quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"Ser romântico é um movimento do espírito para a negação do mundo" (BAR)




Precisava compartilhar com meus leitores o que acredito ser a melhor descrição dos românticos. Abaixo, um poema que compus num tempo em que me deleitava erigindo versos sobre a melancolia e  as frustrações. Tempos felizes de legítimo pesar romântico!



O Homem medíocre - José Ingenieros

“Os idealistas românticos são exagerados porque são insaciáveis. Sonham o máximo para realizar o mínimo, compreendem que todos os ideias contêm uma partícula de utopia e perdem algo ao se realizar: em raças ou em indivíduos, nunca se integram como pensam. Em poucas coisas, o homem consegue chegar ao ideal que a imaginação assinala: sua glória consiste em avançar em sua direção, sempre inatingível.”

“[os idealistas românticos] são dionisíacos. Suas aspirações se traduzem por esforços ativos sobre o meio social ou por uma hostilidade contra tudo o que se opõe a seus palpites e sonhos. Constroem seus ideais sem conceder nada à realidade, recusando-se a ser tolhidos pela experiência, agredindo-a se ela os contrariar. São ingênuos e sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao entusiasmo e à ternura; com essa ingenuidade sem falsidade que os homens práticos ignoram. Basta um minuto para se decidirem para toda a vida. Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”.

(p. 26)

“Todo romântico prefere a flor ao fruto, pressentindo que este jamais poderia existir sem aquela. Os temperamentos que se acomodam sabem que a vida guiada pelo interesse brinda proveitos materiais; os românticos acham que a suprema dignidade está no sonho e na paixão. Para eles um beijo de uma mulher vale mais do que cem tesouros de Golconda [cidade da Índia onde sultões acumulavam inúmeros tesouros]”

(pp.26-27)

“O homem incapaz de cultivar paixões nobres evita o amor como se fosse um abismo; ignora que este purifica todas as virtudes e é o mais eficaz dos moralistas. Vive e morre sem ter aprendido a amar. Caricaturiza esse sentimento guiando-se pelas sugestões de sórdidas conveniências.”

(p. 27)



  

Ao coração que inda chora

Oh! Flébil coração, por que inda choras
Pelas Dafnes em cuja alma não existe
O amor virtuoso a que te devotas?
E dela colhes tua grinalda triste...

Vês que te fogem ao viso da ternura?
E como a viúva a teia do acasalamento
Teus versos tecem tua desventura
Dando ao zelo a face do sofrimento

Cessa o teu pulsar terrível, o canto erótico
À Solidão te rendas, por convencido
De que a esperança é insensata, o sonhar muito altivo!

E co’ a mesma efervescência de teu amor
Pesaroso, deixa de bater nesse peito inóspito
Que por te amar demais te desgraçou.

(BAR)

domingo, 25 de novembro de 2012

"A leitura aquece o espírito" (BAR)



                   
                      Aos que não gostam de ler

Tenho pena das pessoas que não gostam de ler. E o afirmo mesmo que, aos meus leitores, lhes pareça haver camuflada nesta confissão uma robusta presunção minha. Não obstante, não tenho eu qualquer pretensão de sustentar alguma verdade. E me permito enunciar alguma idiotice aqui ou ali neste texto.
Tenho pena das pessoas que não gostam de ler e que não leem, porque, por alguma razão para cuja exposição, talvez se congreguem fatores socio-culturais e genéticos, estão privadas do alargamento de sua percepção e compreensão das ocorrências do mundo, uma compreensão que envolve o aperfeiçoamento do pensamento que pensa sobre aquilo que é capaz de produzir. Refletir é pensar o já pensado. Tenho pena das pessoas que não leem, porque dizem simplesmente não gostar, porque se privam de (re)pensar suas próprias ideias, crenças, opiniões, convicções e supostas verdades inquestionáveis. Tenho pena delas porque elas tenderão a viver a vida inteira orientando seus comportamentos e pensamentos pelo senso-comum. Tenho pena delas também porque serão mais facilmente ludibriadas.
Tenho pena delas muito porque não descobriram o valor dos livros num tempo chuvoso como este em que escrevo, tempo em que o tédio costuma aninhar-se na alma. A leitura é um remédio muito eficaz contra o tédio e o desalento em dias em que o céu parece conspirar contra nossa necessidade neurótica de felicidade - felicidade que aceitamos como um fato, como experiência sempre possível e inquestionável, a despeito da condição humana. Minha saudosa avó paterna já me dizia antes mesmo de eu ter tomado conhecimento de que dissera a mesma coisa Rubem Alves: “a felicidade não existe; o que existem são momentos de alegria”. Eu acrescentaria, ratificando esta lição da sabedoria e da lucidez que minha avó compartilhava com Rubem Alves, sem o saber: “felicidade não existe, o que existe é a alternância entre estados de alegria e estados de tristeza, estados de bem-estar e estados de sofrimento, entre entusiasmo e tédio”. Também estou convencido de que a felicidade é um dentre os ideais acalentados pelo espírito humano. As alegrias me parecem mais factíveis, porque concretas, mas não menos frágeis em face do sofrimento que pode, a qualquer momento, se abater sobre nós.
Mas só chegarão a refletir sobre isso os que gostam de ler e o fazem assumindo a possibilidade do prazer. Tenho pena dos que não gostam de ler e que vivem a se queixar do tédio que lhes abate a alma, porque lhes custa aceitar que a leitura possa entreter.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

"Você não falamos assim"





