sexta-feira, 28 de setembro de 2012

ler é produzir sentido


                                   

                                      Uma proposta de leitura
            
                      Ensinar português é desenvolver o letramento





                       Sobre moluscos e homens

            Rubem Alves

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Sòmente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...



                                   



Proposta de leitura




Em seu mais recente e monumental trabalho que ostenta o título de Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (2011), o linguista Marcos Bagno reitera sumariamente o que tem sido consenso entre os especialistas, no tangente aos objetivos das aulas de português na escola. À página 29, lemos:

“Ler, escrever e refletir sobre a língua. Essas três tarefas – que no fundo são uma só: desenvolver o letramento – constituem toda a missão da escola no que diz respeito à educação em língua materna. Não há tempo a perder com outras práticas que já se comprovaram absolutamente irrelevantes e inúteis para se cumprir essa missão”.

(grifo no original)


Essas “outras práticas irrelevantes” a que se refere o autor dizem respeito à forma como o português vem sendo tradicionalmente ensinado e estudado nas salas de aula de nossas escolas, a saber, como um objeto de estudo cujas partes constitutivas devem ser reconhecidas e classificadas. Exemplos dessas práticas são a elaboração de atividades em que se solicita ao aluno o reconhecimento do complemento verbal e de sua classificação em objeto direto, objeto indireto, complemento relativo, complemento circunstancial, etc. O material linguístico oferecido aos alunos e sobre o qual eles se debruçam em sua tarefa enfadonha e despropositada de dissecação da língua e taxionomia de suas unidades constitutivas consiste em um conjunto de frases ou criadas pelo próprio professor, ou extraídas de textos, ou colhidas de coletâneas de exercícios de gramática; em qualquer caso, trata-se de frases descontextualizadas, e não de unidades de comunicação. Trata-se de fragmentos de linguagem – eu diria, de cadáveres linguísticos – exauridos de sua funcionalidade, porque desvinculados do todo linguístico a que se integravam (texto) e dos contextos (socio-ideológicos, político, cultural, cognitivo) na base dos quais funcionavam.
Já há muito, os estudiosos da linguagem (os linguistas) advogam a necessidade de se desenvolver um ensino de português focado na leitura e produção de textos, bem como na reflexão sobre o funcionamento da língua em textos. Evidentemente, a mudança de foco exigirá do professor também uma mudança de pressupostos, quer no que diz respeito ao que significa ensinar língua materna a falantes nativos dessa língua, quer no que diz respeito a um conjunto de conceitos teóricos, dentre os quais destaco o de gramática (essa mudança no olhar sobre a língua/ linguagem, a gramática, o texto redunda numa mudança de metodologia, evidentemente). O professor deverá fazer-se a pergunta: o que é saber gramática? Para responder à questão de modo adequado à sua proposta de ensino, deverá romper com a visão tradicional e vulgar de gramática e reconhecer nesse termo a designação de um conhecimento inato e intuitivo que habilita todo ser humano normal a falar uma língua.
Novamente, vale notar a lição de Bagno, ao considerar o conhecimento gramatical do falante nativo:

“Saber gramática é muito mais que rotular. Saber gramática é algo tão entranhado em cada pessoa que é simplesmente impossível falar, ouvir, ler, escrever ou refletir sobre a lingua sem ativar esse conhecimento gramatical intuitivo e poderoso (...)”.

(p. 30)

Note-se que o autor refere-se à gramática como “um conhecimento intuitivo e poderoso”. A gramática é, assim, esse sistema de regras e unidades que, inscrito em nossa mente/cérebro na forma de conhecimento, nos habilita a fazer uso normal de nossa língua. É claro que o saber usar uma língua, seja nossa língua materna, seja uma língua estrangeira, envolve muito mais do que saber operar com sua gramática. Mais do que deter uma competência linguística o falante nativo é possuidor de uma competência comunicativa, a qual se relaciona a outras formas de competência que são ‘ativadas’ quando ele se envolve nas mais diversas práticas discursivas ao longo da vida. Uma discussão sobre essa inter-relação de competências extrapola os limites deste texto. É forçoso que eu apresente, então, o objetivo a que destino esta nova composição verbal.
Proporei uma leitura do texto Sobre moluscos e homens, de Rubem Alves, que faz eco (polifonia e intertextualidade) a outro texto do mesmo autor, chamado de Quando as mãos perguntam, a cabeça pensa. Este último se acha em http://www.rubemalves.com.br/quandoasmaosperguntamacabecapensa.htm.

O leitor não iniciado nos estudos da linguística (talvez, a maioria de meus leitores) pode ter encontrado certa dificuldade na compreensão do que vim dizendo até aqui, já que iniciei este texto tendo em conta um público-alvo familiarizado com as questões que apresentei. Todo autor constrói uma hipótese sobre o leitor, bem como este o faz em relação ao autor. Quando participamos de qualquer evento interacional pela linguagem, contamos com uma série de conhecimentos que supomos partilhados, em alguma medida (embora nunca totalmente), com nosso(s) interlocutor(es).  

Situando a discussão na modalidade escrita – e considerando-se a relação entre autor-texto-leitor -, muitos saberes e crenças que possuímos não serão codificados linguisticamente, ou seja, não serão explicitados na superfície de nossos textos, mas assumirão o status de informações implícitas, que devem ser recuperadas por meio de um complexo trabalho de inferenciação pelo leitor. Quer nas atividades linguajeiras no domínio da oralidade, quer no domínio da escrita, estamos sempre interpretando, ou seja, produzindo uma “suposição de intenção” (Charaudeau, 2010: 31). Estamos, assim, a todo momento, formulando hipóteses sobre o conhecimento de nosso interlocutor; sobre seus pontos de vistas em relação aos seus próprios enunciados. Assim também procederá nosso interlocutor em relação a nós.
No momento em que se dá o processamento textual ( termo que recobre ‘o processo linguístico-cognitivo durante o qual representações mentais são construídas na memória com base no texto’), o leitor lança mão de várias estratégias. Segundo Koch (2002: 50), estratégia “é uma instrução global para cada escolha a ser feita no curso da ação”. Destarte, o processamento textual é estratégico, porque, durante a atividade de interpretação, os leitores “realizam simultaneamente vários passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis e extremamente rápidos” (Koch: 2006: 39).
Para o processamento textual, o leitor recorre a três grandes sistemas de conhecimento armazenados em sua memória, que serão acessados por ocasião da produção de sentido. São eles:  o conhecimento linguístico, o enciclopédico e o interacional.
O conhecimento linguístico recobre o saber sobre o léxico e a gramática da língua. A compreensão de um texto depende, parcialmente, de que o leitor seja capaz de compreender o significado das palavras e sua adequação ao tema ou aos modelos cognitivos ativados;  e de reconhecer as relações lógico-semânticas e discursivas estabelecidas entre os componentes da superfície textual (coesão).
O conhecimento enciclopédico (ou conhecimento de mundo) compreende todos os saberes adquiridos pelo leitor ao longo da vida, quer informalmente, que formalmente por concurso de sua escolarização. O conhecimento de mundo inclui também saberes relacionados a práticas e valores de nossa sociedade ou grupo, bem como saberes propriamente individuais, como o de preparar um bolo com base na receita da vovó.
O conhecimento sociointeracional inclui os saberes sobre as formas de interação por meio da linguagem. Trata-se de saber, por exemplo, com base nos atos de fala verbalizados, quais os objetivos ou propósitos de um falante/ autor. O conhecimento sociointeracional se desdobra em conhecimento comunicacional, conhecimento metacomunicativo e conhecimento superestrutural. Todos esses subtipos são controlados por outro conhecimento denominado de procedural. O conhecimento procedural (de proceder) encerra procedimentos ou rotinas na base dos quais aqueles sistemas de conhecimentos são ativados quando do processamento textual. A cada um dos sistemas corresponde um conhecimento procedural.
Não poderei aqui deslindar as questões envolvidas neste aglomerado de conceitos teóricos. Basta ao leitor reconhecer a complexidade envolvida no processo de compreensão textual.
Diversas são as concepções de texto, já que diversas são as perspectivas teóricas  à luz das quais ele foi considerado. Para os meus propósitos, adoto a perspectiva sociocognitivo-interacional, segundo a qual o texto é um lugar de interação e de constituição de sujeitos sociais (os interlocutores). Há no texto uma grande variedade de implícitos, que são recuperados pelo leitor quando este ativa seus modelos cognitivos (que constituem blocos de conhecimentos estruturados em sua memória).
Trago à cena as palavras da linguista Ingedore Koch, em Ler e compreender os sentidos do texto (2006), que nos elucida sobre a concepção sociocognitivo-interacional de língua:

