segunda-feira, 30 de abril de 2012

"Nada vem do nada e nada retorna ao nada" (só há phýsis)


                                                 

                                                       Jônia
                                                O berço da filosofia
A 
filosofia, na Grécia, se desenvolveu na cidade de Jônia, uma das áreas que compunham a região da antiga Ásia Menor, da qual faziam parte também Mileto, Éfeso, Samos, Cólofon e Quio. Jônia era, no século VI a.C., o grande centro de irradiação e prosperidade da cultura grega. Os jônios fundaram numerosas colônias junto ao mar Egeu e ao mar Negro. Quais foram as condições sócio-históricas que favoreceram o surgimento da filosofia em Jônia? E dentre elas qual a mais importante?
Alguns especialistas na História da Filosofia apontam as navegações e as transformações técnicas como fatores importantes para o surgimento da filosofia naquela região, porquanto causaram o desencantamento do mundo. Em outras palavras, pôde-se com elas superar a visão mítico-religiosa de mundo (até então predominante), pondo-se-lhe no lugar uma visão racional da realidade, que passaria a exigir explicações e justificativas assentadas na razão. Há também aqueles que consideram a invenção do calendário (que permite a abstração do tempo), da moeda ( signo que viabiliza a troca)  e da escrita como fatos que possibilitaram aos gregos desenvolver o pensamento abstrato. Decerto, todos os fatos mencionados contribuíram para a formação, entre os jônicos, do pensamento filosófico.
Todavia, como nos ensina Chauí (2002: 40), o fato determinante para o surgimento da filosofia foi a política. A filosofia, entre os gregos, surge inextricavelmente ligada à política, e esta encontrava seu nascedouro e local de desenvolvimento na pólis. A filosofia nasce como cosmologia e, como tal, preocupa-se em explicar a natureza (princípio primordial que produz todas as coisas), muito embora, porque nasce no interior da pólis, a forma como a ordem sociopolítica era explicada fosse projetada para explicar também a natureza ou phýsis.

1. A pólis: o nascedouro da filosofia grega

Pólis é a palavra grega para designar “cidade”, ou “Cidade-Estado”. Na pólis, os cidadãos se reuniam para deliberar sobre assuntos de interesse público. Dela também provém a palavra política (do grego politikós, que é o cidadão, ou o que diz respeito aos negócios públicos, à administração pública) (Chauí, 2000). É nos limites da pólis que a democracia grega nasce e floresce, já que era na pólis que se davam os debates, que os cidadãos (homens livres, excetuando-se os escravos e as mulheres) podiam exercer o poder de discursar.
O ambiente político, favorável ao debate, às tomadas de decisões sobre os rumos da sociedade, permitiu que a visão místico-religiosa de três personagens reais, até então predominante, pudesse ser, aos poucos, suplantada. Eram elas o poeta, o adivinho e o rei-de-justiça, todas recobertas pela designação Mestre da Verdade. O filósofo, seu sucessor, traria, em substituição à Verdade unilateral, derivada da autoridade, a Verdade como meta a ser alcançada pelo diálogo, pelo discurso racional. Convém atentar para as palavras de Marcondes & Japiassú, ao definir pólis, em seu Dicionário Básico de Filosofia:

“polis A cidade estado grega da qual Atenas
foi o principal exemplo no período que vai
das reformas de Clístenes (séc. VI a.C.) até
a conquista da Grécia por Felipe da Macedônia.
A polis se constituía como uma unidade política
e territorial, sobretudo através do vínculo que
seus cidadãos mantinham com ela por lealdade,
identidade cultural e origem. É na pólis que se
dá a democracia, caracterizada pela igualdade
dos cidadãos perante a lei e pela participação
destes na decisão política (...)”
(grifo meu)

Comum às três personagens reais, estava o dom de vidência, a capacidade de ver para além da realidade sensível. Eles viam o invisível. O poeta, ao cantar seus versos, tornava presente o passado; o adivinho (ou profeta) era capaz de ver o futuro; o rei-da-justiça (ou sábio) era capaz de ver ordem em meio às mudanças no mundo. Todos tinham visões inspiradas em oráculos. Eles não só tinham o dom de ver para além, mas também o dom de fazer as coisas acontecerem. A palavra deles era um fazer: “ao falar, fazem com que aconteça aquilo que dizem” (Chauí, p. 40).
Que verdade revelavam eles? O que era, em tais condições, a verdade? Em grego, verdade se diz alétheia. Assim, verdade depende da automanifestação da realidade ou do ser. A realidade se revela à visão intelectual dos homens. A verdade é, assim, aquilo que a coisa é. Quando a realidade se nos desnuda, se manifesta clara ao espírito, quando é seu ser mesmo que se mostra, dizemos que ela é verdadeira. Assim é que, para os gregos,

“o verdadeiro é o ser (o que algo realmente é) e o falso é o parecer (o que algo aparenta ser e não é)”.
(Chauí, 2008: 96)

Cumpre observar que, em alétheia, há um prefixo grego de negação –a, e o radical léthe, que significa “esquecimento” ou “esquecido”. Destarte, alétheia é o “não-esquecimento” ou o “não-esquecido”. A verdade é não esquecer e se liga a Mnemosýne, a deusa da memória. O poeta, o adivinho e o sábio (rei-de-justiça) são aqueles que não esquecem e evitam que os homens esqueçam. Como ensina Chauí (2002: 41):

“O poeta canta os feitos dos antepassados. O adivinho diz os feitos e efeitos da ação dos deuses e dos homens. O rei-de-justiça diz justiça (dike*), isto é, afirma que a ordem do mundo é governada por uma lei boa e justa.”.

