O espírito antijudaico cristão
Malgrado
o cristianismo ter-se originado do judaísmo, o cisma sucedeu no momento em que
cristãos cuja atividade se seguiu à morte de Jesus passaram a propalar
ensinamentos antijudaicos. Como se deu a separação? É disso que me ocuparei
neste texto. Todavia, não me limitarei à exposição da história dos
acontecimentos que levaram o cristianismo a se fortalecer e a se separar
definitivamente do judaísmo. À descrição dos eventos subjaz um interesse
argumentativo, qual seja, defender a tese segundo a qual quanto mais pudermos
conhecer a história do cristianismo tanto menos dispostos a seguir suas
doutrinas ficaremos. Á medida que avançamos nossos estudos com o objetivo de
entender como pôde o cristianismo, depois de 2000 anos, chegar a predominar
sobre as demais religiões no mundo, rompendo as fronteiras do Mediterrâneo
Oriental (Oriente Médio) para tornar-se a religião oficial do Império Romano
(em 392 d.C.), e daí estender sua influência à Europa na Idade Média, para
chegar até nós graças às ações de missionários na era dos Descobrimentos,
deixamos de atribuir a essa religião qualquer marca divina; vemos senão as
marcas, não raro atrozes, das ações humanas. A despeito dos sofrimentos e
mortes à custa dos quais o cristianismo se expandiu para todo o mundo, ao longo
desses vinte séculos, não encontramos nenhum sinal de Deus. A história se
desenvolveu sem o seu interesse ou influência.
Antes
de me deter a apresentar como se deu o desenvolvimento do antissemitismo
cristão, passo a considerar, em linhas gerais, a história judaica. Quem são os
judeus? Quando e onde essa religião foi criada e se desenvolveu? Veremos que a
história judaica é caracterizada por opressão e perseguições perpetradas por
outros povos.
1. O Judaísmo: uma breve incursão histórica
Embora
não se saiba quando o judaísmo surgiu, tampouco como surgiu, seu início pode
ser situado num vasto e remoto período de tempo recoberto pela Bíblia hebraica
(o Antigo Testamento da Bíblia cristã). Duas figuras foram determinantes do
surgimento do judaísmo: o patriarca Abraão e, posteriormente, Moisés. Abraão
migrou da Mesopotâmia (atual Iraque) para Canaã, situado no Mediterrâneo
Oriental. Forçados pela fome, seus descendentes tiveram de migrar de Canaã para
o Egito, onde se tornaram escravos. Mais tarde, o líder Moisés os conduziram de
volta para Canaã, que, segundo acreditavam, era a terra prometida a eles por
Deus. Foi durante o trajeto que Moisés recebera de Deus as tábuas da lei
judaica, no monte Sinai. Tal acontecimento teria ocorrido no séc. XIII a. C.
Sabemos, contudo, que não há comprovação histórica desse episódio, tampouco se
pode ter certeza da existência do próprio Moisés. Não obstante, foi naquele
momento que se estabeleceu o pacto entre Deus e o povo judeu, que passaria a
ser considerado o povo eleito por Deus. É lícito dizer que a essência do
judaísmo consiste nesse pacto ou aliança entre Deus e o seu povo. A ironia
começa a mostrar suas malhas pungentes, pois que, depois de um período em que
os judeus gozaram de autonomia sob o regime dos reis Davi e Salomão, vieram as
conquistas e as perseguições.
