quarta-feira, 30 de maio de 2012

Pálido ponto azul


                  

                               Do intertexto sem-sentido



A minha amiga Rafaela Gomes,



Tenho  recomendado aos meus amigos on-line o livro Como me tornei estúpido, de Martin Page. Várias de suas passagens repercutiram vivamente em minha alma, dentre as quais destaco uma que vem a propósito, depois que li o poema  nonsense, de minha amiga e poetisa brilhante Rafaela Gomes. Este texto é uma versão estendida do comentário sobre o referido poema, que lhe estampei na página do blog.



“Não é possível viver demasiadamente consciente, demasiadamente pensante. Aliás, observemos a natureza: tudo o que vive muito e contente não é inteligente. As tartarugas vivem séculos, a água é imortal (...). Na natureza, a consciência é a exceção; pode-se até postular que ela é um acidente, uma vez que ela não assegura nenhuma superioridade, nenhuma longevidade particular”.



(p. 61)



Fiquei cogitando, depois que li esse trecho, na angustiante condição humana: somos seres de consciência superior e sabemos que vamos morrer. Ao contrário das tartarugas, a natureza de nossa consciência é incompatível com a efemeridade de nossa existência. Temos pouco tempo para ousar apreender a complexidade dessa existência cujo mistério nos abarca. O mais impressionante é que, até onde sabemos, somos os únicos seres capazes de reflexão, vale dizer, de pensar o já elaborado pelo pensamento. Daí, fui mais longe e pensei na aventura intelectual humana; pensei no legado de espíritos geniais que o gênero humano já produziu (o de Karl Marx, Freud, Nietzsche, Einstein...); homens que viveram para as suas ideias, pelas suas ideias, que dedicaram toda uma vida a revolucionar, cada qual em seu campo de interesse... todos passaram, já que, apesar da genialidade de suas mentes, eles compartilham da condição mortal de todo ser vivente. Mas seu legado permanece, apenas ele permanece entre nós e, se preservado, acalentará os pensamentos de futuras gerações. Agora pensem comigo: se não houver nada além da cessação da consciência com a morte, de que valeu o esforço intelectual empreendido por esses homens? Não digo para nós, seus beneficiários; mas para eles mesmos, que sucumbiram como deve sucumbir todo ser humano, quer intelectual, quer medíocre (ou estúpido). Estou sincera e verdadeiramente convencido de que não há um Deus como o representado pela ideologia judaico-cristã. Sou ateu sereno e conciliado com o Mistério. E, por vezes, a sombra desse absurdo que é a existência avança contra os meus pensamentos e me ponho a especular sobre a possibilidade de essa existência cuja totalidade sempre nos escapa ser cíclica (talvez, a morte seja um recomeço; talvez esse “eu”, esse sentimento de “eu” singular, diferenciado, irrepetível seja eterno; talvez, haja reaparecimentos de sua unidade e cada novo reaparecimento implique o apagamento da consciência de outros tantos reaparecimentos anteriores.).

O que aconteceria, se nós soubéssemos de onde viemos (não a nossa origem na longa cadeia evolutiva; Darwin já nos ensinou a respeito dela...); refiro-me ao espantoso acontecimento da vida (questão metafísica, porque envolve o sentido transcendente)... o que aconteceria, se nós soubéssemos qual é o propósito da vida e onde ela desembocará? Seríamos, por isso, mais felizes ou infelizes? Seríamos menos angustiados? Nossas inquietações cessariam? Seríamos capazes de rever nossas metas, nossas ambições? Ainda continuaríamos prisioneiros de nossas paixões destrutivas? Empregaríamos ainda nosso ser a serviço do dinheiro, o deus da prática? Ainda estaríamos dispostos a fazer guerras, a acumular riqueza e a ostentá-la?... A vida é um grito no silêncio, nesse grandioso silêncio que se estende pela infinidade do Universo. Estamos imersos nesse silêncio, nesse mistério silencioso, por isso a vida é mesmo absurda, porque excede nosso peculiar excesso de consciência (embora ele não se verifique em muitas pessoas, para a felicidade delas). Viver transcende a consciência, o entendimento. Porque a vida se acha de permeio entre as duas pontas deste instigante Mistério. Nós estamos imersos nele, tentando respirar com nossos pensamentos e levando a vida à sombra dos rastros da morte. A morte deixa pegadas na vida; ela sinaliza para nós que seja qual for a medida da dimensão de nosso projeto, seja ele grandioso, seja modesto, a vida que a ele se entrega pode ser pulverizada, num instante de desatenção ou imprudência. A vida mata a vida; outras vidas matam outras vidas. A morte é inexorável; é necessidade (afinal, tudo que vive tem de morrer); a vida, contingente e frágil; e o Mistério, a orla da loucura. Por isso, é prudente quem não se detém a pensá-lo; sua profundeza pode absorver nossa alma, sugá-la, dilacerá-la; ou pode atravessá-la como uma lâmina que expõe as metades de uma laranja. E o sentido, cuja integridade nos esforçamos por construir e preservar, se estilhaça. E o absurdo ecoa do silêncio da grande questão do Ser (ele nos previne: ‘É bom que não me toque’). A questão do Ser fora assim expressa por Leibniz: “por que existe alguma coisa ao invés de nada?”. Alguns comentadores julgaram-na sem sentido: nada, por definição, nega a existência; é o não-ser. Por que o ser ao invés do não-ser? Por que estamos aqui? Poderíamos não estar aqui? Sim, diz a razão, ao que tudo indica, a existência é contingente (poderia dar-se ou não). Agora, estamos no âmago do Mistério, onde nossos pensamentos minguam e correm o risco de se diluir...

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Os sentidos são múltiplos; tomam direções diversas

                

                           Diante de um livro
                                             Quando mergulhamos na leitura
    
Quase sempre levo comigo um livro, quando vou para o trabalho. Quase sempre levo os mesmos livros. Hoje, que posso gozar da ociosidade indispensável aos espíritos ávidos de meditações, trouxe o livro Como me tornei estúpido, de Martin Page. Tão logo comecei a folhear suas páginas, não me contive e desatei a grifar muitas de suas linhas. Deparei com trechos que pareciam ter sido escritos por mim! Havia uma ressonância espiritual, eu me senti significado nos enunciados sobre os quais minha mente navegava. Por uns instantes, detinha-me como se estivesse mergulhado espiritualmente. Todo o meu espírito estava submerso naquelas águas verbais do esclarecimento! Sim, pensava, é isso mesmo! É o que sinto também! E como sentir é mais forte do que o pensar! Havia afinidade entre os pensamentos do narrador e os meus, mas foi tão só quando pude experimentá-los na intimidade de meu ser que realmente me senti acalentado (talvez, melhor fosse dizer arrebatado!).
A compreensão da leitura depende desse envolvimento intelectual-emocional do leitor com o livro. Há livros que são produzidos para o sentir e outros tão somente dirigidos para o pensamento. Os que conseguem conciliar emoção e pensamento no seu plano verbal fisgam o leitor pela raiz, porque o atingem integralmente. Não somos só razão; somos também seres de emoção. Logo, um livro ou texto que consigam conciliar estas duas dimensões humanas terá logrado pleno êxito.
Os que acompanham minha labuta verbal provavelmente saibam que me agrada o poder harmonizar dois tipos de leitor: o que busca compreender o lido e o que busca compreender o processo da leitura. A minha formação acadêmica permitiu-me tornar-me também um leitor que estuda as estratégias linguístico-cognitivas mobilizadas não só por ocasião da produção textual, como também do processamento textual. Em suma, quero simplesmente dizer que leio o que se me impõe ao espírito e também leio sobre como se desenvolve a prática de leitura, tendo em conta a relação entre um sujeito leitor, o texto e o autor, que também se atualiza como um sujeito disperso. Não quero fazer expedição nas densas vegetações das teorias textual-discursivas. Basta-me externar aqui o meu fascínio em estudar como se dá o milagre da leitura. Como o leitor compreende um texto, de que estratégias cognitivas se vale? O que o torna cada vez mais competente?
Eu confesso que sou um apaixonado pela linguagem; sou um apaixonado pela docência. A paixão nos move. E não me parece verdadeira a crença de que toda forma de paixão seja uma espécie de cegueira, porquanto a minha paixão pela docência é lúcida. E poderia ser diferente? Todo professor deveria promover uma prática pedagógica esclarecida. Tal é o caso do professor que ensina, consciente de que

