quarta-feira, 18 de julho de 2012

A comunicação é uma encenação (Charaudeau)


                          
                                 O discurso como encenação

                                                  Como o texto faz falar



Vou-me esforçar por que este texto seja o mais inteligível possível ao leitor, porque estou ciente de que as questões de que me ocuparei podem lhe ser ignoradas. A fim de facilitar tanto quanto possível a compreensão pelo leitor, é forçoso que eu defina, previamente, alguns termos que constituirão o conjunto  de pressupostos mediante os quais se orientarão minhas reflexões. Entre eles, estão:



a) Ato de linguagem – é a ação social na qual o falante, apropriando-se da língua, converte-se em sujeito da produção de enunciados, segundo uma intencionalidade que pode lhe estar ou não transparente.  Todo ato de linguagem evidencia duas condições: o da produção e o da interpretação. Assim é que todo ato de linguagem instaura dois tipos de relações:

- a relação que o sujeito enunciador e o sujeito interpretante estabelecem entre si em face do propósito linguístico;



- a relação que eles mantêm um em face do outro.



Todo ato de linguagem encerra o Explícito, que toca à atividade de Simbolização referencial feita na/ pela linguagem (ou seja, atividade através da qual a realidade é referida e conceituada pela linguagem), e o Implícito, que toca às representações coletivas que nos foram legadas pelas nossas experiências sócio-culturais e que constituem o conjunto de saberes a respeito do mundo. O Implícito é dependente das circunstâncias de produção do discurso.



b) Discurso – constitui a totalidade de um ato de linguagem particular.



c) Texto – é a configuração linguística de um ato de linguagem.



d) real – o real não existe independentemente do discurso. Trata-se de uma instância construída na e pela linguagem em discurso. Ao usar a língua, os protagonistas supõem sua existência exterior ao discurso, de modo que eles agem como se a realidade verdadeira exterior à linguagem existisse. No entanto, o que chamamos de real não é senão produto das representações coletivas produzidas nas práticas sociais mediante o uso da linguagem (em discursos).



e) Circunstâncias de discurso – constitui o conjunto de saberes pressupostos pelos protagonistas da linguagem e que são atualizados quando da interação verbal. Trata-se de

- saberes pressupostos a respeito do mundo: práticas sociais partilhadas;

- saberes pressupostos sobre os pontos de vista recíprocos dos protagonistas.



Cabe ainda considerar que a significação de um ato de linguagem não preexiste à interpretação. A significação é construída pelos protagonistas no interior da prática discursiva. Assim é que nossos enunciados e as palavras não significam fora do discurso. Toda interpretação é uma suposição de intenção (Charaudeau, 2010). Assim, o sujeito interpretante formula hipóteses sobre a intencionalidade do sujeito enunciador. Para ser mais preciso, o sujeito interpretante elabora hipóteses a respeito:



- do saber do sujeito enunciador;



- do seus pontos de vista em relação a seus enunciados;



- do seus pontos de vista em relação ao próprio sujeito interpretante.



O sujeito interpretante não pode nunca deixar de formular hipóteses. Também o sujeito enunciador formula hipóteses sobre o saber do sujeito interpretante.



f) sujeito



Definir o sujeito, no interior da Análise do Discurso, é concebê-lo como um ser do discurso, como um ser social que se inscreve no discurso. O sujeito, assim, não se confunde com o sujeito psicológico. Trata-se do sujeito socio-histórico, interpelado pela ideologia. Ele é caracterizado pela heterogeneidade e pela dispersão. A rigor, devemos pensá-lo como uma função do discurso (a função sujeito). Pensá-lo como heterogêneo significa entender que ele é atravessado por diferentes vozes sociais. Sua identidade não é fixa; está, ao contrário, em constante reconstrução no discurso. Logo, não podemos imaginá-lo como a pessoa de carne e osso, dotada de autonomia quando da produção de seu discurso. O sujeito não é o senhor do que diz, tem apenas a ilusão de sê-lo. Essa “ilusão” é produto da ideologia.

O trecho que se segue ajuda-nos a compreender alguns aspectos do sujeito. Em Autoria, discurso e efeitos do trabalho simbólico (2007), Eni P. Orlandi esclarece-nos a respeito do conceito de sujeito:

“Quando o sujeito fala, ele está em plena atividade de interpretação, ele está atribuindo sentido às suas próprias palavras em condições específicas. Mas ele o faz como se os sentidos estivessem nas palavras: apagam-se suas condições de produção, desaparece o modo pelo qual a exterioridade o constitui. Em suma, a interpretação aparece para o sujeito como transparência, como o sentido lá”.

(p. 65)



O excerto em tela permite-nos entrever algumas noções desenvolvidas na Análise do Discurso que precisam ser explicitadas. A primeira delas é que não só o sujeito interpretante se encarrega de produzir um sentido para os textos produzidos pelo sujeito enunciador, mas este também produz sentidos para seus próprios enunciados. Ao fazê-lo, ele se ilude quanto à transparência desses sentidos. Os analistas do discurso propõem que a linguagem é caracterizada pela opacidade, de tal modo que o sentido não é autoevidente, não está  inscrito nos enunciados, mas são construídos pelos sujeitos em interação, assumindo a forma de efeitos de sentido. O sentido é dependente da formação ideológica, do lugar sócio-histórico de onde se enuncia. Estou evitando falar em formação discursiva, já que não tenho a intenção de me alongar nessa problemática. Mas é certo que os sentidos são produzidos relativamente a uma dada formação discursiva.

Em suma, a noção de sujeito com que operarei a análise de uma amostra de discurso, mais adiante, é a que se acha nas palavras de Fernandes, em Análise do Discurso: reflexões introdutórias (2007):



“(...) o sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo; portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado em uma individualidade, em um “eu” individualizado, e sim um sujeito que tem existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e não em outro”.



(p. 33)





1. O discurso como encenação



Interagir pela linguagem é encenar, à guisa do que acontece no teatro. No teatro, o diretor se vale de um espaço cênico,  que inclui os cenários, a luz, a sonorização, os atores e o texto. Os atores visam a produzir efeitos de sentido em um dado público imaginado. Também o locutor se vale de textos para produzir efeitos de sentido num destinatário imaginado.

Todo ato de linguagem coloca em confronto pelo menos dois sujeitos: o enunciador e o enunciatário, que se alternam nessas funções cada vez que têm o turno de fala. Temos, então, um sujeito enunciador e um sujeito interpretante. Entretanto, todo ato de linguagem, enquanto evento de produção e interpretação de enunciados, implica saberes supostos entre os protagonistas, saberes que estão intimamente relacionados às dimensões do Explícito e Implícito, que, por sua vez, são indissociáveis das circunstâncias de discurso.  Todo ato de linguagem pode ser representado na seguinte equação, tomada a Charaudeau (2010):



         Ato de linguagem = [Explícito x Implícito] C de D



Lê-se “C de D” como “circunstâncias de discurso”.



