segunda-feira, 29 de outubro de 2012

"Caminho conjuga bem com a vida" (BAR)


                                      

                             Caminhos

Bem sei que estou equivocado ao dizer isto: sempre achei que, para escrever um livro, é preciso que se tenha chegado a um estágio mais adiantado de maturidade.  Reconheço meu desejo de ver um livro meu publicado; no entanto, não mobilizo esforços para realizá-lo. Acho que não é chegado o momento. Por isso, se acaso eu vier a morrer antes de poder publicar um livro, eu gostaria de que alguém de minha família preservasse os textos que escrevi e que se acham arquivados neste computador e publicados neste blog. A escrita é uma prática que encaro com muita seriedade e, quando releio meus textos, percebo que dessa seriedade pude colher reflexões interessantes. Já escrevi sobre minha relação com a escrita, já manifestei como me dedico ao trabalho de confeccionar um texto. Por vezes, - também já o disse – tão-logo lhes ponho um ponto final, releio os textos , e descubro várias inconsistências. Corrijo-os, a fim de lhes dar uma forma publicável. Isso não me impede de revisitá-los e alterá-los num ou noutro ponto.
Não raro, ao relê-los, me admiro das coisas que escrevi. E cada releitura mostra-me uma pluralidade de caminhos verbais ainda por trilhar. Eis a magia do discurso: a inesgotabilidade dos sentidos, das possibilidades de dizer nunca exatamente do mesmo modo.
Neste átimo, fixo o olhar no vocábulo “caminhos” e sua semântica se me abre diante da consciência. O que ela revela? A possibilidade de ir adiante... E foi tomando os caminhos das palavras que pude reconciliar-me comigo mesmo e com mundo e ir adiante, nesta marcha social em direção à morte inevitável. Percebo, com regozijo, que minha dedicação ao trabalho com a linguagem curou-me o espírito. E, todas as noites, posso reencontrar-me com as palavras que me inundam de vida a solidão. Elas revestem meu espírito como músculos revestem os ossos. Dão-lhe força, elasticidade e mobilidade. A elasticidade do espírito se mede pela sua plasticidade linguística, isto é, pelo seu manejo com a maleabilidade e dinamicidade da língua.
Caminho conjuga bem com a vida. Esse vocábulo traz em seu bojo a transitoriedade. Por ele, fazemos a transição. E não é a vida transitoriedade? O caminho que leva à vida e à morte é o mesmo. Entre o nascimento e a morte, o transitório. Felizmente, o homem pôde desenvolver a linguagem verbal, que lhe permite acomodar o infinito na brevidade. Pensar a infinitude na brevidade da vida, na estreiteza de nossas percepções. Aspirar ao infinito nos limites de nossa compreensão da vida. Foi a linguagem que nos permitiu o “grande salto” (a transcendência às condições naturais, de cujas raízes, no entanto, os biólogos evolucionistas insistem em nos lembrar). Talvez, o caminho da vida não nos leve a lugar algum; mais vale estar nele, poder percorrê-lo de ponta a ponta, ainda que a chegada seja um precipício do qual nunca poderemos escapar. Uma boa imagem para a morte: a do precipício. Nascemos grávidos da morte. Nascemos já precipitados para a morte. Precipitar-se é lançar-se, atirar-se. Nascer é inclinar-se à morte. E toda a vida é uma luta contra o fenecimento. Nosso organismo, desde muito cedo, trava uma verdadeira batalha contra os operários da morte (e não faltam operários neste planeta a trabalhar para que a morte faça sua morada em cada ser vivo).
É o mesmo o caminho que me conduziu a alma a estas reflexões e que me levará a por um ponto final neste texto. Que o silêncio das palavras seja o prenúncio de longos e largos caminhos na urgência do viver que míngua a cada aurora desabrochada no céu.

domingo, 28 de outubro de 2012

"Que nossa emancipação como seres humanos se inicie na construção de relações intelectuais mais verdadeiras com o mundo" (BAR)


                  


                         O sonho e o pesadelo da credulidade


Ontem, assisti, no Discovery Channel, um documentário interessante sobre  uma possível erupção solar que ejetará o que os astrônomos chamam “massa coronal”, no dia vinte um de dezembro deste ano. Essa massa se constitui de partículas (especialmente, prótons) que seguindo no curso até a Terra , atingem-na e causam danos em seu campo magnético. O fenômeno conhecido como ejeção de massa coronal, consiste em grandes erupções solares de gás ionizado, em alta temperatura. Os cientistas já observaram que o campo magnético da Terra está se enfraquecendo, de modo que o efeito das erupções solares pode ser cada vez mais danoso. Alguns cientistas acreditam que, em breve, uma erupção solar possa danificar nossos satélites e causar um black-out em todo o mundo. A restituição da energia elétrica, em tal condição, levaria uns dez anos. Há outras consequências mais catastróficas no impacto provocado pela ejeção de partículas radiativas em nosso planeta. O leitor que desejar saber sobre essas consequências poderá assistir ao vídeo do documentário, cujo link é http://www.youtube.com/watch?v=phsnr5KvZF4.
É o mesmo o sol que nos aquece, que nos ativa no organismo a vitamina D, que permite aos vegetais realizar a fotossíntese, que é a fonte de energia primária de nosso planeta, e que pode aniquilar toda a vida existente nele. O mesmo universo que mantém a vida traz em si o germe de sua destruição (alguns asteróides, escapando a sua órbita em torno do sol, podem representar uma ameaça à nossa sobrevivência). O mínimo de compreensão das condições do Universo é suficiente para rechaçar a crença em sua perfeição. Quem se preocupar em compreender a forma como a vida se dá na natureza também chegará, sem dificuldades, à mesma conclusão.  O exemplo a seguir, dado por Dawkins, em seu O Gene egoísta (2007), é muito pouco adequado à concepção de uma natureza perfeita:

“Os louva-deus são insetos carnívoros (...). Na época do acasalamento, o macho se arrasta com cautela na direção da fêmea, monta sobre ela e copula. Se tiver a oportunidade, a fêmea o come, começando por lhe arrancar a cabeça, quando o macho estiver se aproximando, logo que ele tiver montado nela, ou ainda depois que tiverem se separado. Para nós, pareceria mais sensato que ela esperasse a cópula se completar antes de começar a devorá-lo. Porém, a perda da cabeça não parece privar o restante do corpo do seu cadenciado movimento sexual. Na realidade, uma vez que a cabeça do inseto é a sede de alguns centros nervosos inibitórios, é possível que a fêmea melhore o desempenho sexual do macho ao lhe devorar a cabeça. Se assim for, isso seria um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém”.