“Fundamentamo-nos, pois, em uma concepção sociocognitivo-interacional de língua que privilegia os sujeitos e seus conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de interação (...) é o texto cujo sentido “não está lá”, mas é construído, considerando-se, para tanto, as “sinalizações” textuais dadas pelo autor e os conhecimentos do leitor, que, durante todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva ativa”. Em outras palavras, espera-se que o leitor, concorde ou não com as ideias do autor, complete-as, adapte-as, etc., uma vez que “toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente, as produz”. (BAKHTIN, 1992: 290)”

(p. 12)
(grifo no original)

Vejamos como se vai desenvolvendo o processo de interação entre autor-texto-leitor. Vou ignorar a discussão sobre o status do autor, ou seja, sobre ser ele ou não um constructo teórico relevante. O fato é que, na perspectiva do leitor, o autor é aquele que garante a possibilidade de reconhecimento de uma unidade de sentido para o texto.
O texto em que repousa minha análise, já apresentado ao leitor, é de autoria do filósofo, educador, psicanalista, teólogo e escritor Rubem Alves. Saber um pouco sobre o percurso acadêmico do autor é fundamental para o reconhecimento das perspectivas que ele assume ao desenvolver o tema de seu texto.
Cumpre notar que nenhum texto espelha o mundo, mas o reconstrói. Isso significa dizer que o texto constrói um modelo de mundo, um mundo que é textualizado (um mundo textual), segundo a perspectiva do autor. O autor, ao produzir seu texto, não diz o mundo tal como é, mas tal como ele, autor, o pensa, o entende, o representa. O autor é um feixe de olhares sobre o mundo; a ele compete estruturar esses olhares de modo a constituir seu projeto de sentido. Importa, para efeito de compreensão da relação entre texto e mundo, perceber como o autor se relaciona com o mundo que ele trata de textualizar. Isso ficará bastante claro durante a leitura que realizarei do texto.
Mãos à obra.

Começando do começo.

Os estudos em Linguística Textual tendem a alertar para o fato de que o título de um texto é um elemento importante no processo de construção de sentido. É o título que desencadeará expectativas no leitor a respeito do tema a ser tratado. Apoiando-se no título, o leitor poderá formular hipóteses sobre o conteúdo do texto. Claro é que nem sempre o título o permite, dada a sua vagueza. Títulos metafóricos são menos transparentes e tendem a dificultar a tarefa de antecipação temática pelo leitor. Quando o título é pouco ou nada explicito em relação ao tema, resta ao leitor deduzi-lo no limiar da leitura. Em geral, os primeiros parágrafos são suficientes para esclarecê-lo sobre o tema.
Parece que o título do texto de Rubem Alves está entre aqueles que não nos fornecem pistas sobre o tema inicialmente. O título - sobre moluscos e homens - nos suscita, na verdade, muitas questões sobre a relação entre molusco e homem, sobre o porquê do interesse do autor por essas duas espécies de seres vivos que não parecem guardar qualquer relação relevante. Considerando-se o que sabemos sobre Rubem Alves, entre outras coisas, que não é especialista em biologia, o tema nos parece, inicialmente, insólito. Há uma razão para que moluscos e homens sejam temas de interesse para o autor, a despeito das notáveis diferenças entre eles. Decerto, homens e moluscos diferem muito, quer em aparência, quer nas formas como se relacionam com o mundo. Será mesmo? Senão vejamos.
Um dos subtipos encerrados no conhecimento interacional é o conhecimento superestrutural. De que se trata essa forma de conhecimento? Basicamente, o conhecimento superestrutural é aquele que permite ao leitor identificar um texto como pertencente a um gênero, mas também é aquele que permite ao leitor reconhecer vários tipos de texto (narrativo, descritivo, argumentativo, expositivo e injuntivo).
Os gêneros textuais são constituídos de sequências tipológicas de texto, ou tipos textuais. Os gêneros podem apresentar, geralmente, dois ou mais tipos de textos. Quando se verifica vários tipos de texto, tem-se uma heterogeneidade tipológica.
Os tipos textuais são sequências linguísticas que sinalizam a atitude que toma o enunciador no próprio trabalho com a língua. Intimamente ligados à intenção do enunciador, os tipos textuais são reconhecidos na observação de seus aspectos formais. Por exemplo, o tipo argumentativo se caracteriza, do ponto de vista propriamente linguístico, por vasto uso de articuladores discursivos (conjunções subordinativas, coordenativas, adverbiais textuais, etc.); do ponto de vista lógico-discursivo, por inserção de uma tese, articulação de argumentos e conclusão.
O texto de Rubem Alves é um exemplar do gênero artigo de opinião, que pode ser definido considerando-se seu plano de composição - no interior do qual distinguimos um conteúdo e um estilo -,  bem como a função a que serve. Do ponto de vista de sua composição, um artigo de opinião versa sobre um tema de relevância social, cultural ou política; apresenta um estilo de linguagem mais ou menos formal, dependendo do grau de escolarização do público-alvo. Além disso, compreende um número maior de sequências do tipo argumentativo (largo uso de operadores argumentativos, explicações, justificações, asserções, etc.). No que tange à funcionalidade, o artigo de opinião apresenta o ponto de vista do enunciador sobre um dado assunto. Ao produzir seu artigo, o autor procurará defender seu ponto de vista pelo encadeamento de argumentos e justificações, visando a influenciar seu leitor, ou seja,  a causar a adesão dele ao seu ponto de vista.
Há que se notar que o artigo encerra, inicialmente, uma longa sequência do tipo narrativo. O autor nos conta sobre o interesse intelectual de Piaget por moluscos, antes de o estudioso empreender suas pesquisas em psicologia. Não sejamos, contudo, ingênuos na suposição de que o autor se limita  apenas a narrar o interesse de Piaget por moluscos. Também não podemos acreditar  que o autor tão-só descreve o comportamento dos moluscos. Subjacente à prática de relatar/descrever, há uma intenção argumentativa, já que a argumentatividade é intrínseca ao uso da linguagem. Mesmo um autor de romance, ao instaurar um narrador, faz com que este revele sua perspectiva dos fatos, dos valores, das ideologias de sua época. Ainda que não explicitamente, o narrador, narrando os acontecimentos, buscará influenciar o leitor de alguma maneira, buscará convencê-lo de suas opiniões, pontos de vista sobre um fato social, político ou cultural. Veja-se o famoso romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que o autor instaurando o narrador-personagem Bentinho, supostamente, vítima da infidelidade amorosa de Capitu, expõe seu ponto de vista acerca do tema socialmente polêmico traição. Deixando a traição de Capitu em suspeita, delegando ao leitor a decisão por culpá-la ou inocentá-la de ato escandaloso para os padrões morais à época, Machado pretendeu nos convencer de que o sentimento de traição pode aflorar como pura e simplesmente consequência do desejo amoroso, que é desejo de possuir o outro, de torná-lo jurisdição do coração. A traição não precisa se consumar, necessariamente, para nos causar perturbação. Basta a suspeita para que a dúvida e o remorso (porque Bentinho rompe com a amada sem ter provas de sua traição) façam seu trabalho na alma. Machado também nos quer convencer de que a verdade nunca pode ser plenamente alcançada e de que o que chamamos de realidade é apenas aquilo que nos revela o ponto de vista de um sujeito. Claro é que a argumentação – vale insistir – não se nos demonstra superficialmente. Machado constrói uma narrativa e não um tratado de algum tipo, mas isso não o impede de defender sua visão de mundo através de suas personagens.
Sendo um artigo de opinião e servindo a uma função eminentemente argumentativa, o leitor pode esperar certa forma de organização de suas unidades. Essa organização inclui uma tese ou proposição que se pretende sustentar por meio do encadeamento de argumentos, justificações, explicações, provas, fatos, etc. A tese não foi explicitamente enunciada e precisa ser deduzida.
Poderíamos dar-lhe a seguinte forma: é preciso que se faça ver na escola uma pedagogia que estimule o pensamento dos alunos e o desejo de aprender aquilo que tem utilidade vital. Creio que essa é uma proposição que o autor assumiria. A fim de que se desenvolvam práticas pedagógicas em que se ensine aquilo que excita o pensamento, é preciso reconhecer certas características do ser humano.
O autor procede então a uma comparação entre os moluscos e os seres humanos. Chega a considerar os seres humanos como um “tipo específico de molusco”. Reconhece que tanto os homens quanto os moluscos são seres provenientes da natureza. No entanto, a natureza, se, por um lado, programou os animais para todos os atos de sobrevivência, dando-lhes um corpo que constitui uma extensão do meio natural; por outro lado, deu aos homens um corpo frágil e não capacitado para a sobrevivência. O homem se distancia da natureza, quando do desenvolvimento do pensamento. Na verdade, o grande salto do ser humano foi o desenvolvimento da linguagem, que lhes permitiu pensar. Seja como for, o pensamento é a força humana em benefício da sobrevivência. Lembre-se que aos animais é o corpo que serve de uma ferramenta para a sobrevivência; os homens se valem de outra ferramenta, chamada “pensamento”.
Veja-se que, ao categorizar o homem como um tipo de molusco, ao representar o corpo como ferramenta de sobrevivência do animal e o pensamento como ferramenta de sobrevivência dos seres humanos; ao assumir que a natureza habilitou o animal para ser bem-sucedido em suas experiências, dando-lhe um corpo adequadamente construído para este fim, legando aos seres humanos, em contrapartida, um corpo ineficiente para a sobrevivência, o autor constrói um modelo de mundo textualmente fundado. Nesse mundo textual, a natureza é provedora; o corpo é uma ferramenta; o conhecimento, uma concha; o pensamento assemelhado a um pênis; o ato sexual categorizado como conhecimento, etc.
 A natureza proveu tanto os animais quanto os seres humanos daquilo que é indispensável à sobrevivência. A carência de um corpo geneticamente programado para ser bem-sucedido na árdua tarefa de sobreviver foi compensada com a formação de um cérebro com dimensão e propriedades tais que permitiu, no homem, o desenvolvimento do pensamento.
Penso ser necessário, de agora em diante, lançar olhares sobre a forma do texto, de modo a fazer ver como as unidades linguísticas presentes na superfície textual servirão de pistas para que o leitor produza um sentido para o texto. Toda escolha linguística cumpre uma função. Também o autor, ao compor seu texto, produz sentido. Evidentemente, o autor espera que o sentido pretendido por ele seja reconstruído ou recuperado pelo leitor. No entanto, o autor é incapaz, evidentemente, de controlar os sentidos possíveis que o leitor poderá produzir. Também é certo que o leitor não pode produzir qualquer sentido. Na verdade, seu trabalho interpretativo será limitado ao plano de sentidos proposto pelo texto. O texto, insisto, prevê alguns sentidos, mas exclui outros. Muitos sentidos são possíveis, mas nem todos
Veja-se, por exemplo, o uso de adjetivos valorativos. O autor usa vários deles. Seguem-se algumas ocorrências abaixo:
“Os moluscos são animais fascinantes
“... constroem conchas duras – e lindas! – (...)”
“Seus corpos são ferramentas maravilhosas”.