Em 586 a.C., o reino de Judá, em
Canaã, veio a ser invadido e conquistado pelos babilônios, durante o reinado de
Nabucodonosor. Eles destruíram o Templo em Jerusalém e submeteram os judeus ao
exílio na Babilônia, onde alguns judeus começaram a escrever os primeiros
capítulos da Bíblia hebraica. Nos séculos que se sucederam, os judeus sofreriam
com uma série de invasões por povos estrangeiros, que os subjugariam. Em 538 a.C., os persas, que
viriam a conquistar a Babilônia, permitiram que os judeus voltassem para seu
lugar de origem. Tendo estado sob o jugo grego no séc. II, os judeus se
rebelaram, não sem a liderança de Judas Macabeu. A vitória lhes permitiu
edificar um novo Templo em Jerusalém e estabelecer uma nova dinastia. Mas em 63 a.C. a dinastia sucumbiu ao
poder dos romanos, e o Templo foi derrubado. Durante o domínio romano, o rei
Herodes o Grande (37-34 a.C.),
reconstruiu o Segundo Templo com pompa, mas quando os romanos determinaram que
seus próprios funcionários governassem a província da Judeia, deu-se uma nova
rebelião judaica. Em 70 d.C, no entanto, o poder romano sobrepujou as forças
rebeldes judaicas, e o Segundo Templo, então reconstruído, foi derrubado. Não
restou aos judeus senão desistir da empresa política e dedicar-se ao
desenvolvimento do saber. Grupos como os fariseus vieram a produzir muitos
eruditos insignes, tais como Hillel, um liberal judeu, e Shammai, cujo rigor
com que interpretava a lei judaica era notório.
Pudemos
ver até aqui que a história judaica veio se desenvolvendo em períodos em que se
intercalaram relativa prosperidade e sofrimento. Mas o fardo judaico não
findaria. O ano de 392 d.C (séc. IV)., quando o cristianismo tornou-se a
religião oficial do Império Romano, sob o regime de Teodósio, inauguraria uma
era de intensas e incessantes perseguições aos judeus. Àquela altura, os
cristãos já contavam com uma Igreja centralizada e forte. Mais adiante,
pormenorizarei como se desenvolveu o antissemitismo cristão. Por ora, basta-nos
saber que as comunidades cristãs passaram a perseguir os judeus, expulsando-os
de vários países. Eles também foram forçados a se converter ao cristianismo,
perderam empregos com melhor remuneração e tornaram-se comerciantes e agiotas.
Outros mais viviam na pobreza, embora tivessem se tornado sábios notáveis.
Durante toda a Idade Média, os judeus tiveram de suportar uma vida marcada por
perseguição na Europa cristã. Houve, contudo, judeus que alcançaram
prosperidade econômica com o comércio e se beneficiaram com viagem e exílio,
quando puderam participar da diplomacia internacional.
Sob os
auspícios do Iluminismo, o povo judeu teve seus direitos reconhecidos, nos
séculos XVIII e XIX. Não obstante, alguns Estados ainda coagiam alguns judeus a
se converter ao cristianismo. Havia pensadores, contudo, que relutaram contra a
conversão, permanecendo fiel à sua tradição religiosa. O rabino alemão Abraham
Geiger estava entre os eruditos que impulsionaram o movimento de reforma da lei
judaica. A busca por uma convivência pacífica com seus vizinhos levou os judeus
a abandonarem certos preceitos que tolhiam a boa convivência com os não-judeus.
Apesar do esforço para adequar o judaísmo à era moderna, alguns judeus
rejeitaram a reforma e voltaram a adotar as práticas e valores tradicionais do
judaísmo ortodoxo; outros aderiram ao judaísmo conservador. No final do século
XIX e início do século XX, um segmento judaico acalentava a esperança de
retorno à pátria O movimento ficou conhecido como sionismo (referência a Sião, o
nome bíblico de Jerusalém).
Todavia,
foi também no fim do século XIX que o antissemitismo ganhou novas feições.
Desde então, os antissemitas dirigiam sua intolerância não mais para a religião
dos judeus, mas sim para o que eles entendiam ser a raça judaica. Assim, ser
judeu não significava mais, para o intolerantes, pertencer a uma religião, mas
ser uma raça ou a uma etnia. De traço cultural, o judaísmo passou a definir um
tipo humano, na base de traços biológicos.
Decerto,
o aspecto mais aterrador e abominável desse antissemitismo viria a
manifestar-se na II Guerra Mundial, com a ascensão do nazismo. Em 20 de janeiro
de 1942, se daria “a solução final” para o que se considerava o problema
judaico. Na Europa oriental, campos de concentração recebiam milhões de judeus
para trabalhar até a morte. Caso resistissem, seriam mortos em câmeras de gás.