A fala dos três tem efeito mágico. Ela realiza o verbalizado. Ao cantar seus versos, o poeta torna o passado presente; ao anunciar, o adivinho traz à consciência dos homens o futuro; ao enunciar justiça, o rei-de-justiça cria a lei (à semelhança do Deus judaico-cristão, que ao dizer “faça-se”, as coisas acontecem)
“Sua palavra [a dos três personagens], mesmo quando proferida em público, é sagrada e secreta, um dom que somente os iniciados possuem. É, portanto, uma palavra de poder ou de soberania, reservada apenas a alguns, homens excepcionais, dotados de poderes religiosos. São essas três figuras que irão, pouco a pouco, desaparecer com o surgimento da pólis.”

                                                             (Chauí, ib.id.)

A Grécia antiga também produziu seus guerreiros, um grupo de homens que também tinham direito à palavra, muito embora ela fosse de natureza diferente da do Mestre da Verdade. A palavra dos guerreiros é uma palavra dialógica, portanto, compartilhada entre eles. Era uma palavra publicamente acessível. Também não era uma palavra religiosa, mas leiga, própria dos homens (não tinha inspiração divina).
Após o combate, esses guerreiros se reuniam e formavam uma assembleia. Em círculo, cada qual podia se dirigir para o centro e falar, propondo táticas e estratégias de combate. Essa prática acontecia ao cabo de cada combate. Cada guerreiro também tinha o direito de escolher seus espólios. Podiam eles falar, emitindo suas opiniões e eram considerados iguais em face da lei, criada pelo próprio grupo. Com a assembléia dos guerreiros e em virtude delas, surge a pólis e a política.
Em grego, palavra ou discurso se diz lógos, que, por sua vez, relaciona-se à dóxa, que significa “opinião”. Dóxa pode significar tanto ‘participar na base de um julgamento adequado a uma situação”, ‘conformar-se a uma norma’ ou ainda ‘escolher e decidir’. A dóxa se situa no campo político e como tal está a serviço daqueles que pretendem persuadir e impor sua opinião aos outros. Não tardou para notar a aproximação dela com a alétheia, já que, por vezes, pela dóxa o cidadão buscava seduzir seu interlocutor, mas de modo enganoso.
A filosofia surge então do encontro da dóxa com a alétheia. Em vários momentos, os filósofos se inclinavam mais a uma do que a outra. Entre estes estavam os sofistas, que empregavam a dóxa para persuasão e cobravam pelo serviço prestado. Coube a Sócrates e Platão fazer valer a alétheia sobre a dóxa.

“Será o momento em que a filosofia, em vez de ocupar-se com a origem do mundo e as causas de suas transformações, se interessará exclusivamente pelos homens, pela ética, pela política. A dóxa (palavra própria do espaço político da discussão, da escolha e persuasão) será substituída pela alétheia (palavra dos iniciados que se expõe a todos, sem necessidade de persuasão e de escolha) quando a ética e a política deixarem de ser opiniões práticas sobre a conduta individual e coletiva para serem consideradas ciências ou conhecimentos teóricos sobre a essência do homem e da pólis”.
(p. 44)

A filosofia, assim, inaugura, através do lógos (discurso racional) a sua grandiosa investigação sobre o ser. A pergunta com que todo labor filosófico se inicia – O que é o ser? – que, em Parmênides de Eléia, já encontrara sua expressão germinal, passaria a ocupar a mente dos pensadores gregos. A pergunta pelo ser das coisas é a pergunta pela verdade, mas de uma verdade que deve ser buscada pelo pensamento; daí entender-se o pensamento de Parmênides, ao anunciar “é o mesmo o ser e o pensar”.  Nada mais do que dizer que o real é racional e o racional é real. Eis a identificação entre razão e realidade, tão cara aos filósofos de todas as épocas, que viriam a beber da fonte grega.
Cuido necessários alguns comentários sobre a figura de Parmênides, o filósofo do Ser. O Ser, para Parmênides, era real, mas sua realidade era inacessível aos sentidos. O Ser de Parmênides tem natureza oculta, abstrata e opõe-se à aparência. Do Ser só se pode dizer que ele é. O não-ser não é. O Ser é imutável, permanente, resiste às mudanças, a que temos acesso pela experiência sensível. O Ser está ligado à experiência intelectiva, ou seja, do intelecto. Seu principal discípulo, Melisso de Samos, pensava o Ser como eterno, imutável, atemporal e incriado (Marcondes, 2008: 36). O Ser não tem começo e de nada deriva.
Da alétheia do Mestre do Saber (o poeta, o adivinho e o rei-de-justiça), a filosofia colheu o sentido de verdade que sobrepuja a dóxa. A filosofia se assenta no lógos e, portanto, propõe um discurso (que é ação pela palavra) que se destina a buscar a verdade. O que se faria, doravante, seriam debates desinteressados, que visariam a trazer à tona a verdade. A filosofia tornar-se uma contemplação desinteressada da verdade (theoria). A theoria será o resultado da ação do lógos, que se assenta no acordo entre o ser, a razão, o pensamento e a palavra, que são comuns a todos os seres humanos.

“A opinião é múltipla e variável; a verdade é uma e imutável. A opinião nasce dos conflitos e os alimenta. A razão é idêntica em todos os homens e propício à paz”.

(Chauí, 2002: 45)

A universalidade pretendida pela filosofia ficou, entretanto, no plano das ideias, pois que, historicamente, veio a ser tornar, para o bem da própria atividade crítico-reflexiva de que ela é a maior expressão, um palco de pluralidade de vozes, consoante ensina Chauí:

“Paradoxalmente, essa pretensão da filosofia de ser universal, de encontrar o acordo entre as ideias e estabelecer a identidade entre as coisas e o pensamento se realizará como ideal inatingível, pois, de fato, será feita de desacordos e de oposições entre os filósofos”.

(ib.id)

Ser um discurso que se abre para muitas vozes, para muitas perspectivas é próprio da filosofia. Nos seus vastos palcos, encenam muitas vozes; todas dialógicas, conflitantes ou consonantes; todas atravessadas pela pluralidade dos discursos. Todas compromissadas com a verdade.








[1] Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos à Aristóteles, v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
___________ Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2008.