Sabemos que o autor instaura um Eu-enunciador, que se encarrega de construir a argumentação a fim de sustentar seus pontos de vista. Esse enunciador aprecia, deprecia, rejeita, expõe, contrapõe, etc., e o faz por meio de marcas linguísticas que servem a essas funções. Os adjetivos em negrito sinalizam para a atitude de valoração do enunciador sobre os referentes “moluscos”, “conchas” e “ferramentas”. Essas e outras ocorrências similares ou análogas nos permitem dizer que o referente (objeto de discurso) ‘corpo’, quando ligado ao animal, é valorado positivamente; quando ligado ao homem, é valorado negativamente. Note-se que o enunciador se refere ao corpo dos seres humanos como um “corpo molengão e inadequado”.
Quando se chama atenção do aluno sobre o uso dos adjetivos, especialmente os de função valorativa, faz-se um exercício de reflexão sobre o funcionamento da língua, sobre a gramática em uso. Veja-se outro exemplo em que uma forma linguística, uma vez considerada em seu funcionamento no texto, pode suscitar reflexões sobre o funcionamento da língua, deixando de servir como um mero objeto para identificação e classificação. Veja-se o trecho abaixo:

Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. (...)”.

Destaco a ocorrência do pronome indefinido ‘alguns’. Ao invés de solicitar ao aluno que dê nome a essa palavra segundo o modelo de classificação tradicional das palavras, mais vale chamar-lhe a atenção para a função discursiva que essa forma linguística cumpre nesse ponto do texto. Em primeiro lugar, o aluno deveria ser levado a pensar sobre o referente desse “alguns”, ou seja, quem são as pessoas referidas por “alguns”? O aluno-leitor não teria dificuldades para ventilar hipóteses sobre os potenciais referentes. Assim, “alguns” poderia compreender ‘professores’, ‘pedagogos’, ‘pais’, ‘psicólogos’, ‘colegas de turma’, etc. Todas essas expressões são candidatos possíveis a referentes da forma “alguns”; talvez, umas mais do que outras. A segunda questão é pensar no porquê de o autor ter escolhido usar ‘alguns’, ao invés de uma dessas expressões ou todas elas. Com que finalidade o autor escolheu usar “alguns” e não “professores” ou “muitos professores”, ou “alguns professores”, por exemplo? Uma resposta possível é sugerir que o autor preferiu não comprometer seu ethos (imagem de si) na identificação de segmentos que tendem a avaliar pejorativamente um aluno desestimulado. Ele se resguarda da contestação de sua denúncia, ele prefere não expor sua "face" (imagem de si socialmente delineada para a qual uma pessoa, durante uma interação face-a-face, reclama aprovação), deixando a cargo do leitor imaginar a que segmentos ou grupos de pessoas ele se refere. “Alguns”, ao contrário de “professor” ou “pedagogo”, não nomeia, não permite identificação de grupos, classes, indivíduos. Em suma, usando "alguns", o autor não se compromete em responsabilizar categorias ou indivíduos determinados pela prática de rotulação discente.
Voltemos aos adjetivos. Precedendo o enunciado encetado por “alguns”, há outro enunciado no qual figura uma sequência de adjetivos. Reproduzo-o abaixo:
“... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente”.

De passagem, gostaria de lembrar que a riqueza da linguagem é tal, que há muios fatos linguísticos que podemos considerar. No enunciado anteriormente referido, em que se acha a forma “alguns”, também valeria avaliar o uso da palavra “burrinho”, forma de valor pejorativo (muito embora o sufixo atenue a carga de pejoratividade - cf. burro e burrinho, em “Ele é burro” / “Ele é burrinho”.).
O  enunciado referido acima se acha num parágrafo do texto em que o autor enfoca a noção de pensamento e inteligência no domínio da sexualidade. O autor faz uma leitura sexualizada da função do pensamento e da inteligência. Assim, o pensamento precisa ser excitado para se desenvolver e produzir conhecimento. Também a inteligência precisa receber excitação, para que se envolva na aprendizagem. Os adjetivos “pendente”, “flácida” e “impotente” são representativos do campo semântico ‘ato sexual’. Todos, contudo, são passíveis de caracterizar o ‘pênis’.
A focalização do tema aqui é psicanalítica. O recurso à imagem da sexualidade masculina, a referência à disfunção erétil, à inutilidade do pênis, quando da denúncia da ineficácia de um ensino que não estimula a inteligência, têm o propósito de fazer ver a impossibilidade de usufruir o prazer. Transferindo esse plano de leitura para o domínio da pedagogia - e nele considerando o papel da inteligência no processo de ensino-aprendizagem-, ficará claro que, sem possibilidade de experimentar o prazer, a inteligência não se mostra disposta a progredir (ela, como o pênis, torna-se impotente). Ela não deixa, contudo, de se fazer presente, porque “recusa [sic.] a ficar excitada por algo que não é vital”. Ora, concluiremos que da mesma forma que fazer  sexo é uma atividade vital e prazerosa,  deve sê-lo também o processo de ensino-aprendizagem, não sem antes haver a excitação do pensamento e da inteligência.
O autor sugere que a frustração experimentada por um homem que não consegue consumar uma relação sexual é até certo ponto comparável à frustração experimentada pelo aluno cuja inteligência não é estimulada. Embora não tenha explicitado esta ideia, ele permite-nos entrever que a aprendizagem deve ser uma atividade prazerosa. A busca pelo conhecimento tem de nos oferecer prazer. Isso é um pressuposto, que se insinua quando chegamos ao penúltimo parágrafo.
Não posso levar adiante este texto. Claro está a complexidade envolvida na compreensão integral de um texto. Há muitos níveis de análise a ser considerados. Há muito para explorar. Pense-se em fenômenos como dialogismo, polifonia, intertextualidade, que constituem fatos discursivos que excedem os limites do texto. Pense-se na configuração da rede referencial por meio da anáfora e catáfora. Pense-se nos diversos procedimentos de coesão seqüencial. Pense-se nas funções dos operadores argumentativos que, encadeando os enunciados entre si, sinalizam a orientação argumentativa do discurso (mas, então, assim...).
Certamente, este texto de Rubem Alves teria de ser trabalhado em muitas aulas, a fim de que se conseguisse analisá-lo mais satisfatoriamente, a fim de que ao aluno fosse dada a possibilidade de tornar-se um leitor mais eficiente na tarefa de interpretação e compreensão textual.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