Uma vez designando por EU o sujeito responsável por produzir o ato de linguagem e por TU o sujeito interlocutor desse ato de linguagem, convém entender que:

- O TU não é simplesmente o destinatário de uma mensagem, mas um sujeito que constrói uma interpretação na base de um ponto de vista sobre as circunstâncias de discurso; portanto, também sobre o EU.



- O TU- interpretante não se identifica com o TU-destinatário, ao qual o Eu se dirige. Assim, o TU-interpretante, ao produzir uma interpretação, constrói uma imagem do Eu, que difere da imagem que o Eu fez de si mesmo, quando da produção de seus enunciados.



Em outras palavras, o Eu dirige-se a um TU-destinatário que esse EU acredita (deseja) adequar-se ao propósito de seu ato de linguagem (o Eu faz uma “aposta”). Entretanto, ao descobrir que o TU-interpretante não se identifica com o TU-destinatário imaginado (fabricado), é forçado a concluir que o Eu que produziu o enunciado não é o mesmo EU construído pelo TU; trata-se de um EU suposto (fabricado) pelo TU- interpretante.

Assim, no domínio da produção, se acha um EU que se dirige a um TU-destinatário (fabricado pelo EU); no domínio da interpretação, se acha um TU-interpretante, que constrói uma imagem do EU-enunciador.

Passarei a usar a abreviação EUc (Eu comunicador) para referir-me ao EU responsável pela produção do enunciado; e a abreviação TUd (Tu-destinatário) para referir-me ao TU a quem se dirige o EUc. Correlativamente, distinguirei um TUi (Tu-interpretante) que não se identifica com o TUd e que age independentemente do Eu e que se investe de autor do ato de interpretação; e um EUe (Eu-enunciador) que é uma imagem construída pelo TUi (Tu-interpretante).

Vê-se que o que antes eram dois sujeitos, agora tornaram-se quatro sujeitos, a saber: o EUc, o TUd, o EUe e o TUi.

Convém esclarecer melhor essa configuração cênica do ato da linguagem. Vamos situar cada ser do discurso relativamente aos domínios da produção e interpretação. Situando-nos no processo de produção, o EUe é uma imagem fabricada pelo Euc (EU-comunicador) – ele pode estar explicitamente marcada no enunciado, como em “Eu não quero mais sair”, ou pode estar apagada, como em “Ele disse que você não cumpriu com o acordo”.

Situando-nos no processo de interpretação, o Eue é uma imagem construída pelo TUi (isto é, uma hipótese de como é a intencionalidade de EUc, que se realiza no ato de produção).

É importante reter que, independentemente do âmbito em que nos situemos, o Eue (como também o TUd) é um ser do discurso e que só existe no ato de produção-interpretação. Sendo uma entidade discursiva, ele independe em parte do Euc (e do TUi). O Eue é tão-só uma máscara de discurso utilizada pelo Euc. O Euc é o sujeito agente que se institui como responsável pelo processo de produção do ato de linguagem, em função das circunstâncias do discurso. O TUi é o sujeito responsável pela interpretação que pode não coincidir com a imagem TUd construída pelo Euc.

Como pensar estas oposições relativamente aos efeitos de sentido? Quem é o responsável pela produção dos efeitos de sentido? Resumidamente, convém entender que:



- O Eue (sujeito enunciador) é um sujeito da fala tanto quanto o TUd. É ao Eue que compete produzir efeitos de sentido sobre o TUi. Mas esses efeitos de sentido dependem do TUi, e este é responsável por construir uma imagem do Eue. O Eue é, portanto, sempre uma imagem do discurso que mascara em maior ou menor grau o Euc.



- O Euc (sujeito comunicador) é um sujeito agente, que se situa na esfera exterior ao ato de linguagem, como também o é o Tui (sujeito interpretante). O Euc é o sujeito responsável pela produção de um ato de linguagem e é a relação entre Euc e Eue que produz um efeito de sentido sobre o TUi. O Euc é sempre entendido como uma testemunha do real.



Finalmente, convém ainda ter em conta que todo discurso se estabelece na base de contratos e estratégias. Por contrato, devemos entender que os protagonistas de um discurso estão dispostos a sustentar um acordo sobre as representações linguísticas do corpo de práticas sociais em que se inserem. Há uma expectativa mútua de que ambos se esforçarão para manter o contrato tácito.

Por estratégia, devemos entender que o Euc procura estruturar e encenar suas intenções (o que configura sua intencionalidade) de modo a produzir determinados efeitos – persuasão, sedução, convencimento – sobre o TUi, com o objetivo de levá-lo a identificar-se – consciente ou inconscientemente – com o TUd idealizado pelo Euc.

Consoante ensina Charaudeau, em Linguagem e Discurso – modos de organização (2010),



“(...) falar, em outras palavras, comunicar é um ato que surge envolvido em uma dupla aposta ou que parte de uma expectativa concebida por aquele que assume tal ato: (i) o “sujeito falante” espera que os contratos que está propondo ao outro, ao sujeito-interpretante, serão por ele bem percebidos; e (ii) espera também que as estratégias que empregou na comunicação em pauta irão produzir o efeito desejado”.

(p. 57)





2. Uma amostra de análise



Vejamos, agora, como se pode operacionalizar os conceitos anteriormente discutidos. Segue-se um recorte de uma situação discursiva do programa de televisão A Grande Família.





.



Situação: Lineu colocando terra em pratinhos de planta para evitar acúmulo de água que possa atrair o mosquito da dengue.



TUCO – Tá fazendo o que aí popozão?



LINEU – Esses vasos aqui são um convite a dengue. Sabia que é na água parada que a fêmea do mosquito da dengue deposita os seus ovos?



TUCO – Que que adianta depositarem aí nesse vasinho se agora lá tem um lugar muito maior pra fazer isso.



LINEU – Onde? (espantado)



(Lineu e Tuco se dirigem até a casa de Agostinho, onde o encontram enchendo com uma mangueira a sua piscina)



LINEU – Agostinho! Você pode me dizer o que é isso?



AGOSTINHO – Isso aqui, Lineu, isso aqui é uma pscina.



LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.



TUCO – Popozão, o Agostinho ele escreveu a gente no programa de hospedagem domiciliar do panta. O turista vai ficar hospedado aqui como se ele estivesse num hotel



AGOSTINHO – É hotel com piscina. O senhor tem que ter ó (com o dedo indicador tocando a própria cabeça).