“(...) A educação (...) não é reduzida a fator, mas é concebida como uma prática social, uma atividade humana e histórica que se define no conjunto das relações sociais, no embate dos grupos ou classes sociais, sendo ela mesma forma específica de relação social.”
(pp. 33-34)
O excerto acima se acha em Educação e a crise do capitalismo real, de Gaudêncio Frigotto. O professor que tem em conta a perspectiva de que a educação é uma prática social que se define em relação às demais práticas sociais é um professor igualmente consciente de que a escola é também um espaço onde as contradições de uma sociedade dividida em classes repercutem. Também é, assim, um professor consciente de que a escola, numa sociedade capitalista como a nossa, está a serviço das classes dirigentes e que é nela e por meio dela que essas classes mantêm seu controle político-ideológico, linguístico e cultural. Esse professor não se ilude, supondo ser a escola a tábua de salvação para a maioria que vive à deriva ou à margem dos interesses do Estado. Mas também reconhece que fora dela não é possível transformação social. Quanto mais privados de uma educação de boa qualidade são os membros das classes populares tanto mais limitadas se tornam as possibilidades de atuação deles como classe. Uma educação que, preocupada com os interesses dos excluídos, não promove as condições necessárias ao questionamento do status quo,  só contribui para aprofundar a exclusão social. Uma educação assim não faz senão conservar no poder as classes dirigentes. É na escola que se dá o embate entre os interesses antagônicos das classes sociais. Não é ela um espaço onde esse antagonismo se neutraliza. Longe disso. Não é ela, eu insisto, a esfera onde a suposta liberdade e igualdade se manifestam convivem harmoniosamente. Numa sociedade marcada por profundas desigualdades, cujo Estado tem de garantir, entre outras coisas, o exercício da liberdade pelos seus cidadãos, numa democracia muito recentemente reconquistada, não se pode esperar senão uma escola que se coloque como responsável por trabalhar dialeticamente os antagonismos estruturais, instrumentalizando os que ocupam suas cadeiras de modo a que possam desenvolver uma consciência crítica sobre a sociedade e o mundo em que vivem.
Eu falava, contudo, dos trechos do livro de Page que me deixaram admirado. Convido o leitor a se debruçar sobre eles, doravante:

“Ser curioso, querer compreender a natureza e os homens, descobrir as artes deveria ser a tendência de todo e qualquer espírito. Mas, se assim fosse, com a atual organização do trabalho, o mundo deixaria de girar, simplesmente porque aquilo demanda tempo e desenvolve o espírito crítico. Ninguém trabalharia. Eis por que os homens têm gostos e desgostos, coisas que os interessam e coisas que não os interessam – porque, se assim não fosse, não haveria sociedade. Os que se interessam demasiadamente pelas coisas, que se interessam por assuntos que não os interessariam a priori – e que querem compreender as razões do seu dessinteresse – pagam o preço disso com certa solidão”.
(p. 59)
Uma leitura, entendida como prática de produção de sentidos para o texto, será tanto mais satisfatória e interessante quanto mais capaz for o leitor de recuperar os intertextos ou as outras vozes discursivas (polifonia). Esta é, decerto, uma lição fundamental a ser aprendida quando nos envolvemos na leitura: todo texto é um intertexto, na medida em que se produz sobre outros textos, na medida em que os evoca explícita ou implicitamente. Compreendida essa lição, o leitor vai-se apercebendo de que toda forma de leitura se abre para outros textos ou discursos. Não lemos apenas no texto, mas sobretudo lemos para além do texto. A leitura abre espaços de diálogo do leitor com o autor, um diálogo silencioso e indispensável ao sucesso do empreendimento intelectivo daquele. Todo texto também encena uma orquestra de vozes. Todo texto delimita mais ou menos explicitamente um conjunto de vozes que podem ser, no palco de encenações discursivamente instaurado, basicamente, conflitantes ou concordantes.
Notemos como podemos recuperar as vozes de teóricos como Marx e Adorno  (não só destes, é claro; o leitor familiarizado com o pensamento de pós-marxistas  como Harbemas ou com outros teóricos preocupados com a questão do trabalho na modernidade poderia evocá-los). No texto, lemos sobre a ideia de que a atual organização do trabalho demanda consumo de tempo e da força de trabalho do trabalhador. Claro que inferimos essa ideia, quando nos atemos à leitura, especialmente, do trecho “com a atual organização do trabalho, o mundo deixaria de girar”. Para “o mundo girar”, é preciso que os trabalhadores (entendidos como proletários) despendam sua força de trabalho no processo de produção de tal modo que, ao fazê-lo, não lhes sobre tempo para o exercício do pensamento reflexivo. Assim, segundo o autor, se todos os cidadãos fossem curiosos e estivessem dispostos a se abandonar à labuta crítico-reflexiva, utilizando-se do instrumento do pensamento, faltaria quem pudesse fazer a máquina capitalista funcionar. Mas nem todos são curiosos, porque o próprio modo de produção em que se assenta a sociedade produz seus próprios agentes para o trabalho (que Marx viria a definir como trabalho alienado). Estes não podem dispor nem de tempo nem das condições para refletir sobre o funcionamento dos mecanismos da produção da vida social. Assim, nos processos de montagem de automóveis, não são necessários “pensadores”, mas tão-só mão de obra (mais ou menos qualificada, dependendo da função) para o exercício do trabalho de fabricação de automóveis.
Numa sociedade dividida em classes, cujas condições de existência estão baseadas no modo de produção capitalista, o trabalho, segundo a ideologia dominante, é encarado, por um lado, como uma prática penosa, desumanizadora (não sem razão, muita vez; toda ideologia tem um fundo de verdade, embora tenda a ser generalizante) - muito diferente do que propunha Marx, para quem o trabalho deveria ser um exercício de liberdade do homem, forma pela qual ele se humaniza ou se realiza, já que para o autor o trabalho constitui o próprio ser do homem, não como ser abstrato, mas ser concreto (de carne e osso), historicamente definido; mas foi o próprio Marx que veio a reconhecer a forma alienada do trabalho no capitalismo - ; por outro lado,  produziria as condiçóes nas quais se poderia distinguir, pela operação mistificadora da ideologia, os que trabalham empregando as forças do corpo e os que pensam. Assim, é que, segundo reza uma das formas ideológicas dominantes, os que trabalham são aqueles que não precisam exercitar o pensamento e os “pensadores” são aqueles que não trabalham, porque libertos da obrigação de empregar seu corpo na árduas tarefas do processo de produção. Daí a crença de que estudante não trabalha, de que quem se dedica a pesquisas acadêmicas também não trabalha. Trabalhadores, segundo essa visão ideológica, são aqueles que se engajam nas ásperas tarefas cotidianas rigorosamente disciplinadas, num espaço de tempo que lhes é pré-fixado pelo capitalista e num espaço de trabalho que o confina (por exemplo, a uma mesa, a um setor de uma linha de produção, no caso de uma indústria, etc.),
Mas como vemos Marx e Adorno neste texto? Decerto, não encontramos registros textuais desses autores, mas suas vozes podem ser ouvidas (polifonia). Tanto um quanto outro lançaram ácidas críticas sobre o modo de produção capitalista, cada qual a seu modo e em sua época. Adorno estava preocupado, particularemente, com a questão da transformação sistemática da cultura em formas de mercadoria, pela mobilização por agentes sociais de instrumentos da técnica, segundo uma lógica que coisifica toda e qualquer manisfetação cultural, padronizando-a, a fim de submetê-las às leis de oferta e procura do mercado. Esse mecanismo de moldagem de toda produção cultural, que redunda na destituição de seu valor estético plural e de sua potencialidade como espaço semiótico para a crítica às formas de existência social,  e que desencoraja os indivíduos da crítica social, Adorno (com a cooperação de Max Horkheimer) chamou Indústria cultural. A obra de arte, assim, perde sua autencidade enquanto obra para se tornar reproduzível em larga escala e  destinada ao consumo de massa. Para adorno, a esfera do entretenimento se organiza de modo a servir aos interesses do capitalista, já que, uma vez descansado o trabalhador, tendo já suas forças repositadas, pode ele retornar ao trabalho no dia seguinte devidamente disposto a entrosar-se com as demandas do seu trabalho alienado. Para Adorno, a televisão é uma forte aliada nesse processo de adestramento do trabalhador aos imperativos do modo de produção capitalista. O lazer é, nessa perspectiva, a extensão do processo do trabalho alienado.
Marx, no século XIX, arvorou-se em crítico sagaz do modo de produção capitalista. Coube a ele desvelar as formas injustas nas quais se desenvolvem as relações sociais nesse modo de produção. Marx ensinou que a relação entre o proletariado e o empregador (capitalista) é uma relação desigual, caracterizada pela expoliação daquele. O lucro do capitalista advinha do que Marx denominou de mais-valia, o valor do trabalho não-pago de que se apropria o capitalista. A mais-valia é a diferença entre o que o trabalhador produziu e o que ele recebeu. Mas não vou me alongar nessa discussão.
O texto nos oferece a oportunidade de pensar o conceito de trabalho na perspectiva desses dois estudiosos. No texto, está clara a ideia de que a organização do trabalho no modo de produção capitalista impede o usufruto do tempo necessário ao desenvolvimento da curiosidade, do espírito crítico-reflexivo. Mas a sociedade, segundo a ideologia dominante, não seria possível se todos os seus membros não se dividissem entre aqueles que pensam e aqueles que tão só executam. Os que simplesmente executam aquilo que lhes é ordenado, ignoram, quase sempre, as razões por que o fazem ou devem fazer. Apenas aos que estão libertos da sobrecarga decorrente da rigidez do tempo e das exigências do trabalho mecanizado e que, portanto, podem se dedicar à compreensâo da forma real como se dão as relações sociais na esfera da produção, quando superada a inversão feita pela ideologia, é dado pensar. Mas, inisisto, que essa divisão real é representada, na ideologia dominante, como inalterável. A ideologia dominante nos leva a crer que é impossível uma ordem social alternativa, com a transformação da base econômica. Faz-nos crer que o atual estado-de-coisas, por independer das ações dos próprios homens (e isso também é uma crença ideologicamente difundida), não pode ser alterado. Marx, evidentemente, bem como Adorno, não pensavam assim.
Não esgotei a leitura com estas considerações, porque toda leitura está aberta, é aberta, eu diria. E outros leitores, certamente, dotados de conhecimentos que me escapam, podem ver mais coisas neste texto, podem estender a leitura para além de minha compreensão. De qualquer forma, o que espero tenha ficado claro é a ideia de que quanto mais conhecimentos trazemos para a leitura tanto mais rica será ela. A leitura de um dado texto torna-se mais produtiva quanto mais leituras prévias tenhamos acumulado. O leitor exepriente é aquele que ler cada vez mais. O leitor traz seus conhecimentos e experiências de mundo (entre as quais as experiências de leitura, evidentemente) para dentro do texto. E é na bese desse conjunto de conhecimentos (mas também crenças, valores, ideologias) e de experiências que o leitor desenvolve sua leitura. Vê-se quão fundamental torna-se o papel do professor de português no trabalho com a leitura, na tarefa de ser um co-agente no desenvolvimento da competência textual (que inclui uma competência de leitura) do aprendiz.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