"Que resta entre uma palavra e outra solitária?" (BAR)


                         

                               
                               A solidão das palavras                           


O sol me parece tímido daqui de dentro. Sinto frio. Tento evitar que estes pensamentos matutinos fiquem grudados no porvir. É desesperante a sensação de ter a alma projetada para o não-sou. Quando eu expurguei do ventre da alma as representações de amor inatingível, as tendências inóspitas de idealizar a ventura amorosa, eu me permiti viver um pouco mais. Não o suficiente ainda, pois o desejo de viver é exorbitante e a possibilidade de viver é demasiado limitada. Não sei como resolver este hiato – entre o desejo de viver e a possibilidade de viver. Eu vivo de permeio entre estes dois estados de existência.
Eu prometo me esforçar por não cair no calabouço de minha solidão. Solidão exige-nos destreza de espírito. Refiro-me à solidão de espírito, o estado em que o eu se experimenta intimamente. Trata-se de um estado de interiorização, de experiência íntima de nossa realidade psíquica. Essa solidão eu compartilho com os livros e, por alguns instantes, creio serem eles bons substitutos às pessoas. Ás vezes, zelo minha solidão como quem zela pela casa onde dorme. A solidão, quando experimentada na companhia dos livros, é imperturbável. E nesse instante, em que me envolvo com a solidão das palavras, adentro o intangível – um lugar nenhum onde costuma repousar a sensibilidade. Sobra, contudo, um desejo... o desejo de transpor os portões pesados desse estado de abandono espiritual.
As palavras estremecem-me na alma. Quero dispô-las num caminho que me conduza a uma autocompreensão satisfatória. Mas me sinto incapaz de fazê-lo agora. Malditos os livros porque me tornaram os vínculos sociais vulgares intoleráveis.  Malditos sejam porque me capturaram a alma. A menos que se consiga reunir num mesmo lugar pessoas que, sendo dadas aos favores dos livros, têm algo a dizer significativamente, estreitas são as vias depois que nos permitimos seduzir pelos livros.
Não nos enganemos. Os livros não nos salvam de existir (‘sair de si’, ‘ser para o exterior’, ‘externar-se’, ‘relacionar-se com’). Não escapamos a essa condição. Iludamo-nos, não por muito tempo. Pois os anos hão de cobrar ao nosso corpo a vitalidade desperdiçada; e ao espírito responderão com a graça do desespero. Chegada esta fase, pouco haveremos de fazer. E talvez ainda nos sobrem muitas páginas por ler e pouco tempo de vida para delas nos ocupar. Ainda assim, terá valido a pena?


domingo, 23 de setembro de 2012

"Quando o silêncio me absorve, as palavras me expõem" (BAR)



                                   

                                  Linguagem silente


Imagino-me numa comunidade de leitores. Em face de amigos leitores, a conversar sobre nossas leituras... Que bela imagem nutritiva para a alma! Que teria eu a contar-lhes? Ah! Tanta coisa! E deles esperaria eu muito mais... Entanto, só encontro o silêncio dos livros na alma dos que me dirigem a palavra. Vejo-me então contando a minha psicanalista sobre os declives e aclives de minha alma. Não é fácil despejar a solidão da morada da alma. Ela é relutante e, rendendo-se, torna a habitá-la. Vivo, por vezes, confundido em mim mesmo. A densidade de pensamentos atinge graus intoleráveis. Tornam-se pesados e embaralham-me o espírito. Vivo me atropelando. Não raro, acordo sobressaltado na madrugada entulhado de pensamentos. Dou-me conta de que eles atravancam o caminho da serenidade. Quero dispensá-los, mas não consigo e insisto, em vão, na busca pela pessoa com quem compartilhá-los. Pobres espíritos incapazes de absorvê-los. Tomam-nos superficialmente; não os compreendem, porquanto foram acostumados à tagarelice cotidiana, que não favorece a fecundação de pensamentos que se elevem acima das banalidades temáticas.
Escrevo sem outra pretensão senão derramar-me. 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

"Apenas o conhecimento salva" (BAR)





O percurso da lucidez
Para a construção de uma consciência
emancipada da religião


 
Este texto é dedicado à exposição do percurso intelectual que todo aquele que esteja interessado no esclarecimento sobre os fatos e as bases ideológicas que tornam a tenacidade de suas crenças religiosas consequência do obscurecimento da consciência e da ignorância alimentada pelos outros significativos que estão na origem e no curso ininterrupto de nossa socialização (pais, avós, tios, professores, sacerdotes, etc) pode trilhar.  Decerto, as expressões “obscurecimento da consciência” e “ignorância” podem soar ofensivas a potenciais leitores cristãos deste blog; no entanto, em tempo, se verá que elas são apropriadas para expressar o efeito de um longo processo de formação de consciências dependentes engendrado pelos mecanismos doutrinários religiosos.
Aproveito o ensejo para apresentar o primeiro livro de nosso percurso, do professor e ex-sacerdote católico, Marcelo Da Luz – Onde a religião termina (2011). Nesta obra, o leitor encontrará uma série de temas implicados no fenômeno religioso, muito embora o autor destine suas críticas majoritariamente à tradição cristã, em especial ao catolicismo.  Entre os temas, se acham as falácias do discurso religioso, o antiuniversalismo das religiões, a delegação à autoridades religiosas da responsabilidade pela interpretação do mundo, o mito de Jesus Cristo, “Deus” encarnado, a santidade como ideal nocivo à vida humana.
Para que tenhamos a noção do quão invasivo é o trabalho de lapidação da consciência pela prática de doutrinação religiosa, vale atentar para o seguinte excerto colhido do capítulo terceiro, no qual Marcelo Da Luz trata do fenômeno a que ele chama “terceirização das escolhas existenciais”:

“Este autor, ex-pregador do evangelho, admite ter trabalhado ao modo de lavador de cérebros. Desde a catequese mais elementar até os enunciados prenhes de conteúdos teológico-espiritual, todo o trabalho do educador religioso consiste na progressiva instalação de sinapses neofóbicas em si e nos ouvintes. Formação religiosa é expressão a ser tomada literalmente: os indivíduos têm suas mentes presas à fôrma dos dogmas repetidos ad nauseam. Tal formação os impede de olharem para o fundo de si mesmos, sem medos, disfarces, escapismos, fantasias ou regressões infantis, e os transforma em robôs existenciais, cumpridores de ritos, repetidores de fórmulas e antagônicos a qualquer outra nova perspectiva.”

(p. 74)


Particularmente interessante é ver que o autor, em vários momentos, reconhece ter exercido o papel que ora trata de criticar – o que prova ser possível aos mais ferrenhos doutrinados a emancipação intelectual da religião, não sem antes superar uma série de fobias.  Ao se ocupar da natureza da consciência religiosa, o autor argumenta que ela é produzida para tornar-se infensa à argumentação (o que não surpreende, já que disso depende a sua conformação e obediência):

“A perspectiva antiuniversalista da consciência religiosa transforma-a num ser defensivo, cuja fortaleza não é o exercício argumentativo, mas a pseudossegurança do dogma. Uma desconcertante inversão ocorre no processamento mental do Homo religiosus: a crença (ideia a priori) e o símbolo substituem a experiência da realidade. Essa inversão é notória, por exemplo, na obsessão dos católicos pelos sacramentos, rituais em que os supostos símbolos da vida substituem o próprio viver. Desse modo, os religiosos passam a evitar uma série de oportunidades e experiências, levados pelo injustificável temor de ver os fatos contradizerem suas crenças sobre a realidade”.