Corpos foram queimados em grande crematórios operados pelos próprios judeus. Em
1945, cerca de 6 milhões de judeus foram mortos, num evento genocida que ficou
conhecido como Holocausto. O Holocausto foi a consequência final e hedionda da
ideologia nacional-socialista alemã que rezava a superioridade da raça ariana
(caucasianos brancos) sobre as demais, mormente sobre os judeus.
Em 1945,
fundou-se o Estado de Israel, e os judeus puderam retornar a casa, onde se
estabeleceram. Muitos se comprouveram com a possibilidade de adorar a Deus na
terra que lhes havia sido prometida por ele. Assim, os judeus edificaram uma
nação forte. Mas os desafios e as tragédias ainda perduram na convivência com
seus vizinhos árabes da Palestina.
Vale
observar que, a despeito de a religião judaica fundar-se na crença numa aliança
entre Deus e o seu povo (os próprios judeus), que supõe a proteção daquele, a história
judaica alimenta-nos, ao menos, a suspeita da existência do próprio Deus. É
inegável que não houve a intervenção de Deus com vistas a poupar os judeus de
seus pungentes sofrimentos. Isso me leva a pensar na possibilidade de
raciocinar no sentido de que, se faltam evidências para atestar a existência de
Deus, sobram fatos que nos permitem negá-la. Não cabe aqui desenvolver uma
argumentação nesse tocante. No entanto, sugiro que os ateus repensem a ideia de
que o ônus da prova recaia apenas
sobre os crentes. Embora comumente se admita que a prova, nesse caso, se
imponha aos que acreditam na existência de Deus, não há razões para dizer que
não se possa valer-se de evidências que indicam a inverdade subjacente à proposição
‘Deus existe’. Eles podem não se sentirem obrigados a provar a inexistência de
Deus, mas podem (e devem, quando necessário) esforçar-se por mostrar a grande
improbabilidade de existir um deus com as qualidades alegadas para o Deus
judaico-cristão. Insisto em que a
crítica ateísta deve ser orientada para o confronto entre o que a tradição
judaico-cristã nos ensina sobre Deus e o modo como o mundo funciona. A
argumentação deverá partir de considerações ontológicas prévias sobre Deus.
Valeria cotejar a ideia de Deus com a ideia de Papai Noel, tendo em conta o
pressuposto de que ambos são entidades imaginárias, ou seja, desprovidas de
matéria. Nem um nem outro ocupa espaço.
Proponho
aqui uma breve digressão. Vimos que os judeus sofreram com perseguições, ao
longo de muitos séculos, a despeito de eles haverem feito um pacto com Deus.
Partimos dos pressupostos de que Deus existe e de que o pacto em que
acreditavam os judeus tenha ocorrido. O pacto supõe um compromisso de Deus com
os judeus, no sentido de livrá-los do sofrimento. Mas o sofrimento os atingiu e
eles, por vezes, se viram obrigados a imigrar para outras regiões, a fim de
escapar à opressão estrangeira. Mas esse Deus dos judeus é grandioso,
todo-poderoso. Por que então não fez nada para ajudá-los? Teria ele então
rompido com o pacto (os cristãos posteriores advogaram que sim). Mas por que
razão deus rompera com o pacto? Ficou ele magoado, conservou rancor por alguma
ofensa perpetrada pelos judeus? Mas, se é assim, não nos parece ser esse Deus
bastante humano, a tal ponto de se zangar e se magoar com uma possível ofensa?
Deus não é misericordioso? Em suma, quero dizer que seja lá qual fosse a razão
por que Deus rompera com o pacto, a
forma como ele pune os judeus (ou seja, abandonando-os à própria sorte) é
demasiado humana e, portanto, desconforme aos padrões de um Deus cuja sabedoria
é infinitamente superior à humana. Caberia fazer ver uma reflexão cuidadosa
sobre a psicologia de Deus. De qualquer modo, um Deus que pune seu povo eleito,
ignorando completamente as grandes dificuldades por que ele viria a passar, por
uma suposta desobediência deles à sua lei, não se comporta senão
semelhantemente a como se comportaria um ser humano. Tal indiferença é
incompatível com um Deus grandioso, como o é o Deus judaico-cristão.