Começarei notando que as personagens assumem cada qual uma identidade social definida em termos biológicos (no caso da relação pai-filho), mas também legais (já que o pai é um papel social assumido por uma pessoa que detém direitos e reconhece deveres). No Pequeno Dicionário de sociologia (2009), lemos no verbete papel social o que se segue:



“tarefas decorrentes de um status, que devem ser realizadas por uma pessoa, ligadas e apreciadas positivamente por um círculo de pessoas”.

(p.109)



A noção de status expressa melhor a noção de pai como um sujeito social portador de direitos e submetido a deveres instituídos por lei. Esse conjunto de direitos e deveres definem seu status social. A identidade social é, portanto, esse conjunto de direitos e deveres estabelecidos e reconhecidos socialmente.

Todavia, o fenômeno da identidade não pode ser pensado fora dos quadros da linguagem. Daí ser necessário estabelecer uma identidade discursiva (ou linguística) A identidade social e a identidade discursiva são indissociáveis. A primeira é reforçada, reiterada, ou ocultada no discurso; e a identidade discursiva se constrói na base da identidade social. Lembramos que a dimensão biológica associado ao status de “pai” é também passível de receber significações pelos atores sociais.

O Eu constrói sua identidade na relação com o outro e vice-versa. Charaudeau ensina que a identidade se constrói na base de um paradoxo: o Eu, para tomar consciência de sua existência, precisa da diferença do outro; mas ao tomar consciência dessa diferença, desconfia dele e sente necessidade de rejeitá-lo, ou de assimilá-lo, eliminando a diferença. No entanto, procedendo assim, não disporia mais da diferença a partir da qual se define; ou perderia um pouco da consciência de sua própria existência, que se constrói na diferenciação. A solução é a regulação sutil entre aceitação e rejeição do outro; valorização ou desvalorização do outro.

A identidade social deve ser designada, a rigor, como identidade psicossocial, já que está impregnada de traços psicológicos. A identidade discursiva configurará o modo de ser assumido por um sujeito no momento mesmo em que produz seu discurso. Assim é que um pai (identidade social) pode comportar-se discursivamente como alguém autoritário, protetor, compreensivo, indiferente, etc. (identidade discursiva). A construção da identidade discursiva depende da mobilização de um dois espaços de estratégias, a saber, de credibilidade e de captação. A credibilidade se vincula à necessidade que tem o falante de que se acredite nele, tanto em termos de valor de verdade de seus enunciados, quanto em termos de sua sinceridade. Há diferentes atitudes discursivas relacionadas a estratégia de credibilidade, mas não vou defini-las aqui.

Basta saber, finalmente, que a captação consiste na necessidade que tem o falante de assegurar que seu interlocutor reconheça seu projeto de intencionalidade, ou seja, acolha suas ideias, compartilhe de seus pontos de vista, opiniões e crenças.

Em suma, como observa Charaudeau, em Identidade social e Identidade discursiva, o fundamento da competência comunicacional (2009):



“(...) a identidade discursiva se constrói com base nos modos de tomada da palavra, na organização enunciativa do discurso e na manipulação dos imaginários socio-discursivos. Ao contrário da identidade social, a identidade discursiva é sempre algo “a construir – em construção”. Resulta das escolhas do sujeito, mas leva em conta, evidentemente, os fatores constituintes da identidade social (...)”.

(p. 5)





A identidade social de Agostinho não conta com traços biológicos definidores (em relação a Lineu e ao Tuco), evidentemente; mas tão-só se define no corpo de práticas sociais, que fixa seu status por uma relação legalizada com a filha de Lineu (Agostinho é marido da Bebel). Agostinho é o genro de Lineu, e seu status social se define na relação que estabelece com ele, Lineu, que reconhece esse status.

O primeiro turno de fala é de Tuco. Ao valer-se da língua, Tuco se investe em sujeito do discurso, instaurando um EUc (responsável pela produção do enunciado). O Euc constrói uma imagem de si, o EUe.  Este EUe não está explícito no enunciado, embora pressuposto. Esse Eue é um sujeito-que-pede-uma-informação. Em outras palavras, o EUe se inscreve como um sujeito que visa a obter uma informação, através de seu ato de linguagem. Lineu é o TUd, a quem se dirige o Euc, ou seja, uma imagem construída pelo Euc. Esse TUd é construído como um ser do discurso em condições de oferecer a informação solicitada pelo EUe. Mas note-se que Lineu, na posição de sujeito interpretante (TUi) não responde diretamente à pergunta do EUe. O EUe é construído de modo diferente pelo TUi, já que a imagem do EUe construída pelo TUi é de alguém que parece ignorar a importância de prevenção contra o mosquito da dengue; em outras palavras, ignora que o que o pai fazia era encher de terra os pratinhos de planta a fim de evitar a proliferação do mosquito da dengue. A imagem do Eue, construída pelo TUi, é, portanto, a de um sujeito ignorante da importância daquela iniciativa, mas também ignorante de um conhecimento dado por uma educação científica, qual seja, o fato de que é a fêmea do mosquito Aedes aegypt que deposita os ovos na água parada.

No segundo turno de fala de Tuco, o EUe assume uma imagem de si como ‘quem-precisa-advertir’ o TUi da imprudência de outra pessoa (no caso, do cunhado Agostinho). O EUe consegue, nesse caso, obter o efeito pretendido, já que mobiliza o TUi a verificar o fato que foi enunciado (TUd coincide com TUi). Lineu, TUi, ao formular a pergunta “onde?” pretende que o EUe lhe mostre o lugar que favoreceria a proliferação do mosquito da dengue. E Lineu se depara com uma piscina de plástico e com Agostinho a enchendo de água.

Lineu, ao pedir explicação para Agostinho sobre o que estava fazendo, instaura-se como um EUe explícito no enunciado (veja-se a marca “me”), que dispõe de poder para interpelar Agostinho. O Eue constrói uma imagem de TUd como ‘alguém que tem de dar explicação sobre o que está fazendo’. Mas TUi não coincide com TUd, porque TUi age de modo diferente do esperado pelo EUe. TUi se coloca na posição de mero respondente. Agostinho responde o óbvio: trata-se de uma piscina. É interessante perceber que Agostinho faz de conta que não entende a intenção subjacente à produção do enunciado “Você pode me dizer o que é isso?”. Claro é que Lineu não estava perguntando sobre a realidade de X (isso). Ele sabia tanto quanto Agostinho que o objeto em questão era uma piscina. O contrato foi, momentaneamente, quebrado, porque Agostinho não reconheceu o fato de que ambos compartilham da mesma representação social a respeito daquele objeto. Nesse momento, fica clara a ideia de que o real não preexiste ao discurso. Isso é patente na sequência do discurso. Vou reproduzi-la baixo:



LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.