"Que a vontade de saber esteja sempre convosco"


          O espírito antijudaico cristão



Malgrado o cristianismo ter-se originado do judaísmo, o cisma sucedeu no momento em que cristãos cuja atividade se seguiu à morte de Jesus passaram a propalar ensinamentos antijudaicos. Como se deu a separação? É disso que me ocuparei neste texto. Todavia, não me limitarei à exposição da história dos acontecimentos que levaram o cristianismo a se fortalecer e a se separar definitivamente do judaísmo. À descrição dos eventos subjaz um interesse argumentativo, qual seja, defender a tese segundo a qual quanto mais pudermos conhecer a história do cristianismo tanto menos dispostos a seguir suas doutrinas ficaremos. Á medida que avançamos nossos estudos com o objetivo de entender como pôde o cristianismo, depois de 2000 anos, chegar a predominar sobre as demais religiões no mundo, rompendo as fronteiras do Mediterrâneo Oriental (Oriente Médio) para tornar-se a religião oficial do Império Romano (em 392 d.C.), e daí estender sua influência à Europa na Idade Média, para chegar até nós graças às ações de missionários na era dos Descobrimentos, deixamos de atribuir a essa religião qualquer marca divina; vemos senão as marcas, não raro atrozes, das ações humanas. A despeito dos sofrimentos e mortes à custa dos quais o cristianismo se expandiu para todo o mundo, ao longo desses vinte séculos, não encontramos nenhum sinal de Deus. A história se desenvolveu sem o seu interesse ou influência.

Antes de me deter a apresentar como se deu o desenvolvimento do antissemitismo cristão, passo a considerar, em linhas gerais, a história judaica. Quem são os judeus? Quando e onde essa religião foi criada e se desenvolveu? Veremos que a história judaica é caracterizada por opressão e perseguições perpetradas por outros povos.



1. O Judaísmo: uma breve incursão histórica


Embora não se saiba quando o judaísmo surgiu, tampouco como surgiu, seu início pode ser situado num vasto e remoto período de tempo recoberto pela Bíblia hebraica (o Antigo Testamento da Bíblia cristã). Duas figuras foram determinantes do surgimento do judaísmo: o patriarca Abraão e, posteriormente, Moisés. Abraão migrou da Mesopotâmia (atual Iraque) para Canaã, situado no Mediterrâneo Oriental. Forçados pela fome, seus descendentes tiveram de migrar de Canaã para o Egito, onde se tornaram escravos. Mais tarde, o líder Moisés os conduziram de volta para Canaã, que, segundo acreditavam, era a terra prometida a eles por Deus. Foi durante o trajeto que Moisés recebera de Deus as tábuas da lei judaica, no monte Sinai. Tal acontecimento teria ocorrido no séc. XIII a. C. Sabemos, contudo, que não há comprovação histórica desse episódio, tampouco se pode ter certeza da existência do próprio Moisés. Não obstante, foi naquele momento que se estabeleceu o pacto entre Deus e o povo judeu, que passaria a ser considerado o povo eleito por Deus. É lícito dizer que a essência do judaísmo consiste nesse pacto ou aliança entre Deus e o seu povo. A ironia começa a mostrar suas malhas pungentes, pois que, depois de um período em que os judeus gozaram de autonomia sob o regime dos reis Davi e Salomão, vieram as conquistas e as perseguições.

Em 586 a.C., o reino de Judá, em Canaã, veio a ser invadido e conquistado pelos babilônios, durante o reinado de Nabucodonosor. Eles destruíram o Templo em Jerusalém e submeteram os judeus ao exílio na Babilônia, onde alguns judeus começaram a escrever os primeiros capítulos da Bíblia hebraica. Nos séculos que se sucederam, os judeus sofreriam com uma série de invasões por povos estrangeiros, que os subjugariam. Em 538 a.C., os persas, que viriam a conquistar a Babilônia, permitiram que os judeus voltassem para seu lugar de origem. Tendo estado sob o jugo grego no séc. II, os judeus se rebelaram, não sem a liderança de Judas Macabeu. A vitória lhes permitiu edificar um novo Templo em Jerusalém e estabelecer uma nova dinastia. Mas em 63 a.C. a dinastia sucumbiu ao poder dos romanos, e o Templo foi derrubado. Durante o domínio romano, o rei Herodes o Grande (37-34 a.C.), reconstruiu o Segundo Templo com pompa, mas quando os romanos determinaram que seus próprios funcionários governassem a província da Judeia, deu-se uma nova rebelião judaica. Em 70 d.C, no entanto, o poder romano sobrepujou as forças rebeldes judaicas, e o Segundo Templo, então reconstruído, foi derrubado. Não restou aos judeus senão desistir da empresa política e dedicar-se ao desenvolvimento do saber. Grupos como os fariseus vieram a produzir muitos eruditos insignes, tais como Hillel, um liberal judeu, e Shammai, cujo rigor com que interpretava a lei judaica era notório.

Pudemos ver até aqui que a história judaica veio se desenvolvendo em períodos em que se intercalaram relativa prosperidade e sofrimento. Mas o fardo judaico não findaria. O ano de 392 d.C (séc. IV)., quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, sob o regime de Teodósio, inauguraria uma era de intensas e incessantes perseguições aos judeus. Àquela altura, os cristãos já contavam com uma Igreja centralizada e forte. Mais adiante, pormenorizarei como se desenvolveu o antissemitismo cristão. Por ora, basta-nos saber que as comunidades cristãs passaram a perseguir os judeus, expulsando-os de vários países. Eles também foram forçados a se converter ao cristianismo, perderam empregos com melhor remuneração e tornaram-se comerciantes e agiotas. Outros mais viviam na pobreza, embora tivessem se tornado sábios notáveis. Durante toda a Idade Média, os judeus tiveram de suportar uma vida marcada por perseguição na Europa cristã. Houve, contudo, judeus que alcançaram prosperidade econômica com o comércio e se beneficiaram com viagem e exílio, quando puderam participar da diplomacia internacional.