2. Uma religião antijudaica
O
limiar da Igreja cristã no século IV não fora próspero. De 303 a 311, os cristãos
sofreram uma das piores perseguições de sua história. Milhares deles foram
mortos. Naquela época, ainda predominava o paganismo dos romanos. Tal
estado-de-coisas mudaria com a conversão de Constantino ao cristianismo em 312.
O Imperador passaria a acreditar-se um servo de Deus e instauraria uma política
de tolerância às práticas religiosas
pagãs, embora as considerassem falsas ou produtos da superstição. Portanto,
Constantino não fora um perseguidor, muito embora favorecesse amplamente a
Igreja cristã. Sua conversão ao cristianismo foi sincera. Dois anos antes de
sua conversão, as perseguições aos cristãos já haviam cessado, já que, àquela
altura, o cristianismo já gozava do mesmo status social que o paganismo.
Claro é
que Constantino exerceu um papel determinante do nascimento da cristandade.
Coube a ele derrotar um suposto perseguidor dos cristãos, chamado
Licínio. Com a morte de Licínio, pôde Constantino restabelecer a unidade do
Império. Foi ele quem produziu, portanto, as condições sócio-políticas que
favoreceram o estabelecimento e a predominância da religião cristã. Consoante
nos ensina Paul Veyne, em Quando nosso
mundo se tornou cristão,
“O cristianismo dispunha daí em diante
desse imenso império que era o centro do mundo e que se considerava com a mesma
extensão da civilização. Aquilo a que se chamará por longos séculos de Império
Cristão, sim, a Cristandade acabava de nascer.”
(p. 19)
O
Imperador instaura uma Igreja poderosa. Esse acontecimento foi determinante da
extensão do domínio da religião cristã para todas as práticas da vida. Assim, o
cristianismo tomou a forma de uma Igreja rigidamente hierarquizada fundada no
princípio da autoridade. Assim, escreve Veyne:
“(...) o cristianismo tinha uma
particularidade que o tornava único no mundo: essa religião era também uma
Igreja, uma crença exercendo autoridade sobre aqueles que dela compartilhavam,
apoiada sobre uma hierarquia, um clero superior em natureza ao laicato num
quadro geográfico. Lado a lado com o amor, com o ascetismo e com uma pureza
desinteressada por este mundo de cá de baixo, a psicologia dos cristãos
incluirá também o gosto pela autoridade”.
(p. 65)
Não nos
surpreendamos com o suposto paradoxo da conciliação da pregação do amor com o
gosto pela autoridade. Lembro que os dois pilares dos ensinamentos de Cristo
foram “amar a Deus sobre todas a coisas” e “amar ao próximo como a si mesmo”.
Tais enunciados tomam a forma de injunções. A elas subjaz o princípio de
autoridade, tão caro à religião cristã. Esse princípio permitiu não só que o
amor fosse imposto de fora, mas extrapolado nos padrões humanos. Não nos
surpreende que o amor cristão seja inatingível ao ser humano. Colocar Deus
acima dos valores essenciais à vida, como pais e família, e amar a um estranho
como podemos amar a nós mesmos é, sem dúvida, uma atitude que excede à natureza
humana.
Podemos
agora compreender como se deu a separação entre o cristianismo e o judaísmo.
Trago à cena as palavras de Bart. D. Ehrman, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?
“(...) como a religião inteiramente
judaica de Jesus se transformou tão rápido em uma religião de gentios. Como o
cristianismo deixou de ser uma seita dentro do judaísmo e se transformou em uma
religião virulentamente antijudaica em menos de um século?”