Ambos assumem o objeto ‘piscina’ como um dado de um modelo de mundo compartilhado. Mas, considerado como objeto de discurso, importa ver como a significação desse objeto é construída por cada um dos sujeitos. Do ponto de vista de Lineu, a piscina não é piscina, mas um “foco de dengue” em potencial. Do ponto de vista de Agostinho, a piscina não é puramente piscina, mas um “foco de dinheiro”, ou seja, um meio de obter lucro. Piscina se reveste de duas significações que expressam interesses antagônicos: constitui um ambiente favorável ao mosquito da dengue e representa, assim, um risco à saúde pública; e também um meio de ganhar dinheiro. Lineu tem interesse na prevenção; Agostinho, na obtenção de lucro. A identidade discursiva aí fica bem clara e se constrói numa relação caracterizada por antagonismo de interesses: Lineu é o pai de família responsável, consciente de seus deveres como cidadão (identidade discursiva); Agostinho é o genro irresponsável, (agindo como) um capitalista desinteressado do bem-estar da comunidade, que deseja apenas lucrar.

Na situação discursiva em questão, não importa tanto a referência à piscina como uma entidade pertencente ao mundo propriamente dito, mas como uma entidade que constitui objeto de discurso. Trata-se de duas realidades diferentes, segundo os pontos de vistas dos sujeitos em interação. Essa realidade não é fixa, acabada, imutável e dada a priori. Creio esclarecedoras as palavras seguintes de Marcuschi, em A Construção do mobiliário do mundo e da mente: linguagem, cultura e cognição, que se topa no livro Linguística e Cognição (2005):



“Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta e universal, e a mesma para todo sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (...). E a concordância geradora do consenso é o ponto de intersecção que produz a crença objetiva”.



(p. 69)





Há, portanto, uma realidade consensual; mas é preciso romper com uma visão realista do mundo, que supõe uma realidade objetiva acessível e igual para todos. Esse mundo objetivo é mera ilusão. A realidade se constrói por processos sociocognitivos dotados de um investimento linguístico e moldados num dado sistema cultural. Assim é que, ainda segundo o autor



“Conhecer um objeto como cadeira, mesa, bicicleta, avião, livro, banana, sapoti não é apenas identificar algo que está ali, nem usar um termo que lhes caiba, mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura. O mundo de nossos discursos (não sabemos como é o outro) é sócio-cognitivamente produzido. O discurso é o lugar privilegiado da designação desse mundo”.

(id.ibi)







Embora ciente de que o texto já extrapola os limites da conveniência suposta para a publicação em blog, preciso esclarecer o que se deve entender por objetos de discurso. O conceito se situa na problemática da construção da rede referencial do texto, mas implica a relação entre linguagem e realidade, tal como a vim pensando aqui. Volvendo ao trecho em que se acham as contribuições finais de Lineu e Agostinho e recuperando aí o problema da representação da entidade “piscina”, devemos entendê-la como uma entidade do discurso (ou seja, entidade oriunda de uma construção mental, que constitui um referente). No momento em que, por ato de designação, pinça-se uma entidade e a introduz no discurso, cria-se um referente passível de predicação. A rede referencial (ou seja, o sistema de referentes textuais) é montada pelos objetos-de-discurso. Os objetos-de-discurso são as entidades (referentes) construídas pelo discurso e é nele e por ele que são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc. Assim, no trecho em que figura a palavra “piscina”, que reproduzo novamente abaixo,









LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.





o referente “piscina” é categorizado como “foco de dengue” (na fala de Lineu) e como “foco de dinheiro” (na fala de Agostinho). Para efeito de compreensão do discurso, não importa que se trata de um mesma entidade do mundo conhecido segundo uma dada representação coletiva consensual como “piscina”, ou seja, ‘tanque artificial destinado à natação ou ao banho para entreter’. Esse é o sentido dicionarizado, que não está em jogo na interação, já que, como disse, o discurso constrói a significação das palavras. Há um núcleo metadiscursivo (Charaudeau), que consiste neste sentido relativamente estável e consensual, que figura no dicionário e que  se sedimentou com uso feito pelas gerações. Mas ele é apenas uma parte da construção do que é um signo na significação de um ato de linguagem. Não posso ir além disso.

Veja-se, por exemplo, como Carlinhos Cachoeira, enquanto referente de discurso, pode ser reconstruído nos enunciados abaixo:



(1) Acusado de comandar a exploração do jogo ilegal em Goiás, Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, foi preso na Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, em 29 de fevereiro de 2012, oito anos após a divulgação de um vídeo em que Waldomiro Diniz, assessor do então ministro da Casa Civil, José Dirceu, lhe pedia propina. O escândalo culminou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos e na revelação do suposto esquema de pagamento de parlamentares que ficou conhecido como mensalão.



(2) Balanço das atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) mista que investiga relações entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e parlamentares e autoridades apontou que mais da metade dos depoentes convocados se recusou a falar. Segundo o presidente da CPI, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), das 24 pessoas chamadas para depor, apenas 11 falaram aos parlamentares - sendo que duas delas deram depoimentos parciais.





Em (1) introduz-se o referente “Carlos Augusto Ramos” (nome do contraventor), cujo uso produz uma ilusão de neutralidade do sujeito-escritor, após o qual se acha a expressão “ o Carlinhos Cachoeira”, designação com que ficou conhecido na mídia e pela sociedade brasileira. Trata-se da mesma pessoa, mas de dois modos diferentes de representá-la (construi-la). Em (2), aparece o termo pejorativo com que se designa o agente do jogo do bicho. Trata-se de uma representação depreciativa de “Carlos Augusto Ramos”, de duas identidades construídas discursivamente. Em contrapartida, omite-se a identidade dos “parlamentares e autoridades” com que o bicheiro manteve relações, mas obtém-se um efeito de sentido de denúncia contra o fato inadmissível de representantes do poder político envolver-se em negociatas com um contraventor. Um cenário de corrupção muito conhecido dos brasileiros, porque marca indelével de nossa história política.