O problema é  que português tem muitas regras


“O problema é que o português tem muitas regras”. Sempre achei esquisito o afirmar que o português tem muitas regras. Isso não é óbvio? Todas as línguas do mundo têm muitas regras. No entanto, quando nos detemos a pensar na forma desse enunciado, nos apercebemos de que ele deixa entrever uma avaliação negativa do enunciador sobre o fato, óbvio, de que a língua portuguesa tem regras e que são muitas. Para o enunciador, ter muitas regras é um problema. E o fato de ele achar que é um problema sinaliza algo sobre o modo como ele compreende o conceito de regra.
Em conversa recente com uma pessoa que se queixou do fato de o português ter muitas regras, indaguei dela as razões por que pensa assim. Estava interessado em saber em que sentido a grande quantidade de regras em sua língua materna seria um problema para ela. É claro que eu já suspeitava da natureza do problema, mas precisava ter certeza de que minha suspeita trilhava o caminho correto. E, realmente, trilhava.
Ela, como a grande maioria de pessoas que estudam ou estudaram português na escola, tem em conta o conceito de regra relativamente aos domínios da ortografia (incluindo aí o da acentuação gráfica), da crase, mas também da concordância verbal e nominal. A primeira confusão diz respeito ao que é do domínio da língua propriamente dita e ao que é do domínio do sistema gráfico da língua – confusão esta que explica também a crença generalizada, por ocasião da recente reforma ortográfica, de que o português agora mudou. Nesse caso, o que escapa ao conhecimento das pessoas é que toda língua varia e muda, por um lado; e que a mudança quanto ao modo de acentuar algumas palavras ou de grafá-las não constitui uma mudança da língua. Houve, decerto, uma mudança no código oficial que regulamenta a ortografia do português, código que passa por decreto do Presidente da República; mas, insisto, o português sempre apresentou variação, mudou e continuará mudando. Não se fala nem se escreve do mesmo modo hoje e no início do século passado. O português do século XIX não é o mesmo português falado/ escrito por brasileiros que vivem no século XXI.
 As regras de ortografia, de acentuação gráfica e de crase dizem respeito ao domínio da escrita. Já as regras de concordância verbal e nominal e de regência verbal e nominal (mas não só estas, evidentemente) dizem respeito à língua propriamente dita.
No que diz respeito à ortografia, não temos, a rigor, uma grande quantidade de regras. Na verdade, o modo correto de grafar as palavras é uma competência que adquirimos muito mais pelo contato com a língua escrita do que pela memorização de regras. Em outras palavras, aprende-se a grafar as palavras de acordo com a ortografia oficial lendo.
Para não ser descuidado, preciso notar que a crase é um fenômeno fonético, o qual consiste na fusão de duas vogais idênticas. (a + a = a). Trata-se de um fenômeno comum na passagem do português arcaico para a fase moderna. No entanto, hoje, trata-se de um fenômeno morfofonêmico, já que envolve a fusão fônica de unidades morfológicas (p. ex. a fusão da preposição “a” com o artigo feminino “a)). Essa fusão é sinalizada na escrita pelo acento grave (`). Por isso o dizer se tratar de um fato de escrita.
Considerarei, agora, o conceito de ‘regra gramatical’. A palavra ‘regra’, em qualquer domínio discursivo que a empreguemos, significa ‘norma’, ‘comando’, ‘princípio’. Regras são princípios que regulam uma prática ou uma atividade. Regras regem, governam. Quando pensamos em regras gramaticais, devemos, em primeiro lugar, pensá-las como princípios que governam os usos das unidades da língua. Por força da tradição escolar, habituamo-nos a considerar regras de gramática tão-somente num sentido prescritivo restritivo, ou seja, como normas que regem o uso da variedade de prestígio da língua. Nesse sentido, quando o professor, em sala de aula, ensina o estudante a usar ‘implicar’ (no sentido de ‘trazer como consequência’), insiste na necessidade de ele seguir a regra contemplada na norma culta, qual seja, a que nos recomenda o uso do verbo sem a preposição “em” (cf. Esta atitude implicará a sua demissão). Não me vou ocupar com a problemática em torno da aceitação dessa regência entre os falantes cultos. Isso é um fato, infelizmente, ignorado na escola. O que me interessa aqui é fazer ver que, nesse caso, estamos diante de uma regra prescritiva restritiva, porque determina como se deve usar a língua de acordo com uma norma de prestígio. E é sempre bom lembrar que cada variedade linguística tem sua norma. Antes de prosseguir, quero que o leitor atente para as frases abaixo:

(1) Eu gosto de sorvete de morango.
(2) O relógio pertence ao meu pai.
(3) Aquele relógio é do meu pai.

Todas as três frases são gramaticalmente aceitáveis, isto é, são bem formadas. E são bem formadas, porque construídas segundo as regras da gramática do português. Em (1), por exemplo, seguimos a regra que nos diz que se o sujeito for de primeira pessoa do singular, o verbo deve assumir a forma de primeira pessoa do singular (Eu gosto, eu compro, eu bebo, eu parto). Nenhum falante nativo de português infringiria esta regra, dizendo algo como “*Eu gosta de sorvete de chocolate”. Em (2), seguimos a regra que nos diz que devemos antepor o artigo ao substantivo, de modo que uma sequência como “relógio o pertence...” nunca ocorrerá entre os falantes nativos de português. Em (3), seguimos uma regra que nos diz que devemos usar “aquele” para referir-se a objetos (pessoas) que se situam longe do espaço de interação (distante tanto do locutor quanto do interlocutor). Também seguimos a regra, segundo a qual, se usamos artigo, não podemos usar um demonstrativo, caso em que (4) seria agramatical:

(4) * O aquele relógio pertence ao meu pai.

Todas as regras aqui explicitadas compõem o conjunto de regras que todo falante nativo de português tem armazenado em sua mente/cérebro. Esse conjunto constitui a sua competência linguística. Essas regras governam o modo como os usuários da língua constroem as unidades da língua. Não há fixidez total na atualização das regras. Regras há que são mais flexíveis. Na verdade, as regras podem ser distribuídas nas seguintes classes (Rodrigues, 2002. apud. Antunes, p. 72):

a) regras preferenciais, que são as mais escolhidas entre várias aceitáveis;
b) as regras típicas, que são mais frequentes entre várias aceitáveis;
c) as regras alternativas, que são escolhidas com o mesmo grau de frequência e aceitabilidade;
d) as regras restritas, que são aceitáveis apenas por uma parte de usuários da língua.

Uma regra que nos instrui a empregar o verbo “gostar” acompanhado da preposição “de”, para relacioná-lo ao seu complemento, é uma regra que poderíamos chamar de fixa, já que não temos outra opção. Nenhum falante nativo, que já atravessou o período de aquisição de sua língua materna, produz algo como “*Ele gosta chocolate”. Mas esse mesmo falante poderá optar entre dizer “meu livro chegou” ou “o meu livro chegou”. Em português, é facultativo o uso do artigo com o pronome possessivo. Esse caso ilustra a situação c).
Dificuldades pode haver quando não dominamos as regras envolvidas em usos de uma variedade da língua que não é a variedade em que, normalmente, nos expressamos. Mas isso nada tem que ver com o fato de a língua portuguesa ter muitas regras. Convém ler, com atenção, este trecho da linguista Irandé Antunes, que tão bem nos ensina, em seu Muito além da gramática (2007):

Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras. A própria natureza das línguas, que faz delas meios da inter-relação social e marca de identidade cultural dos grupos, leva a esse cuidado, para que a língua mantenha seus padrões e não perca a cara que tem”.
(p. 72)
(grifo no original)


É sempre bom lembrar que, quando pensamos em regras como ‘princípios que governam a constituição das unidades linguísticas’, devemos pensá-las relativamente aos domínios fonológico, morfossintático e semântico. Por exemplo, no nível fonológico, há uma regra, também internalizada por todo falante nativo de português, segundo a qual toda sílaba é constituída de pelo menos uma vogal. Em outras palavras, não há sílaba em português sem vogal (cf. es-ca-da; ap-to, af-ta, gno-se, etc.)
Novamente, as palavras de Antunes lançam luzes sobre a relação entre a língua e seus usuários, estudantes ou não:

“As línguas têm, em seu comando, pessoas, seres atuantes, sujeitos ativos, capazes de administrar, entre possíveis opções, aquela que mais se ajusta à situação. É preciso, sempre que oportuno, mostrar ao aluno contextos em que ele pode escolher entre uma forma ou outra, entre uma organização ou outra do período, do parágrafo ou do texto. É preciso explorar o lado de flexibilidade dos padrões linguísticos, até mesmo porque o que não é flexível já está internamente sabido e arraigado (ninguém coloca, por exemplo, o artigo depois do substantivo ou o artigo feminino antes de uma palavra sabidamente masculina”.