Marcondes, Danilo. Hilton Japiassú. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Marcondes, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

"Caminhando e cantando e seguindo a canção..."


                        

                               O retorno do mesmo
Abro a seção Boa Chance do Jornal O Globo, de 22 de abril de 2012 e depara-se-me uma reportagem sobre “erros” de português numa questão de prova de concurso público. No cabeçalho, lê-se Nenhuma das repostas abaixo. Subscrito, topa-se Erro de português em questão de prova de concurso público é mais frequente do que se imagina.
Para muitos, o fato é alarmante (isso deve ter sido um prato cheio para os gramáticos de plantão repisar seus chavões). E os que apreciam o patrulhamento linguístico e creem-se integrados à Guarda de Salvação da Língua Portuguesa devem ter engrossado mais suas opiniões preconceituosas sobre o modo como “a língua de Camões” tem sido tratada aqui nessas terras tupiniquins. E o que dizer dos “erros”?
Os desvios de norma culta se verificaram nos âmbitos da ortografia (grafou-se “exige” com “j” (exije), esqueceu-se o acento agudo em “publico” (“interesse publico”); além disso, grafou-se “senhoragem”, ao invés de “senhoriagem”); da concordância verbal (aqui justificável, como veremos), caso em que o verbo “ser” é pluralizado, ainda que o sujeito, oracional, na variedade padrão, exija o verbo na terceira pessoa do singular (“Ter boas práticas de higiene pessoal são fundamentais”), da concordância nominal (dez pagamento mensais - a presença do numeral na posição pré-nuclear leva à não marcação do plural no núcleo do SN; ademais, a marca de plural, em SN com pré-determinante, ocorre sistematicamente neste elemento e tão-só nele, o que nos leva a conjecturar que houve um lapso quando da não-marcação do plural no nominal, já que o adjetivo subsequente está no plural, sugerindo  que todo o SN deve ser entendido no plural. (cf. Os menino levado / Aqueles barco grande, comuns nas variedades populares.); e, finalmente, de regência, caso em que faltou o emprego da crase, em “Os estados e municípios poderão conceder incentivos as  MPEs...”).
Fazendo eco a Nietzsche, sem pretender, contudo, subverter seu conceito de “eterno retorno”, que, há de se frisar, deve ser entendido dentro dos limites de sua obra, e que tem caráter metafísico - quase místico - sucede que a sociedade nos dá fartos exemplos de práticas, eventos e circunstâncias que retornam incessantemente, a despeito das medidas políticas e/ou científicas para evitar que se repitam. Trata-se do retorno do mesmo. Em matéria de linguagem, o mesmo retorna em forma de discursos que insistem em acentuar a crença equivocada no empobrecimento do idioma, na deturpação dele pelos seus usuários, como se nota no texto da jornalista Maira Amorim, que escreveu a referida reportagem. Dou a conhecer abaixo o trecho inicial:

“Tudo bem que errar é humano e
qualquer um pode se confundir
com o português. Mas, quando
estamos falando de enunciados
e questões de provas de concursos
públicos, maltratar a língua é imper-
doável. Afinal, como cobrar que os
candidatos acertem tudo se nem
mesmo as bancas são capazes
de fazê-lo?”
(grifo meu)

A crença de que a língua pode ser maltratada ou de que ela é constantemente maltratada pelos seus usuários é recorrente no universo da mídia. Ela está arraigada na consciência da maioria esmagadora de indivíduos em nossa sociedade, entre os quais estão aqueles que gozam de maior grau de escolarização e prestígio sócio-cultural. Essa maneira equivocada de entender as complexas relações entre língua e sociedade é ideológica, na medida em que mascara tais relações, legitimando uma dada visão sobre a língua, a saber, a de que ela tem de ser preservada do mau uso feito pelos seus usuários, especialmente se estes proveem das classes menos favorecidas socioeconomicamente. A crença segundo a qual a língua deve ser preservada da corrupção perpetrada por aqueles que são, supostamente, incapazes de se expressar nela é muito velha, pois que remonta ao século III a.C.
Também aquela visão revela as formas como o poder se expressa no âmbito sociolingüístico. Para compreender adequadamente avaliações como aquela, é necessário ter em conta a dinâmica do poder que a elas subjaz: quem o faz ocupa uma posição de prestígio e tem o poder de o fazer. Ao declarar que a língua é maltratada em questões de provas de concurso, a jornalista pressupõe haver indivíduos que a maltratam e supõe não estar entre os “incompetentes”, que usam mal o português. Ademais, atribui a toda uma classe de profissionais responsáveis pela elaboração dos exames a culpa pelos maus tratos à sua língua materna.
Vale notar que, quando falamos de poder, não devemos restringi-lo à esfera do Estado. O poder se imiscui nas práticas dos sujeitos no cotidiano. Nossas relações sociais rotineiras são atravessadas por formas de poder, sutis ou patentes. Pense-se na situação em que um pai se aposse do controle remoto da televisão, enquanto o filho, que estava assistindo a um programa de que gosta, foi atender ao telefone. Ao retornar, a criança pode reivindicar o direito ao acesso ao aparelho, para poder continuar vendo o seu programa, mas sabe que terá de defrontar-se com uma autoridade, com alguém que ocupa uma posição de poder. É claro que o laço amoroso pode sobrepujar a relação de poder, mas, em todo caso, nessa imagem comum do cotidiano, clara está a forma como o poder se manifesta.
Comentarei, brevemente, os casos assinalados como “erros de português” (lembrando sempre que a noção de “erro” em matéria de língua é muito simplista no senso-comum, e mascara uma realidade socio-histórica, marcada por forças ideológicas, que persistem ainda hoje). Dispensando-se o desvio da norma ortográfica, que prevê a grafia “exige” para o verbo “exigir”, particularmente interessante é o caso da concordância verbal. Nesse caso, o sujeito é oracional, ou seja, constituído por uma oração reduzida de infinitivo, como em “Acordar cedo na segunda-feira é muito difícil”, “Trabalhar até às oito da noite me cansa”.  Sucede, contudo, que casos como o do exemplo assinalado pelo jornal são perfeitamente explicáveis pela linguística. Os especialistas mostram que o verbo pode ser flexionado no plural, quando o sujeito, mesmo no singular, sendo extenso, inclui elementos que estejam no plural próximos ao verbo. A concordância se faz por atração, ou seja, o elemento mais próximo, no plural, influencia a relação de concordância, levando o verbo a assumir a forma de plural. Isso explica o emprego de “são”, no enunciado assinalado pelo jornal, já que o núcleo do SN (objeto direto) está no plural - “práticas”. Ao contrário do que se possa imaginar, casos como este são muito frequentes na língua escrita (ocorrências como "um deles saíram", "cada um de vocês falem..." são comuníssimas na escrita de alunos em nível escolar). Essa concordância por “atração” não deveria surpreender os defensores ferrenhos da norma padrão, visto que casos como “a maioria dos deputados foram cassados”, “A grande parte dos funcionários estão demitidos” são abonadas pela gramática normativa. Salta à vista a semelhança entre os casos, nos quais a concordância se dá, por atração, com o elemento no plural, que é o determinante. Mas, note-se bem, que o núcleo sujeito (maioria, parte) está no singular. A despeito disso, o plural também é aceitável na variedade padrão do português.
Finalmente, considere-se o seguinte excerto da reportagem:

“A falta da letra “i” [caso de senhoragem]
pode confundir um candidato, assim como
a ausência de um acento. Entre “publico”
e “público” a diferença vai além do acento
agudo e chega ao significado”.

De fato, o acento agudo em “público” tem valor distintivo. Assim, a presença do acento indica que a palavra pertence à classe do substantivo, ao passo que sua ausência leva-nos a entendê-la como a forma da primeira conjugação do presente do indicativo do verbo “publicar”. Mas a jornalista, como qualquer pessoa leiga em estudos linguísticos, foi incapaz de atentar para um outro fato. “Público” e “publico” não tem a mesma distribuição sintática. Se ela tivesse prestado atenção no ambiente sintático em que figura a forma “publico”, talvez não lhe fosse custoso concluir que qualquer candidato conseguiria inferir se tratar de “público”. Tomemos um trecho do enunciado: “Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse publico perante a Administração”. Note-se que “publico” aparece junto ao substantivo “interesse”. E nós, falantes nativos de português, sabemos, ainda que intuitivamente, usamos adjetivos para modificar substantivos (cf. as medidas governamentais, o plano econômico, o menino travesso, o deputado corrupto, a política pública, etc.). Por outro lado, se nos deparássemos com uma frase como “Eu público mais um texto amanhã”, a despeito da ocorrência de uma forma como “público” (que poderia figurar aí por um equívoco na digitação), o ambiente sintático em que ela ocorre (após o pronome “eu” na função de sujeito e seguindo de um SN na função de complemento) nos permitiria concluir se tratar da forma verbal “publico” (eu publico artigos) e não do substantivo “público”.
A ignorância episódica da jornalista sobre os mecanismos estruturais da língua é compreensível por não ser ela instrumentalizada para analisar com acuidade os eventos de linguagem, mas, de modo algum, podemos aquiescer em sua visão elitista e preconceituosa sobre o uso da língua. 

terça-feira, 24 de abril de 2012

"A dor de alma é grávida de nostalgia" (BAR)



Saudade Romântica


Saudade da dor
Que morria em mim
E me inspirava

Notas líricas de tédio
E tendo-a inteira
No coração ébrio
De amor
Me consumia



Saudade da dor
Que me ardia
Como arde a ferida
Que sangra
E nunca cicatriza




De uma dor tenho saudade
Que tanto mal a mim fazia
Quiçá fizesse bem
Inspirando-me a poesia




Saudade da dor
Que se debatia
Nas madrugadas de inverno
Da dor          [carência]
Dos silêncios outonais
Que a alma me enchia
Da dor tenho saudade
Da romântica poesia.


(BAR)


domingo, 22 de abril de 2012

"A minha vida é um suspiro de palavras" (BAR)


                 

             
                                    A construção do Cânone
                     
                                Como a Bíblia foi fabricada?

Estima-se que o número de cristãos no mundo chegue a 2, 180 bilhões, dos quais 50,1% são católicos. O Brasil ocuparia hoje o segundo lugar entre os países que abriga a maior quantidade de cristãos, a maioria dos quais católicos (http://noticias.gospelmais.com.br/pesquisa-brasil-segundo-pais-cristao-mundo-28475.html). A despeito do sincretismo que caracteriza fundamentalmente a nossa cultura, o Brasil é hoje considerado o maior país católico do mundo. Cerca de 70 % dos brasileiros são católicos e 89% da população do país é cristã.
Fico imaginando quantos dentre esses 151 milhões e 200 mil brasileiros (incluindo-se nessa totalidade católicos e evangélicos (tradicionais, pentecostais e neopentencostais)) sabem sobre os fatos de cuja exposição me ocuparei aqui. É certo que a maioria esmagadora os ignore. Convém lembrar, no entanto, que não escrevo sobre religião e sobre Deus com vistas a dissuadir quem quer que seja de suas convicções de fé.  À medida que me aprofundo em meus estudos sobre essa temática instigante e relevante (se realmente nos preocupamos com as direções que tomará o curso da História, sempre que a fé imiscuir-se em assuntos de interesse científico, político e social), reconheço que não será com discursos produzidos com rigor racional e ácido espírito crítico que se levará as pessoas que, desde crianças, têm suas percepções da realidade moldadas na visão de mundo (ideológica) da religião, a abandonarem sua fé.  Tal reconhecimento não faz calar a pergunta sobre o porquê de os religiosos serem tão resistentes a pôr sob o escrutínio da razão suas crenças religiosas, ou mesmo sobre o porquê de serem infensos a qualquer iniciativa de debate sobre questões suscitadas pela fé.
Eu escrevo, portanto, para os não religiosos (agnósticos e ateus). E, principalmente, escrevo para elucidar a compreensão que me foi possível durante minhas leituras. Escrevendo, sistematizo o conteúdo interpretado e compreendido. Escrevendo, esmiúço-o, dando-lhe mais nitidez em meu espírito. Escrever é também uma forma de compreender, tendo já terminada a primeira etapa de compreensão pelo exercício da leitura. Escrevo pelo prazer de concatenar ideias que afiguram bem o conhecimento adquirido. Escrevo para dar-lhe uma ordem, uma  solidez.
Vou encetar, pois, minhas reflexões com um longo excerto de Bart, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), que servirá para cativar o espírito do leitor, de modo que se sinta disposto a prosseguir na leitura. Cuido ser uma estratégia de instigação intelectual ou, se preferir, de sedução intelectiva, que me aproveitará. Senão, vejamos:

“Quando comecei a estudar a Bíblia na adolescência, com mais paixão que conhecimento (muita paixão, nenhum conhecimento), eu naturalmente imaginei que o livro tinha sido dado por Deus. Meus primeiros professores da Bíblia estimularam essa crença e a tornaram natural para mim, com visões cada vez mais sofisticadas sobre como Deus inspirara as Escrituras, fazendo delas uma espécie de roteiro para minha vida, me dizendo no que acreditar, como me comportar e o que esperar que acontecesse quando este mundo parasse de repente, em breve, com o advento de Jesus nas nuvens do céu.
Eu obviamente já não enxergo a vida assim. Em vez disso, vejo a Bíblia como um livro muito humano, não como um inspirado por Deus. Na verdade, muitas partes dela são inspiradoras, mas já não vejo a mão de Deus por trás de tudo. Não temos os originais que nenhum desses autores escreveu, apenas cópias que foram alteradas por mãos humanas em todos os pontos. E os livros que consideramos Escrituras passaram a formar um cânone séculos após terem sido escritos. Em minha opinião, isso não foi resultado de intervenção divina; foi resultado de líderes muito humanos da Igreja (todos eles homens), fazendo de tudo para decidir o que era certo.”
                                                            (p. 241)
                                                           (grifos meus)

Na primeira parte dessa passagem, o autor nos conta sobre como pensava quando sua mente era guiada pela paixão e pelo discurso de seus professores de teologia. Na adolescência, seu espírito era facilmente fisgado por concepções para as quais faltavam provas. Tal estado de credulidade perdurou ao longo dos anos em que se dedicou, no Seminário Teológico de Princenton, aos estudos bíblicos. Entretanto, à medida que se aprofundava nos estudos da Bíblia, após sua graduação, Bart descobriu a verdade por trás das escrituras. Esse desvelar da verdade lançou por terra sua credulidade; não mais podia sustentar a crença em que a Bíblia fora escrita sob inspiração de Deus. Ela é uma obra humana, e muito humana.
Bart desenvolve seus estudos sobre as origens do Cristianismo e sobre a Bíblia numa perspectiva crítico-histórica, a qual reúne o espírito de quem busca reconstruir os fatos (o historiador) ao espírito de quem os examina à luz de um método hermenêutico que traga  à tona as verdades ocultadas por discursos que se foram construindo na base de falsificações ao longo de séculos.
Dentre aqueles milhões de religiosos referidos, suponho que a grande maioria ignore o fato de que há outros tantos evangelhos que não foram incluídos no cânone (no conjunto de livros considerados pela corrente proto-ortodoxa como legítimos para o estabelecimento da Igreja e das raízes da fé). Neste texto, também vou me ocupar com a apresentação de fatos que giram em torno da fabricação deste cânone. Afinal, como os 27 livros da Bíblia chegaram até nós? Milhões de pessoas no mundo leem-na sem saber nada a respeito disso. Penso que é urgente elucidá-las sobre a forma como esses livros se tornaram objeto de adoração e signos inquestionáveis da verdade. O percurso é longo, mas tenho certeza de que será gratificante ao leitor arguto.