(p. 44)


Eu não estou preocupado em salientar qualquer questão de moralidade envolvida na prática do louva-deus fêmea , ao devorar a cabeça de seu parceiro sexual, já que a moral não se aplica ao comportamento selvagem. O que quero mostrar é que, embora possamos compreender as razões evolutivas que levam a fêmea do louva-deus a devorar o macho (ao devorá-lo, ela se beneficia com a possibilidade  de continuar  subsistindo – na verdade, Dawkins mostrará que são os genes os beneficiários), é difícil imaginar como tal prática poderia se integrar numa ordem natural “perfeita”. Num mundo perfeito, penso que seria mais plausível que indivíduos da mesma espécie não devorassem uns aos outros, especialmente quando estabelecessem um laço de procriação. Num mundo perfeito, os terremotos, vulcões, tornados, furacões, ciclones, estiagem são dispensáveis; igualmente dispensáveis seriam as doenças.
De que temos várias razões para dizer que o mundo não é perfeito, que a vida poderia ser melhor não há dúvida. Mas as dificuldades que encontramos na vida podem ser engrossadas com as nossas interpretações supersticiosas das ocorrências do real. Veja-se, por exemplo, o caso, muito comum, de pessoas que acreditam que “olho gordo” ou inveja pode ter um efeito nocivo à sua vida. Creem que um sentimento possa, por si mesmo, modificar alguma coisa na realidade objetiva. Você pode imaginar quão terrível seria um mundo em que também a inveja alheia, em si, pudesse acarretar-lhe alguma infelicidade? Mas muitas pessoas acreditam que, além de se proteger contra a ação das pessoas, também devemos nos proteger contra a sua inveja, cuja simples manifestação pode afetar negativamente o curso de nossas vidas.
Você pode imaginar ainda um mundo em que, além de nos preocuparmos em trancar nossas casas, em levantar muros altos e imponentes, com um sistema de arcos energizados, para guarnecer nossas casas, ainda tivéssemos de nos preocupar em nos proteger contra os demônios ou as influências de entidades malignas que atuariam por intermédio de trabalhos de macumba, feitiços e outras formas de evocação sobrenatural?
Em tais circunstâncias, não nos surpreenderíamos se a vida nos tornasse desalentadora e insuportavelmente aterrorizante.
Felizmente, lhe trago uma boa notícia: as forças malignas como realidades ontológicas não existem. Não há qualquer evidência de que um demônio exista e tenha possuído uma pessoa. Não há razões para acreditar que a inveja possa nos prejudicar objetivamente. Não há relação entre o fato de uma pessoa nos invejar e nós perdermos o emprego, a menos que essa pessoa, por inveja, seja motivada a fazer perdê-lo. Mas, nesse caso, não é a inveja que produz o efeito, mas a ação da pessoa invejosa. O desejo em si não produz realidade. Não é por que eu desejo que haja vida após a morte que, necessariamente, há ou haverá vida após a morte. Quão distante ficamos de uma verdadeira compreensão da realidade!
O apelo que eu faço é que procuremos interpretar o mundo com empenho racional. Que não deixemos que nossa capacidade de imaginação nos represente um mundo ‘perfeito’, onde tudo ocorre segundo uma Providência que visa ao bem, ou mais aterrador, onde um substrato maligno opera com o propósito de nos causar prejuízos. Um mundo onde demônios e outros seres malignos duelassem, numa guerra cósmica, contra seres benignos pelo controle do universo, tendo-nos como seus receptáculos ou “soldados cósmicos”, seria um mundo onde viver se tornaria muito mais desagradável (eufemismo).

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

palavras maltrapilhas


                      

                      
                          Suspiros da alma


Eu que me vire com essas palavras mal vestidas, maltrapilhas.  Eu leio para suportar a vida. Cada palavra esconde um abismo, onde o tédio e o gosto amargo ficam enlaçados ao descontentamento. Cada palavra faz-me reprimir o entulho de frustrações pretéritas, nas quais os amores plenos de imaginação nunca vividos encontram raízes. Despertei de um sono entorpecente quando aprendi a viver a filosofia. E mais elevado tornou-se meu espírito das Letras! Mais vale abandonar as “certezas” e se entregar aos desafios do pensamento.
São poucas, deveras, poucas as pessoas que me parecem interessantes. E não encontro as razões por que tal me pareçam. Bem sei que não me enquadro. Os esquadros de minha alma traçam figuras irregulares. Entre mim e o mundo não há coesão rija. Estou ligado ao mundo o suficiente para não me apegar. O apego mascara carência sob uma catadura de afeição. O apego sempre me pareceu algo degradante.
Malgrado me esforce por evitar estar a sós com os pensamentos, que teimam em conduzir meu espírito para os grandes salões da angústia, ao som de uma nota fúnebre de desespero, eles conseguem capturar minha alma, ao primeiro sinal de distração. Ponho termo a este texto para conservar a sua integridade. Custar-me- ia catar seus pedaços.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

“O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (Ernest Becker)


  
                                O engano contra o desespero
  textos que nos ensinam e textos que, nos ensinando, nos impressionam. Um exemplo desta espécie de texto é o capítulo O caráter humano como mentira vital, que se topa no livro A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012), de Ernest Becker. Ao cabo da leitura deste capítulo, apressei-me em anotar os tópicos que me pareceram mais relevantes à produção deste texto, cujo propósito é despertar reflexões no leitor sobre a condição humana a partir da compreensão do caráter como uma “mentira vital” forjada por cada um de nós para suportar a realidade da vida. O núcleo da discussão empreendida pelo autor é justamente a natureza e a função do caráter. É, portanto, na base da consideração dessa ficção psicológica que começarei a apresentar as teses defendidas pelo autor.
Além de fomentar reflexões, espero também conseguir despertar no leitor o interesse por ler o livro de Becker, cujo tema diz respeito ao absurdo da existência humana que abriga o saber sobre sua própria finitude. Não escapamos ao fato da morte; mas também não deveríamos continuar a nos furtar a meditar seriamente sobre ele.
É necessário, antes de levar a efeito meu empreendimento, explicitar algumas noções de psicologia que são caras ao entendimento satisfatório da abordagem da condição humana feita pelo autor. A primeira noção é a de Mecanismos de defesa. Os mecanismos de defesa são recursos utilizados pela mente neurótica (todos somos neuróticos em alguma medida) com o objetivo de lidar com a realidade, evitando, assim, a dor e a ansiedade. Há uma série de mecanismos de defesa. Escusar-me-ei de citá-los. Importa ter em conta, no entanto, a ideia de que esses mecanismos nos capacitam a nos furtar ao conhecimento consciente da natureza mesma da realidade. Eles nos “protegem” contra a visão aterradora da verdade da realidade.
A segunda noção importante é a do Princípio de realidade, cunhada por Freud. O princípio da realidade diz respeito à difícil tarefa do eu na busca por adaptar-se à realidade, atendendo aos imperativos do superego, sem, contudo, desagradar ao id (instância da energia dos desejos). O princípio de realidade permite ao indivíduo a distinção entre o mundo interior à psique e o mundo exterior. Ele repousa sobre a percepção sensorial e sobre a motricidade.
Outras duas noções importantes são a do eu (ego) e a de caráter. O eu é um gestor, pois que lhe cabe regular as relações entre a pessoa e o meio social em que vive (mas não é o senhor de sua “casa” (mente), pois que muitos pensamentos que se formam no espírito escapam ao seu controle). Ele é o centro de referência para todas as atividades psicológicas. Ele enfeixa uma individualidade. Sua construção se dá nas relações necessárias com o outro – relações, é preciso frisar, significativas -, o que significa dizer que o outro nos inculca significados. O que somos é resultado de uma construção simbólica na interação (pela linguagem) com os outros. Por isso, o “eu” se constrói na relação com o outro. Na verdade, a construção do eu e do eu-outro se dá numa relação simbólica mútua, de tal modo que um eu se constrói constituindo o eu do outro e por esse eu-outro é constituído. Creio ser conveniente aqui referir um trecho em que Becker justifica sua crença em que nós somos naturalmente covardes, por razões que ficarão claras no decorrer desta exposição. O trecho ajuda-nos, como se lerá, a entender como o “eu”, que experienciamos como uma realidade concreta, se constrói:

“Certa vez, escrevi que achava que a razão pela qual o homem era tão naturalmente covarde era que ele sentia não ter autoridade, e a razão de ele não ter autoridade estava na própria maneira pela qual o animal humano é formado: todos os nossos significados nos são inculcados pelo lado de fora, pelas nossas relações com os outros. É isso que nos dá um “eu” e um superego. Todo nosso mundo de certo e errado, bom e mau, nosso nome, exatamente quem somos, tudo isso é enxertado em nós”.
(...)

(p. 72)

O social constitui-nos no âmago do ser. A questão do ego envolve a problemática em torno da distinção, válida para alguns autores, entre o ego ideal, que totaliza as qualidades boas e positivas que introjetamos de nossos pais e da sociedade, e o superego que introjetaria os elementos punitivos e severos, e se limitaria a controlar os impulsos. Tal distinção não nos interessará aqui. Importa-nos, no entanto, reconhecer que cada um de nós é um estranho em relação a si mesmo. A realidade mesma de próprio eu é inacessível e seu conhecimento depende de uma profunda interiorização e autoconhecimento, para o qual o indivíduo não se demonstra normalmente inclinado.
Finalmente, a noção de caráter é, em psicologia, entendida como um sinal que permite identificar a natureza de uma coisa. É empregado como sinônimo de personalidade, mas de um modo mais restrito. Ao contrário da personalidade, que abriga uma totalidade que se constitui de impulsos, ideias, afetos, defesas, aptidões, talentos, comportamento social e reações, o caráter diz respeito apenas àqueles aspectos da personalidade que individualizam as pessoas umas em relação às outras. (v. Dicionário Técnico de Psicologia, 2006).
Creio estamos em condição para começar a acompanhar o desenvolvimento do texto de Becker, segundo a proposta de leitura de que este texto que ora escrevo é expressão.
“O caráter é uma mentira vital” (p. 76). É uma mentira que forjamos para conseguir suportar a nossa própria condição humana e a realidade do mundo. Segundo o autor, vivemos mentindo para nós mesmos e mentindo sobre o mundo. Ignoramos quem somos, porque nos esquivamos ao autoconhecimento, e ignoramos a verdade do mundo. Leia-se a concepção de caráter do autor, explicitada abaixo:

“(...) o caráter de uma pessoa é uma defesa contra o desespero, uma tentativa de evitar a loucura, devida à verdadeira natureza do mundo”.

(p. 89)
(ênfase no original).

De que verdade sobre o mundo se trata? O autor nos é claro em vários momentos e trarei à cena as palavras dele. Podemos, contudo, hipotetizar a respeito dessa verdade. A mais evidente é a verdade de sua própria contingência (um mundo criado do nada, que poderia nunca ter existido). A segunda verdade é a sua clara hostilidade. Deixemos, por ora, a questão da verdadeira natureza do mundo, a fim de acompanharmos com atenção o modo como as questões são apresentadas e tratadas pelo autor.
Nós, seres humanos, ao contrário do que sucede com os animais, não dispomos de instintos que nos preparam para todos os atos de sobrevivência. O mundo do animal não lhe coloca desafios aos quais não pode reagir. A relação entre o animal e o meio é imediata, de tal sorte que seu corpo é uma extensão do próprio ambiente em que vive. Becker nos chama atenção para o seguinte fato:


“(...) olhem para o homem, a criatura impossível! Aqui, a natureza parece ter deixado de lado a cautela e os instintos programados. Criou um animal que não tem defesa alguma contra a percepção do mundo exterior, um animal inteiramente aberto à experiência. Não apenas diante de seu nariz (...). Pode relacionar-se não apenas como os animais de sua espécie, mas, de certa maneira, com todas as outras espécies. Ele pode contemplar não apenas o que é comestível para ele, mas tudo que floresce. Vive não apenas o momento presente, mas estende seu eu interior ao amanhã, a sua curiosidade a séculos passados, seus temores a daqui a cinco bilhões de anos. Pergunta-se quando o sol irá esfriar e quais são suas esperanças em relação a uma eternidade no futuro. Viver não apenas num minúsculo território, tampouco em um planeta inteiro, mas numa galáxia, num universo, e em dimensões além de universos visíveis. É estarrecedor o fardo que o homem suporta, o fardo experiencial. (...) o homem não pode nem mesmo ter seu corpo como ponto pacífico, como podem fazer os outros animais.”
(p. 75)
(ênfase no original)

Não só o corpo humano demanda explicações, mas o próprio eu, com suas recordações e seus sonhos. O homem é um animal que se indaga sobre o sentido da vida, mas “não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que deveria fazer, o que pode esperar” (id.ibid.). O autor chamará de “dádiva da repressão” a capacidade que nos permite viver “decisivamente em um mundo esmagadoramente miraculoso e incompreensível, mundo tão cheio de beleza, majestade e terror que, se os animais o percebessem, ficariam paralisados e sem ação” (p. 74).
O que, afinal, nós reprimimos? Becker esclarece que a repressão é global, pois que é necessário reprimir toda a diversidade de nossas experiências, para, desse modo, alcançar um sentimento de valor interior e de segurança. O homem supre, pela repressão, a carência de proteção legada pela natureza. Sartre ensinava que o homem é seu próprio projeto. O homem terá de operar uma série de repressões. Leiamos o que nos revela o autor sobre ela:

“[o homem] terá que reprimir sua pequenez no mundo adulto, seus fracassos na tentativa de viver de acordo com as ordens e os códigos adultos. Terá que reprimir seus sentimentos de inadequação física e moral, não apenas a inadequação de suas boas intenções, mas também sua culpa e suas más intenções: os desejos de morte e o ódio, que sente ao ser frustrado e bloqueado pelos adultos. Terá que reprimir a inadequação dos pais, as ansiedades e terrores destes, porque percebê-los termina por minar o sentimento de segurança e poder. Terá que reprimir sua própria analidade, suas comprometedoras funções corporais que significam sua mortalidade, sua indiscutível transitoriedade dentro do mundo natural. Com tudo isso e com muito mais que não mencionamos, terá que reprimir o assombro e o terror básicos diante do mundo externo”.