(p. 77)
(grifo meu)


É importante levar em conta o que está em negrito. Como nos ensina a autora, há um vasto conjunto de regras que constitui o que poderíamos chamar de ‘núcleo duro’ da gramática, que internalizamos. Em outras palavras, o âmbito das regras fixas, que não dão margem a opções, já são conhecidas, já estão arraigadas em nossa mente como parte de nosso conhecimento intuitivo de nossa língua materna. Ninguém, que seja falante de português, produziria a sequência “menino estudiosa” tanto quanto a frase

(5) *Ele está de Portugal.

O falante nativo de português sabe que, nesse caso, deve usar “é”, e não “está”. Não sucede o mesmo com o falante estrangeiro aprendiz de português, que produz, normalmente, (5). Comparativamente, o brasileiro, aprendiz de inglês, poderá produzir (e produz, nos níveis iniciais de aprendizagem do inglês, por interferência de sua língua materna) algo como (6):

(6) * I have nineteen years old.

O falante nativo de inglês não terá dúvida em usar o verbo to be, nesse caso.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

"Tornei-me mais esclarecido quando compreendi que os homens se fizeram crentes de que foi Deus que os criou" (BAR)


                            



   Os ebionitas e os marcionitas
  Afinal, de que Deus se trata?





E se fosse dada a imensa maioria de pessoas que acredita em Deus e que habita este imenso território chamado Brasil a oportunidade de ter acesso a estudos sérios, desenvolvidos por renomados especialistas na história dos cristianismos primitivos e da confecção da Bíblia, que vantagens poderiam obter essa grande parcela da população? Este texto será escrito de modo que se aproxime ao máximo dos gêneros da conversação informal. Vou até baixar o nível de formalidade deste texto.

E me dirijo a leitores que, provavelmente, não lerão este texto. Me dirijo a pessoas que vivem a falar de Deus, pessoas que já de manhã cedo postam no facebook  algo como “vamos aproveitar esse dia lindo que Deus nos proporciona”. Como eu disse, essas pessoas não lerão este texto, coisa que eu lamento. Mas não lamento a tal ponto de me recusar a escrevê-lo, embora eu ache que eu deveria estar manifestando as ideias que aqui se encontrarão num livro publicável. Os leitores que me acompanham há tempo, talvez se admirem do que escreverei, aprendam alguma coisa, mas certamente não se surpreenderão.

Começarei do princípio e vou me esforçar para que esse princípio não se prolongue tanto. Duas idéias básicas ficaram estacionadas em meu espírito agora. Ei-las a seguir:

Ideia 1: é necessário que se faça ver um ateísmo esclarecido;

Ideia 2: é desejável que se faça ver uma fé esclarecida.


Vou agora explicar estas ideias. Um ateu esclarecido é aquele que não se limita a atacar cegamente um sistema de crenças ao qual se opõe, sem conhecer a história que o produziu. Em outras palavras, dizer que Deus é uma ilusão, que é um “amigo imaginário”, entre outras coisas, é percorrer um caminho “argumentativo” infrutífero. Um ateu esclarecido buscará antes saber como foi possível crer nesse Deus. Qual é a sua origem? Como se construiu a ideia de Deus? Em que contexto sócio-histórico Deus ganhou voz? Estas são algumas perguntas que deverá se fazer um ateu esclarecido e cujas respostas deverá buscar. Um ateu esclarecido deverá ter em mente que está lidando com um Deus – seja lá de que forma ele, ateu, o entenda – que é produto de uma herança milenar (na verdade, de mais de dois milênios; isso para ficarmos no Deus cristão, séc. I d.C).

Agora, no que diz respeito à possibilidade de uma fé esclarecida, aí estamos lindando com algumas complicações. É verdade que a Igreja católica vem vendendo a ideia, já faz algum tempo, da necessidade de conciliar fé e razão; nenhum religioso admite que se considere sua fé uma “fé cega”. O problema é que quando se propõe a conciliação entre fé e razão não entra aí a importância de esclarecer as massas religiosas (mais especificamente, cristãs) dos fatos históricos que se encontram na origem do cristianismo então vitorioso (a visão proto-ortodoxa que nos chegou, não sem sofrer uma série de cisões) e da história da fabricação da Bíblia. A consciência desses fatos talvez contribuísse para que os cristãos leigos (uma observação: leigos porque não iniciados nas ordens eclesiásticas) compreendessem as verdadeiras razões por que professam a fé que então herdaram, por que, hoje, acreditam no que dizem acreditar. Se tal conhecimento poderia levá-los a questionar sua fé, a namorar, ainda que por alguns instantes, o agnosticismo, ou mesmo, a entregar-se de corpo e alma aos braços do ateísmo, eu não saberia, por ora, dizer. E meu objetivo não é esse.

Terei de pedir ao leitor, que suponho acredite em Deus, que admita o que se segue:

1) Tudo que sabemos sobre Deus veio pelas mãos de muitos homens que viveram em uma época remota, em regiões muito distantes, em culturas que não são a nossa;

2) Sabemos de Deus, portanto, aquilo que esses muitos homens escreveram sobre Deus.;

3) Ninguém – insisto NINGUÉM – tem acesso direto a Deus (ninguém nunca o viu, nunca o tocou, nunca sentiu seu cheiro, nunca conversou com ele). Tudo que sabemos de Deus são tão-só representações de Deus.



Preciso esclarecer este ponto. Dizer que só temos acesso a Deus pelas representações que fizeram dele determinadas classes de homens, que viveram em uma cultura muito diferente da nossa, num período de tempo remoto e pelas representações que nós fazemos dele graças à herança judaico-cristã que, juntamente da herança greco-romana, veio a formar a cultura ocidental, não deveria surpreender os iniciados em estudos filosóficos. Muitos filósofos e cientistas concordam que não temos acesso direto ao mundo, que nossas relações, incluindo aí as formas de conhecê-lo, é mediada por representações desse mundo. Basicamente, construímos modelos mentais para interagir e compreender o mundo. Nossos discursos desempenham aí um papel fundamental. Neles e através deles, não só interagimos com o mundo, mas o compreendemos. Não quero que o leitor pense que a representação é uma forma de “espelhar” o mundo (essa é uma visão aristotélica, já não mais aceita). Nietzsche, aliás, a rejeitava. Representações envolvem conceitos, abstrações. O mundo representado não é o mundo tal como é, mas tal como nos parece ser. Melhor será falar em “reconstrução do mundo”. Também não assumo o extremo de defender que o mundo extralinguístico, tal como apreendemos pelos sentidos, não exista. Mas estou com Charaudeau (2010), ao nos ensinar que não há uma realidade fixa, que existe independentemente da linguagem.

É importante aceitar o postulado da construção discursiva do mundo, para melhor compreender os acontecimentos dos quais lhe falarei adiante. É claro que nessa construção entram fatores perceptuais-cognitivos, linguísticos, culturais e históricos. Todo discurso é uma realidade dotada de materialidade histórica. Sem complicar mais a cabeça do leitor, o fato é que, quando se considera o conceito de Deus, essa visão de que Deus é uma entidade de discurso, é construído discursivamente é a única capaz de explicar por que houve, na história dos cristianismos primitivos, tantas visões divergentes sobre a natureza e identidade de Deus (mas não só sobre ele, evidentemente; outros aspectos da doutrina que se oficializou também não foram aceitos unanimemente; houve muitas contendas, disputas, conflitos e até assassinatos em torno de qual seria o cristianismo verdadeiro e, é claro, a visão verdadeira de Deus).