1.       As diversas formas de cristianismo primitivo


Bart D. Ehrman, em Evangelhos Perdidos (2008: 19), ensina-nos que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs. Havia cristãos que acreditavam em um único Deus, que julgavam verdadeiro. Outros tantos havia que acreditavam que existiam dois deuses. Outros ainda acreditavam que existiam 365. Alguns acreditavam na existência de trinta.
Também nesses séculos, havia cristãos que acreditavam que Deus é o criador do mundo. Outros, no entanto, pensavam que este mundo fora criado por uma divindade ignorante (isso explicaria a quantidade de dificuldades e sofrimento que recaem sobre a vida dos que nele vivem). Havia aqueles ainda que acreditavam que o mundo fora criado por uma divindade maligna, e o fez para aprisionar os homens e submetê-los à dor e ao sofrimento.
Naquele tempo, existiram cristãos que pensavam ser a Escritura Judaica (o “Velho Testamento da Bíblia cristã) um livro que fora inspirado por Deus, o único e verdadeiro. Outros havia, porém, que quem a inspirou foi o Deus dos judeus, que não era o Deus verdadeiro. Havia ainda cristãos que acreditavam a inspiração provinha de uma divindade maligna. Finalmente, outros tantos acreditavam que não houve inspiração alguma a guiar sua confecção.
As opiniões sobre a identidade de Jesus Cristo também divergiam bastante. Havia, nos século II e III, quem acreditasse que Jesus reunia em si duas naturezas: a humana e a divina. Cristãos havia que acreditasse que ele era completamente divino e, o sendo, não poderia ser também humano, já que uma natureza, necessariamente, contradiz a outra. Alguns acreditavam que Jesus não era divino, mas que fora adotado por Deus para filho.Outros ainda acreditavam que Jesus Cristo era homem e Deus; mas Jesus era o homem; e Cristo, o espírito divino que habitou seu corpo durante o seu ministério. Acreditavam que Cristo inspirou seus ensinamentos, mas abandonou seu corpo antes da morte.
Claro é que havia aqueles que não acreditavam que a morte de Jesus acarretou a salvação do mundo. Outros acreditavam que a sua morte não estava relacionada à salvação. Para outros tantos cristãos, Jesus nunca morrera.
O leitor pode, agora, estar-se perguntando como poderia haver tanta diversidade de crenças e opiniões, àquela época? Decerto, os textos que compõem o Novo Testamento começaram a ser escritos anonimamente por volta do século II. No entanto, os cristãos daquele tempo não podiam ainda ir à fonte para se certificar de qual dentre as muitas crenças que circulavam era a correta, simplesmente porque não havia Novo Testamento. Os textos ainda não haviam sido reunidos para compor um cânone de Escritura. Em outras palavras, a Bíblia cristã, tal como a conhecemos hoje, ainda não existia.
Também, à época, circulavam outros escritos (Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses) produzidos por pessoas que se declaravam os apóstolos de Jesus. Cabe observar, a essa altura, que os quatro evangelhos que viriam a compor o Novo Testamento foram todos escritos anonimamente. Tempos depois é que lhes foram atribuído autoria. Sabemos, com Bart, que os nomes que constam no cabeçalho dos quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João) não correspondem aos verdadeiros apóstolos de Cristo. Tais nomes foram dados por seus autores com vistas a angariar prestígio e reconhecimento. Os quatro evangelhos são, portanto, produto de falsificação, prática muito comum naqueles tempos.
Outros evangelhos também estavam disponíveis, como um texto cuja autoria fora atribuída a Simão Pedro, outro cuja autoria fora atribuída a Maria Madalena; outro ainda que teria sido escrito pelo apóstolo Filipe; e outro atribuído ao irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.
É claro que alguém, que gozava de poder social e político, decidiu quais seriam os evangelhos, dentre os muitos disponíveis, que viriam a compor o cânone. É desse tema que trataremos neste texto.
Quando, finalmente, o Novo Testamento estava acabado, a coletânea reunia Atos, que são relatos sobre o que fizeram os discípulos após Jesus ter morrido. No entanto, havia outros Atos disponíveis nos primeiros anos da igreja. Entre eles, havia os Atos de Pedro e de João, os Atos de Paulo, e os Atos da companheira de Paulo, Tecla. Eles não entraram a fazer parte da coleção de livros da Bíblia, porque quem atuou na produção do cânone julgou que tais textos não correspondiam à visão proto-ortodoxa de uma elite.
Sabemos que Paulo, que de perseguidor dos cristãos, passou a ser seu principal defensor e propagador de suas crenças, supostamente escrevera treze epístolas. Os estudiosos concordam que Colossenses e Efésios não são de autoria de Paulo. Embora ele tenha escrito 1 Tessalonicenses, não escreveu 2 Tessalonicenses, cujo autor pseudônimo tomara a primeira como fonte. O conteúdo de 2 Tessalonicenses é bastante diferente do conteúdo de 1 Tessalonicenses. Elas se assemelham quanto ao estilo da escrita, mas veiculam conteúdos ideológicos diferentes.
Há outras cartas atribuídas a Paulo, como uma que ele enviara ao filósofo Sêneca, que não constam do cânone. Também não figuram na Bíblia cristã uma carta considerada de autoria de Paulo escrita à Igreja de Laodicéia, bem como 3 Coríntios (lembre-se de que na Bíblia só se encontram 1 e 2 Coríntios).
Ehrman dá-nos a saber o desfecho do longo processo de fabricação da Bíblia:

“Hoje, sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. Alguns deles nós temos hoje; outros, conhecemos apenas pelo nome. Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos [para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares [do Brasil].”
(p. 21)