Queria ter podido abordar outra questão que me parece fundamental para todo leitor que pretende tornar-se mais experimentado no seu trabalho de interpretação e compreensão de texto: a questão do autor. Quem é o autor? Que estatuto discursivo tem ele? Como se estabelece sua relação com o discurso e com o leitor? São algumas das questões implicadas nesse tema e que pretendo (re)visitar em outra oportunidade.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

"Quem sou eu?" Essa pergunta só faz quem se sabe ignorante de sua resposta" (BAR)


                                   Solidão dos pensamentos

                                           A memória do Eu


Nesta nova oportunidade em que me encontro com as palavras, em que ponho em movimento este comboio verbal (pois este texto nada mais é do que um comboio de palavras), escreverei sobre mim. Nada mais trivial, decerto. Nada mais ordinário. Que interesse terá o tema para o leitor desconheço, por ora. Mas esteja certo, leitor (melhor seria, “leitora”), de que não me ocuparei de mim reunindo neste papel virtual um bando de banalidades subjetivas. A proposta é sempre alguma forma de reflexão. Preciso reler-me e compartilhar com você essa releitura; e quem sabe, assim, provocar-lhe o instinto de releitura de si. Ao termo deste texto, tendo já elaborado um gesto de interpretação, quiçá, estará motivado a desenvolver uma leitura de si mesmo na sua intimidade intrapsíquica.

Durante essa proposta de releitura de mim mesmo, convidarei o leitor a pensar sobre alguns fenômenos fundamentais à história existencial de cada um de nós, enquanto indivíduos. Portanto, não passará despercebida ao leitor uma base teórica subjacente a guiar-me as reflexões – ou melhor, o movimento espiritual de instrospecção. O rigor conceitual é um mau hábito que adquiri ao longo de minha formação acadêmica, sobretudo, ao longo de minhas experiências de leitura de filosofia. Por instrospecção, em psicologia, devemos entender um método através do qual uma consciência individual examina seu próprio conteúdo, a saber, seus sentimentos e ideias. A instrospecção é uma etapa da psicoterapia e conta, portanto, com a participação do terapeuta, cuja função é induzir o paciente a avaliar seus próprios sentimentos, levando-o a se dar conta das causas que lhes são subjacentes. Uma vez identificadas essas causas, o paciente poderá modificar seus padrões de comportamento pessoal e social. Na ausência de um terapeuta, imponho-me a dupla tarefa de agente indutor (ou condutor) e agente realizador.

A memória é, sem dúvida, um fenômeno fundamental na construção da história existencial de todos nós. Esse sentimento de continuidade do ‘eu’ – que somos hoje e que fomos no passado – só é possível graças à memória. Dela depende a construção de nossa identidade pessoal. A problemática da identidade é, decerto, um tema muito interessante, mas não me ocuparei dele aqui. Ater-me-ei ao conceito de memória.

Todos nós sabemos mais ou menos o que é a memória. Em geral, tendemos a pensar nela como uma espécie de unidade de processamento de arquivos. Claro, não é bem assim que, ordinariamente, a pensamos. Na verdade, muitos de nós pensam-na como uma espécie de recipiente mental em que se inserem nossas experiências de mundo. O Dicionário Técnico de Psicologia (2006), dá-nos a saber a seguinte definição, que refiro na íntegra abaixo:



“MEMÓRIA – Retenção de aptidões e informações recebidas através de processos de aprendizagem, abrangendo quatro operações fundamentais: decorar, reter, recordar e reconhecer explicitamente”.

                                                            

                                                          (p. 203)





O mesmo dicionário elenca vários tipos de memória. No entanto, apenas dois tipos me interessam para efeito de discussão e esses dois tipos não se topam na referida obra, mas no livro Inteligência Multifocal – Análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores – do psiquiatra Augusto Jorge Cury. (Está aí um aspecto de minha personalidade que vim a desenvolver com a maturidade intelectual: não consigo escrever sobre temas intrigantes, sem algum embasamento teórico; por isso, desenvolvi o hábito de me cercar dos livros, a fim de que o que eu afirme não seja nem equivocado, nem superficial). É claro que o equívoco está sempre presente no próprio processo de se fazer da linguagem. Todo dizer traz o equívoco em potência. De qualquer modo, o superficial, quando não é previsto por um código tácito de comportamento ou convivência, me incomoda.

Há, portanto, dois tipos de memória, consoante ensina Cury: a memória existencial e a memória de uso contínuo. O conceito é de fácil compreensão, conforme veremos (e bastante elucidativo, porque confirma nossas intuições sobre como experienciamos no presente o que vivemos no passado, quando resgatamos nossas experiências na memória). A memória existencial diz respeito às experiências vividas e que são registradas; a memória de uso contínuo inclui as informações disponíveis para uso e que são continuamente rearquivadas, tais como endereços, número de telefones, senhas, fórmulas de matemática, trechos de poemas, etc. O acesso a essas informações é mais fácil e imediato porque elas estão sempre disponíveis para uso contínuo. Claro é que, uma vez não sejam frequentemente usadas, tais informações tenderão a se situar em zonas na memória cujo acesso se tornará mais difícil.

Há uma passagem interessante, em que Cury compara a natureza da memória humana à forma de funcionamento da memória de um computador, com vistas a tornar patente no que diferem uma da outra. Cuido oportuno citá-la:



“O processo de arquivamento da memória humana não é segmentado como nos computadores. Nestes, os arquivos são segmentados e as informações são arquivadas em sistemas de códigos ou endereços. Nos computadores procuramos as informações através de rígidos e engessados sistemas de códigos, da mesma forma como procuramos um livro numa biblioteca. Na memória humana não ocorre assim, sua leitura não é unidrecional mas multifocal. Nela, ao contrário, dos computadores, os arquivos têm canais de comunicação entre si. (...)”.



(p. 81)





Não me alongarei nos pormenores da teoria multifocal da mente, proposta pelo autor. É preciso reter o essencial, nessa passagem: as experiências arquivadas estão inter-relacionadas e o acesso a elas na memória é operado por um processo de leitura (interpretação). Por isso, um pequeno gesto de uma pessoa pode desencadear reações de alegria, de ansiedade, já que são ativados em nossa mente, pela memória, conteúdos de experiências importantes de nossa história pessoal. O cheiro de um perfume pode nos provocar sensações de bem-estar e alegria ou de raiva, porque pode nos remeter a experiências agradáveis ou não.

O mais interessante ainda está por vir. E nos assoma à consciência na leitura do subtítulo “O Passado não é lembrado, mas reconstruído”, que se acha na página 82 do trabalho do autor. Não há uma recordação das experiências do passado, mas uma interpretação mediante a qual elas são reconstruídas em nossas mentes.



Não nos lembramos das experiências originais  do passado; sempre reconstruímos interpretativamente essas experiências a partir da leitura multifocal da história intrapsíquica e dos sistemas de variáveis intrapisíquicas do presente que atuam psicodinamicamente nessas experiências”.