Falta uma última coisa a ser considerada. Trata-se da Escrita da História da Bíblia. Em primeiro lugar, a Escrita da História na Bíblia conta muito mais com a criatividade do autor do que com seu compromisso em relatar os fatos tal como ocorreram no passado. É claro que podemos encontrar relatos do que realmente aconteceu, mas não era este o objetivo principal dos autores. Em segundo lugar, os escritores da história da antiga Israel escreviam para responder problemas de seu tempo. Tratava-se da escrita de uma historia nacional e coletiva, ao mesmo tempo literária e que tinha por objetivo recordar o passado e avaliar o significado de seus eventos. Ao recuperar literariamente o passado, os autores buscavam as causas das condições do presente.  Há outras coisas importantes para saber. Uma delas é que as profecias hebraicas não prediziam o futuro. O profeta hebraico não tinha a intenção de predizer o que iria acontecer futuramente, mas sim de fazer uma crítica social e religiosa de seu tempo. O leitor poderá conhecer mais sobre a história do Antigo Testamento, lendo o livro Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2007), de Steven L. Mckenzie.



Prossigamos...

Sem mais delongas, dou-lhe, leitor, um testemunho da imensa diversidade dos cristianismos primitivos. Na verdade, só tratarei de dois grandes grupos que compõem essa diversidade, mas é interessante que o leitor saiba que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs a respeito de Deus, de Cristo, do significado de sua morte, entre outras coisas. Por exemplo, havia cristãos que acalentavam a crença em que Deus criou o mundo; outros, porém, não pensavam assim. Para estes, o mundo tinha sido criado por uma divindade inferior ou subordinada e ignorante. Para esse segmento de cristãos, isso explicava por que o mundo é tão cheio de sofrimento, miséria e maldade. Mas não me estenderei sobre esse assunto. Remeto o leitor ao livro Evangelhos Perdidos (2008), de Bart D. Ehrman, livro em que me baseio na presente exposição.

Estamos situado no período que se estende do século II ao IV d.C, época em que certos cristãos, chamados ebionitas, entraram em cena. A origem do nome é desconhecida, embora muito provavelmente se prenda à palavra hebraica ebyon, que significa “pobre”.  Segundo Ehrman (p. 152), é possível que esses cristãos, seguindo fielmente o ensinamento de Cristo sobre o desapego aos bens materiais, tivessem renunciado às propriedades e se resignassem a viver na pobreza. Mas o que me importa é trazer à cena a doutrina ebionita. No que acreditavam os ebionitas?

Em primeiro lugar, os ebionitas, tal como o era Jesus, eram judeus. Eram judeus que seguiam os ensinamentos de Jesus. Os ebionitas não deixaram nada escrito, ou melhor, nada do que teriam escrito foi preservado. O que deles se sabe vem das mãos de seus opositores, os cristãos proto-ortodoxos, representados, por exemplo, na figura de heresiólogos (oponentes de heresias), tais como Orígenes de Alexandria (183-254), filósofo e escritor cristão. Ehrman (ib.id.) nos lembra ser possível que houvesse vários grupos ebonitas, cada qual com sua visão teológica.

Os ebionitas, então, acreditavam que Jesus era o Messias judeu, que fora enviado pelo Deus judeu ao mundo para salvar o povo judeu, cumprindo, assim, o que diziam as Escrituras hebraicas. A divergência com os proto-ortodoxos começa agora. Os ebonitas também defendiam que, para seguir a Cristo, a pessoa deveria, em primeiro lugar, seguir a lei judaica. Deveria tornar-se um judeu, o que significa observar o Sabá e a dieta kosher (por exemplo, deveriam evitar comer carne de porco e mariscos); além, é claro, de se submeter à circuncisão. A doutrina ebionista estava, assim, em claro desacordo com os ensinamentos de Paulo. A esta altura, é bom lembrar que eles não propunham nada além do que sabiam a respeito de Jesus e de seus discípulos: eles eram judeus e viveram segundo a tradição judaica.

Para sustentar suas perspectivas, os ebonitas recorriam à autoridade de Pedro e do próprio irmão de Jesus, chamado Tiago, líder da igreja de Jerusalém, depois da suposta ressurreição do Messias.

Outro aspecto interessante da visão ebionita dizia respeito à identidade de Jesus. Eles não aceitavam a ideia de que Cristo preexistia à encarnação em Jesus, não estava ele junto a Deus antes de vir a Terra. Também não aceitavam a crença, católica, de que Jesus teria nascido de uma mulher virgem. Essa é uma crença ensinada no catolicismo. Outros segmentos do cristianismo a rejeitaram (o absurdo tem lá seus limites!).

Os ebionitas, que não tiveram acesso à versão do Novo Testamento que chegou até nós (uma falsificação de outras tantas que a precederam), sustentavam que Jesus era filho de Deus não porque tinha uma natureza divina, mas por adoção. É isso mesmo: Deus adotou Jesus para seu filho. Jesus, para os ebonitas, era um homem, de carne e osso, que nascera da união sexual entre seus pais. Mas era, evidentemente, um homem moralmente exemplar, que seguiu fielmente a Lei judaica proclamada por Deus ao seu povo.  Assim, Jesus morrera na cruz para a expiação dos pecados do mundo, cumprindo assim o que estava escrito nas Escrituras hebraicas. Como Jesus resignara-se ao sofrimento e ao seu destino funesto, Deus lhe concedeu ressuscitar dos mortos e o glorificou, conduzindo-o ao Paraíso. Abro parêntesis neste momento. É que sempre achei a doutrina da Salvação pelo sacrifício do cordeiro, que fora Jesus, esdrúxula, para dizer o mínimo. Ponderemos. Como era de costume entre os primeiros judeus, oferecia-se a Deus, no Templo, um animal sacrificado, para que, assim, se perdoassem os pecados. Os cristãos proto-ortodoxos compreenderam o sacrifício de Jesus segundo esse modelo ritualístico judaico. Cristo é o cordeiro de Deus oferecido em sacrifício para a expiação dos pecados do mundo. O cristão fiel enche a boca e fala com orgulho e com penosa e fervorosa gratidão que Jesus salvou cada um de nós (seja cristão ou não). Jesus morreu pela salvação da humanidade. Está certo. Mas morreu para nos livrar do quê? Ora, nada é mais claro: da ira de Deus que estava disposto a punir a humanidade pelos seus pecados (possivelmente, Deus estaria disposto a repetir o que fizera na época de Noé (é claro que a história do dilúvio e de Noé é um mito). Mas, enfim, se Cristo morreu para nos salvar, ele o fez para nos livrar da destruição que sobre nós recairia pela ira de Deus. Agora, compreendamos. Deus enviou seu filho e determinou seu sacrifício, para que ele, Deus, se contentasse e decidisse não mais acabar com o mundo. Isso faz algum sentido? Que espécie de Deus perverso e repugnante é este que destina ao suplício e à morte o próprio filho, para, assim, se comprazer e decidir não mais dizimar a humanidade? Essa doutrina só poderia sair da cabeça de um louco. Vamos pensar um pouco mais. Um pai ou um filho pode sacrificar sua vida em favor da vida um do outro. Um filho pode morrer para que seu pai viva, ou vice-versa. Mas não é isso que acontece nesta história repugnante. Deus tinha todo o poder para decidir não dizimar a humanidade; sendo um ser dotado de conhecimento perfeito, deveria se valer de outro recurso para tentar “salvar” a humanidade. Mas isso não incluía enviar seu próprio filho para que fosse crucificado. Os cristãos veem nisso um ato de amor de Deus, porque deu seu próprio filho em sacrifício. Mas sacrifício para quem? Para ele mesmo Deus!!! Quem vê nisso um ato de amor está moralmente esclerosado. Deus não precisava sacrificar seu próprio filho, se lhe estava ao alcance do poder (já que ele é dotado de poder infinito) agir de outro modo, por exemplo, perdoando os pecados, revelando-se como vinha se revelando aos profetas hebraicos. Deixemos o absurdo desta histórica, moralmente repugnante, embora crível e papagaiada por milhões de cristãos até hoje.