                2. O estabelecimento do cânone


Houve várias tentativas de estabelecimento de um cânone de Escrituras. Não me será possível discorrer sobre elas aqui. Nesse tocante, destacarei tão-só o papel decisivo que exerceram dois líderes da Igreja, no fim do século II e início do século III, chamados Irineu e Tertuliano. Irineu fora o fundador da teologia cristã e combatente contumaz das heresias cristãs. Vale lembrar que hereges eram aqueles cujas visões teológicas divergiam da visão proto-ortodoxa de uma pequena elite, mas originalmente, do grego haeresis, heresia significava “escolha”, “opção”. Tertuliano fora um apologista cristão que travou contendas com cristãos displicentes. Também ele estava interessado em fazer predominar a visão proto-ortodoxa sobre as demais.
Coube a essas duas personagens da História defender a ideia de que uma “regra de fé” já havia sido estabelecida pelos apóstolos de Jesus e que essa regra deveria ser acolhida por todos os cristãos. Essa regra, ao mesmo tempo em que passou a constituir a base da ortodoxia, rejeitava os outros pontos de vista comuns à época. Vale dizer que a autoridade dos apóstolos é que deveria ser o critério para estabelecer as crenças verdadeiras. Basicamente, a regra tornou predominante as crenças segundo a quais só há um Deus, ele é o criador do mundo, e é humano e divino. A crença ortodoxa faz ver, hoje, para nós, como a imagem de Deus não é senão a imagem que o homem faz de si como ser divino. Sabe-se que o Deus judaico-cristão é um Deus antropomórfico, ou seja, definido com propriedades ou predicativos humanos (bom, amoroso, justo, fiel, etc.). A observação desse fato talvez tenha levado Feuerbach, em seu principal trabalho a Essência do Cristianismo, a escrever que ”Deus é o espelho do homem” (p. 89), ou ainda que “Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais própria, separada e abstraída (...) quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado” (p. 59). Assim, com Feuerbach, podemos desfazer a inversão ideológica operada na forma “O homem foi criado a imagem e semelhança de Deus”, dando a expressão um sentido que exprime a verdade, ou seja, o modo como se dá a relação entre o homem e Deus: “Deus foi criado a imagem e semelhança do homem”.
Os Credos Apostólico e Niceno, escritos no século IV foram determinantes para oficializar aquelas crenças. A essa altura, os líderes proto-ortodoxos detinham um conjunto de crenças, outorgadas pela autoridade do bispo, e se puseram a fazer desaparecer aquelas que julgavam estar erradas.
O estabelecimento do cânone não se deu por critérios explícitos e bem definidos, embora haja relatos que permitem entrever alguns critérios que eram importantes, a saber: a antiguidade dos textos, a catolicidade, a apostolicidade e a ortodoxia.
Segundo o critério da antiguidade, os textos, para serem aceitos num cânone, deveriam ter sido escritos nas primeiras décadas da Igreja cristã; portanto, quanto mais antigos fossem maiores seriam as chances de eles entrarem para o conjunto de textos reconhecidos como expressão da fé verdadeira. Pelo critério da catolicidade, rezava-se que apenas os textos utilizados pela igreja poderiam vir a compor o cânone; os que não fossem, embora pudessem ser admirados, não poderiam integrar a classe dos textos seletos. A apostolicidade determinava que somente os textos escritos pelos apóstolos ou por amigos destes é que podiam compor o cânone. Era o critério mais importante e explicava por que os Evangelhos passaram a ser chamados por nomes específicos. Não se aceitava que os textos fossem escritos por pessoas anônimas. Sucedia, contudo, que as autoridades da época não eram instrumentalizadas para estabelecer quem eram os verdadeiros autores das obras. Serapião, bispo proto-ortodoxo da cidade de Antioquia, na Síria, por exemplo, decretou que o Evangelho de Pedro não tinha sido escrito por ele mesmo Pedro, muito embora o texto alegasse ter sido Pedro seu autor. Serapião não dispunha dos critérios de que, hoje, estudiosos eminentes da Bíblia se valem para estudar e certificar-se da originalidade dos textos. Ele apenas o fizeram baseando-se na ideia de que os textos rejeitados não expressavam a visão ortodoxa aceita.
Finalmente, pelo critério da ortodoxia, Serapião rejeitou textos que não se afinavam com o ponto de vista considerado ortodoxo. Concluiu que, se não são ortodoxos, tais textos não haviam sido escritos pelos apóstolos. Somente textos considerados apostólicos podiam ser aceitos.
Passaram-se pelo menos trezentos anos de debate até que o cânone começasse a ser definido. Evidentemente, muitos livros considerados quase ortodoxos e que alegavam ter sido escritos por um apóstolo de Jesus, não obstante, não se tornaram candidatos à inclusão no cânone, entre os quais estavam o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Barnabé e 1 Clemente.
Coube a Atanásio, bispo de Alexandria e inimigo da heresia ariana, cujos textos defendiam a fé proclamada pelo Concílio de Nicéia, em 325 d.C., determinar os 27 livros que conhecemos hoje como representativos do cânone, em 367 d.C. Não obstante, a determinação de Atanásio, ela não pôs fim às disputas em torno de quais textos deveriam compor o cânone. Por muitos séculos, várias igrejas adotaram listas um pouco diferentes, algumas das quais incluía 3 Coríntios como canônico. À medida que avançava o século V, o conjunto de textos determinados por Atanásio como canônico obteve unanimidade. Ensinará, pois, Ehrman, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010):

“(...) Esses livros, e apenas eles, foram copiados por escribas que reproduziram as Escrituras durante toda a Idade Média. E, embora nenhum concílio mundial da Igreja tenha ratificado a lista de Atanásio por mais de um milênio, o uso pelo povo forneceu uma espécie de ratificação de fato, até o momento da invenção da imprensa. Quando passou a ser mais fácil imprimir bíblias, depois da invenção dos tipos móveis, no século XV, o cânone já estava estabelecido. A partir de então não havia dúvidas quanto a quais livros deviam ser incluídos, e em qual ordem. Hoje, onde quer que você compre um Novo Testamento, será sempre o mesmo conjunto de livros, na mesma sequência”.
(p. 239)

O cânone resultou de um processo lento e muitas vezes penoso, já que, em torno dele, houve muitas manifestações de pontos de vista discordantes, que foram debatidos, aceitos e eliminados.

“Seja lá o que os teólogos cristãos e outros crentes sustentem sobre o ímpeto e a orientação divina por trás da canonização das Escrituras, também está claro que foi um processo bastante humano, determinado por um grande número de fatores históricos e culturais”.
(p. 240)