(p. 178)
(grifo meu)

No tocante à natureza simbólica da religião, remeto o leitor ao livro de Rubem Alves O que é religião? (1999). Limito-me a notar que o símbolo pode recobrir outras formas sígnicas (como os signos linguísticos). No entanto, em stricto sensu, o símbolo é um objeto material ao qual se atribui uma ideia abstrata. É nesse sentido que ele foi empregado pelo autor. Assim, por exemplo, a cruz, no catolicismo, simboliza a “salvação” (pelo menos era esse o significado de que falava o padre durante a missa). Uma consulta no Dicionário de Símbolos  mostra-nos que as noções de “sofrimento” e “triunfo” estão entrelaçadas em sua simbologia. De qualquer modo, sempre achei indecoroso associar à cruz a ideia de “salvação” ou “triunfo”, por razões que não carecem ser explicitadas, pois óbvias. Os judeus, até onde eu sei, me parecem mais sensatos, ao associar à cruz a ideia de morte ou maldição. Decerto, a cruz é, na perspectiva dos judeus, um escândalo. Pode-se imaginar quão incompreensível é para um judeu a adoração de um homem pregado numa cruz.
Importa-me, a esta altura, fazer ver ao leitor que, uma vez tomando o símbolo o lugar das vivências da realidade, o crente religioso é envolvido numa atmosfera de fantasia. Assim, a hóstia e o sangue não apenas simbolizam, respectivamente, o corpo e o sangue de Cristo, mas são o próprio corpo e sangue de Cristo. Por fim, a ideia de que os fatos contradizem as crenças não é levada em conta pelos religiosos. E não é porque eles resistem a confrontar suas crenças com as ocorrências do real. No que toca à noção de crenças, particularmente, de crença religiosa, a contribuição de Sam Harris, em A morte da fé (2009), não pode ser ignorada. O autor destina um capítulo para tratar da “natureza da crença”. Nele, Harris definirá crença, à luz de uma abordagem neurocientífica. Leiamos, com atenção, o excerto em que o autor apresenta-nos a definição de crença:

“(...) parece incontestável afirmar que todos os estados de ordem cognitiva mais elevada (dos quais as crenças são um exemplo) são de certa forma derivados da nossa capacidade de ação. Em termos adaptativos, a crença foi extraordinariamente útil. Afinal, é acreditando em várias premissas sobre o mundo que podemos prever eventos e considerar as consequências prováveis de nossas ações. As crenças são princípios de ação: seja lá o que forem em termos cerebrais, elas são os processos pelos quais o nosso entendimento do mundo (seja correto ou equivocado) é representado e disponibilizado para orientar o nosso comportamento”.

(pp. 58-59)
(grifo meu)

Vale acompanhar a argumentação do autor que se orienta pela intenção de nos fazer entender, ao cabo, que as crenças religiosas não representam nenhum estado-de-coisas atestado no mundo. Assim, ao tratar das convicções, o autor nos ensina que “no momento em que admitimos que nossas convicções são tentativas de representar estados do mundo, percebemos que elas devem se relacionar corretamente com o mundo para serem válidas” (p. 71).
Que os seres humanos sejam resistentes a mudar de ideia, a assumir outras perspectivas contrárias às que vêm mantendo durante muito tempo é fato já reconhecido em psicologia e neurociência. Lembra Harris que “somos conservadores nas nossas convicções, no sentido de que não acrescentamos nem subtraímos algo do nosso estoque delas sem que haja razão para isso” (p. 69). Claro é que há pessoas que abandonam suas convicções ou crenças mais arraigadas, mas é preciso que se sintam motivadas a fazê-lo; é preciso que isso lhes represente algum benefício.
Harris prosseguirá nos mostrando que, epistemologicamente falando, toda crença ou convicção precisa representar o nosso saber a respeito do mundo, o que implica crer que uma afirmação seja verdadeira, mas crer na veracidade de uma afirmação não é o mesmo que desejar que ela seja verdadeira. E, como ensina Da Luz, não é porque desejo que seja verdadeira que ela será verdadeira.
Convém, agora, retomar a obra de Marcelo Da Luz.

Na seção intitulada de A indústria da dependência, ainda no capítulo terceiro, o autor refere-se às autoridades religiosas como “funcionários do sagrado” e delas no diz o seguinte:

“O funcionário do sagrado possui, supostamente, o conhecimento para se chegar à salvação, e por suas mãos passam os poderes de perdoar, abençoar, condenar e explicar, em nome de “Deus”, as vicissitudes da vida humana. Sequiosos, devotos acorrem à recepção dos serviços sagrados, garantia de salvação. Os planos estão já revelados, as interpretações oficiais, estabelecidas; os modelos a serem seguidos, disponíveis; os meios necessários, instituídos. Ao fiel basta aquiescer a essa ordem de coisas. Nesse esquema, o poder é exterior ao indivíduo, a salvação vem sempre de fora. O crente não tem outra opção senão terceirizar as escolhas existenciais”.
(ênfase minha)

(p. 79)


O leitor interessado na leitura deste livro tomará conhecimento dos bastidores da fé; das estratégias discursivas empregadas no esforço para manipular os fiéis e promover a “lavagem cerebral” em larga escala. E saliento, de passagem, que essa expressão, tão comumente usada nas conversações cotidianas, entre aqueles que se opõem às práticas adestradoras dos “funcionários do sagrado”, foi empregada pelo próprio autor. O livro constitui um cenário de muitas e diversas questões, uma das quais me parece notável e podemos apreendê-la no seguinte passo, em que Da Luz nos ensina sobre a invenção de Satanás:

“As primeiras gerações cristãs reconstruíram o conceito de Satã à imagem de seus principais inimigos: os judeus resistentes à crença em Jesus. Pouco mais tarde, o processo de demonização atingirá também os pagãos, em função da intolerância cristã em relação aos politeísmo e à liberdade de pensamento. Finalmente, Satã será encontrado entre os hereges – cristãos dissidentes cujas diferentes interpretações das mesmas crenças ameaçaram o poder dos clérigos politicamente mais fortes. Do ponto de vista histórico,  a aterrorizante figura do demônio – habitante permanente do imaginário medieval e ainda hoje base do apelo á força presente em muitos discursos cristãos – foi apenas produto da mente sectária, cujo funcionamento enxerga no outro, no diferente e no desconhecido, a ameaça do inimigo mortal”.

(pp. 183-184)
(ênfase no original)


Destaquei em negrito a expressão “do ponto de vista histórico” com a intenção de sinalizar para o fato de que o autor nos fornece uma explicação histórica para o surgimento da figura de Satã e  sua perpetuação no imaginário popular ainda hoje. Assim, a fantasia encontra arreio no real histórico e se despe da veste de “realidade trans-histórica”. Compreendida no âmbito histórico, a fantasia passa a ser plenamente explicável e compreensível. Ao final de cada capítulo, o autor nos oferece um “megaproblema” – a saber, uma questão inquietante sobre a qual ele nos convida a pensar. Destaco o megaproblema do último capítulo do livro (capítulo 17), por acreditar que ele expressa o essencial a respeito do Deus forjado pela tradição monoteísta ocidental:

“A ideia de “Deus” arquitetada pelas grandes religiões é sempre uma interpretação contaminada de antropomorfismos e anseios humanos a respeito da suposta causa primeira. A verdade quanto à identidade do princípio originário do Universo permanece inacessível à experiência terrestre da consciência. Tal verdade independe tanto dos desejos, sonhos e esperanças, quanto do número de crentes. O fato dos credos religiosos exercerem ostensiva influência sobre a vida das pessoas, infundindo-lhes consolo e alento em muitas situações, não os torna verdadeiros em si mesmos. A consolação traz alívio momentâneo, sob o preço do autoengano”.