Voltemos aos ebionitas. Eles condenavam o sacrifício de animais. Para eles, o verdadeiro cristianismo consistia numa prática de estrita obediência aos ensinamentos judaicos de Jesus, que era Deus por adoção.

Vejamos agora outro grupo de cristãos considerados pela visão dominante, a dos cristãos ortodoxos, como hereges. Entram em cena os marcionitas. Eu os referi, em outro texto. Esse grupo tinha esse nome em virtude dos ensinamentos do teólogo, que vivera no século II, chamado Marcião.

Ao contrário dos ebonitas, os marcionitas eram antijudaicos. Eles rejeitavam não apenas os costumes judaicos, mas principalmente as Escrituras e o seu Deus. Quais eram as posições teológicas de Marcião, que causou alvoroço entre os líderes proto-ortodoxos? Ele, seguindo de perto Paulo, entendia que Cristo era o caminho para o verdadeiro conhecimento de Deus. Era preciso ter fé em Cristo para poder alcançar a salvação de Deus. (veja-se como a doutrina trabalha a dependência e a necessidade de salvação relativamente a Deus). Há uma relação tutelar entre Deus e o homem. Para Marcião, não importava a Lei. O Evangelho era a boa nova. A Lei abrigava mandamentos severos, culpa, julgamento, inimizades, punição e morte (ver. Ehrman, p. 159).

Tendo observado (e este é um ponto importante, quando adotamos a perspectiva da relação entre real e linguagem, que anunciei no início deste texto) que a imagem do Deus das Escrituras hebraicas (Antigo Testamento) não era compatível com o a imagem do Deus de que nos falou Jesus, nos Evangelhos, Marcião concluiu se tratar de dois Deuses diferentes. O Deus irado, vingativo, assassino dos judeus não era o mesmo Deus misericordioso, amoroso e gracioso anunciado por Jesus. Marcião foi mais adiante e desenvolveu a concepção de que o Deus dos judeus é o que criou o mundo; e o Deus de Jesus até àquela altura nunca tinha se comprometido com o mundo. Dele nunca ninguém, na verdade, tinha ouvido falar, até a vinda de Cristo. O Deus do Antigo Testamento era o Deus do povo de Israel. Era um juiz que concedeu a seu povo a Lei. O Deus de Jesus, por outro lado, não considerava os judeus seu povo; e não era um Deus que instituiu uma Lei. Agora, percebam como, a partir do reconhecimento por Marcião de duas formas distintas de representação de Deus (não que ele acreditasse se tratar de “representações”, é claro; para ele existiam realmente dois deuses), a história do sacrifício de Cristo muda sensivelmente.

Enquanto, para Marcião, o Deus judaico era um Deus que exigia obediência e punia transgressões e, por isso, vivia encolerizado, o Deus de Jesus, de quem até então ninguém havia ouvido falar, veio a este mundo, através de Jesus para livrar as pessoas do Deus vingativo dos judeus. Como observa Ehrman,



“(...) Jesus veio de forma completamente inesperada e fez o que ninguém poderia jamais ter esperado: sofreu a punição pelos pecados de outras pessoas, a fim de salvá-las da ira justa do Deus do Velho Testamento”.

(p. 160)


O que vemos aqui, caro leitor? Tudo bem, o Deus de Jesus, sendo mais poderoso, poderia ter dado cabo do Deus judaico, sem precisar sacrificar o próprio filho; mas agora estamos diante de uma razão mais aceitável por que Jesus foi sacrificado. Aceitável, do ponto de vista lógico, mas não justificável, do ponto de vista moral. Que fique bem claro! De qualquer modo, a história não deixa de ser menos crível e estranha. Porque, afinal, o sacrifício de Jesus haveria de  surtir o efeito pretendido? Ou seja, o mero sacrifício de Jesus fez com que o Deus judaico desaparecesse, deixasse de existir, em algum sentido? Continuo insistindo em que o Deus cristão deveria ter evitado o sacrifício do próprio filho, adotivo ou não, mas filho. E não é menos verdade que os judeus continuam adorando YHWH, o Deus cujo nome é impronunciável.

Para Marcião, portanto, o Evangelho era a boa-nova que não poderia vincular-se aos velhos escritos judaicos. Marcião acreditava (e nisso tenho de concordar com ele, uma visão sóbria que não se encontra mais entre os cristãos de nosso tempo) que um Deus bom não poderia criar um mundo cheio de miséria, desastres, doenças e morte. Esse Deus só poderia ser mal. Para ele, um Deus responsável pelo próprio mal; um Deus criador do mal. Era o Deus de Jesus que era bom.

E quanto à natureza de Jesus? Marcião ensinou que Jesus não era um homem de carne e osso. Na verdade, achava que ele sequer tinha corpo. Também acreditava que ele sequer tinha nascido. Ele só parecia ser humano.

Devo reconhecer, a esta altura, que o sacrifício de Jesus não parecia ter o objetivo de liquidar o Deus judaico, mas tão-só libertar as pessoas de sua tirania. Vejamos o que nos ensina Ehrman a esse respeito:



“Jesus pagou o preço pelos pecados de outras pessoas ao morrer na cruz. Tendo fé em sua morte, pode-se escapar aos espasmos do encolerizado Deus dos judeus e ter a vida eterna com o Deus de amor e misericórdia, o Deus de Jesus. Mas como Jesus poderia morrer pelos pecados do mundo se ele não tinha um corpo real? Como poderia seu sangue derramado trazer expiação se ele não tinha sangue de fato?”

                                       

                                               (pp. 160-161)



Deixando de lado os problemas de ordem lógica, na doutrina de Marcião, interessante é entender que “a morte de Jesus era um tipo de armadilha que enganou o ser divino que controlava as almas humanas perdidas pelo pecado, e que o Deus dos judeus foi forçado a libertar as almas daqueles que acreditavam na morte de Jesus, sem perceber que, na realidade, a morte foi só aparente” (p. 161).

Agora, sim! O Deus dos judeus não foi aniquilado numa batalha cósmica contra o Deus de Jesus. O que ocorreu, na visão de Marcião, foi o uso de um estratagema pelo Deus cristão para ludibriar o Deus judaico, forçando-o a libertar as almas dos pecadores. Restaria saber se Marcião teria alguma resposta para a pergunta: O que foi feito, então, do Deus judaico? Ele continua a existir em competição com o Deus de Jesus? Teria ele se aliado a Satanás para atentar a humanidade? Infelizmente, ficaremos sem saber as respostas. Antes de apresentar as conclusões a que podemos chegar, quero elencar as diferenças entre as visões ebionitas e marcionitas, a título de síntese.