(p. 82)



Que a ignorância sobre o que é leitura multifocal e o que são essas variáveis intrapsíquicas não nos perturbe a compreensão. Não tenho a intenção de esclarecê-las, porque me estenderia demais. O fato é que o acesso às experiências vividas passa por um filtro interpretativo e é passível de toda sorte de distorções. O essencial das experiências se perdeu. Ou, como escreve Cury, “(...) a história existencial (intrapsíquica) está morta essencialmente na memória” (ibid.id.). A realidade essencial das experiências vividas sofreu “o caos psicodinâmico”. Assim é que



“O primeiro beijo, o primeiro diploma, o primeiro desafio, o primeiro salário, a primeira derrota, nunca mais são resgatados de maneira pura, de maneira tão intensa. Toda “recordação” tem um débito emocional em relação à experiência original (...)”.



                                                                (ibid.id.)



É por isso que o mais atroz dos sofrimentos não causará o mesmo impacto doloroso que experimentamos, quando sua “lembrança” (não há lembrança, a rigor) ainda é recente, depois de alguns anos do evento que o desencadeou ter ocorrido. Também é por isso que a emoção de alegria em experiências de amor, quando resgatadas, não exercerão sobre nós a mesma intensidade emocional. A formação de nossa personalidade depende do trabalho de leitura de nossas experiências subjetivas e sociais na memória.

Por que as experiências do passado não podem ser recuperadas essencialmente? Por que não são elas experienciadas na memória da mesma forma que as experienciamos realmente? Porque a memória visa à produção contínua de novas experiências, ideias, pensamentos e emoções. O apagamento do essencial das experiências do passado, ou seu anuviamento, é necessário para que não só a personalidade se desenvolva, mas também para que a inteligência se construa. Cury daí extrai um questionamento:



“Já pensou se pudéssemos resgatar o passado exatamente como ele é e se tivéssemos, ainda, a capacidade plena de lembrar de todas as experiências contidas na memória? Isso poderia paralisar a produção de novas experiências, o que engessaria o desenvolvimento da inteligência”.

                                                   

                                                          (p. 83)



A “morte” das experiências (pensamentos, emoções), ou seja, seu arquivamento na memória, viabiliza novas oportunidades de releituras da memória, engendrando novos pensamentos e emoções. A memória, ao ler o passado, permite a produção de novas experiências e informações. E o “eu”? Que influência sofre nesse processo? Vou-me ocupar do conceito de eu, mais adiante. Vale, porém, notar que, no processo de leitura da memória, o “eu sou” (que compreende as experiências do presente) se desorganiza e entra a fazer parte da memória, tornando-se o “eu fui histórico”. Esse “eu fui” é a história intrapsíquica de cada um de nós. Ele influencia o “eu sou”. Ao longo de nossas experiências de vida, o “eu sou” torna-se continuamente o “eu fui histórico”, mas é também reorganizado continuamente, tornando-se um “novo eu sou”. Há um contínuo reestruturar-se do “eu sou”. Finalmente, atentemos nas palavras seguintes de Cury:



“A cada momento em que resgatamos e reconstruímos uma experiência do passado, nós o fazemos de maneira diferente, com proximidade ou grande distanciamento em relação às dimensões intelecto-emocionais da experiência original. É por esse motivo que nossas recordações da interpretação reproduzem de maneira diferente as experiências do passado nos diversos momentos em que as recordamos. Em determinado momento, podemos recordar [ entenda-se “reconstruir] uma experiência de angústia existencial vivenciada no passado, ligada a uma perda, a uma frustração psicossocial ou a uma dificuldade socioprofissional, etc., e ficarmos comovidos com ela e, em outro momento podemos recordá-la sem grandes emoções. Uma mãe pode recordar a perda de um filho com grande sofrimento num determinado momento e, em outro momento, recordá-la sem grandes dores emocionais.”



                                                                (p. 85)





É lugar-comum o afirmar que nossa personalidade é construída nas nossas relações com o meio. Os outros significativos (pais, avós, professores, etc.) são co-responsáveis pela constituição de nossa personalidade. Mas é sempre bom lembrar que o indivíduo não é inteiramente condicionado, que sua história intrapsíquica não é completamente plasmada nas relações com esses outros significativos. Ensina Cury que há “múltiplas variáveis intrapsíquicas” em ação no processo de construção da histórica intrapsíquica de um indivíduo.



Agora, posso já pavimentar novos caminhos verbais, fazendo recair as expressões de meu espírito sobre o “eu”. Para considerar o que significa o “eu”, tomarei a mim mesmo como referência. Dizer que mudamos é clichê. Mudamos sim; é fato incontestável. As fotografias o provam, o espelho não mente. Ou será que mente? Lembro que, quando  sentimos o corpo, forjamos dele uma imagem. A experiência nossa do próprio corpo é uma experiência imagética. Ensina J. D Nasio,



“(...) sempre que sentimos nosso corpo, o vemos ou julgamos, estejamos certos, forjamos dele uma imagem deformada, inteiramente afetiva e resolutamente falsa. Para resumir, nunca percebemos o nosso corpo tal como é, mas tal como o imaginamos; o percebemos como fantasia, isto é, mergulhado nas brumas de nossos sentimentos, reavivado na memória, submetido ao julgamento do Outro interiorizado e percebido através da imagem familiar que já temos dele”.



                                                          (p. 63)



Isso explica por que muitas mulheres se sentem gordas, quando não o são; ou, em casos patológicos, como na anorexia, uma mulher possa ver-se como gorda, quando, na verdade, suas coxas e quadris são puros pele e osso.

Ah sim! A imagem! A interpretação e as distorções daí resultantes! Inevitáveis! E o Outro, que interiorizamos e que se torna o juiz de nossos comportamentos. Forjamos uma imagem exagerada do corpo; fazemos dele uma ideia falsa.  Parece que o espelho mente. Mas é claro que mudamos...

Nós mudamos – é fato -, mas quase sempre não apreendemos essa mudança. Refiro-me à mudança psico-emocional. Nos últimos oito anos, eu atravessei períodos intensos de mudança, não sem grande dose de sofrimento. Mas não é do sofrimento que me ocuparei. Não é possível compartilhar sofrimento; podemos comunicá-lo enquanto experiência, mas seu conteúdo não é partilhável, porque não pode ser sentido. Cada qual tem sua dor e sabe qual é sua medida, porque a sentiu. Um sofrimento comunicável nunca é um sofrimento sentido.  É da mudança que se trata. E essa mudança envolve minha avidez de conhecimento, minha relação visceral com os livros (o deleite com a leitura), minha visão sobre o amor, a assunção e anunciação do ateísmo, a produção poética, a escrita, a convivência, as amizades ou ausência significativa delas. A mudança compreende todo esse conjunto de experiências. Não pretendo me deter em cada uma delas. Talvez, não consiga dar conta de todas. Por isso, escreverei sem reuni-las numa ordem que me permite submetê-las rigorosamente à avaliação.