(p. 77)

Quão árdua é a tarefa psicológica dos seres humanos na busca por suportar a verdade da realidade! O autor reconhece dois grandes temores do homem: o medo da vida e o medo da morte. Evocando o pensamento de Heidegger, observa:

“(...) a ansiedade básica do homem é a ansiedade por estar no mundo, bem como a ansiedade de estar no mundo. Isto é, temor da morte e temor da vida, da experiência e da individuação. O homem reluta em enfrentar o peso esmagador de seu mundo, os verdadeiros perigos desse mundo. Ele retrai-se para não se perder nos devastadores apetites dos outros, para não rodopiar sem controle nas garras e presas de homens, animais e máquinas”.
(p. 78)
(ênfase no original)


O caráter funciona como uma couraça contra o desespero e o abandono. É uma “defesa neurótica” contra a percepção da verdadeira condição humana, que é tecida pelo sofrimento. Realidade tão bem expressa no ensinamento budista e que constitui a primeira verdade proclamada pela doutrina:

“A primeira nobre verdade determina que tudo no mundo é sofrimento. “Nascer é sofrer; envelhecer é sofrer, morrer é sofrer, estar unido com aquilo de que não gostamos é sofrer, separarmo-nos daquilo que amamos é sofrer, não conseguir o que queremos é sofrer”. Em termos budistas o sofrimento implica algo mais do que mero desconforto físico e psicológico. Pode-se dizer que a existência como um todo é manchada pelo sofrimento, pois tudo é passageiro. A pessoa que não consegue perceber que o mundo, do ponto de vista do ser humano, é inadequado, é uma pessoa cega”.

                                             (O livro das religiões, 2008: p. 62)


É preciso esclarecer que a neurose é, para autores como Frederick Perls (lembrado por Becker), uma espécie de “couraça” para evitar lidar com uma realidade insuportável. Para Teles (2004), por exemplo, a neurose instaura uma discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”. Lutamos para ser o que não somos e isso nos acarreta problemas.
É deveras esclarecedora a estrutura neurótica concebida por Perls, apresentada por Becker, nos seguintes termos:

“Gosto da maneira pela qual Perls concebeu a estrutura neurótica, como um edifício compacto formado por quatro camadas. As duas primeiras são as do cotidiano. Nelas estão táticas que a criança aprende para viver bem na sociedade através do uso fácil de palavras que buscam pronta aprovação e calma, para que os outros possam segui-la. São as camadas da conversa loquaz e vazia, dos chavões e do comportamento estereotipado. Muita gente passa a vida sem nunca chegar abaixo dessas camadas. A terceira é dura, difícil de ser penetrada: é o “impasse que cobre a nossa sensação de sermos vazios e estarmos perdidos, a mesma sensação que tentamos banir ao construir defesas do nosso caráter. Por baixo dessa camada está a quarta e mais desconcertante: a camada da “morte”, ou do medo da morte. (...) essa é a camada de nossas verdadeiras e básicas angústias animais, e terror que carregamos conosco no segredo de nosso coração. Só quando explodimos essa quarta camada, diz Perls, chegamos àquela camada que poderíamos chamar de nosso “eu autêntico”; aquilo que realmente somos sem hipocrisia, sem disfarce, sem defesas contra o medo”.

(p. 83)


Convém reter que o “eu” que julgamos ser e que se exterioriza é tão-só uma imagem ou uma máscara sob a qual se disfarça nosso “eu autêntico”. Esse “eu verdadeiro” está soterrado em cada um de nós. Essa visão de um eu desprovido de realidade imediata e aparente, afina-se com a concepção de “eu” do psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009):

“Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por todas as nossas ignorâncias, erros, miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos”.

(p. 55)
(ênfase no original)

Em que período da vida inicia-se nosso desacerto em relação ao mundo? Para Becker, a plena humanidade “é um desajuste primário em relação ao mundo” (p. 84). Convém retroceder à nossa infância, para encontrar as raízes de nossas angústias, do descompasso em relação ao mundo. Chegamos a um mundo sem desejar estar nele, sem saber as razões por que passamos a ocupá-lo. Fomos arremessados a uma existência que se nos apresenta desafiadora e ameaçadora. Precisamos do amparo, dos cuidados de outros. O autor considera a criança um “covarde natural” e isso é compreensível, quando nos descreve a angustiante situação infantil:

“O mundo tal como é, criado do nada, as coisas como são, as coisas como não são, tudo isso é demais para que possamos suportar. Ou, melhor: seria demais para suportarmos sem desmaiar, tremendo como vara verde, imobilizados em transe em resposta ao movimento, às cores e aos odores do mundo. Eu digo – “seria” – porque a maioria de nós – ao deixarmos a infância – já reprimiu a nossa visão do milagre do mundo tal como ele aparece na experiência desarmada”.

(p. 74)

Quando não somos bem-sucedidos, em algum momento da vida, nesse trabalho de repressão da percepção da verdadeira natureza da realidade, rompe-nos o fracasso que se caracteriza como esquizofrenia. O esquizofrênico é aquele indivíduo, comumente, considerado, devido à ignorância geral, demente ou louco, por parecer viver “fora da realidade consensual”. De fato, o esquizofrênico se desliga da realidade assumida por um consenso socio-cultural. Mas convém dirimir alguns equívocos, atentando para a definição rigorosa desse tipo de psicose. No Dicionário técnico de psicologia (2006), lemos:

“A esquizofrenia caracteriza-se por acentuada perda de contato com a realidade (dissociação), grave divisão ou fragmentação da personalidade, formação de um mundo conceptual excessivamente determinado pelo sentimento (autismo) e ocorrência de sintomas que assimilam uma deterioração progressiva”.