Os ebionitas defendiam que:

a) era preciso tornar-se judeu para seguir corretamente a Deus;

b) havia apenas um Deus;

c) era necessário permanecer fiel às leis do Antigo Testamento e o considerar como a revelação única do Deus verdadeiro;

d) Jesus era um ser completamente humano.



Os marcionitas defendiam que:

 a)      seguir a lei judaica era inapropriada para que se conseguisse ter uma relação correta com Deus;

b)      havia dois deuses;

c)      as leis judaicas deveriam ser rejeitadas e que o Velho Testamento fora inspirado por um Deus inferior;

d)      Jesus era inteiramente divino.



Outras diferenças podiam ser apontadas, mas não me preocupei em ser exaustivo. Concluamos, então.



Comecei este texto propondo a necessidade tanto de um ateísmo esclarecido quanto de uma fé esclarecida. Um ateu esclarecido pode mostrar, com base nos seus conhecimentos históricos da formação do cristianismo, dos quais são testemunho este texto, que cada grupo cristão acreditava deter a verdade sobre Deus. Cada qual tinha uma visão sobre quem foi Jesus, de modo que foi um acidente histórico o fato de, hoje, se acolher um conjunto de crenças que são consideradas “verdadeiras” ou “corretas”. No livro, Ehrman especula sobre o que teria sido o cristianismo, se os grupos vitoriosos fossem ou os ebionitas ou os marcionitas. Certamente, o cristianismo hoje não seria o mesmo.

Um ateu esclarecido, ao invés de martelar a ideia de que Deus é um ser imaginário, uma ilusão, mostrará que não se pode confiar na Bíblia como um testemunho fidedigno da existência de Deus. Certamente, por muitas razões, como a de que o Deus do Antigo Testamento – e isso reconheceu muito bem Marcião – não pode ser o mesmo Deus do Novo Testamento. Mas não devemos nos apressar em julgar ser o Deus do Antigo Testamento completamente distinto do Deus do Novo Testamento. Não nos esqueçamos de que podemos ler em Mateus 18: 8:



“Portanto, se tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos e dois pés, seres lançados no fogo eterno”.



E em Mateus 8:12:



“E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes”.



O Deus de Jesus também tinha um inferno destinado aos ímpios, o que mostra que, pelo menos quem escreveu Mateus, afinou os ensinamentos de Jesus com o imaginário judaico de Deus. Na verdade, o autor de Mateus defendia a ideia de que a salvação só viria com a observância de todos os mandamentos.  O Jesus de Mateus foi construído numa visão estritamente judaica.

O ateu esclarecido deverá apenas tomar o cuidado quando da consideração dos evangelhos, porque seus autores discordaram entre si. Há uma série de inconsistências entre os textos.

Quanto ao leitor, precisa reter o seguinte: a) vimos que, na história do cristianismo, uma história complexa e marcada por diversidade de perspectivas e interesses, muitas eram as formas como Deus era pensado; muitas eram as formas como Deus era construído. O que nos chegou foram as construções discursivas de Deus do grupo vitorioso, o dos proto-ortodoxos; b) não dispomos de meios para determinar se as construções discursivas de Deus que nos foram legadas são as verdadeiras. Claro está que não há como provar que Marcião estava errado. Ele até obteve muito sucesso, fundando igrejas por onde passou.

Um Deus que se acredita grandioso e dotado de infinita sabedoria deveria ter-se revelado de tal modo que não desse margem a muitas especulações a seu respeito. A história prova que cada grupo cristão tinha uma visão sobre quem era Deus, sobre como agia, sobre como se relacionava com Jesus, etc.

Um Deus transcendente é, na verdade, uma construção discursiva; na verdade, Deus é imanente ao discurso produzido por seres humanos. Deus é imanente ao processo histórico em que seres humanos estão envolvidos.

Se não assumirmos, com base no que apreendemos sobre a diversidade de evangelhos, alguns perdidos para sempre, outros descobertos, com base nas evidências de que foram necessários muitos conflitos e disputas para o estabelecimento da visão ortodoxa (correta) do cristianismo (sem que Deus tenha feito nada a respeito para pôr fim às disputas e revelar quem estava com a razão), que, afinal de contas, foi forjado na imaginação de muitos homens que precisavam suportar as condições de opressão em que viviam, como, então, podemos explicar por que foram possíveis diversas visões teológicas nos primórdios do cristianismo?

Não encare, leitor, este texto como a expressão de um ataque a fé ou à religião. Eu apenas procurei elucidar os interessados sobre uma parte da verdadeira história cujo processo explica o cristianismo tal como o conhecemos hoje. Tenho de reconhecer, contudo, que também acalentei a esperança de que os leitores viessem a perceber que o Deus em que creem é um Deus que tem uma história, que esse Deus tem raízes na história do antigo Oriente Médio. É um Deus que, graças muito ao papel do imperador romano Constantino (séc. III d.C), se impôs a maior parte do mundo. Não obstante, o fato de o Deus judaico-cristão não ter alcançado autoridade entre todos os povos do mundo (haja vista a diversidade religiosa em todo o mundo; os haitianos, por exemplo, adeptos da religião vodu, o ignoram) deveria ser uma evidência de que ele é um Deus que não transcende à história; é, ao contrário, um Deus que tem uma história. Qualquer pessoa que teve o privilégio de concluir sua escolarização média aprendeu, por exemplo, que povos das Américas do Sul e Central conheceram o cristianismo católico pela força dos colonizadores; povos que antes cultuavam muitos deuses se viram forçados a aceitar a adoração a um único Deus, que se impôs como o verdadeiro. Não é novidade alguma que a expansão da fé cristã num Deus único já vinha se dando, pelo menos desde que Constantino ascendeu ao poder de Roma. Quero dizer que sozinho Deus não se faria presente para muitos povos. Acho isso tão óbvio, tão claro. Deus existe não como ser transcendente ao mundo, mas como entidade ideológica (ideológica porque produzida por um sistema de valores, ideias e crenças) forjada num processo histórico determinado. Se Deus é carecido de materialidade natural (ele não é como a natureza e todo que nela há), não lhe falta materialidade histórica.

É simples aos que creem em Deus justificar o desconhecimento de Deus por outras comunidades humanas pela ignorância de seus indivíduos ou pela crença de que eles estão enganados sobre suas crenças religiosas, de que estão enganados sobre seus deuses, que não são reais, que não são verdadeiros. Trata-se de uma justificativa ideológica, porque mascara as verdadeiras razões por que eles desconhecem ou não têm necessidade do Deus cristão. Não é que eles estejam enganados (aliás, eles podem estar tão enganados quanto os próprios cristãos em relação ao seu Deus); eles simplesmente, criaram um sistema cultural que não contempla a crença num Deus único e transcendente; a razão por que não precisam acreditar num Deus tal como o do cristianismo, o do judaísmo ou do islamismo, é que lhes basta seu sistema de crenças sobrenaturais e suas divindades.  Esse sistema de crenças e as divindades referidas por ele funcionam em sua cultura. Se atendem às suas necessidades de sobrevivência em grupo, então não é necessário recorrer a outro sistema de crenças e a outra divindade.