(p. 351)

Preciso deter-me um pouco neste trecho. Vale notar, de início, que o autor rebaixa Deus à categoria de ‘ideia’, deixando de encará-lo como um ‘ser transcendente’ que pré-existe ao mundo e aos homens e  que os transcende. Deus é produto da mente humana. E nisso estaria de acordo Feuerbach. Aliás, é conhecida a tese do filósofo alemão, segundo a qual Deus não é senão a essência do homem projetada para fora de si. Deus é forjado na cisão do homem em si mesmo. Mais adiante, discorrerei um pouco sobre a contribuição de Feuerbach.
Para bilhões de pessoas no mundo, Deus é a chave do mistério da vida. No entanto, basta prestarmos atenção nos atributos que a definição de Deus encerra para que concluamos, sem muito esforço, que a ideia de Deus recobre a noção de um Ser superior a que se atribuem qualidades humanas, embora superlativizadas. As qualidades de amoroso, bondoso, poderoso, diligente, justo, ciente são caracteristicamente humanas, mas idealizadas numa escala de potência infinita na forma de Deus (daí ser Deus infinitamente amoroso, bondoso, poderoso... e onisciente). A atribuição de qualidades humanas às divindades dá-se o nome de antropomorfismo. Por isso, Deus é que foi criado à imagem e semelhança dos homens, e não o contrário. Vale insistir neste fato!
Também acho que a ponderação que Da Luz faz neste trecho é condizente com a minha atitude em face do Mistério. Como ateu, não pretendo dizer a última palavra sobre o que está na origem e no fim da vida. Eu não sei, mas tenho fortes razões para afirmar não se tratar de um Deus, tal como representado na tradição monoteísta (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Prossigamos em nosso percurso.
Trago à cena Ludwing Feuerbach (1804-1872), filósofo alemão do século XIX, cujas ideias exerceram decisiva influência no pensamento de Karl Marx. Tendo em conta o que escrevi a respeito do antropomorfismo do Deus judaico-cristão, cuido ser pertinente referir uma passagem de A Essência do Cristianismo (2009) em que Feuerbach é bastante claro, ao corrigir a inversão ideológica operada pela tradição monoteísta, ao conceber Deus como criador e o homem como criatura:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio; o homem vem depois. Assim distorce ela a ordem natural das coisas! O princípio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”.

(p. 134)

Neste trecho, percebemos a tentativa de desconstrução da inversão ideológica, que toma Deus como princípio e o homem como derivado; Deus como o criador; e o homem como sua criatura. Mais adiante, Feuerbach considerará a alienação religiosa, quando escreve “(...) o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme a sua imagem” (id.ib.). Os homens se alienam no sentido de que, não compreendendo Deus como projeção de sua própria essência para fora de si, entendem-no como um Ser que os transcende, que é exterior e independente.
A essência de Deus é a autoconsciência do homem. Deus é a essência do homem objetivada. Na verdade, a leitura do seu mais importante trabalho A Essência do Cristianismo (2009) nos permitiria saber que Feuerbach identifica Deus ao homem. Há várias passagens -  no capítulo 11, por exemplo, em que o autor trata do mistério da providência e da criação - que expressam essa identificação de Deus com o homem. Assim, lemos, à página 124, “a personalidade de Deus é a personalidade do homem libertada de todas as determinações e limitações da natureza”. Na página seguinte, encontramos também

“Concedei também que o vosso Deus pessoal nada mais é que a vossa própria essência pessoal, que ao crerdes e demonstrardes o supra e extranaturalismo do vosso Deus nada mais credes e demonstrais do que o extra e supranaturalismo de vossa própria essência”.

Dada a vaguidão que o conceito de “essência” pode suscitar ao espírito do leitor, convém precisá-lo, na perspectiva de Feuerbach. Para o autor de A Essência do Cristianismo, a essência humana é a consciência, tomada no sentido que ele qualificará de “rigoroso”, a saber, a capacidade que os seres humanos têm de tomar para objeto de pensamento o próprio gênero.  Segundo o filósofo, os seres humanos são capazes de se colocar no lugar do outro, e isso é possível porque eles tomam o gênero para objeto de sua consciência. Ao contrário, embora os animais tenham sentimento de si, são incapazes de tomar o gênero para objeto de si mesmo. Concluirá Feuerbach que, nesse sentido, eles carecem de consciência.

“(...) tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mesmo. O animal não pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro (...)”.


(pp. 35-36)

Gostaria de referir este último trecho do trabalho de Feuerbach, em que se expõe a definição de Deus como mero objeto de pensamento:

“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato, negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (via negationis). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência. O homem não pode crer, supor, imaginar, pensar em nenhum outro espírito (i.e., porque o conceito de espírito é meramente o conceito de pensamento, de conhecimento, de inteligência, qualquer outra forma de espírito é um fantasma da fantasia) a não ser a inteligência que o ilumina, que atua nele. Ele nada mais pode fazer que abstrair a inteligência das limitações de sua individualidade”.

(pp. 64-65)

Não é difícil imaginar quão polêmica foi a vinda a lume desta obra de Feuerbach no século XIX. Esta e outras expressões da definição de Deus, numa abordagem da religião como antropologia, não parece encontrar paralelo em nenhuma outra publicação. Acabo de encontrar um enunciado, que consta da Apresentação do tradutor, que exprime sucinta e claramente a tese da argumentação de Feuerbach. Sei bem que já me referi a ela anteriormente, mas gostaria de estampá-la aqui, por nos deixar a salvo das dúvidas:

“O homem projeta em seus deuses todos os seus anseios, amores e sentimentos mais elevados e profundos. O home retira de si a sua essência mais elevada e mais nobre para adorá-la fora de si como Deus”.
(p. 7)
(grifo meu)
 


Dois outros livros se destacam por nos permitir estudar o contexto socio-histórico em que surgiu e se desenvolveu a fé cristã. O leitor poderá compreender como o cristianismo pôde alcançar o status de religião predominante no mundo ainda hoje lendo o trabalho do historiador Paul Veyne – Quando nosso mundo se tornou cristão [312-394] (2011) – livro em que o autor destaca o papel decisivo do imperador Constantino na consolidação da então pequena e nova seita dentro do imenso Império Romano. Constantino converteu-se sinceramente ao cristianismo e criou as condições favoráveis ao progressivo desenvolvimento da profissão de fé cristã, não sem permitir que os cultos pagãos continuassem a ser praticados. Constantino, nesse tocante, foi assaz tolerante. Isso, no entanto, não o impediu de considerar o cristianismo como a única religião portadora da verdade, relegando as crenças pagãs ao plano da fantasia. Assim, esclarece-nos o autor:

“Constantino, dizíamos, deixou em paz os pagãos e seus cultos, mesmo depois de 324, quando a reunificação de Oriente e Ocidente sob sua coroa o tornou todo-poderoso. Naquele ano, ele dirige proclamações a seus novos súditos orientais, depois a todos os habitantes de seu império. Escritas num estilo mais pessoal do que oficial, saem da pena de um cristão convicto, que proclama que o cristianismo é a única boa religião, que argumenta nesse sentido (as vitórias do príncipe são uma prova do verdadeiro Deus), mas que não toma nenhuma medida contra o paganismo: Constantino não será um novo perseguidor, o Império viverá em paz. Melhor ainda, ele proíbe formalmente a quem quer que seja de acusar o próximo por motivo religioso: a tranquilidade pública deve reinar; dirigia-se, sem dúvida, a cristãos excessivamente zelosos, prontos a agredir os templos pagãos e suas cerimônias”

(p. 23)

E nosso itinerário pode ainda incluir uma visita ao  trabalho O Livro negro do cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus (2007). Não nos impressionemos com o título. O livro não é sensacionalista; ao contrário, inclui, de forma suscita, um sem número de episódios em que o cristianismo engendrou caça às bruxas e aos hereges, Inquisição, escravidão, colonialismo, apóio a ditaduras européias e sul-americanas, pedofilia, entre outros fatos escandalizantes.  Devido a limites de espaço e de tempo, não citarei passagens deste livro. A sua leitura nos faz refletir sobre a conveniência de seguir um corpo de dogmas que serviu a tantos crimes ao longo da história.  Também nos leva a questionar o silêncio de Deus em face das tragédias perpetradas em seu nome. Não é possível fechar as páginas deste livro sem que nos visite a mente a inquietante certeza de que a História, mormente quando exibiu suas faces mais sangrentas, se fez a despeito da suposta onipresença de Deus. 


Outro livro que merece nossa apreciação, enquanto leitores ávidos de uma compreensão satisfatória da história cristã, é o livro Evangelhos Pedidos (2008).  Neste trabalho, o autor tratará das descobertas de evangelhos que não entraram para o cânone dos textos sagrados. Também o tema das falsificações dos textos sagrados, que será retomado em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010) e que estivera presente em O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (2006),  encontrará abrigo nas reflexões do autor. 