(p. 255)
Sabe-se
que a passagem do cristianismo de seita para religião contou com o papel
decisivo de Constantino, que exerceu com fidelidade a essa religião a sua
soberania política. Passemos a entender como o cristianismo se separou do
judaísmo e como veio a tornar-se, após a morte de Cristo, uma religião
antijudaica.
2.1. A identidade de Jesus: um profeta
apocalíptico judeu
Jesus
era judeu. Mais precisamente, um profeta apocalíptico judeu. Os ensinamentos de
Jesus eram afinados com a lei judaica: “(...) não havia na mensagem ou na
missão de Jesus nada que fosse externo ao judaísmo” (p. 255). Ele não tinha a
intenção de fundar uma nova religião. É bem verdade que construiu uma imagem de
Deus diferente do Deus carrancudo e irado do Antigo Testamento. O Deus de Jesus
era caracterizado pelo amor incondicional e misericórdia infinda (muito embora,
paradoxalmente, tenha preparado um lugar de sofrimento para os pecadores:
“Lançai,
pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de
dentes” (Mateus 25:30).
Sabemos,
contudo, que seja lá quem escreveu o evangelho de Mateus, não foi o apóstolo
que teria convivido com Jesus.
É
preciso insistir em que Jesus era filho de pais judeus e fora criado na cultura
judaica. Como profeta apocalíptico judeu, Jesus ensinou que o Reino de Deus
(literalmente) viria a ser instalado na Terra, não sem antes ter Deus
aniquilado as forças do mal. Segundo Jesus, para que as pessoas pudessem entrar
a fazer parte desse Reino, elas teriam de cumprir com as leis judaicas,
especialmente com os dois mandamentos anteriormente referidos: o do amor a Deus
e do amor ao próximo. Era necessário amar a Deus com toda força, com todo o
coração.
2.2. O antijudaísmo cristão
Sucedeu
que os seguidores de Jesus, após sua morte, cuidaram que ele estaria fundando
uma nova religião. A religião de Jesus era o judaísmo, embora interpretada
contrariamente à interpretação dos fariseus e saduceus. Os seguidores de Jesus,
no entanto, não viam assim. Para eles, Jesus estava lançando as bases de uma
nova religião. Com a expansão do cristianismo por todo o mundo, os que não
comungavam das crenças cristãs passaram a ser rotulados de hereges.
Entre
os que insistiam em que Jesus seguia a lei judaica, estavam os ebionitas. Eles
argumentaram que o próprio irmão de Jesus, Tiago, procedia assim. Tiago era o
líder da igreja de Jerusalém. Assim, se a lei diz que os meninos devem ser
circuncidados, então é imperiosa a circuncisão. O Evangelho de Mateus corrobora
a fidelidade de Jesus à lei judaica.
É certo
dizer que Paulo exerceu um papel importante na distinção entre as duas
religiões. Foi ele quem negou veementemente a crença de que seguir a lei
judaica era indispensável para agradar a Deus. Para Paulo, sacrifícios de
animais e remoção de prepúcios não tinham nada que ver com a salvação. Esta só
veria pelo reconhecimento da natureza messiânica de Jesus. Vale dizer que os
judeus não acreditavam que Jesus era o Cristo (ou seja, o messias). Leiamos com
atenção as palavras de Ehrman:
“Paulo e Jesus defendiam a mesma
religião? Essa é uma pergunta histórica fundamental, e é difícil negar a
resposta. Jesus ensinou seus seguidores a cumprir a lei como Deus determinara,
para entrar no reino. Paulo ensinou que seguir a lei não tinha nada a ver com
entrar no reino. Para Paulo, apenas a morte e a ressurreição de Jesus
importavam. O Jesus histórico ensinou a lei. Paulo ensinou Jesus.”
(p.
257)
Paulo não
criou a nova religião, já que ele foi herdeiro das tradições que viria a
defender. Mas, certamente, ele distinguiu entre uma religião de Jesus e uma religião sobre Jesus. Seguidores posteriores a
Paulo desenvolveram ainda mais as crenças do herege convertido. Marcião, um
famigerado teólogo do século II, viria a defender a ideia de que havia dois
deuses: o Deus judaico (um Deus colérico do qual Jesus veio livrar seu povo); e
o Deus de Jesus, fonte do Evangelho (“a Boa-Nova”). Não havia senão antagonismo
entre o Deus judaico e o Deus cristão. Para Marcião, o livro do Antigo
Testamento é produto do Deus judaico e não deveria compor o cânone cristão.