Sob os auspícios do Iluminismo, o povo judeu teve seus direitos reconhecidos, nos séculos XVIII e XIX. Não obstante, alguns Estados ainda coagiam alguns judeus a se converter ao cristianismo. Havia pensadores, contudo, que relutaram contra a conversão, permanecendo fiel à sua tradição religiosa. O rabino alemão Abraham Geiger estava entre os eruditos que impulsionaram o movimento de reforma da lei judaica. A busca por uma convivência pacífica com seus vizinhos levou os judeus a abandonarem certos preceitos que tolhiam a boa convivência com os não-judeus. Apesar do esforço para adequar o judaísmo à era moderna, alguns judeus rejeitaram a reforma e voltaram a adotar as práticas e valores tradicionais do judaísmo ortodoxo; outros aderiram ao judaísmo conservador. No final do século XIX e início do século XX, um segmento judaico acalentava a esperança de retorno à pátria O movimento ficou conhecido como sionismo (referência a Sião, o nome bíblico de Jerusalém).

Todavia, foi também no fim do século XIX que o antissemitismo ganhou novas feições. Desde então, os antissemitas dirigiam sua intolerância não mais para a religião dos judeus, mas sim para o que eles entendiam ser a raça judaica. Assim, ser judeu não significava mais, para o intolerantes, pertencer a uma religião, mas ser uma raça ou a uma etnia. De traço cultural, o judaísmo passou a definir um tipo humano, na base de traços biológicos.

Decerto, o aspecto mais aterrador e abominável desse antissemitismo viria a manifestar-se na II Guerra Mundial, com a ascensão do nazismo. Em 20 de janeiro de 1942, se daria “a solução final” para o que se considerava o problema judaico. Na Europa oriental, campos de concentração recebiam milhões de judeus para trabalhar até a morte. Caso resistissem, seriam mortos em câmeras de gás. Corpos foram queimados em grande crematórios operados pelos próprios judeus. Em 1945, cerca de 6 milhões de judeus foram mortos, num evento genocida que ficou conhecido como Holocausto. O Holocausto foi a consequência final e hedionda da ideologia nacional-socialista alemã que rezava a superioridade da raça ariana (caucasianos brancos) sobre as demais, mormente sobre os judeus.

Em 1945, fundou-se o Estado de Israel, e os judeus puderam retornar a casa, onde se estabeleceram. Muitos se comprouveram com a possibilidade de adorar a Deus na terra que lhes havia sido prometida por ele. Assim, os judeus edificaram uma nação forte. Mas os desafios e as tragédias ainda perduram na convivência com seus vizinhos árabes da Palestina.

Vale observar que, a despeito de a religião judaica fundar-se na crença numa aliança entre Deus e o seu povo (os próprios judeus), que supõe a proteção daquele, a história judaica alimenta-nos, ao menos, a suspeita da existência do próprio Deus. É inegável que não houve a intervenção de Deus com vistas a poupar os judeus de seus pungentes sofrimentos. Isso me leva a pensar na possibilidade de raciocinar no sentido de que, se faltam evidências para atestar a existência de Deus, sobram fatos que nos permitem negá-la. Não cabe aqui desenvolver uma argumentação nesse tocante. No entanto, sugiro que os ateus repensem a ideia de que o ônus da prova recaia apenas sobre os crentes. Embora comumente se admita que a prova, nesse caso, se imponha aos que acreditam na existência de Deus, não há razões para dizer que não se possa valer-se de evidências que indicam a inverdade subjacente à proposição ‘Deus existe’. Eles podem não se sentirem obrigados a provar a inexistência de Deus, mas podem (e devem, quando necessário) esforçar-se por mostrar a grande improbabilidade de existir um deus com as qualidades alegadas para o Deus judaico-cristão.  Insisto em que a crítica ateísta deve ser orientada para o confronto entre o que a tradição judaico-cristã nos ensina sobre Deus e o modo como o mundo funciona. A argumentação deverá partir de considerações ontológicas prévias sobre Deus. Valeria cotejar a ideia de Deus com a ideia de Papai Noel, tendo em conta o pressuposto de que ambos são entidades imaginárias, ou seja, desprovidas de matéria. Nem um nem outro ocupa espaço.

Proponho aqui uma breve digressão. Vimos que os judeus sofreram com perseguições, ao longo de muitos séculos, a despeito de eles haverem feito um pacto com Deus. Partimos dos pressupostos de que Deus existe e de que o pacto em que acreditavam os judeus tenha ocorrido. O pacto supõe um compromisso de Deus com os judeus, no sentido de livrá-los do sofrimento. Mas o sofrimento os atingiu e eles, por vezes, se viram obrigados a imigrar para outras regiões, a fim de escapar à opressão estrangeira. Mas esse Deus dos judeus é grandioso, todo-poderoso. Por que então não fez nada para ajudá-los? Teria ele então rompido com o pacto (os cristãos posteriores advogaram que sim). Mas por que razão deus rompera com o pacto? Ficou ele magoado, conservou rancor por alguma ofensa perpetrada pelos judeus? Mas, se é assim, não nos parece ser esse Deus bastante humano, a tal ponto de se zangar e se magoar com uma possível ofensa? Deus não é misericordioso? Em suma, quero dizer que seja lá qual fosse a razão por que Deus rompera com o pacto,  a forma como ele pune os judeus (ou seja, abandonando-os à própria sorte) é demasiado humana e, portanto, desconforme aos padrões de um Deus cuja sabedoria é infinitamente superior à humana. Caberia fazer ver uma reflexão cuidadosa sobre a psicologia de Deus. De qualquer modo, um Deus que pune seu povo eleito, ignorando completamente as grandes dificuldades por que ele viria a passar, por uma suposta desobediência deles à sua lei, não se comporta senão semelhantemente a como se comportaria um ser humano. Tal indiferença é incompatível com um Deus grandioso, como o é o Deus judaico-cristão.

2. Uma religião antijudaica


O limiar da Igreja cristã no século IV não fora próspero. De 303 a 311, os cristãos sofreram uma das piores perseguições de sua história. Milhares deles foram mortos. Naquela época, ainda predominava o paganismo dos romanos. Tal estado-de-coisas mudaria com a conversão de Constantino ao cristianismo em 312. O Imperador passaria a acreditar-se um servo de Deus e instauraria uma política de tolerância às práticas religiosas pagãs, embora as considerassem falsas ou produtos da superstição. Portanto, Constantino não fora um perseguidor, muito embora favorecesse amplamente a Igreja cristã. Sua conversão ao cristianismo foi sincera. Dois anos antes de sua conversão, as perseguições aos cristãos já haviam cessado, já que, àquela altura, o cristianismo já gozava do mesmo status social que o paganismo.

Claro é que Constantino exerceu um papel determinante do nascimento da cristandade. Coube a ele derrotar um suposto perseguidor dos cristãos, chamado Licínio. Com a morte de Licínio, pôde Constantino restabelecer a unidade do Império. Foi ele quem produziu, portanto, as condições sócio-políticas que favoreceram o estabelecimento e a predominância da religião cristã. Consoante nos ensina Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou cristão,


“O cristianismo dispunha daí em diante desse imenso império que era o centro do mundo e que se considerava com a mesma extensão da civilização. Aquilo a que se chamará por longos séculos de Império Cristão, sim, a Cristandade acabava de nascer.”

(p. 19)

O Imperador instaura uma Igreja poderosa. Esse acontecimento foi determinante da extensão do domínio da religião cristã para todas as práticas da vida. Assim, o cristianismo tomou a forma de uma Igreja rigidamente hierarquizada fundada no princípio da autoridade. Assim, escreve Veyne:



“(...) o cristianismo tinha uma particularidade que o tornava único no mundo: essa religião era também uma Igreja, uma crença exercendo autoridade sobre aqueles que dela compartilhavam, apoiada sobre uma hierarquia, um clero superior em natureza ao laicato num quadro geográfico. Lado a lado com o amor, com o ascetismo e com uma pureza desinteressada por este mundo de cá de baixo, a psicologia dos cristãos incluirá também o gosto pela autoridade”.


(p. 65)


Não nos surpreendamos com o suposto paradoxo da conciliação da pregação do amor com o gosto pela autoridade. Lembro que os dois pilares dos ensinamentos de Cristo foram “amar a Deus sobre todas a coisas” e “amar ao próximo como a si mesmo”. Tais enunciados tomam a forma de injunções. A elas subjaz o princípio de autoridade, tão caro à religião cristã. Esse princípio permitiu não só que o amor fosse imposto de fora, mas extrapolado nos padrões humanos. Não nos surpreende que o amor cristão seja inatingível ao ser humano. Colocar Deus acima dos valores essenciais à vida, como pais e família, e amar a um estranho como podemos amar a nós mesmos é, sem dúvida, uma atitude que excede à natureza humana.