Divago... Uma pergunta arranha-me a alma: O que é o Eu? Ou o ego, de Freud. A designação pouco importa. Fiquemos com o Eu. Está aí uma questão com a qual deveríamos nos deparar a todo momento, porque o Outro se impõe à nossa presença quase sempre. E esse Outro é também um Eu. Se para muitas pessoas custa apreender seu próprio Eu (digo, muitos não são dados ao autoconhecimento, à introspecção), é forçoso que elas não só reconheçam uma outra mente, mas também um outro Eu diante do qual constroem sua identidade. Como essa é uma das questões com que me debato, decidi comprar um dicionário de psicologia. E lá encontro, no verbete Eu uma série de perspectivas teóricas sobre esse constructo. Duas definições são apontadas como fundamentais: a) o Eu como o sujeito, o agente, a pessoa individual ou uma região específica do ser; b) o Eu como indivíduo que se revela a si mesmo, de uma dada maneira. Ele é o gestor da psique, mas não é sempre o responsável por todos os pensamentos conscientes; alguns pensamentos que assomam à consciência, lhe escapam ao controle. Ou não é verdade que nos ocorrem pensamentos negativos que não queríamos? E nos culpamos! Mas o Eu não é culpado da presença deles. Não é difícil ver que o Eu é responsável pelas nossas relações com o mundo; mas esse Eu é corporificado, encarnado; não existe sem um corpo. Também ele não é produto de uma mente abstrata, mas é efeito de um cérebro. A mente é um processo; na verdade, a mente é o que o cérebro faz. O cérebro produz a mente, ele é um processador de informações. A mente é uma espécie de órgão. Chomsky fala em “órgão mental”. A mente é constituída de um conjunto de órgãos mentais ou módulos mentais, não diretamente acessíveis a olho nu, mas cada qual organizado segundo um designe que o especializa para interagir com o mundo.

Esse Eu é um sentimento, um sentimento de si mesmo. Qual é a substância desse Eu? O psiquiatra - já citado – J. D. Nasio escreve ser ela a própria imagem do corpo. E explica:



“Não somos nosso corpo em carne e osso, somos o que sentimos e vemos de nosso corpo: sou o corpo que sinto e o corpo que vejo. Nosso eu é a ideia íntima que forjamos de nosso corpo, isto é, a representação mental de nossas sensações corporais, representação mutante e incessantemente influenciada por nossa imagem do espelho”.



(p. 54)



As citações se acham no livro Meu corpo e suas imagens (2009). Mais adiante, ficamos sabendo que o Eu é uma entidade essencialmente imaginária. É claro que ele é um sentimento de existir (e chegarei a esse ponto logo). Mas o eu é indissociável do corpo, ou melhor, da imagem do corpo. Nasio nos ensina que o Eu se compõe de duas imagens corporais diferentes, embora indissociáveis: “a imagem mental de nossas sensações corporais e a imagem especular da aparência do nosso corpo” (p. 55). A sensação de ser Eu decorre do sentir/ viver o meu corpo e vê-lo movimentar-se através de um espelho.

O interessante é que, uma vez sendo um produto imagético, a apreensão do Eu se torna quase impossível ao próprio indivíduo, pelo menos o é integralmente. Corrobora essa ideia o seguinte trecho de Nasio:



“Sentir viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância do que sou e de onde venho. O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela profusão de minhas sensações internas e pela visão do meu corpo, sei que existo mas não sei que sou”.



(p. 55)





O Eu é o “lugar de desconhecimento”, segundo Lacan. O autor, mais adiante, definirá imagem, arrolando vários tipos. Para efeito de compreensão da natureza do Eu, segundo o autor, devemos entender por imagem uma representação mental que se imprime na superfície de nossa consciência ou do nosso inconsciente. A imagem é, basicamente, sempre um duplo,



“ (...) pode existir seja em nós, em nossa cabeça, à maneira de uma representação mental consciente ou inconsciente, seja fora de nós, visível sobe uma superfície, ou ainda posta em movimento num comportamento significativo”.



(p. 66)





Não escapamos à interpretação. Isso é notável, mesmo quando consideramos a natureza dessa entidade psíquica a que se chama Eu. Não atingimos a sua essência, quer porque ela está velada pela imagem construída de si por ele mesmo, seja porque a essência não é senão a própria imagem construída. Avulta-me no espírito uma dúvida! O autor entende a imagem do corpo como a própria substância do nosso eu (p. 54). Que será substância para o autor? Terá ele tomado esta palavra no seu sentido estritamente filosófico ou ordinário. Uma consulta ao Dicionário Básico de Filosofia, de Danilo Marcondes, não me ajudou muito. Por substância, devemos entender aquilo que é em si, aquilo cuja realidade não depende de mais nada e que serve de suporte para atributos. Spinoza postulava que a única substância era Deus, porque ela não dependia de mais nada para ser. A essência é “o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é, ou que faz dela aquilo que ela é” (p.93). O exemplo oferecido a respeito de Aristóteles lança alguma luz. Assim é que uma cor branca só existe se houver uma coisa que tenha essa cor. A cor em si não existe fora da substância. A substância é a realidade imediata, é a coisa mesma que tem a cor branca. Felizmente, sem mais delongas, encontrei em outro dicionário a resposta que procurava. Em Dicionário Oxford de filosofia, há no verbete substância a identificação desta com o conceito de essência, pelo menos é esta uma das formas de concebê-la (mas não a única – vimos que pode ser aquilo que existe por si mesmo, sem de nada mais depender).

Parece-me, então, correto admitir que a essência (ou substância) do Eu é a imagem. Imagem do corpo, diga-se bem. Porque o corpo é a primeira substância. Escreve ele, à página 63, “não vamos nos iludir, a coisa mais importante para nós é o corpo” (p. 63). A imagem do corpo é a base para a construção da imagem do Eu. Todavia, é imperioso lembrar que o Eu se constitui de “um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente contraditórias” (p. 55).

