceiro tipo de ações é o das ações racionais. Trata-se de ações executadas após ponderação e cálculos segundo um plano racionalmente elaborado. Nelas, opera-se uma razão instrumental que seleciona os meios adequados para a execução dos fins pretendidos. As ações racionais podem orientar-se para fins mais valiosos do que outros; por conseguinte, podemos dizer que muitas de nossas ações racionais são orientadas por nossos valores. Dizer que nossas ações racionais estão calcadas sobre nossos valores significa dizer que são motivadas por aquilo que é caro ao nosso coração, por aquilo que apreciamos.

“Ao escolher nossos cursos de ação por meio da deliberação consciente e racional, também antecipamos prováveis resultados. Isso exige o exame da situação real na qual a ação terá lugar e dos efeitos que com ela esperamos alcançar. Para tanto, normalmente levamos em conta tanto os recursos disponíveis quanto os valores que orientam nossas condutas”.

(p. 101)

Para ilustrar a importância dos valores em nossas decisões quanto ao curso de nossa ação, considere-se a situação em que eu tivesse de decidir entre investir minhas economias para pagar a faculdade de meu filho ou investi-las para realizar aquela viagem com que tanto sonhei. Se o que vale mais para mim é a formação educacional de meu filho, será a ela que destinarei meu pecúlio.
Na seção em que se ocupa da influência dos valores e do poder em nossas condutas, Bauman nos lembrará a importância de considerarmos além dos valores, também os recursos como fatores que podem ampliar ou limitar nossa liberdade. Segundo o autor, numa situação como a que acabei de ilustrar, teremos de avaliar o alcance de nosso poder econômico e o “peso” de nossos valores. É nessa avaliação que tomamos consciência dos graus de nossa liberdade, já que nela torna-se claro para nós o que podemos ou não podemos fazer.
Ao considerar a liberdade como algo mensurável em graus, somos levados a relacioná-la ao acesso aos recursos necessários à sobrevivência. Em outras palavras, não podemos deixar de pensá-la relativamente às desigualdades sociais. Quanto menos acesso tenho aos bens culturais, porque meu poder aquisitivo é baixo, menos liberdade eu disponho. Novamente Bauman nos esclarece: “algumas pessoas desfrutam de gama mais larga de escolhas devido ao acesso a recursos, e podemos nos referir a isso em termos de poder” (p. 102) (ênfase no original).
Entra em cena a influência do poder no exercício de nossa liberdade. Trata-se de um momento de extrema importância no curso das reflexões do autor. Vou me demorar neste ponto. Leiamos, atentamente, a definição de poder proposta pelo autor:

“Compreende-se melhor o poder como a busca de objetivos livremente escolhidos para os quais nossas ações são orientadas e do controle dos meios necessários para alcançar esses fins. O poder é, consequentemente, a capacidade de ter possibilidades”.

(p. 102)


Pode-se dizer que, de acordo com Bauman, o indivíduo que detém poder escolhe livremente seus objetivos; tem a capacidade de agir sem obstáculos e controla os meios através dos quais poderá alcançar os objetivos que escolheu. O poder, assim, potencializa sua capacidade de ação. O poder lhe abre muitas possibilidades para agir.
Do papel que o poder desempenha no exercício de nossa liberdade, pode-se concluir que:
a) quanto mais poder dispõe uma pessoa, maior é seu campo de escolhas e maior é o conjunto de resultados que podem ser realmente atingidos;

b) quanto menos poder dispõe uma pessoa, menor será seu campo de opções e os resultados que pretende atingir deverão ser reduzidos.

Atentemos para as conclusões de Bauman, no que se segue:

“Assim, ter poder é ser capaz de atuar mais livremente, enquanto ser relativamente menos poderoso, ou impotente, corresponde a ter a liberdade de escolha limitada por decisões alheias – por quem tenha a capacidade de determinar nossas ações”.

(ib.id.)