Podemos agora compreender como se deu a separação entre o cristianismo e o judaísmo. Trago à cena as palavras de Bart. D. Ehrman, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?

“(...) como a religião inteiramente judaica de Jesus se transformou tão rápido em uma religião de gentios. Como o cristianismo deixou de ser uma seita dentro do judaísmo e se transformou em uma religião virulentamente antijudaica em menos de um século?”

(p. 255)


Sabe-se que a passagem do cristianismo de seita para religião contou com o papel decisivo de Constantino, que exerceu com fidelidade a essa religião a sua soberania política. Passemos a entender como o cristianismo se separou do judaísmo e como veio a tornar-se, após a morte de Cristo, uma religião antijudaica.


2.1. A identidade de Jesus: um profeta apocalíptico judeu


Jesus era judeu. Mais precisamente, um profeta apocalíptico judeu. Os ensinamentos de Jesus eram afinados com a lei judaica: “(...) não havia na mensagem ou na missão de Jesus nada que fosse externo ao judaísmo” (p. 255). Ele não tinha a intenção de fundar uma nova religião. É bem verdade que construiu uma imagem de Deus diferente do Deus carrancudo e irado do Antigo Testamento. O Deus de Jesus era caracterizado pelo amor incondicional e misericórdia infinda (muito embora, paradoxalmente, tenha preparado um lugar de sofrimento para os pecadores:



“Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes” (Mateus 25:30).



Sabemos, contudo, que seja lá quem escreveu o evangelho de Mateus, não foi o apóstolo que teria convivido com Jesus.

É preciso insistir em que Jesus era filho de pais judeus e fora criado na cultura judaica. Como profeta apocalíptico judeu, Jesus ensinou que o Reino de Deus (literalmente) viria a ser instalado na Terra, não sem antes ter Deus aniquilado as forças do mal. Segundo Jesus, para que as pessoas pudessem entrar a fazer parte desse Reino, elas teriam de cumprir com as leis judaicas, especialmente com os dois mandamentos anteriormente referidos: o do amor a Deus e do amor ao próximo. Era necessário amar a Deus com toda força, com todo o coração.

2.2. O antijudaísmo cristão


Sucedeu que os seguidores de Jesus, após sua morte, cuidaram que ele estaria fundando uma nova religião. A religião de Jesus era o judaísmo, embora interpretada contrariamente à interpretação dos fariseus e saduceus. Os seguidores de Jesus, no entanto, não viam assim. Para eles, Jesus estava lançando as bases de uma nova religião. Com a expansão do cristianismo por todo o mundo, os que não comungavam das crenças cristãs passaram a ser rotulados de hereges.

Entre os que insistiam em que Jesus seguia a lei judaica, estavam os ebionitas. Eles argumentaram que o próprio irmão de Jesus, Tiago, procedia assim. Tiago era o líder da igreja de Jerusalém. Assim, se a lei diz que os meninos devem ser circuncidados, então é imperiosa a circuncisão. O Evangelho de Mateus corrobora a fidelidade de Jesus à lei judaica.

É certo dizer que Paulo exerceu um papel importante na distinção entre as duas religiões. Foi ele quem negou veementemente a crença de que seguir a lei judaica era indispensável para agradar a Deus. Para Paulo, sacrifícios de animais e remoção de prepúcios não tinham nada que ver com a salvação. Esta só veria pelo reconhecimento da natureza messiânica de Jesus. Vale dizer que os judeus não acreditavam que Jesus era o Cristo (ou seja, o messias). Leiamos com atenção as palavras de Ehrman:

“Paulo e Jesus defendiam a mesma religião? Essa é uma pergunta histórica fundamental, e é difícil negar a resposta. Jesus ensinou seus seguidores a cumprir a lei como Deus determinara, para entrar no reino. Paulo ensinou que seguir a lei não tinha nada a ver com entrar no reino. Para Paulo, apenas a morte e a ressurreição de Jesus importavam. O Jesus histórico ensinou a lei. Paulo ensinou Jesus.”


(p. 257)


Paulo não criou a nova religião, já que ele foi herdeiro das tradições que viria a defender. Mas, certamente, ele distinguiu entre uma religião de Jesus e uma religião sobre Jesus. Seguidores posteriores a Paulo desenvolveram ainda mais as crenças do herege convertido. Marcião, um famigerado teólogo do século II, viria a defender a ideia de que havia dois deuses: o Deus judaico (um Deus colérico do qual Jesus veio livrar seu povo); e o Deus de Jesus, fonte do Evangelho (“a Boa-Nova”). Não havia senão antagonismo entre o Deus judaico e o Deus cristão. Para Marcião, o livro do Antigo Testamento é produto do Deus judaico e não deveria compor o cânone cristão.

Pensadores da mesma época de Marcião houve que tiveram uma interpretação contrária à de Marcião. Barnabé, por exemplo, um dos companheiros de Paulo, advogava que o Antigo Testamento era um livro cristão. Para ele, os judeus eram ignorantes dos ensinamentos deste livro. Barnabé culpa os judeus pela ruptura com o pacto que Deus fizera com eles. Barnabé argumenta que, no momento em que Moisés quebrara as primeiras tábuas dos Dez mandamentos, deu-se o fim do pacto com Deus. Deus nunca mais restaurara o pacto com os judeus, passando a estabelecê-lo com os seguidores de Jesus.

O erro dos judeus, segundo Barnabé, foi ter interpretado a lei literalmente. Assim, segundo nos ensina Ehrman:



“Barnabé tem uma impressionante capacidade de encontrar Cristo e a mensagem cristã nas páginas do Antigo Testamento. Apenas um exemplo: ele argumenta que a circuncisão, o sinal do pacto dado ao pai dos judeus, Abraão, sempre foi equivocadamente entendida pelos judeus como que determinasse que eles deveriam cortar o prepúcio de seus bebês. Nunca foi isso. Na verdade, circuncisão significa que a pessoa tem de acreditar na cruz de Jesus. Como Barnabé prova isso? Ele observa que no Antigo Testamento Abraão coloca seu exército de 318 servos em batalha, mas os prepara para a vitória primeiramente os circuncidados (Gênesis 14:14; 17:23). Qual é o significado do fato de que 318 servos foram circuncidados? – pergunta Barnabé. É um número simbólico. (...) O número 318 é composto das letras gregas tau, iota e eta. Barnabé destaca que tau, que se parece com a nossa letra t, tem a forma da cruz, e que iota e eta são as primeiras duas letras do nome de Jesus. A circuncisão não tem a ver com prepúcios. Tem a ver com a cruz de Jesus.”


(p. 259)


O antijudaísmo da doutrina de Barnabé é resultado da sua compreensão segundo a qual os judeus são ignorantes de sua própria religião e o Antigo Testamento é um livro cristão. O Antijudaísmo cristão viria a fortalecer-se com o passar do tempo. Autores cristãos posteriores acusariam os judeus de culpados pela destruição da cidade de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. Deus os teria punidos por terem matado o seu filho. Outros cristãos reforçaram ainda mais o já robusto antijudaísmo, afirmando que, na medida em que Jesus era divino e que os judeus não reconheceram a divindade de Jesus, são os judeus os responsáveis por matar a Deus.

A crença no deicídio judaico fora expressa nos escritos de um autor do fim do século II, chamado Melito. Ele era bispo da cidade de Sardis. Em meados do século XX, estudiosos encontraram um sermão produzido por ele. O escrito fora produzido na época do Pessach judaico, período em que os cristãos também celebravam a Páscoa. Ehrman dá-nos a conhecer alguns trechos deste escrito. Vejamos um deles:

“ “Ele foi assassinado. E onde foi assassinado? No centro de Jerusalém! Por quê? Porque ele curava seu manco, purificara seus leprosos, guiara seus cegos com luz e ressuscitava seu morto. Por essa razão ele sofreu” (capítulo 72)”



                                                           (p. 260)

Antes de levar a cabo este texto, convém sumariar as cinco formas com as quais os cristãos rejeitavam o valor do judaísmo:


1º) Jesus era o Messias (os judeus não pensavam assim);

                     2º) O Messias tinha de sofrer pelos pecados das pessoas;

                     3º) A morte do Messias representava o modo pelo qual Deus tornava seu povo justo;

   4º) A lei nada tinha que ver com Salvação;
                      
                       5º) Os judeus tinham de acreditar em Jesus para não serem rejeitados por Deus.