Então, quando você acordar pela manhã e agradecer a seu Deus o dia lindo que lhe proporciona e desejar convocar a todos para que tomem parte nessa gratidão, lembre-se de que você está assumindo a existência de um Deus que não, necessariamente, será aceito por todo o mundo, de que muitos, pelas razões que apontei e por outras tantas que me escaparam, simplesmente o ignoram, e lembre-se também de que tudo que sai de sua boca a respeito de Deus tem uma história e isso é verdadeiro também em relação a todos os nossos discursos. Não espero que isso  o/ a leve a assumir o ateísmo ou o agnosticismo, mas que possa fazer com que se interesse, ao menos, por compreender melhor sua própria fé.

domingo, 18 de novembro de 2012

O olhar gnóstico



O desafio gnóstico nos primórdios do cristianismo




Tenho de concordar com o filósofo Luiz Felipe Pondé, que não é ateu, mas também não demonstra ser religioso em algum sentido forte, ao objetar aos que supõem que as pessoas que acreditam em Deus são ignorantes. A experiência é suficiente para lançar por terra a validade dessa crença. Também não é verdade que ateus seriam, em algum sentido, mais “inteligentes”, crença também repudiada por Pondé, em cuja posição estou de acordo. Também, nesse tocante, a experiência é suficiente para dispensar demonstrações em favor da invalidade dessa crença. Para ele tanto quanto para mim, isso é uma bobagem, infelizmente, muitas vezes, largamente reproduzida.
Tendo estabelecido minha posição sobre a correlação entre ignorância e teísmo, de um lado; e esclarecimento e ateísmo, de outro, reelaboro-a de outro modo. Desde já, fique claro que me situo na tradição dos três grandes monoteísmos (judaísmo, cristianismo, islamismo), embora me concentre na tradição judaico-cristã. A imersão nas vivências religiosas, a adesão às práticas doutrinárias, à receptividade à ideologia teológica por meio da oratória de padres ou pastores, durante cultos ou missas, moldam a consciência de uma coletividade, de modo a desenvolver atitudes, ideias e hábitos que acabam por inibir cada um de seus membros de buscar instruir-se sobre as bases históricas de sua fé. O poder da doutrinação é de tal modo tão penetrante, que as pessoas mais suscetíveis a ele preferem, talvez por receio de deparar-se com a fragilidade das fundações de sua fé, manter-se distante dos discursos polêmicos. Polemizar a doutrina é chocar-se contra a própria doutrina. Por definição, uma doutrina não admite polêmica.
No tempo em que ainda frequentava a igreja e em que conservava minha crença na existência de Deus, me contentava com o sentimento de abstração de Deus de toda retórica da comunidade eclesiástica que falava por detrás da voz do padre, para cultuá-lo na intimidade de minha imaginação (tratava-se de uma fé intimista). Conquanto tivesse crescido numa tradição católica e tivesse freqüentado missas católicas, recusava-me a me definir como católico, preferindo considerar-me como cristão ou como alguém que cria em Deus.
Era uma crença, certamente, egoísta, como o é, em muitos casos, o culto a Deus. Era egoísta, porque, acreditando ter Deus atendido a um pedido e tendo-lhe manifestado minha gratidão, sequer cogitava da possibilidade do insucesso alheio ao solicitar a Deus algum benefício. Na prática, me interessava o fato de eu, por exemplo, ter sobrevivido a um sério problema de saúde tão-logo eu nascera, sem levar em conta a possibilidade de outras crianças em condição semelhante não ter sido da mesma forma agraciada. O problema do mal ou do sofrimento no mundo, naquela época, raramente visitava a minha consciência. Digo “o problema”, porque é claro que estamos expostos ao mal e ao sofrimento cotidianamente, quer diretamente, quer indiretamente, quando assistimos aos noticiários pela televisão. Lamentava o fato de um furacão arrasar uma cidade e matar um grande número de pessoas, mas, como para todos os que creem na existência de um Deus que é bom, que é todo-poderoso, justo e providente, não via naquela ocorrência um problema sério para a minha convicção de fé. Não me ocorria fazer uma conexão lógica entre ‘o fato do sofrimento, da dor, da morte provocado pela passagem do furacão’ e a ‘crença na existência de tal Deus’.
Pondé diz ser o ateísmo uma hipótese fácil a que qualquer criança, com um pouco mais de discernimento, pode chegar. Estou agora a cogitar dessa visão... O que terá querido dizer o filósofo ao considerar o ateísmo uma ‘hipótese fácil’? Penso que a razão esteja em demandar pouca ou nenhuma teorização filosófica. Se é assim, pode-se concluir que, para Pondé, a teologia cristã ou o teísmo é mais intelectualmente desafiador. Em outras palavras, a hipótese da existência de Deus seria mais estimulante ao desenvolvimento do pensamento reflexivo do que a hipótese ateísta - mais fácil e menos fértil para o pensamento.
Não posso acompanhar o filósofo nesse tocante. A se considerar o fato de que a aceitação dos postulados ateístas pelo teísta mais ferrenho é extremamente difícil, dado o poder de penetração doutrinário a que me referi, claro me parece que a empresa ateísta constitui um desafio nada desprezível para o pensamento humano. Se, por um lado, num sentido epistemológico, o ateísmo parece ser uma ‘hipótese fácil’, por outro lado, Deus não deixa de sê-lo também. Deus é uma hipótese simples para explicar a origem da vida e do universo; é uma hipótese simples com que se mascaram as razões verdadeiras por que certas coisas acontecem (por exemplo, por que nos curamos de um câncer). Trata-se de se valer do conceito de Deus como um mecanismo ad hoc, ou como uma hipótese explicativa para as lacunas de nossa ignorância sobre o mundo.
Se a hipótese do ateísmo é fácil ou óbvia, por que bilhões de pessoas no mundo são incapazes de aceitá-la, de chegar a ela? Parece ser razoável dizer que uma criança não acreditará em Deus se não for exposta a uma tradição discursiva que tenha Deus como centro de suas preocupações. Para um religioso, no entanto, que viveu grande parte de sua vida acreditando em Deus, assumir a hipótese ateísta não constituirá tarefa fácil. Pode ser que, uma vez introduzida no universo de reflexões ateístas, uma vez tendo acesso aos discursos da filosofia ateísta, uma pessoa, disposta a abandonar sua fé, comece a sentir facilidade para chegar às conclusões apontadas pelo ateísmo; mas até que isso ocorra, ela terá de “desvendar essa hipótese”, que não lhe é, ao contrário do que sugere Pondé, imediatamente acessível. Quando a criança é, por força da sua formação familiar, em primeiro lugar, exposta às crenças religiosas de seus pais, e não lhe sendo oferecidas oportunidades para questioná-las, a hipótese ateísta lhe ficará, por muito tempo (senão para a vida toda), inacessível. Quando a doutrinação já tiver feito seu trabalho lapidar, dificilmente terá ela oportunidades de, pelo pensamento crítico, chegar àquela hipótese. Por isso, a filosofia. O leitor pode assistir ao final da palestra de Pondé, quando responde a um espectador, acessando 