Uma passagem interessante se topa na seção As variedades do Cristianismo antigo, na qual nos conta o autor a respeito da ampla diversidade de crenças cristãs:

“A ampla diversidade do Cristianismo primitivo pode ser vista acima de tudo nas crenças teológicas abraçadas por pessoas que se viam como seguidores de Jesus. Nos séculos II e III havia, é claro, cristãos que acreditavam em um único Deus. Mas havia outros que insistiam haver dois. Alguns diziam que havia trinta. Outros declararam que havia 365.”

(p. 18)

E prossegue:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo. Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma divindade subordinada, ignorante. (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um lugar de prisão, para capturar os humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”.

(id.ibid.)


Os antigos cristãos me parecem mais sensatos. Não obstante a crença em que o mundo tem de ter um criador, não acreditavam que esse criador era dotado de sabedoria e benevolência infinitas. Eles, ao menos, reconheciam que a crença na existência de tal ser é incompatível com a quantidade esmagadora de evidências do sofrimento em escala mundial. No entanto, as interpretações desses segmentos foram sobrepujadas pela compreensão dos proto-ortodoxos, que detinham o poder ideológico e político. Ora, como poderiam estender seu domínio sobre os cristãos leigos, se o Deus que criou o mundo fosse maligno ou ignorante? Quem ia querer adorar divindade com tais qualidades? Foi necessário forjar um Deus grandioso (disso nos fala Veyne, em seu Quando o mundo se tornou cristão, livro a que me referi anteriormente), providente, justo e bom. O sofrimento poderia ser explicado pelo domínio de Satanás sobre o mundo, como propunham os autores do Apocalipse. A esse respeito, o leitor pode ler O Problema com Deus, obra também de Bart. D. Ehrman (2008). Neste livro, o autor,  que exercera o cargo de pastor numa igreja evangélica, justifica o abandono da fé, quando reconheceu que “o problema do sofrimento se tornou o problema da fé” (p. 13).  Trata-se de um livro que nos envolve do início ao fim. O objetivo do autor foi investigar as respostas dadas pelos autores bíblicos ao problema do sofrimento. Vale acompanhar a exposição e argumentação desenvolvidas nas duzentas e quarenta e três páginas deste trabalho impactante.


Os dois livros já mencionados, em que Ehrman se dedica a nos ensinar sobre a fabricação da bíblia e suas contradições (Quem Jesus foi Quem Jesus não foi?; O que Jesus disse? O que Jesus não disse?) também têm o mérito de capturar o leitor logo nas primeiras linhas. Em Quem Jesus foi?, lemos, no capítulo Quem escreveu a Bíblia?, uma revelação que a mim soou como uma estrondosa evidência de que a tradição que bilhões de pessoas no mundo seguem está baseada em uma farsa:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumam contar às suas congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles. (...)”
(p. 118)

Neste livro, aprendemos, entre tantas outras coisas, sobre a falsificação dos quatro Evangelhos que constam do cânone. Em outras palavras, descobrimos que os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e João não foram escritos por eles. Surpreendente é o que nos revela Ehrman a seguir:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério. E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(p. 154)


Citarei, abaixo, alguns trechos do livro O que Jesus disse?, em que Ehrman discorre sobre o trabalho dos copistas no longo processo de fabricação das escrituras sagradas.  Mais precisamente, o trecho refere-se à prática de cópias de manuscritos do Novo Testamento. Estamos no segundo capítulo da obra, intitulado de Os copistas dos escritos cristãos primitivos. À página 67, na seção Dificuldades para saber qual é o texto original, observa Ehrman:

“Mudanças de todos os tipos foram feitas nos manuscritos pelos copistas que os copiaram. Examinaremos com mais pormenores os tipos de mudanças num capítulo posterior. De momento, basta-nos saber que realmente foram introduzidas mudanças e que elas eram generalizadas especialmente nos primeiros duzentos anos em que os textos foram copiados, época em que a maioria dos copistas era de amadores. Uma das principais questões com que a crítica textual precisa se haver é como reconstruir o texto original – o texto tal qual o autor o escreveu -, diante da circunstância de que os nossos manuscritos são tão coalhados de erros. O problema é agravado pelo fato de que, uma vez introduzido, o erro pode se encaixar firmemente na tradição textual, muito mais firme que o original”


No tocante à carta aos Gálatas, que não fora escrita por Paulo, mas ditada por ele a um copista – o prova a presença de um pós-escrito acrescentado por ele mesmo Paulo, com o objetivo de assegurar aos destinatários que ele, Paulo, foi o autor da carta, observa Ehrman que tal prática era comum na Antiguidade. Tendo sido ditada a carta, surge o problema de saber se Paulo a ditou longamente, palavra por palavra, ou se fez uma exposição básica de sua doutrina, deixando ao copista a tarefa de completar as lacunas. Tendo em conta essa dificuldade com que têm de lidar os estudiosos, escreve o autor:

“Suponhamos, contudo, que o copista tenha captado as palavras de modo 100% correto. Se múltiplas cópias da carta foram feitas, podemos estar seguros de que todas as cópias são também 100% corretas? É, no mínimo, possível que mesmo que tivessem sido todas copiadas na presença de Paulo, uma palavra ou duas aqui ou ali pudessem ser alteradas em uma ou outra das cópias. Se fosse esse o caso, o que ocorreria se apenas uma das cópias tivesse servido como cópia da qual todas as cópias subsequentes fossem feitas – depois, no século I, no século II, no século III, e assim por diante? Nesse caso, a cópia mais antiga que constituíra a base de todas as cópias subsequentes da carta não era exatamente o que Paulo escrevera, ou quisera escrever”.

(p. 69)


À proporção que o leitor avança na leitura do livro, não custará a ele chegar à conclusão de que a grande maioria dos escritos que compõem o Novo Testamento são produto de falsificações. O que figura na bíblia e que chegou até nós, passados mais de 2.ooo anos, são cópias de cópias. Dos 27 livros que compõem o Novo Testamento, 19 são produto de falsificações, como se depreende do seguinte trecho de Ehrman, em Quem foi Jesus?:

“Agora retorno à minha pergunta original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito quase certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João, que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos primórdios da Igreja”.
(p. 153)
(ênfase minha)


O leitor que prosseguisse na leitura saberia que há controvérsia no tocante à autoria dos textos 2 Tessalonicences e 1 Pedro. Aqui as posições se dividem entre os que acreditam que tais textos foram escritos pelos autores a que eles são referidos, respectivamente, Paulo e Pedro, e os que lançam sérias dúvidas quanto a serem estas pessoas seus autores. Por outro lado, os estudiosos estão de acordo quanto ao fato de os livros 1 Timóteo e 2 Pedro não terem sido produzidos pelos autores cujos nomes se estampam nas páginas. Ou seja, não foi Timóteo que escreveu 1 Timóteo, tampouco Pedro que escreveu 1 Pedro.
Tendo tomado conhecimento da problemática em torno da verdadeira autoria dos textos sagrados, também – assim creio – não será custoso ao leitor concluir que a Bíblia foi produzida pelas mãos de muitos homens. A Bíblia é um livro humano. Gostaria, de passagem, referir um trecho bastante elucidativo da posição de Ehrman, um dos maiores especialistas nos estudos do Novo Testamento. Nesse excerto, o autor retoma a razão por que abandonou a sua fé, bem como expõe a conclusão inevitável a que chegou após longos anos de estudo da Bíblia:

“Portanto, não abandonei a fé cristã por causa dos problemas inerentes à fé propriamente dita nem porque me dei conta de que a Bíblia era um livro humano ou que o cristianismo era uma religião humana. Tudo isso é verdade – mas não foi o que desmontou minha aceitação do mito cristão. Eu abandonei a fé pelo que considerei (e ainda considero) ser uma razão distinta: o problema do sofrimento no mundo”.