Para os cristãos da época, os judeus foram rejeitados por Deus, porque eles não seguiam a lei corretamente. Eles não mais eram o povo eleito de Deus; Deus, desde então, fizera um novo pacto, mas com os seguidores de Jesus. É interessante ver que os cristãos, para corroborar sua crença de que os judeus compreendiam erroneamente as suas Escrituras, se valiam de trechos delas a fim de fundamentar sua argumentação.

Encontraremos em Romanos 9: 11 e, sobretudo, em Romanos 11: 1-26, Paulo refletindo sobre a questão judaica e defendendo a rejeição do povo judeu. Paulo, contudo, quando ainda não era cristão, achava os seguidores de Jesus ofensivos. Em João (19-20), os judeus são considerados culpados pela morte de Jesus.

Em meados do século II, cresce a virulência com que os cristãos atacavam os judeus. Justino Mártir e Tertuliano produziram textos nos quais lançava seu repúdio aos judeus. Insistiram em que eles interpretavam erroneamente o significado da própria lei e da sua religião, que ignoravam as profecias que diziam respeito a Jesus, que Deus os rejeitara porque eles rejeitaram seu próprio Messias. Para Justino, a circuncisão significava apenas um sinal de que o povo de Deus tinha de ser perseguido. Tratados semelhantes continuaram a circular mesmo depois do século II.

Com a conversão de Constantino, sucederam conversões em massa. Assim, no final do século IV, metade do império era cristã. Também nessa época o imperador Teodósio proclamou o cristianismo como a religião oficial do império. Estavam estabelecidas as condições para que o ataque aos judeus, que antes situava-se no âmbito retórico-discursivo, passasse para o domínio da ação. Vale notar que o antijudaísmo não existia nos mundos grego e romano, nem mesmo em outras sociedades, antes do advento do cristianismo. Claro é que alguns autores gregos e romanos criticavam os judeus, porque lhes parecia ter costumes bizarros, como retirar prepúcios, não comer carne de porco ou não trabalhar no sábado. Mas é claro também que eles rejeitavam qualquer pessoa que não fosse grega ou romana; não eram os judeus um povo especialmente repudiado. Com os cristãos, os judeus passaram a ser considerados maus e teimosos.

Ao considerar o que aconteceu quando o cristianismo se tornou, pelo poder de Teodósio, a religião oficial do Império Romano, ensina-nos Ehrman:


“(...) Desde os primeiros dias da Igreja, a antipatia em relação aos judeus tinha sido expressa retoricamente; em pouco tempo se tornou uma questão de ação. Funcionários romanos que tinham se tornado cristãos levaram a sério o discurso de seus antecessores e viram o povo judeu literalmente como inimigo da verdade, e devia ser punido por rejeitar Jesus. A política oficial do império no século IV não exigia a perseguição aos judeus, mas pessoas no poder, como os governadores cristãos de províncias romanas, com fequência fechavam os olhos ou a apoiavam veladamente. Sinagogas foram queimadas, propriedades confiscadas e judeus escarnecidos publicamente, e algumas vezes submetidos à violência das massas”.

                                        (pp. 263-264)

É com as palavras de Ehrman que encerro esta exposição, que visa senão esclarecer mais um capítulo da vasta história de consolidação do cristianismo no mundo.


“E, assim, temos uma das grandes ironias dos primórdios da tradição cristã. A religião profundamente judaica de Jesus e seus seguidores se tornou a religião violentamente antijudaica tempos depois, levando às horríveis consequências da Idade Média, aos progroms e às tentativas genocidas que infestaram o mundo até recentemente. O antissemitismo como chegou até nós é a história das reações especificamente cristãs aos judeus não cristãos. É uma das piores invenções da Igreja cristã”.



 
     

quinta-feira, 24 de maio de 2012

desconectado


                


                 FORA DO AR


Eu insistirei nisto, mesmo que se torne enfadonho: a vida dedicada ao exercício do pensamento reflexivo e à leitura cotidiana causa desgosto, insatisfação e desânimo, no tocante à sociabilidade. Por vezes, tenho vontade de fazer uma limpa nos vínculos virtuais de minha rede social on-line. Para que tantos “amigos”, se compartilho com muito poucos algumas palavras? Felizmente (ou não) é possível deletá-los. Não vê como é incrível isso! Na modernidade líquida, as formas de relacionamentos podem ser facilmente desfeitas e, se forem do tipo “virtuais”, aí podemos simplesmente deletá-los. Deletar é mais fácil do que romper com relacionamentos convencionais, que envolvem corpos, olhares, toques, feições. No caso desses, a ruptura pode, muita vez, nos causar certo desconforto ou aborrecimento. Mas, nos relacionamentos virtuais, o desligamento não nos acarreta qualquer enfado. Não raro, pessoas há que esquecem donde proveio a última pessoa que a adicionou. Há muitas pessoas em minha página com quem sequer troco meia palavra. Sinceramente, não vejo muito sentido em conservar imagens de fotos digitais ou impressões verbais, se eu não tenho qualquer relação substancial com as pessoas por trás desses registros. Tudo isso é consequência de uma doença coletiva, de fundo psíquico, que consiste no medo de conviver com a solidão. A ilusão de ter, digamos, 150 “amigos” em nossa página numa rede de relacionamentos virtuais, parece bastar para que fiquemos seguros de que não engrossamos a lista imensa dos solitários da sociedade individualista, que sustenta a ideologia do “egoísmo amoroso” (“ame a si mesmo em primeiro lugar”, expressão do rancor de pessoas profundamente carentes de vínculos sólidos, de amores sinceros, de pessoas que não se dão conta de que produzem os dizeres que reproduzem a liquidez dos vínculos humanos nessa fase líquida de nossa modernidade).

É certo que não posso esperar nada mais do que a mesmice nesses contextos virtuais de relacionamentos. Confesso que já pensei em me deletar. Gosto desta palavra. Ela facilita nossos embaraços sociais. Nas redes sociais de relacionamentos on-line, decerto quantidade não é qualidade. Continuo ainda buscando a minha "turma". Mas preciso encontrá-la aqui na vida real, onde há corpos e calor humano. Onde há contato entre olhares e gestos encarnados.

“Diferentemente dos “relacionamentos reais”, é fácil entrar e sair dos “relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear”

(BAUMAN, Amor Líquido, p. 13)


Felizmente, conheci pessoas por quem ainda vale a pena manter-me conectado e que, um dia, espero conhecer presencialmente. Mas não custa lembrar novamente as palavras de Bauman:


“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão, dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.


                                                           (p. 13)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Maio





Maio

É Maio, as folhas pelos caminhos, caídas
O sol é morno, entre nuvens, malicioso...
Descobre-te sob o véu negro ruinoso
As pregas que te fincaram na face outras vidas

De noite, quando a Lua vê-te assim envelhecida
O olhar imundo, a carne cheirosa já consumida
Pranteia por ti. A timidez da aurora macilenta
Destila-te n’alma o inverno a tristeza benta

E Junho, da solidão engravidado...
Convida-te a cismar ao relento...
Enquanto a teus pés tem o frio acumulado

As folhas quebradiças. E o vento morto
De um Julho negro vindo, inunda-te o rosto
Á noite, deita fria nas desgraças de Agosto.

(BAR)

"A leitura engrandece a alma". (Voltaire)

                                                
                                             