(p. 112)
(grifo meu)


A esquizofrenia ensina-nos muito sobre nossa relação com a realidade. Ensina-nos que a realidade não é algo dado, que se põe diante de nós a priori, mas que é construída numa relação complexa entre percepção-cognição, linguagem e cultura, dimensões estas que perpassam e definem o humano. O esquizofrênico é aquele que não domina mais os códigos comuns com os quais constituímos a realidade e a estruturamos.
A questão da esquizofrenia figura no texto de Becker, para que o autor nos mostre que não consiste ela num fracasso dos pais na formação de uma criança bem adaptada à sociedade ou à realidade. A visão segundo a qual os pais seriam culpados pelas repressões da criança, pela produção de defesas de seu caráter e pelo gênero de pessoa que se tornaria foi duramente criticada. A criança, vinda a um mundo absurdo, em condições não escolhidas, precisa criar defesas contra ele. Ela passa a ser vista como um ser que tem de lidar com o mundo, produzindo suas próprias defesas.
A esquizofrenia passa a ser vista como uma condição extra-humana. Quem dela sofre é incapaz de se valer de mecanismos de defesas contra a realidade. O esquizofrênico está desarmado contra a tragédia da vida, segundo Perls. A tragédia a que se refere encerra ‘a finitude humana’, ‘o medo da morte’ e ‘a natureza ameaçadora da vida’. Destarte, para alcançarmos uma compreensão satisfatória da condição do esquizofrênico e entender a condição de todos nós que nos consideramos “normais”, convém atentar para o que se segue:


“O esquizofrênico sente essas coisas [a finitude humana, o medo da morte e a dureza da vida] mais do que ninguém, porque não conseguiu armar as defesas confiáveis que uma pessoa normalmente usa para negá-las. A desdita do esquizofrênico está em que ele ficou sobrecarregado com quantidades extras de angústias, culpa e desamparo, em um meio ambiente ainda mais imprevisível e que não lhe dá apoio. Ele não está instalado em segurança em seu corpo, não tem uma base segura que lhe dê condições para vencer um desafio e obter uma negação da verdadeira natureza do mundo. (...) O esquizofrênico é sumamente criativo num sentido quase extra-humano porque está mais longe do animal: falta-lhe a segura programação instintiva dos seres inferiores. E lhe falta a segura programação cultural dos homens. Não admira que ao homem comum ele pareça “louco”: ele não faz parte do mundo habitual.”

(pp. 88-89)


A conclusão a que chegamos, após a leitura integral do texto, é que aos seres humanos a compreensão e a aceitação da totalidade de sua condição são intoleráveis. Para suportar sua condição, eles precisam forjar traços psicóticos disfarçados, ocultos que virão a constituir o caráter – sua couraça, afinal, contra o absurdo da vida e da morte. Preferem se enganar a respeito de quem realmente são, a respeito de sua própria condição e da natureza da realidade. Por isso, Sartre tão bem notou que o homem é “uma paixão inútil”. Ao que Becker acrescenta, ratificando a posição do eminente filósofo: “O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (p. 85).

"e a fantasia vai produzindo seus santos..." (BAR)





Santos

Homens em carne fria transformados
Lamentos que no Céu é Amor pulsante
Ossos, tripas, ajuntam-se amortalhados
No túmulo a ficar uma ideia latejante

A existência - corredores de rebanhos
Por onde passam os samaritanos e os patuscos
Santos a deflagrar horrores noturnos
E Seres decaídos que inspiram antros

Se Ser é não-Ser que é ser Nada
Nada, pois, todo homem contra o Ser
Ser mais puro, mais santo quando morrer

Ser adorado como toda imagem sacra!
E em altares os homens se vão ordenando
Rendendo graças e se santificando!

(BAR)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

"Quão terrível obra é o mundo das superstições! Pobre de nós se tudo isso fosse verdade! (BAR)


   

                 A superstição nossa de cada dia
 
É lugar-comum dizer que o brasileiro é supersticioso. De fato, o é; quem o negaria? O reconhecimento do fato em si não constitui razão suficiente para que lhe dedique um texto. Interessa-me, aqui, na verdade, fazer ver que formas de pensamento supersticioso coexistem com formas de pensamento religioso na consciência do brasileiro. Curiosamente, há entre os que esta terra tropical habitam aqueles para quem não há nenhum conflito entre a crença num Ser superior (Deus) e suas crenças supersticiosas. Não estou assumindo que todas as formas de superstição sejam agasalhadas por todos. Certamente, há muitas pessoas que rejeitam a crença de que um gato preto possa trazer azar, ou que passar por debaixo de uma escada tenha o mesmo efeito danoso. Mas é certo também que muitas pessoas, a despeito de acreditarem em Deus, levam a sério a influência dos astros em sua vida (a astrologia é também uma forma de superstição, considerada, comumente, como pseudociência).

O que é superstição? Invés de apresentar, desde já, uma definição, começarei com uma ilustração. Suponhamos que você tenha quebrado um espelho em sua casa e, nesse mesmo dia, fica sabendo de sua demissão. Você, supersticioso ou supersticiosa, acreditará que o fato de ter quebrado o espelho fez com que tivesse uma má sorte, ou seja, perdesse o emprego. Você busca estabelecer uma relação de causalidade entre dois eventos que, logicamente, não se prestam a tal associação. Toda superstição é, portanto, uma forma de pensar contrário à racionalidade ou à lógica. Se depois de avistar um gato preto, eu tropecei e caí no chão, é possível que eu tenha concentrado tanto a minha atenção no animal, que me distrai e não vi um desnível no chão diante de mim. Sucedeu um acidente, cuja causa, provavelmente, estivesse em minha desatenção.
Assim, por superstição podemos entender a crença em que há relações de causa-efeito entre eventos aos quais tais relações não se aplicam logicamente. Tal crença é contrária à racionalidade. Não há por que supor uma relação de causa-efeito entre o fato de eu ter quebrado o espelho em casa e de, posteriormente, saber de minha demissão. Há, decerto, uma causa para que eu fosse demitido; talvez, se devesse à necessidade de “cortar custos” na empresa.
Eu não pretendo me alongar sobre o assunto. Quero apenas chamar a atenção de meus leitores para o fato de que se pode ser religioso, se pode crer na existência de um ser providente (pode-se crer na providência de Deus, isto é, na suprema sabedoria com que ele governa todas as coisas), na existência de um ser, acima de tudo, amoroso e protetor, mas, ainda assim, acreditar que a existência individual está submetida às contingências da sorte ou do azar.