                                                                (p. 298)
(grifo meu)

Note-se que Ehrman refere-se ao cristianismo como um mito ou um conjunto de mitos. Outros tantos autores assim compreendem as religiões, de maneira geral, e o cristianismo, particularmente. O próprio Marcelo Da Luz se reconhece hoje como agente comprometido com a desconstrução “[do] mundo de fabulas e falácias onde se assenta o pensamento religioso” (p. 122). Não se pode ter certeza absoluta da existência histórica de Jesus, conquanto para autores como Ehrman Jesus, enquanto profeta judaico apocalíptico que viveu na Palestina do século I, provavelmente existiu. As dificuldades ligadas à certeza da existência de Jesus consistem em que as únicas fontes disponíveis que nos permitem conhecer a vida de Jesus são os quatro Evangelhos, textos impregnados de inconsistências. Assim, adverte-nos Ehrman, na mesma obra:


 
“(...) o problema é que os Evangelhos estão repletos de discrepâncias e foram escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus, por autores que não tinham testemunhado pessoalmente nenhum dos acontecimentos da vida dele”.

(p. 159)


Volvemos à consideração do cristianismo como um conjunto de fábulas. O trecho a seguir, tomado a Marcelo Da Luz, esclarece-nos sobre a influência das mitologias pagãs na construção da narrativa do sacrifício de Jesus. Não está em questão a crucificação de Jesus (embora seja possível levantar suspeitas sobre a prática de crucificação entre os romanos naquela época). No link abaixo, há uma reportagem divulgada na revista Época, em que um teólogo qualifica a crucificação de Jesus como uma “história baseada nas tradições católicas e em ilustrações antigas”.

O que está em questão é a construção da significação teológica do sacrifício e morte de Jesus. Acompanhemos as palavras do autor:

“O antropólogo francês René Girard tornou-se célebre pela teoria explanatória da violência religiosa, segundo a qual as comunidades primitivas, a fim de não se autodestruírem pela rivalidade e inveja de seus indivíduos, ritualizavam a morte de um forasteiro, em quem era depositada toda a culpa ao modo de bode expiatório. A tradição judaica, no entanto, paulatinamente refinou essa prática, substituindo seres humanos por animais, vítimas inocentes levadas ao altar da imolação. Dessa forma, segundo o cristianismo, Jesus ocupa o papel do cordeiro justo e sem mancha, vítima perfeita, cujo sangue é derramado a fim de aplacar a ira de “Deus” todo-poderoso. Esse bizarro discurso – predominante na história do pensamento cristão – aproxima sobremaneira o cristianismo às antigas religiões pagãs praticantes do sacrifício humano”.

(p. 134)


Um discurso bizarro – escreve o autor. Por que bizarro? Porque, se examinado cuidadosamente, ele nos parecerá repugnante ao coração e ao intelecto. Ao coração, porque Deus se satisfaz com a morte de um inocente. Este inocente tinha de morrer para que Deus se acalmasse e não viesse a destruir o mundo (mais uma vez). Ele mesmo envia ao mundo seu próprio filho para morrer, não sem antes experimentar dor e sofrimento atrozes. E a dor, o sofrimento e a morte deste infeliz e inocente judeu serviu à salvação de toda humanidade da ira de Deus, que estava insatisfeito com os maus comportamentos de suas criaturas. Mas a mesma doutrina ensina que Deus é infinitamente misericordioso e, portanto, está sempre disposto a perdoar, o que nos obriga a perguntar: por que então não perdoou aqueles que estavam perpetrando atos maus, poupando o próprio filho do martírio?
Pensemos na história tendo como base o comportamento humano. Um pai pode sacrificar-se para salvar a vida do próprio filho. Certamente, muitos pais e mães estão dispostos a morrer pelo próprio filho. Nesse sentido, realmente, estamos diante de um sacrifício em favor da salvação de um outro a quem muito amamos. Nada semelhante há na narrativa do sacrifício e morte de Jesus. Deus não se sacrifica para salvar a humanidade, o que seria absurdo em se tratando de uma divindade, que, por definição, desconhece sofrimento e morte. Mas insisto em que Deus não se sacrifica; faz melhor: envia o seu filho amado para se sacrificar em favor da sobrevivência de toda a humanidade, porque ele, Deus, estava muito zangado com a forma como os homens vinham se comportando. (estou ignorando o dogma segundo o qual  Jesus é o próprio Deus que se fez carne para a expiação dos pecados dos homens, porque isso complica mais ainda essa esdrúxula história; mesmo que Deus, transmutado em Cristo, tenha morrido, ele, segundo a crença, não morre, porque ressurge no terceiro dia após sua morte – mas isso é matéria de fé, porque o fato é que Jesus, uma vez pregando contrariamente às convicções de certa classe do poder judaico, preparou o caminho de seu próprio autosuicídio (ver. Da Luz, p. 135)).


Como não se afigurar em nossa alma a ideia de um Deus sádico? Jesus, o filho de Deus, nos salva da ira de seu Pai; portanto, nos salva do próprio Deus, que estava insatisfeito com os nossos pecados. Tendo poder suficiente para resolver o problema que o incomodava, Deus envia seu filho para morrer e, assim, evitar que se eliminem todos os seres que habitam o planeta. Uma solução, no mínimo, pouco engenhosa vindo de uma divindade de tal magnitude. Deus é, assim, sádico e cúmplice do assassinato do próprio filho. Que pai, sabendo que o filho correria risco de vida,  o mandaria resolver um problema que ele mesmo, pai, teria condições de resolver sozinho? Mas a história bíblica ainda é pior. Deus estava presciente dos acontecimentos funestos que envolveriam a vida do filho; o sacrifício e morte de Jesus estavam previstos no plano maquiavélico de Deus! Só faz sentido falar em salvação pela morte se há um sacrifício verdadeiro de alguém pela sobrevivência de outrem. O pai que se lança para evitar que o filho seja alvejado por um projétil, deixando o peito exposto ao impacto, assume o risco de morrer para salvar o filho. O plano de Deus, sendo não só repugnante é também falho. Ainda hoje, os homens se veem às voltas com as dificuldades decorrentes de sua natureza. Ainda hoje, matam uns aos outros; guerreiam, cultivam a discórdia, discriminam; fomentam a competição, engordam na alma a ganância, etc. Em suma, nossos problemas continuam conosco.
A respeito da prática de sacrifício, comum nas religiões pagãs de povos primitivos, pode-se ler sua lógica em O livro das religiões:

“Se um indivíduo cometeu um crime contra os deuses e despertou a sua ira, deve ser punido. Para apaziguar os deuses e evitar uma vingança, ele pode fazer um sacrifício de expiação. A oferenda – por exemplo, um animal sacrificial – substitui o culpado e é punida no lugar dele”.

(p. 31)

Que belo exemplo de justiça! Veja-se como os deuses pagãos eram produto de antropomorfismo, ou seja, eles eram dotados de qualidades humanas, demasiado humanas. Embora fossem dispostos a fazer o bem aos homens que os adoravam, proporcionando-lhes, por exemplo, boa colheita, podiam também irar-se contra eles, submetendo-os a uma temporada de fome.  Também o Deus judaico-cristão era capaz de odiar e punir. O Deus do Antigo Testamento era ciumento; não lhe apetecia o culto a outras divindades. Vale notar também que a prática de render oferenda é uma estratégia de barganha de que se valem os religiosos para obter benefícios de suas divindades.
Tenho de pôr um ponto final neste texto. Por isso, deixarei de considerar um pouco do conteúdo de livros igualmente importantes como o de Christopher Hitchens – deus não é Grande (2007).
Que benefícios intelectuais nosso percurso nos acarretou? Vimos que podemos aprender muito sobre o modo como a fé católica penetra na consciência dos crentes, com Marcelo Da Luz; podemos aprender com Feuerbach que a religião é um fenômeno antropológico; podemos também aprender, com Ehrman, sobre as contradições que se acham na Bíblia, sobre a história da fabricação deste que é o livro mais vendido e lido do mundo; podemos ainda estudar o contexto sócio-histórico em que o cristianismo lançara suas raízes, de tal sorte que seremos levados a concluir, corretamente, que o Deus que nossas sociedades ocidentais herdaram foi forjado num tempo remoto por pessoas que viveram sob o domínio dos romanos no Oriente Médio. Trata-se de um Deus que foi plasmado na História, que foi forjado por uma ideologia que rezava ser a crença no poder infinito desse Ser transcendente a única forma de escapar, ou, ao menos, resistir ao jugo dos dominadores. Portanto, uma ideologia da submissão, da obediência cega a uma autoridade transcendente. Uma ideologia que trataria, com o tempo, de arrebanhar bilhões de seguidores.