                                                 Minhas prateleiras

Quando olho a imensa quantidade de livros que se empilham nas prateleiras de meu quarto, concluo que não terei tempo suficiente para ler todos. A vida é breve demais e a leitura demanda muito tempo e dedicação. Então, deveria eu parar de comprá-los; ignorar a diversidade de meus interesses intelectuais. Por vezes, me pergunto de que adianta ler tanto. Não pretendo eu auferir reconhecimento acadêmico nas várias áreas do saber que me interessam; não tenho tempo para me diplomar nelas. Talvez, nunca produza um livro. Se pudesse produzi-lo, denominá-lo-ia Miscelâneas Intelectuais.
O fato é que, não obstante esse reconhecimento, continuo comprando-os e lendo-os. Uma vida dedicada ao desenvolvimento intelectual exige certa reclusão. Eu convivo com a solidão intelectual e qual não é meu entusiasmo quando deparo com pessoas (poucas) que me falam da importância de ler e me contam sobre os livros que têm lido! E a conversa flui...
Minha socialização, fora do trabalho, fica restrita ao entretenimento. A companhia de pessoas, quando possível, é apenas para a distração. Eu converso mais com os escritores. Enquanto leio, por vezes, falo como se estivesse um interlocutor a dialogar comigo, ou, pelo menos, como se houvesse um interlocutor a ouvir-me. Na ausência de um interlocutor interessado, escrevo e, ao fazê-lo, construo em minha imaginação esse interlocutor. A relação entre quem escreve e quem lê é uma relação imagética, já que o autor constrói uma imagem de leitor e este constrói uma imagem do autor.
Uso a palavra autor ignorando suas implicações sócio-históricas. Sequer tenho uma obra. Entenda o leitor que autor aqui quer apenas dizer agente da escrita. É nesse sentido que sou o autor de meus textos. A autoria em blogs é tema de que se ocupou Dominique Maingueneau; trata-se de uma questão problemática.
Saber dói. Conhecer pode ser perigoso. Intelectualidade demais faz sofrer. O excesso de consciência do real pode acarretar-nos depressão, desgosto. Sei bem o que é isso! Os ignorantes são mais felizes. Possivelmente, os mais facilmente ludibriados, iludíveis, me parece. Entre eles, há os que ignoram, porque ainda não puderam conhecer, e os que ignoram, porque não desejam conhecer. A estes chamo de estúpidos. Destes se diferem os medíocres, que supõem saber demais e ignoram que pouco sabem. E julgam-se capazes de explicar cabalmente os fatos ou as ocorrências do real com os parcos conhecimentos que detêm.
Por vezes, eu me perco em meus pensamentos. Meu espírito fica atado a eles e eu me atordoo. O problema é que a aprendi com a leitura que a convivência com as dúvidas, que não cessam, é indispensável ao desenvolvimento intelectual. Os que se julgam cheios de certezas acabam por não se assombrar com as feições da realidade e ficam a patinar na superfície das questões mais urgentes e intrigantes.
Eu confesso que já pensei em deletar-me; o ambiente virtual me enfada. Os clichês de toda sorte abundam. Que poderia esperar?  Esses meios não irão produzir pensadores, tampouco os reunirão. A mesmice é a regra; os lugares-comuns, a ordem de todos os dias. Então, deles participo para não viver completamente ilhado. Mas a solidão pode ser amiga, ensinou-me Rubem Alves.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

"Quero inundar-me de madrugada a alma e ver a vida com os olhos do meio-dia" (BAR)

                                                

                                                   Pessoa em mim


Dentre tantas passagens surpreendentes que se acham no trabalho de Comte-Sponville, denominado de A vida humana, a que dou a saber abaixo merece nossa atenção:

“Ninguém escolheu viver, nem ser si mesmo.”
(p. 25)

Seguirá  o filósofo contestando a posição de Sartre, para quem “cada pessoa é uma escolha absoluta de si mesma”. Para Sponville, no que estou de acordo, um recém-nascido é  exemplo suficiente para invalidar essa crença. Como poderia ter ele escolhido nascer? O nascimento nos arremessa à existência. Nascer é entrar em relação com o acaso. Nascer é sorte, escreverá Sponville.
Também a personagem Astanavis, professora do curso de suicídio, no qual se matriculou Antoine, no romance Como me tornei um estúpido, de Marin Page, põe-nos diante da nossa insensatez, sempre que supomos ser-nos possível a liberdade absoluta. Suas palavras nos convidam a pensar sobre o que é ser realmente livre. Leiamo-las com esmero:

“- Há uma censura do suicídio. Política, religiosa, social, natural até, pois a senhora Natureza não gosta de que tomemos liberdades com respeito a ela, quer manter-nos sob as rédeas até o fim, quer decidir por nós. Quem decide em relação à morte dos homens? Nós delegamos esta suprema liberdade à doença, aos acidentes, ao crime. Chamamos a isso acaso. Mas é falso. Esse acaso é a sutil vontade da sociedade que pouco a pouco nos envenena com a poluição, que nos massacra com guerras e acidentes... A sociedade decide, assim, a data de nossa morte pela qualidade de nossa alimentação, pela periculosidade de nosso ambiente cotidiano, pelas condições de trabalho e de vida. Nós não escolhemos viver, não escolhemos a nossa língua, o nosso país, a nossa época, os nossos gostos, nós não escolhemos a nossa vida. A única liberdade é a morte; ser livre é morrer.”

(p. 46)

Esses dois trechos me levariam a compor um outro texto. Mas meu objetivo aqui é outro, conforme se verá.

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Debruçar-me-ei sobre um poema atribuído a Alberto Caeiro, um dos pseudônimos do poeta Fernando Pessoa, com vistas a apresentar uma interpretação que, sem embargo da recorrência às contribuições da Crítica literária, se pretende interessante e desbravadora. Interessante, porquanto creio ter um valor sócio-cultural (ainda que permaneça inacessível ao público em geral ou aos especialistas). Desbravadora, porque pretende revelar sentimentos que me estão escusos, confusos ou dispersos. A indefinição é o que me define hoje; e eu não me atrevo a delinear os contornos de meu estado de alma agora, pois isso me consumiria muito tempo; ademais, se o fizesse, me lançaria a tal empresa sem a esperança de que, ao cabo de tão árduo trabalho espiritual, eu lograsse sucesso.
Não me agrada a teorização da literatura. Confesso resistir à leitura da crítica especializada. O olhar teórico é uma forma de visão que reifica, que engessa, “fragmenta” a realidade observada. Portanto, o olhar teórico sobre a literatura acaba por tratá-la como uma coisa que permanece, que é estável, embora se reconheça sua fugacidade, sua fluidez, sua dinamicidade. O olhar teórico cria uma ilusão de permanência. Por exemplo, a poesia escapa a qualquer tentativa de reificação pelo olhar teórico. Os sentidos poéticos estão sempre dispersos (aliás, como em qualquer outro gênero discursivo); mas, na poesia, além da dispersão dos sentidos, há que admitir a transmutação contínua deles. Para captar tal transmutação, é necessário sentir a poesia, e não lançar sobre ela olhares teóricos. A transmutação deve ser experimentada por cada leitor, que produzirá uma leitura em consonância com os seus propósitos, seu conhecimento de mundo, seu grau de conhecimento intertextual, e com o acúmulo de suas experiências de leitura.
Observe-se agora o poema de Fernando Pessoa, que transcrevo abaixo:

Se Eu PUDESSE trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar.
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...