        Quantos religiosos dão três leves pancadas com o punho fechado numa madeira, crendo que, assim, afastam um possível infortúnio? Decerto, eu também conservei esse hábito durante um longo período de minha vida (quando ainda acreditava em Deus). Para mim, hoje isso soa bastante ridículo. Quem acredita em Deus não poderia acreditar, a princípio, nas flutuações do acaso. A crença de que, se não dermos três batidinhas na madeira, o infortúnio enunciado possa, de fato, sobrevir é incompatível com a crença na providência divina. Ora, ou Deus “está no comando” de tudo que nos acontece, seja positivamente, seja negativamente, ou estamos à mercê das contingências da sorte (aqui entendida como “destino”). Se Deus é o tecelão do destino, não há espaço para o acaso e a má sorte.
Lembro aqui um caso trágico de uma jovem que morrera quando, andando pela calçada a caminho do trabalho, fora atingida por uma roda de caminhão (.http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/mulher-morre-atingida-por-roda-de-caminhao-na-avenida-brasil.html), na Avenida Brasil (RJ). De fato, interpretamos o caso como uma fatalidade, uma coincidência infeliz, desastrosa. Os religiosos têm de lidar (ou pelo menos, teriam de lidar) com o fato de que Deus não pôde (ou não quis) salvá-la. Eu não me surpreenderia se um religioso dissesse tratar-se de pura falta de sorte da moça. E ainda acrescentasse “que Deus tenha compaixão para com a sua família”.
Superstições e formas ritualísticas, como simpatias, povoam o imaginário do brasileiro declaradamente religioso. Isso não deveria causar espanto, já que as religiões são consideradas, à luz da racionalidade, formas de superstição.
 Oração e simpatias guardam afinidade. Ambas são práticas que visam à obtenção de alguma coisa. O que as difere, fundamentalmente, é que o efeito benéfico da primeira depende da autoridade de uma força superior (em geral, um deus); o que não sucede com as simpatias. Nestas, a pessoa manipula certos objetos, combina-os, executa certas tarefas segundo passos pré-estabelecidos, para obter a realização de seu desejo (v. http://www.blogodorium.com.br/simpatias-para-marido-amarrar-amansar-e-para-ele-voltar/).  Ambas, contudo, exigem que a pessoa tenha fé.
Assim como é interessante buscar entender a origem do pensamento religioso no homem, também interessante é investigar sobre a origem de muitas superstições. Vejamos as razões históricas para algumas das muitas superstições comuns entre nós.
A  superstição do gato preto surgira na Idade Média, época em que se acreditava que os felinos, por seus hábitos noturnos, tinham pacto com o demônio, especialmente se fossem da cor preta, que lembrava as trevas. No Egito, entretanto, os gatos são considerados sagrados; portanto, animais que trazem boa sorte. A má fama do gato preto entre nós remonta à Idade Média, tempo em que também se acreditava que uma bruxa podia tomar a forma de um gato preto.
A superstição do bater na madeira parece estar associada à antiga crença de que bons espíritos residiam em árvores. Bater na madeira, assim, é uma forma de a pessoa invocar os espíritos a que a protejam. Trata-se de um costume pagão. Os sacerdotes celtas  costumavam bater na madeira para afugentar maus espíritos, porque acreditavam que as árvores eram capazes de consumir demônios.
Outra superstição cuja origem é curiosa é a de abrir o guarda-chuva dentro de casa. Acredita-se que se abrirmos um guarda-chuva dentro de casa, recairá sobre nós azar. Uma possível explicação para essa crença decorre do hábito, mais comum entre os antigos, de abrir o guarda-chuva para se proteger contra os raios solares.  Assim é que, abrindo o guarda-chuva dentro de casa, insultava-se o deus sol. Há quem a explique de outro modo. Como o guarda-chuva nos protege contra as tempestades, acredita-se que, abrindo-o dentro de casa, insultam-se os espíritos guardiães, do que resulta ficarmos desprotegidos contra as intempéries da vida.
Há ainda a crença de que, se derramarmos um pouco de sal no ombro esquerdo, livramo-nos da má sorte. A explicação para essa superstição prende-se à lenda, segundo a qual, estando o diabo sempre em pé atrás de nós, joga-se sal para trás a fim de acertar-lhe os olhos.
Finalmente, a crença em que um trevo de quatro folhas traz boa sorte está associada ao mito de Adão e Eva. Conta-se que, após a expulsão do paraíso, Eva levara a Adão um trevo de quatro folhas como lembrança de uma vida venturosa no paraíso.
Clara está a relação intrínseca entre superstição e religião. Várias superstições parecem ter-se originado de crenças religiosas. Disso não se segue que todos os fiéis admitam a confluência de interpretações supersticiosas com suas crenças religiosas. Uns podem ser mais ou menos suscetíveis que outros a buscar explicações para os acontecimentos da vida que não se alicerçam no sistema doutrinário de sua fé religiosa. No entanto, cuido que, em alguma medida, a formação religiosa contribui para manter algumas estruturas do pensamento supersticioso na consciência do homem comum.
O pensamento religioso-supersticioso não mina, de modo algum, o pensamento racional, é claro. Mas poderá exigir a reorientação e aplicação deste na compreensão do mundo em outras esferas ou práticas da vida. Por exemplo, hoje, usamos a razão para entender por que estamos gripado e com febre (penso que não se acredite mais, pelo menos nas sociedades “civilizadas”, na possessão de maus espíritos como causa de nossas doenças); também a usamos quando buscamos tratar da gripe (vamos ao médico, tomamos os remédios que ele receita e procuramos seguir suas orientações); isso não impede que muitos dentre nós, façam uma oração, caso a gripe se agrave; e, por incrível que pareça, não impede que o absurdo da fé interfira fatalmente no destino de uma pessoa, como no caso de uma aluna adepta da crença cristã dissidente Testemunhas de Jeová, que se recusara a receber transfusão de sangue, simplesmente porque contrariava um preceito de sua fé (v. http://www.paulopes.com.br/2012/10/minha-aluna-tj-morreu-por-recusar-transfusao.html#.UIbXS2_A9Hc). Nesse caso, de fato, o pensamento supersticioso se sobrepôs ao pensamento racional, na base do qual se deveria pautar a decisão da família. O bom-senso sucumbiu à convicção absurda da fé. Para os cristãos que não comungam da interpretação de tal seita dissidente, o negar-se a continuar vivo, recusando-se a receber sangue, é, certamente, uma atitude contrária à vontade de Deus. Para essa classe de cristãos (católicos, por exemplo), o ato de doar sangue para salvar uma vida e o de aceitar a doação são atitudes agradáveis a Deus. As Testemunhas de Jeová entendem diferente. Baseando-se em alguns ensinamentos bíblicos e, ingenuamente, supondo que tenha sido um mandamento divino, esses cristãos veem nos registros bíblicos abaixo a expressão da proibição à transfusão de sangue.