Pensadores
da mesma época de Marcião houve que tiveram uma interpretação contrária à de
Marcião. Barnabé, por exemplo, um dos companheiros de Paulo, advogava que o
Antigo Testamento era um livro cristão. Para ele, os judeus eram ignorantes dos
ensinamentos deste livro. Barnabé culpa os judeus pela ruptura com o pacto que
Deus fizera com eles. Barnabé argumenta que, no momento em que Moisés quebrara
as primeiras tábuas dos Dez mandamentos, deu-se o fim do pacto com Deus. Deus
nunca mais restaurara o pacto com os judeus, passando a estabelecê-lo com os
seguidores de Jesus.
O erro
dos judeus, segundo Barnabé, foi ter interpretado a lei literalmente. Assim,
segundo nos ensina Ehrman:
“Barnabé tem uma impressionante
capacidade de encontrar Cristo e a mensagem cristã nas páginas do Antigo
Testamento. Apenas um exemplo: ele argumenta que a circuncisão, o sinal do
pacto dado ao pai dos judeus, Abraão, sempre foi equivocadamente entendida
pelos judeus como que determinasse que eles deveriam cortar o prepúcio de seus
bebês. Nunca foi isso. Na verdade, circuncisão significa que a pessoa tem de
acreditar na cruz de Jesus. Como Barnabé prova isso? Ele observa que no Antigo
Testamento Abraão coloca seu exército de 318 servos em batalha, mas os prepara
para a vitória primeiramente os circuncidados (Gênesis 14:14; 17:23). Qual é o
significado do fato de que 318 servos foram circuncidados? – pergunta Barnabé.
É um número simbólico. (...) O número 318 é composto das letras gregas tau,
iota e eta. Barnabé destaca que tau, que se parece com a nossa letra t, tem a forma da cruz, e que iota e eta
são as primeiras duas letras do nome de Jesus. A circuncisão não tem a ver com
prepúcios. Tem a ver com a cruz de Jesus.”
(p.
259)
O
antijudaísmo da doutrina de Barnabé é resultado da sua compreensão segundo a
qual os judeus são ignorantes de sua própria religião e o Antigo Testamento é
um livro cristão. O Antijudaísmo cristão viria a fortalecer-se com o passar do
tempo. Autores cristãos posteriores acusariam os judeus de culpados pela
destruição da cidade de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. Deus os teria
punidos por terem matado o seu filho. Outros cristãos reforçaram ainda mais o
já robusto antijudaísmo, afirmando que, na medida em que Jesus era divino e que
os judeus não reconheceram a divindade de Jesus, são os judeus os responsáveis
por matar a Deus.
A
crença no deicídio judaico fora expressa nos escritos de um autor do fim do
século II, chamado Melito. Ele era bispo da cidade de Sardis. Em meados do
século XX, estudiosos encontraram um sermão produzido por ele. O escrito fora
produzido na época do Pessach
judaico, período em que os cristãos também celebravam a Páscoa. Ehrman dá-nos a
conhecer alguns trechos deste escrito. Vejamos um deles:
“ “Ele foi assassinado. E onde foi
assassinado? No centro de Jerusalém! Por quê? Porque ele curava seu manco,
purificara seus leprosos, guiara seus cegos com luz e ressuscitava seu morto.
Por essa razão ele sofreu” (capítulo 72)”
(p. 260)
Antes
de levar a cabo este texto, convém sumariar as cinco formas com as quais os
cristãos rejeitavam o valor do judaísmo:
1º)
Jesus era o Messias (os judeus não pensavam assim);
2º) O
Messias tinha de sofrer pelos pecados das pessoas;
3º) A
morte do Messias representava o modo pelo qual Deus tornava seu povo justo;
4º) A
lei nada tinha que ver com Salvação;
5º) Os
judeus tinham de acreditar em Jesus para não serem rejeitados por Deus.