O mundo está em mim. Referir as impressões do exterior é necessário, porque, assim, mostro que a exterioridade biossocial não  está apartada de nós, como um mero cenário onde encenamos o drama da vida; essa exterioridade afeta-nos; exerce sobre nós uma influência intensa. Essa exterioridade é interioridade constitutiva; ela desarruma-me a alma.
Para principiar a reflexão sobre o poema de Fernando Pessoa, lanço mão de certos princípios de análise tomados à teoria gerativa de Análise do Discurso. No entanto, não me ocuparei com a exposição do modelo teórico e com a definição de seus conceitos; tais princípios me servirão apenas como instrumentos de interpretação, que me permitirão apresentar uma leitura o mais límpida possível. Quando me refiro à “leitura”, subentenda o leitor o adjetivo “analítico”, pois a leitura que se assenta em níveis implícitos do texto é, por definição, uma leitura analítica, a saber, uma leitura que desconstrói ou disseca o texto, de modo que possa construir-lhe um sentido. No entanto, a leitura que proponho não se realizará para além do poema, de modo a captar os intertextos, conquanto fique claro que toda leitura está em aberto, não é vedada, já que produz silêncios. Embora não me preocupe aqui em fazer uma análise intertextual, o poema, como todo texto, está grávido de intertexto.
Não me delongando na definição de leitura, convém dizer que o poema em tela se estabelece sobre as categorias subjacentes /humanidade/ versus /naturalidade/. Tais categorias constituem a oposição semântica de base do poema. O eu-lírico propõe que se aceite a naturalidade do homem. E para tanto, é necessário reconhecer o dualismo que tece o universo natural, do qual nós, seres humanos, somos elementos integrantes. O eu-lírico propõe, pois, uma (re)conciliação do homem com a natureza.
Como seja importante buscar a sistematicidade da análise que se propõe e como se admita que aquela oposição seja a base sobre a qual se construiu o poema, vou-me deter a meditar sobre o conceito de ‘natureza’ no poema de Fernando Pessoa. De imediato, pode-se afirmar que ‘natureza’ recobre um feixe de oposições; a natureza é um universo de oposições. Tais oposições se revestem de concretude em seqüências como “nem tudo é dias de sol”, “que haja montanhas e planícies”, “rochedos e erva”. Cabe fazer aqui uma ressalva: a oposição entre “rochedos” e “erva” se dá no nível conotativo. Assim, ‘rochedo’ se opõe a ‘erva’, tendo em conta a oposição entre ‘aspereza’ e ‘suavidade’, ou entre ‘o que é tosco ou rude à vida’ e ‘o que é favorável à vida’ (se pensarmos, por exemplo, nas ervas que são utilizadas para fins medicinais). Em “nem tudo é dias de sol”, depreende-se que há dias de chuva; portanto, estabelece-se, por inferência, uma oposição entre ‘sol’ e ‘chuva’. “Sol” é um elemento ‘fórico’ (ou seja, avaliado positivamente em determinada formação discursiva), e “chuva” é um elemento ‘disfórico’ (ou seja, avaliado negativamente).
Por outro lado, o conceito de humanidade se assenta numa suposta estabilidade; é a negação do contraste natural. Os homens, assim, parecem lidar mal com a flutuação entre felicidade e infelicidade; querem experimentar o prazer estável, perene (Freud nos ensinou por que tal condição não nos é possível). A oposição entre /físico/ e /psíquico/, que o eu-lírico se propõe desfazer, está clara no pararelismo entre “Sentir como quem olha” e “Pensar como quem anda”. Convém lembrar que /físico/ se associa a /natural/, e /psíquico/ a /humano/. “Pensar” e “Sentir” são faculdades do espírito; mas o Sentir também participa do físico; situa-se na intersecção; /andar/ e /olhar/ são faculdades físicas, a saber, do corpo. O corpo é um objeto natural; e é o corpo que vincula o homem, enquanto ser racional, ao ambiente natural (primitivo). “Ter um corpo” é admitir que somos um elemento dentre os elementos da natureza; o corpo nos insere no mundo. O homem “civilizado”, “educado” segundo os valores de sua comunidade e/ou sociedade, torna-se insensível às manifestações da natureza, torna-se indiferente à existência de uma natureza viva, da qual ele é um filho que se rebelou.
O conceito de humanidade evoca o conceito de homogeneidade. O homem busca a homogeneidade como aquilo que permite a estabilidade, porque desfaz os contrastes, transformando-os numa massa homogênea. O eu-lírico nos dá testemunho disso no limiar do poema: “Se eu pudesse trincar a terra toda/ E sentir-lhe um paladar/ Seria mais feliz um momento”. Note-se o desejo humano pela absorção do mundo através dos sentidos. O homem tem necessidade de domesticar a natureza. Ocorre que o “eu-lírico”, admitindo que aquela absorção acarreta estado de felicidade (felicidade que é instantânea), confessa-nos que nem sempre quer ser feliz, e acrescenta: “É preciso ser de vez em quando infeliz”. Logo, reconhecer a necessidade de ser infeliz, ou seja, aceitar o contraste entre /felicidade/ e /infelicidade/, torna o homem um ser natural; reintegra-o ao universo natural pela filiação à heterogeneidade, ao que está em eterna relação de contraste. É preciso reeducar para o sofrimento.
Na medida em que aceita as oposições entre os elementos naturais, o homem imerge na natureza, (re)integrando-se  a ela. A reintegração do homem à natureza depende da consciência de que o natural não é estranho ao humano, ao contrário do que se supõe geralmente (antes do social, há o natural): o homem necessita dos fenômenos naturais, por isso, como bem lembra o poeta, “e a chuva, quando falta muito, pede-se / por isso tomo a infelicidade como a felicidade/ Naturalmente, como quem não estranha/ que haja montanhas e planícies (...)”. Lembrou-me um pensamento que registrei certa vez, pelo qual confessei amar as tempestades.
Vale fazer uma pequena digressão, para fundamentar a interpretação que vê a natureza como um elemento reintegrador do homem. O homem é um ser que pode ser estudado sob várias perspectivas. Reconhece-se, consensualmente, que o homem é atravessado por uma dimensão natural e uma dimensão social. A dimensão natural o aproxima a várias espécies animais do planeta, a saber, dispõem-no entre os seres vivos que têm necessidades vitais, cuja existência se desdobra em estágios tais como ‘nascer’, ‘crescer’, ‘desenvolver-se’ e ‘morrer’. Podemos ir mais longe e dizer que somos partes integrantes do universo, visto que formados pelos mesmos elementos que deram origem às estrelas e aos demais corpos celestes. Os elementos químicos característicos da constituição dos seres vivos – carbono, oxigênio e nitrogênio – foram sintetizados nas fornalhas nucleares no interior das estrelas. Somos, pois, seres indissociáveis da estrutura do universo. Por que não filhos do Universo!
A dimensão social, por seu turno, na medida em que pressupõe a capacidade de o homem produzir cultura, traça uma linha divisória entre o homem e as demais espécies animais. É claro que há espécies animais que vivem em comunidades ou espécies de sociedade, como as formigas; mas a vida social humana apresenta características singulares: a) planejamento em função de objetivos específicos; b) divisão e organização de ações e operações; c) socialização dos instrumentos e dos produtos da atividade, ou seja, a acumulação das experiências de produção e a possibilidade de acesso das pessoas aos bens produzidos. Escusa dizer que a técnica fundamental que possibilita a dinamicidade e a recriação (representação) das relações sociais é a linguagem. Esta constitui a base das sociedades  humanas. Ela permite a conversão do instrumento técnico – que nos permite agir sobre a natureza – num signo, o qual permite evocar na mente do outro a ação e a finalidade para as quais o instrumento foi fabricado. O signo permite a socialização do fazer técnico, transformando-o em objeto de conhecimento, a saber, em saber técnico. Não desço a pormenores, embora me sejam interessantes as relações entre linguagem, cognição e cultura.
Em suma, quando se considera o homem em sua dimensão sócio-cultural, é preciso assumir como pressuposto o distanciamento entre ele e o meio bio-físico. O eu-lírico propõe um retorno ao berço natural, mas não como um estado de exílio do ser social – o que seria uma ilusão, pois seres humanos necessitam viver em sociedade; esta é uma superestrutura  que os educa, que os modela, que os condiciona, (embora não sejam completamente subjugados ou determinados). -, e sim como aceitação da dimensão natural como um das dimensões que os constitui.
Deve-se contemplar o belo no polo natural a que se atribui uma qualidade negativa. Nesse tocante, o homem é um ser “polarizado”, ou seja, tendemos a concentrar nosso anseio, afeto, interesse em certas extensões de coisas, rejeitando outras, que se lhes opõem. Por exemplo, amamos os dias de sol e nos demonstramos, muita vez, desfavoráveis aos dias de chuva. No Brasil, especialmente – país edificado sobre o mito da sensualidade, dos corpos dourados e sedutores – o “sol”, como símbolo que justifica/ sustenta a exposição dos corpos, como o elemento (simbólico) que incita a busca pelo padrão tropical de beleza (corpos dourados, bem torneados, etc.) – é supervalorizado. Quem nunca ouviu dizeres do tipo “todo carioca é apaixonado por praia”; “dia nublado não é a cara do carioca”. Não faço incursão aqui em discussão de ordem sócio-cultural, porquanto isso consumiria muito tempo.
O eu-lírico toma, portanto, a natureza como um elemento /eufórico/, ou seja, como um elemento positivo. Argumenta em favor da busca pela serenidade; mas só se pode ser sereno, quando se aceita ser natural. O homem alcança o estado de tranqüilidade, quando aceita saborear a felicidade e degustar a infelicidade. A reintegração do homem ao universo natural o coloca numa mesma cadeia de transformações; o dispõe entre os elementos regidos pelas leis naturais, dentre as quais destaca o eu-lírico a “morte”. A morte se estende a muitos aspectos do mundo bio-físico: os seres morrem, mas também as feições da natureza morrem. A morte é a condição natural que irmana o homem e as feições naturais do mundo: “E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre”.
Reconhecendo-se que o homem necessita contemplar o belo, como fonte de prazer, o eu-lírico nos ensina que é possível experimentar o belo no pólo negativo da natureza: “(...) o poente é belo e é bela a noite que fica...”. A beleza que se experimenta na contemplação do poente é extensiva ao nascimento da noite (pólo negativo).
Ao cabo de seu discurso, estando o homem reintegrado na natureza e convencido de que, em meio ao contraste das feições naturais, a coexistência entre a aspereza e a suavidade, entre a suntuosidade e a simplicidade , enfim, entre o positivo e o negativo, é possível extrair da terra o prazer, o eu-lírico submete sua expressão à síntese da essência do natural – natural que não se deixa domesticar-se completamente, pois esconde em suas entranhas uma vontade própria de vida, uma vontade infinita de potência, cujas forças são grávidas de uma intensidade tal, que escapa ao desejo humano por submetê-las ao seu talante. Destarte, encerra o poeta: “Assim é e assim seja...”.