10. A todo israelita ou a todo estrangeiro, que habita no meio deles, e que comer qualquer  espécie de sangue, voltarei minha face contra ele, e exterminá-lo-ei no meio de seu povo. 11. Pois a alma de carne está no sangue; e dei-vos esse sangue para o altar; a fim de que ele sirva de expiação por vossas almas, porque é pela alma que o sangue expia. 12. Eis porque eu disse aos israelitas: ninguém dentre vós comerás sangue, nem o estrangeiro que habita no meio de vós. 13. Se um israelita ou um estrangeiro que habita no meio deles capturar um animal ou um pássaro que se possa comer, derramará o seu sangue, e o cobrirá com terra, porque a alma de toda carne é o sangue que é sua alma. Eis porque eu disse aos israelitas: não comereis sangue de animal algum, porque a alma de toda carne é o seu sangue; quem o comer será eliminado”.

(Levítico 17: 10-13)



“28. Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte indispensável. 29. Que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e da impureza. Dessas coisas fazeis bem de vos guardar conscienciosamente.”

(Atos, 15: 28, 29)


      
                     (Actos dos Apóstolos 15:28, 29)

Parece-me que a ignorância sobre o contexto sócio-histórico da produção dos livros bíblicos (a Bíblia é composta de textos de várias épocas e lugares; só a Bíblia hebraica (Antigo Testamento) tem aproximadamente mais de mil e quinhentos anos e seu texto mais antigo remonta a 1200 a.C. (cf. Swenson, 2010)) explica o sério equívoco de interpretação. O livro Levítico (referente ao terceiro filho de Jacó, cujo nome – Levi - designou uma das tribos de Israel) trata do acordo entre Deus e os protoisraelitas.  Compreende uma série de leis sobre a regulamentação de várias esferas da vida (matrimônio, sacrifícios, festas, etc.). O autor de Levítico estava orientando seu povo sobre novas formas de se relacionar com Deus, pela supressão de antigos costumes. Em Atos, o tema é o desenvolvimento da Igreja nascente, no que diz respeito tanto às suas raízes judaicas quanto ao Império Romano. O autor (possivelmente, Lucas; mas há controvérsia) proíbe o sacrifício de animais, prática comum entre os antigos judeus e pagãos. Ver aí uma proibição à transfusão de sangue, prática inexistente na época (verificada, embora de modo pouco ortodoxo, no século XV d.C), é superinterpretar o texto ou distorcer o sentido previsto pelo texto.  Como os sentidos são produzidos num contexto sócio-histórico e ideológico, convém que possam ser reconstruídos com base nas informações sobre esse contexto. O aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso pode nos auxiliar nesta tarefa.
Eu tenho insistido, mas voltarei, em breve, ao assunto, que a grande maioria dos religiosos que se sentam nos bancos das igrejas, que oram e seguem os rituais do culto ou da missa, ignoram a História da fabricação da Bíblia.  Os autores bíblicos não tinham o compromisso com a verdade histórica ou com o relato fidedigno do que aconteceu historicamente. Por isso, convém atentar para as palavras de Mckenzie, em Como ler a Bíblia, história, profecia ou literatura (2007):



“A Bíblia, naturalmente, reflete a cultura da sociedade dos antigos israelitas e gregos romanos, onde foi produzida. Ela foi escrita em hebraico e em grego, e não em inglês [português]. Não esperamos encontrar em suas páginas referências ao estilo de vestuário ocidental ou modos de transporte modernos. Nem devemos esperar que apresente estilos literários contemporâneos. A interpretação errônea do gênero leva o leitor contemporâneo a expectativas irreais e algumas vezes não razoáveis sobre o conteúdo e a mensagem da Bíblia”.
(p. 28)



domingo, 21 de outubro de 2012

Parte 1 - Voltarei ao tema





Muito prazer, sou linguista

A situação é recorrente. Basta que alguém saiba que sou professor de português para demonstrar-se intimidado a falar. Tal atitude se baseia na crença, arraigada na consciência coletiva, em nosso país, de que todo professor de português é, necessariamente e ao mesmo tempo, um guardião da “pureza” da língua pátria e um policial linguístico. Destarte, de acordo com essa crença muito disseminada em nossa sociedade, ao professor de português compete o dever de zelar pela língua de prestigio (conhecida vulgarmente como a “língua correta”) e patrulhar o uso linguístico, de modo a detectar os recorrentes “desvios” ou “erros” cometidos pelos usuários da língua, relativamente a uma norma idealizada e balizada por um conjunto de práticas, valores e ideologias recoberto pelo termo gramática tradicional.
É comuníssimo o recorrer-se ao professor de português a fim de saber se uma palavra grafa-se com “s” ou “z”, ou se o correto é dizer “para mim fazer” ou “para eu fazer”. Em qualquer caso, o falante que busca esclarecimento deseja obter uma resposta que acene para o comportamento linguístico “correto”. Trata-se da obsessão pela correção idiomática. No imaginário dos falantes, o professor de português é o falante que mais bem conhece a língua nacional; e, portanto, socialmente, é esperado dele que assuma uma postura pedagógico-normativista em face da língua. É bem verdade que muitos professores de português se reconhecem nesse papel e o assumem sem maiores preocupações. Para citar dois exemplos, professores celebrados na mídia televisiva tais como Pasquale Cipro Neto e Sérgio Nogueira costumam prestar serviços como consultores da língua portuguesa. Ambos possuem colunas em jornais de grande circulação no país, nas quais escrevem a fim de esclarecer os leitores sobre suas dúvidas em matéria de língua portuguesa.
Há, no entanto, muitos professores de português, em sua maioria atuantes como pesquisadores (com doutorado) nos mais diversos centros de pesquisa em linguagem nas grandes universidades estaduais e federais de nosso país, que, sendo linguistas (ou seja, cientistas da linguagem) não assumem uma postura normativista no tratamento dos fenômenos linguísticos. Não estão eles preocupados em ditar o que é “certo” ou “errado” no uso que os falantes nativos de português fazem de sua língua. Sendo pesquisadores, estudiosos da linguagem, especialmente da língua portuguesa, especialistas cujos estudos se desenvolvem na esteira da Linguística moderna, eles estão interessados em descrever e explicar a estrutura e o funcionamento da língua portuguesa. Dizer que eles são cientistas na área dos estudos linguísticos significa dizer que são pessoas cujas pesquisas se valem de métodos e técnicas variados, muito embora regidos pelo princípio positivo comum a todo empreendimento científico, a saber, o mostrar o que é uma coisa na base de uma observação sistemática.
Não posso ignorar o fato de que a Linguística, em virtude da própria natureza de seu objeto observacional (a língua(gem)) tem de lidar com algumas dificuldades, que não parecem encontrar repercussão em outras ciências. De qualquer forma, etapas como observação, descrição, comparação, análise e síntese, contempladas no método científico, constituem tarefa do linguista quando se debruça sobre um dado fenômeno linguístico. Não vou me deter na problemática em que repousa a determinação de um fenômeno linguístico a ser estudado.
O que espero fique claro é que a Linguística é um ciência, com uma metodologia e objeto próprios. Essa ciência abriga uma gama variada de teorias ou perspectivas teóricas, em virtude da própria heterogeneidade de seu objeto de estudo - a língua(gem). Dependendo do ponto de vista com que definimos uma língua, haverá diferentes perspectivas teóricas (estruturalismo, gerativismo, funcionalismo, as teorias do texto e discurso, sociolinguística, linguística cognitiva, etc.). Não obstante a diversidade de abordagens, uma e outra podem ser reunidas num mesmo grupo, por guardarem entre si pressupostos em comum. Assim, o estruturalismo e o gerativismo são recobertos pelo rótulo formalismo, pois que se trata de abordagens que se preocupam em estudar a forma (estrutura) da língua desvinculada do uso ou do contexto sócio-cultural em que é usada.
Como toda minha formação até o presente momento tem sido orientada pelos postulados da visão científica de língua(gem), minha postura sobre a língua portuguesa e seu uso não é normativista.  Sou um estudioso da língua, alguém que se preocupa em observar e entender os diferentes usos da língua portuguesa feitos pelos seus falantes nativos, independentemente de sua classe socioeconômica, faixa etária, origem geográfica, grau de escolarização e gênero. Sou também um professor combatente de toda forma de discriminação social pelo uso da linguagem; sou, portanto, avesso ao preconceito linguístico tão arraigado na consciência social dos brasileiros.
Vejamos, para finalizar, um exemplo de como procede um linguista no trabalho de descrição e explicação de um dado fenômeno linguístico. Tendo observado ocorrências como as listadas abaixo,