Para os
cristãos da época, os judeus foram rejeitados por Deus, porque eles não seguiam
a lei corretamente. Eles não mais eram o povo eleito de Deus; Deus, desde
então, fizera um novo pacto, mas com os seguidores de Jesus. É interessante ver
que os cristãos, para corroborar sua crença de que os judeus compreendiam
erroneamente as suas Escrituras, se valiam de trechos delas a fim de
fundamentar sua argumentação.
Encontraremos
em Romanos 9: 11 e, sobretudo, em Romanos 11: 1-26, Paulo refletindo sobre a
questão judaica e defendendo a rejeição do povo judeu. Paulo, contudo, quando
ainda não era cristão, achava os seguidores de Jesus ofensivos. Em João
(19-20), os judeus são considerados culpados pela morte de Jesus.
Em
meados do século II, cresce a virulência com que os cristãos atacavam os
judeus. Justino Mártir e Tertuliano produziram textos nos quais lançava seu
repúdio aos judeus. Insistiram em que eles interpretavam erroneamente o
significado da própria lei e da sua religião, que ignoravam as profecias que
diziam respeito a Jesus, que Deus os rejeitara porque eles rejeitaram seu
próprio Messias. Para Justino, a circuncisão significava apenas um sinal de que
o povo de Deus tinha de ser perseguido. Tratados semelhantes continuaram a
circular mesmo depois do século II.
Com a
conversão de Constantino, sucederam conversões em massa. Assim, no final do
século IV, metade do império era cristã. Também nessa época o imperador
Teodósio proclamou o cristianismo como a religião oficial do império. Estavam estabelecidas
as condições para que o ataque aos judeus, que antes situava-se no âmbito
retórico-discursivo, passasse para o domínio da ação. Vale notar que o
antijudaísmo não existia nos mundos grego e romano, nem mesmo em outras sociedades,
antes do advento do cristianismo. Claro é que alguns autores gregos e romanos
criticavam os judeus, porque lhes parecia ter costumes bizarros, como retirar
prepúcios, não comer carne de porco ou não trabalhar no sábado. Mas é claro
também que eles rejeitavam qualquer pessoa que não fosse grega ou romana; não
eram os judeus um povo especialmente repudiado. Com os cristãos, os judeus
passaram a ser considerados maus e teimosos.
Ao
considerar o que aconteceu quando o cristianismo se tornou, pelo poder de
Teodósio, a religião oficial do Império Romano, ensina-nos Ehrman:
“(...) Desde os primeiros dias da Igreja,
a antipatia em relação aos judeus tinha sido expressa retoricamente; em pouco
tempo se tornou uma questão de ação. Funcionários romanos que tinham se tornado
cristãos levaram a sério o discurso de seus antecessores e viram o povo judeu
literalmente como inimigo da verdade, e devia ser punido por rejeitar Jesus. A
política oficial do império no século IV não exigia a perseguição aos judeus,
mas pessoas no poder, como os governadores cristãos de províncias romanas, com
fequência fechavam os olhos ou a apoiavam veladamente. Sinagogas foram
queimadas, propriedades confiscadas e judeus escarnecidos publicamente, e
algumas vezes submetidos à violência das massas”.
(pp.
263-264)
É com
as palavras de Ehrman que encerro esta exposição, que visa senão esclarecer
mais um capítulo da vasta história de consolidação do cristianismo no mundo.
“E, assim, temos uma das grandes ironias
dos primórdios da tradição cristã. A religião profundamente judaica de Jesus e
seus seguidores se tornou a religião violentamente antijudaica tempos depois,
levando às horríveis consequências da Idade Média, aos progroms e às tentativas
genocidas que infestaram o mundo até recentemente. O antissemitismo como chegou
até nós é a história das reações especificamente cristãs aos judeus não
cristãos. É uma das piores invenções da Igreja cristã”.