        Até o momento, não introduzi a questão principal sobre a qual me debruçarei neste texto. Tratarei de expô-la agora. A incapacidade de traçar relações lógicas entre minhas experiências de mundo e minhas crenças de fé foi conservada até o momento em que eu passei a me interessar pelos estudos filosóficos e daí pelos estudos do ateísmo, primeiramente pela pena dos filósofos ateus, depois por outros autores ateus, não necessariamente filósofos. No entanto, durante o longo tempo em que minha consciência estava imersa ou aprisionada na crença em Deus (é disso mesmo que se tratava: era eu que estava imerso na crença), ignorava muitos fatos a respeito da história da religião e do Deus a que eu me inclinava. Pelo ateísmo, cheguei a conhecer melhor a natureza antropomórfica de Deus e, especialmente, a conhecer a história do cristianismo. À medida que avançava meus estudos sobre a história da formação do cristianismo, aprendi sobre fatos, por muitos cristãos ignorados, a respeito da fabricação da Bíblia. Na verdade, aprendi mais sobre a Bíblia.
Não estou sugerindo que só se pode conhecer a formação histórica do cristianismo e a fabricação da Bíblia pelo caminho do ateísmo. Quero dizer que as descobertas dos historiadores sobre o cristianismo e sobre a Bíblia dificilmente serão acessíveis aos religiosos leigos, caso pretendam buscar tais conhecimentos nos ensinamentos dos ministros de sua fé. Não estão eles na boca do padre, do bispo ou do pastor. Não se encontram nos cursos de catequese ou nos encontros para estudos bíblicos. Nessas ocasiões, fazem-se leituras devocionais dos textos bíblicos, que não contribuem para estimular uma reflexão crítica (e nem podem!).
Nos primórdios do cristianismo, os pais da Igreja tiveram de lidar com vários obstáculos ao fortalecimento da nova fé. Entre esses obstáculos, estavam as práticas de certas comunidades cristãs constituídas de pessoas que questionavam a hierarquia eclesiástica e a crença num Deus criador e único. Surgiam os gnósticos, que acreditavam haver outro Deus além do Deus criador.
Marcião, um cristão e teólogo da Ásia Menor (séc. II), perguntava-se sobre a razão de existir um Deus que, sendo todo-poderoso, criaria um mundo repleto de sofrimento, dor e doença. Com base nas visões conflitantes de Deus no Antigo e no Novo Testamento, não tardou para concluir que devia haver dois deuses diferentes. Para ele, o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus de Jesus. A Lei dizia respeito ao judeus; e o Evangelho, aos cristãos.
Seu nome inspirou a formação de um grupo de cristãos conhecidos como marcionitas. Na visão dos marcionitas, o Deus do Antigo Testamento não se identificava com o Deus do Novo Testamento. O primeiro era um Deus vingativo, assassino e ciumento; já o segundo, que era o Deus verdadeiro, era amoroso e misericordioso. Portanto, o Deus de Jesus nada tinha que ver com o Deus dos judeus.
Evidentemente, sustentar a crença na existência de outro Deus diferente do Deus criador, representado no pensamento ortodoxo que buscava se estabelecer, era intolerável. Irineu, fundador da teologia cristã, dedicou-se a combater, com virulência, as heresias gnósticas, entre as quais as do marcionitas. Havia além destes os valentinos, inspirados nas posições de Valentim - teólogo gnóstico do cristianismo primitivo. Esses gnósticos assumiam publicamente a crença em um Deus único (muitos ainda estavam ligados à cúpula da igreja), mas, em seus encontros furtivos, insistiam em discriminar entre a imagem de um Deus, que é criador, senhor e justo, e a imagem de um Deus que é fonte de todo o ser.
Havia, evidentemente, além das razões filosóficas e teológicas, razões políticas para que cristãos ortodoxos, como Irineu, se insurgissem contra as visões gnósticas. A crença em um só Deus justifica a instituição de um poder inquestionável de um só bispo como monarca da igreja. Em Os Evangelhos Gnósticos (2006), Pagels argumenta:

“(...) quando investigamos a forma como realmente funciona a doutrina de Deus nos escritos ortodoxos e gnósticos, podemos constatar como esta questão religiosa envolve também questões sociais e políticas. Especificamente, pela segunda metade do século segundo, quando os ortodoxos insistiram em “um Deus”, eles validaram simultaneamente o sistema de governo no qual a igreja é regida por “um bispo”. A modificação gnóstica do monoteísmo foi tomada – talvez, intencionalmente – como um ataque contra esse sistema. Pois quando os cristãos gnósticos e ortodoxos discutiam a natureza de Deus, eles debatiam ao mesmo tempo a questão da autoridade espiritual”.
(p. 99)
(grifo meu)

Os seguidores de Valentim acreditavam numa tradição secreta em que se inspiravam os escritos atribuídos a Paulo. Essa tradição revelaria que o Deus em que a maioria cristã acreditava como sendo o criador e Pai é tão-só uma imagem do Deus verdadeiro. Adotando o termo demiurgo (artesão) de Platão, Valentim assumia que o Deus de Clemente e outros pais da igreja é um Deus menor. Apresentando-nos a crença de Valentim, esclarece Pagels:

“Não é Deus, explica [Valentim], mas sim o demiurgo quem reina como rei e senhor, quem age como comandante militar, quem promulga a lei e julga aqueles que a violam – em resumo, ele é o Deus de Israel”.

(p. 62)

O gnóstico reconhece tanto no demiurgo quanto no bispo uma autoridade legitimada que exerce influência sobre os cristãos leigos. A pessoa iniciada na gnosis (conhecimento, entendimento) passa a estabelecer uma relação nova com Deus. Ela se reveste de uma autoridade espiritual em suas práticas cristãs. É digno de nota que nas cerimônias gnósticas todos podiam exercer, por sorteio, as funções de padre, bispo e profeta, inclusive as mulheres, fato que desagradava aos proto-cristãos ortodoxos. No entanto, os gnósticos não deixavam de crer na providência e onisciência de Deus, de tal sorte que, para eles, o resultado dos sorteios expressava a escolha de Deus.
Creio bastantes essas reflexões para aquilo a que me proponho aqui. Elas conduzem-nos à seguinte questão: Qual a importância, para o leitor cristão, do conhecimento de fatos como os que apresentei aqui? Não espero, evidentemente, com a exposição deles, com base na literatura especializada, sugerir que abandone sua fé. O conhecimento sobre a história do cristianismo e sobre a história da constituição do cânone das Escrituras não leva, necessariamente, ao ateísmo, muito embora contribua para colocar em xeque algumas crenças arraigadas, tais como a de que Deus inspirou a escrita das Escrituras (quando o leitor, pelo estudo, é forçado a reconhecer que a Bíblia é um trabalho de muitas mãos humanas e que nos textos e entre eles há muitas inconsistências); a de que a Bíblia é infalível (porque, segundo a primeira crença, é a Palavra de Deus); a de que foi Jesus quem realmente proferiu as palavras a ele imputadas nos Evangelhos (os Evangelhos são produtos de falsificações e os autores dos textos não são as pessoas que alegavam ser), etc.
Se somos capazes de aceitar a verdade desses fatos, igualmente capazes somos de reconhecer a materialidade histórica do Deus judaico-cristão. Deus e religião, assim, deixam de ser, em nossa consciência, um ser transcendente e um caminho elevado de acesso a ele, respectivamente, para tornarem-se fatos da cultura, portanto, fatos humanos.