Então, esse Eu que sinto mudou significativamente ao longo desses últimos oito anos. (a palavra significativamente é importante aí, porque sinaliza para uma mudança cujo efeito assemelha-se a uma espécie de libertação, sem qualquer conotação mística ou transcendente). A mais profundamente perturbadora libertação foi a ruptura total com a crença em Deus. Trata-se de uma experiência que já externei alhures, mas cujo conteúdo emocional jamais poderá ser experimentado por quem dela toma conhecimento em meus textos. O sentir não é acessível. O que senti e o que sinto ainda hoje não pode ser verbalizado; e mesmo que pudesse, jamais poderia ser sentido reciprocamente. O sentir é singular e está intrinsecamente relacionado à minha história intrapsíquica, enfim, pessoal. Tem a ver com a aurora de minha vida (que não me herdou revolta, mas uma lucidez inacessível a muito poucos). Liberto das ilusões da religião, da tirania de Deus (que não é senão um estratagema psicológico para cingir o rebanho a esperanças vãs – o leitor que o comprove por si mesmo lendo o livro “Onde a religião termina?, de Marcelo da Luz, ex-sacerdote católico, conscienciólogo - 

http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2011/05/24/marcelo-da-luz-fala-sobre-seu-polemico-livro-5291.php), 
pude reconciliar-me com esta existência e, sobretudo, me solidarizar com o sofrimento alheio em escala mundial, sem fingir ignorá-lo. Pelo menos, o egoísmo religioso foi abandonado em mim. A leitura de Feuerbach (Preleções sobre religião) ajuda-nos a compreender a natureza desse egoísmo. (Deus faz isso ou aquilo por mim – estranhamente nada faz pelos milhões de miseráveis deste planeta, nada faz para evitar que uma criança inocente morra vítima da dengue ou de qualquer outra moléstia!).

A quebra do encanto (seja religioso, seja do amor) acompanhou-se de um profundo espanto diante da existência, de seu absurdo. Esse Eu se defronta incessantemente com o Mistério. Cientistas anunciaram a descoberta (embora o resultado ainda não seja concluso) de uma partícula chamada bóson de Higgs (em homenagem a Peter Higgs, cientista que postulou a existência dessa partícula, pelo menos teoricamente, há décadas). Teria ela dado origem ao Universo. Não mais a água, de Tales; nem o ar de Anaxímenes; tampouco o aiperon (um princípio abstrato ilimitado e indefinido que subjaz à natureza) de Anaximandro. Não mais o Tao, de Lao Tse, nem o Brâman, dos hiduístas. Não mais Deus, dos judeus, cristãos e mulçumanos (embora os cientistas tenham-na batizado de “partícula de Deus” (provavelmente, por causar mais visibilidade na mídia e mais interesse popular do que o nome “bóson de Higgs”, cuja compreensão depende de que saibamos que Bóson refere-se à estatística formulada por Satyendranath Bose, físico indiano e Albert Einstein. Essa estatística aplicava-se a fótons e mésons, especialmente). É claro que precisei pesquisar isso, porque ignorava completamente quem era Higgs, quem foi Satyendranath Bose; e continuo ignorando como opera a estatística de Bose-Einstein, que se situa no nível da física quântica (obscura em si).

A partícula de Higgs é uma das partículas fundamentais que permitem a existência do Universo ou de tudo que existe. Mas sempre podemos nos indagar sobre a causa primeira, retrocedendo ad infinitum. Mas Deus certamente não é a solução adequada, além de todos os problemas que essa hipótese acarreta (escusa mencioná-los), persistiria ainda a pergunta: quem criou Deus? E se nos apressássemos em admitir que Deus é incriado, vale perguntar “por que não podemos dizer disso da partícula de Higgs?” Por que não podemos dizer isso do próprio Universo? Por que não um Universo eterno? Estamos fadados, pela própria estrutura de nossa cognição, a pensar em termos de causa-efeito. O Universo tem uma causa? Se sim (“para tudo que existe há uma causa”), que causa é esta? Se Deus se demonstrou claramente uma hipótese insustentável, então devemos investigar a validade de outra hipótese. Não temos evidência da existência de Deus, então buscaremos evidências de outra causa. A ciência nos oferece algumas. Talvez, Hegel estivesse errado (e ele parece ter errado sob muitos aspectos), ao postular que o real é racional. Talvez, não seja sempre racional. Talvez, nossa razão nos impõe limites, esquemas de raciocínio que não parecem eficazes para pensar sobre a Origem de Tudo. A fórmula “para todo efeito tem de haver uma causa” ( ou, nos termos da razão suficiente de Leibniz, “para todo fato que ocorre há uma razão pela qual esse fato ocorre”, e ocorre de uma determinada maneira e não de outra) pode ser inadequada quando queremos buscar entender como o Universo começou a existir.

Um pensamento explosivo sacudiu minha alma agora! Talvez, a vida não seja senão uma fração da eternidade do Universo. O certo é que cada Eu passará. Nós passaremos, mas o mundo continuará, a vida continuará, a despeito dos barulhos apocalípticos de certos segmentos evangélicos aqui e em outros cantos do mundo. Se a previsão da ciência estiver correta, o planeta sucumbirá daqui a bilhões de anos (se não me equivoco quanto à estimativa feita pelos cientistas). De qualquer modo, nem eu nem o leitor estaremos aqui. O Eu passa; o mundo fica.

Sobra-nos o sentimento de Eu em face do Mistério. Estamos condenados a construir sentidos, sempre muito frágeis. Desiludi-me do amor, porque não careço mais dele. Não carece sobrecarregá-lo com ideais. Quando o fazemos, ele se esfacela, porque é frágil. Sim, o amor é frágil, porque a vida é frágil. E descobrimos que tudo que é frágil carece de cuidado, assim devemos proceder com os bebês. Dispensamos-lhes cuidados, dada a sua fragilidade. Fragilidade e fraqueza são o mesmo. No final das contas, inclinamo-nos às coisas frágeis e às que exibem fraquezas e descobrimos que elas são mais valiosas do que o diamante. Quanto ao diamante, é interessante saber que a Natureza tem sua poesia: os átomos de carbono produzem tanto cristais de diamante, famosos por sua dureza, quanto cristais de grafite, caracteristicamente macio. Isso dependerá da forma que assumam; para cada formação de átomos de carbonos, uma substância: dura, como o diamante, ou macia, como o grafite.

Tanto o conhecimento como o amor são valores que nos instam a partilhar. Viver é doar-se, ainda que um pouco; os que não se doam vivem profundamente infelizes. O Eu precisa dar testemunho de si; que seja verdadeiro e significativo é o que desejamos. Precisamos deixar pegadas, deixar rastros nessa existência fugidia, fugaz e absurda. A profundidade das pegadas e a extensão de nossos rastos dependerão do grau de nossa imersão nesse existir que não é senão um devir. Porque o “tempo não para”, o mundo não cessa de girar a roda da vida...  E precisamos seguir em direção à morte inevitável... na contramão ou no fluxo sempiterno...