(1)     Comprei os livros didáticos
(2)     A gente pesca em outras escama #
(3)     Ele tem três barco #

(o # indica o cancelamento da marca –S de plural)

buscará o linguista descrevê-las e explicá-las à luz de determinados pressupostos teóricos e na base de um conjunto de hipóteses.
Estamos diante do fenômeno conhecido por concordância nominal, isto é, a que ocorre, no interior de um grupo nominal, entre um substantivo-núcleo e um determinante (artigo, numeral, pronome, adjetivo). A ocorrência (1) é típica da variedade linguística de prestígio, que ilustra o comportamento linguístico dos indivíduos mais escolarizados de nossa sociedade. Em (1), marca-se o plural em todos os elementos do grupo nominal (chamado “sintagma nominal”). Trata-se de uma forma de marcação redundante do plural, já que a marca -S se repete em cada uma das unidades componentes do grupo.
Nas demais ocorrências, notamos a ausência da marca de plural sistematicamente no segundo elemento do grupo nominal. Essa é uma observação importante a ser registrada: nos grupos nominais constituídos de apenas dois elementos, o cancelamento da marca de plural –S ocorre tão-só no segundo elemento do grupo. Ocorrências como “o meninos” são agramaticais; não se verificam.
 A complexidade aumenta quando se observam casos em que o grupo nominal apresenta mais de dois elementos. No entanto, vou-me limitar a contemplar as ocorrências acima referidas.
Estudos mostram que é grande o índice de cancelamento da marca –S no núcleo do sintagma nominal formado por dois elementos, como ilustrado nas ocorrências acima.
Como princípio geral que rege a concordância nominal, nesses casos, postula-se que é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento do sintagma, geralmente um artigo ou pronome adjetivo (algum, este, esse...), para indicar que todo o grupo nominal deve ser interpretado como pluralizado. Essa é a regra seguida nas variedades da língua de menor prestígio.
O caso (3) demonstra-se, particularmente, interessante, em virtude da presença do numeral. Estudos apontam para a sistematicidade com que a marca –S é cancelada no núcleo quando na posição pré-nuclear se acha um numeral. Ou seja, havendo um numeral o cancelamento é a norma.

Três                barco           aportaram.
pré-núcleo       núcleo

Linguistas há que constataram maior frequência de cancelamento nas formas cujo plural se faz tão-só pela anexação da marca –S, como nos casos avaliados, se comparados com os casos em que a marcação do plural com –S se acompanha de uma alteração fônica (cf. coração / corações). Assim, em (4), a marcação do plural seria mais frequente:

(4) Desenhou uns  corações no papel.

Para explicar por que nos casos em que a marcação do plural que se acompanha de uma alteração fonológica no interior da palavra a concordância nominal se verifica no grupo, propõe-se o princípio da saliência fônica. Consiste este princípio na ideia de que as formas em que a diferença entre singular e plural é marcada apenas pelo acréscimo de –S seriam mais suscetíveis a não exibir a marca quando usadas no plural. Quanto maior a saliência fônica (quando há alteração fônica) mais frequente será o uso da marca –S.
Do exposto não se segue que não possamos encontrar uma ocorrência como a de (5a), para a qual vale a regra geral, anteriormente anunciada:

(4a) Desenhou uns coração # no papel.

Vale notar que (1) pode apresentar a forma variante (1a):

(1a) Comprei os livro # didático #.

Nesse caso, cancelou-se a marca de plural tanto no núcleo quanto no determinante pós-núcleo. O princípio geral que já anunciei continua valendo, mas se pode propor outra explicação igualmente válida, a partir do princípio do paralelismo sintático. Reza esse princípio que a presença de marca num dado elemento do sintagma leva à presença de marca nos demais; correspondentemente, a ausência de marca em um elemento do sintagma acarreta a ausência de marca no elemento seguinte. É o que sucede em (1a), em que a ausência de marca no núcleo do sintagma (livro) leva ao cancelamento da marca no determinante (didático).
Claro está que, em nenhum momento, fiz qualquer juízo de valor sobre as ocorrências aqui analisadas. Em nenhum momento, rotulei de “correta” ou “incorreta” qualquer variante. Essa é, portanto, a postura de todo linguista. Ele se nega a discriminar qualquer variante linguística, segundo critérios estéticos ou valorativos, porquanto reconhece que qualquer discriminação dessa ordem não só carece de fundamento científico, como também reproduz uma visão elitista sobre a língua. Está preocupado, como vimos, em descrever (analisar) e explicar como a língua funciona e se estrutura. Está preocupado em revelar as regras subjacentes ao uso que os falantes fazem de sua língua, nas suas diferentes variedades.
Que continuem solicitando-me para que eu esclareça as famigeradas dúvidas não resolvidas pela gramatiquice escolar, fartamente oferecida na mídia ou nos manuais paradidáticos! Mas não sem o reconhecimento de que, por um lado, o estudo da linguagem pode ser muito mais interessante do que saber o que se deve ou não se deve falar, do que saber a forma correta da grafia de palavras ou a conjugação do verbo “apropinquar”; por outro lado, eu não estou interessado em policiar o comportamento linguístico de ninguém, apontando os supostos “erros” (com aspas) que as pessoas acreditam cometer. Antes de ser professor de português, sou um pesquisador, um estudioso; enfim, um linguista.