Não só os adolescentes experimentam a desagradável sensação de ter sua liberdade perturbada ou limitada pelos outros (especialmente, por seus pais), nós, adultos, também vivemos situações em que nosso poder de atuação é reduzido pelo poder de que é investido o outro para agir.
Sempre que buscamos ampliar nossa própria liberdade, corremos o risco de desvalorizar a liberdade do outro. Há dois métodos pelos quais a liberdade do outro pode ser limitada: o de coerção e o de cooptar.
Por coerção, entende-se uma forma de manipulação pela qual os recursos de que dispõem as pessoas tornam-se inadequados à situação em que se acham, ainda que sejam adequados noutros casos. Por exemplo, numa situação em que uma pessoa muito rica seja confrontada com um assaltante portando uma arma de fogo, seus recursos econômicos não lhe servirão para potencializar sua capacidade de agir. Nessas circunstâncias, costuma-se dizer que não temos escolhas, embora até possamos tê-las, mas com um custo muito alto: a possível perda de nossa própria vida.
Não raro, somos confrontados com aqueles que exigem que reavaliemos nossos valores, ainda que não lhes reconheçamos a autoridade para tanto. Segundo Bauman, “nas condições extremas de campos de concentração, por exemplo, o valor da autopreservação e da sobrevivência pode bem ofuscar as demais escolhas” (p. 103).
A estratégia de cooptar consiste na iniciativa de um indivíduo ou corporação de manipular uma situação de tal modo, que o desejo de uns fica submetido aos objetivos de outros. A busca pelos valores visados, nessas circunstâncias, depende da observância de regras que são estabelecidas por quem detém o poder.

“Assim, o zelo e a eficiência com que os inimigos são mortos são recompensados, destacando-se a posição social do bravo soldado com medalhas e citações honoríficas. Os operários podem assegurar melhores padrões de vida (aumento de salário) desempenhando seu trabalho com mais dedicação e intensidade e obedecendo, sem questionar, aos regulamentos administrativos. Os valores dos subordinados transformam-se, então, nos recursos de seus superiores hierárquicos. Não são avaliados como fins em si mesmos, mas como meios a mobilizar a serviço dos objetivos dos detentores do poder. Quem está sujeito a essas manipulações não tem outra escolha senão capitular, abrindo mão de parte considerável de sua liberdade”.

(p. 103)


Marx, certamente, reconheceu quão limitada é a liberdade do proletariado no processo de produção capitalista. Despojados do controle dos meios de produção e forçados a vender sua mão de obra em troca de um salário submetido à prática de mais-valia, os trabalhadores das sociedades capitalistas experimentam tão-só a ilusão de que são plenamente livres e de que estão no controle de sua capacidade para trabalhar.
Retomando, por fim, a importância dos valores no âmbito de exercício de nossa liberdade, é imperioso insistir que não escolhemos todos os nossos valores, já que muitas de nossas ações permanecem habituais e, portanto, insuscetíveis a ponderações e justificações. Só as justificamos, caso sejamos instados a fazê-lo.
Quando somos intimados a explicar nossas ações, sentimo-nos obrigados a legitimá-las. A legitimação é uma forma de argumentar no sentido de demonstrar a razão por que uma posição deve prevalecer sobre outras. A legitimação justifica a autoridade de uma pessoa ou organização. Muitas vezes, é por força da legitimação da tradição que agimos. A influência de práticas e valores tradicionais sobre o exercício de nossa liberdade não pode ser desconsiderada. Bauman nos ensina o seguinte:

“(...) o que foi unido nenhuma presunção humana deve separar. Entretanto, mais que a consagração dos valores por sua idade avançada, os que procuram a aceitação popular para os princípios que pregam vão em alguma extensão escavar alguma evidência histórica genuína, putativa, de sua antiguidade. A imagem do passado histórico é sempre seletiva, e a deferência das pessoas com relação a ele pode ser listada entre as ações de disputas contemporâneas sobre valores. Uma vez que se aceite que determinados valores eram mantidos por nossos antepassados, eles se tornam menos vulneráveis à crítica contemporânea. A legitimação tradicional torna-se paulatinamente atrativa em períodos de mudanças aceleradas que só geram inquietação e ansiedade, quando parece, então, oferecer um conjunto de escolhas relativamente seguro, menos angustiante”.

(p. 106)

 A reivindicação de mais liberdade pelos indivíduos não deixa de acompanhar-se de angústia. Disso tratou com autoridade Sartre.
Bauman refere outras formas de legitimação, como a legitimação carismática, comum, especialmente, no domínio da Igreja sobre os fiéis. Segundo Bauman, “quanto mais forte for o carisma dos líderes, mais difícil é questionar seus comandos e mais confortável para os seguidores de suas ordens quando expostos a situações de incertezas” (p.107). No entanto, o autor nos lembra que o carisma não é uma particularidade do comportamento das autoridades da igreja ou de instituições. Ele surge sempre que a aceitação de determinados valores decorre da crença em que a pessoa que os prega está investida de poder privilegiado, que garante a verdade de seus pontos de vista.
Decerto, seria possível avançar mais; todavia, creio suficientes estas notas de reflexão sobre os fatores que podem limitar nossa liberdade, que se expressa socialmente em graus. Se não somos totalmente livres, como pretender que sejamos dotados de livre-arbítrio? Como a questão do livre-arbítrio tem uma série de implicações (psicológica, neurológica, filosófica, biológica, teológica), deixarei para dela tratar em outra ocasião.