3. Ponderações finais



Por um instante, eu estava disposto a cessar de escrever este texto, depois que fui advertido de que minha insistência em trazer à tona minhas posições ateístas estava tornando-se enfadonha. E, para prová-lo, alegou-se que algumas amigas atéias não mais sinalizam seu interesse por minhas publicações. Todavia, entendi que, se isso for verdade, ainda assim não deve ser razão suficiente para demover-me da empresa que considero válida: trazer à consciência dos não-religiosos fatos importantes sobre um fenômeno contra o qual alguns se opõem; e sobre o qual outros tantos lançam descréditos.
Sinto ser necessário lembrar que não posso ser comparado a certos ateus que se limitam a expor mensagens jocosas para ridicularizar as crenças religiosas. Não só porque discordo de que seja essa uma prática válida para afirmar direitos e atrair reconhecimento pela maioria da sociedade, como também porque tenho insistido em que minhas posições ateístas são fundamentadas em estudos que empreendo habitualmente. Tornei-me ateu porque, através da leitura de textos filosóficos, enrijeci as raízes de meu ceticismo. A filosofia abriu-me as portas para conhecer sobre a literatura ateísta, mas antes de tomar conhecimento dela, já cultivava em meu espírito fortes suspeitas sobre o valor dos textos tidos como sagrados e legitimados como meios para orientação da conduta dos cristãos. Não me importava muito com a crença de que eles teriam sido escritos por meio da inspiração divina. Para mim, isso não fazia muito sentido, porque sabia que cada uma das três grandes religiões monoteístas, a saber, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, tinham seu próprio livro. Teria Deus inspirado todos três? Se sim, porque diferem entre si em ensinamentos fundamentais? Por que, então, as três tradições seguiram caminhos diferentes? Para os muçulmanos, Deus inspirou a Maomé, profeta a quem coube transmitir os ensinamentos divinos. Para os Cristãos, coube a Jesus reeducar aqueles que se desviaram da Lei de Deus, reformando-a em alguns pontos e reinterpretando-a com uma retórica pacifista. Já os judeus acreditam que Deus fizera um pacto eterno com o patriarca Abraão. Os judeus negam ter sido Jesus o Messias. E as várias correntes judaicas divergem quanto a temas como vida além-morte e Ressurreição.
Da mesma forma que os religiosos têm o direito de estampar suas mensagens cristãs, também eu tenho o direito de expor minhas posições ateístas. E da mesma forma que a grande maioria é indiferente a elas, também eu o sou em relação às deles. A indiferença mútua, portanto, serve para evitar o conflito. A mim, pouco importa que as pessoas continuem a falar em Deus, a reproduzir os discursos que aprenderam na igreja e que vieram a moldar sua consciência de mundo, suas formas de perceber e se relacionar com os acontecimentos da vida, desde que esses acontecimentos toquem à esfera subjetiva. No entanto, se me é negado o direito de expor minhas posições, porque supostamente elas incomodam, ou se as posições religiosas venham a imiscuir-se (como o têm feito) na direção do governo deste país, então não me privarei de manifestar minha oposição. E me oponho sempre que não silencio em face da influência que as crenças de líderes religiosos exercem sobre a decisão política sobre os rumos da sociedade.
Eu escrevo não com o objetivo de dissuadir ninguém de suas crenças religiosas. Escrevo porque sinto prazer em fazê-lo e porque cuido ter talento suficiente para tanto. Dedico-me à escrita como quem se dedica a fazer crochê: com vagar e paciência, abstraindo-se de tudo e de todos. Tendo apenas a solidão como berço que anima os pensamentos. Minha escrita é a forma que desenvolvi para resistir ao mundo. Pela escrita, eu intervenho, ainda que anonimamente, nas formas como a sociedade em que vivo e atuo como cidadão e educador me atinge. A vida social nos interpela, mas, infelizmente, só é dado responder aos que tiveram o privilégio de ter alcançado uma escolarização plena e de ter conquistado o direito ao acesso aos livros. Meu compromisso como educador é contribuir para universalizá-lo. A escrita que desenvolvo é minha defesa contra o mundo. Apreciem-na ou não, vale-me mais a aventura do que a recompensa. Que eu permaneça para muitos inaudível e que um dia eu seja assim sepultado. Até lá usufruo o prazer que mo permite o talento que desenvolvi durante anos, ousando escrever, ousando ler mais e escrever mais, listando palavras que consultava no dicionário, empenhando-me na labuta diária que consiste em disciplinar os pensamentos ávidos e indistintos que se vão acumulando na alma, na aridez do terreno da modalidade escrita.

A minha vida é um suspiro de palavras!
(BAR)

terça-feira, 17 de abril de 2012

"O pensamento é mais que um direito; é o próprio alento do homem." (Victor Hugo)


                     

                            
                                      Desassossego epidêmico


Tenho pouco tempo para escrever alguma coisa que satisfaça minha necessidade de acomodar no papel algumas palavras que inspirem jardins de reflexões. Quiçá, não possa agora oferecer jardins; uma muda ou outra de pensamentos, ao menos.
Um dos últimos livros que comprei é O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Uma passagem chamou-me atenção por exprimir bem a dimensão abismal de nosso conformismo com o status quo. Leiamo-la com esmero:

“O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão profunda, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis”.

(p. 22)

(grifo meu)


Minha alma é uma engrenagem de pensamentos, uma maquinaria de emoções, uma profusão de indagações. Momentos há em que é necessário sossegar o espírito, sempre desejante. Vejo por aí, com descontentamento, uma enxurrada de lugares-comuns sobre o uso do português. Pessoas que pretendem salvar a língua de sua ruína e que se interessam por alertar os outros dos supostos “erros” cometidos ao usar sua língua materna. Avultam recomendações do tipo “não se deve dizer “menas coisas”, mas “menos coisas”, “não se deve dizer “para mim comer”, porque mim não conjuga verbo” (e desde quando o verbo está, nessa construção, flexionado?), etc. Em matéria de língua, todos se arriscam a dar palpites, a ser gramáticos, guardiões da “língua-mãe”. Esse fato está entre outros tantos contra os quais invisto no meu silêncio desalentado. 
Preciso me apressar. A higienização intelectual depende desse estado de solidão desejante, em que me encontro. Felizmente, às vezes, tenho o privilégio de estar junto de pessoas com quem entabulo conversas mais interessantes, edificantes intelectualmente. De resto, aborreço-me com aqueles que julgam o conhecimento como algo que deve ter uma utilidade prática e imediata. Desagradam-me aqueles que se relacionam com o conhecimento como o consumidor se relaciona com uma mercadoria (embora sem ter disso consciência), que deve ser consumida e/ou descartada. Assim também deve ser descartado o conhecimento, caso não sirva para solucionar, à guisa de um manual de instruções, a sua incompetência para percorrer os longos e instigantes caminhos da pesquisa que levam às soluções. E, mesmo que delas não estejamos seguros, que a dúvida nos mova para adiante! Os espíritos ávidos do saber estão cheios de dúvidas; somente os desinteressados detém certezas rijas e “sagradas”. Por que busco conhecer? Que tem de valioso o conhecimento para mim? O valor está nele mesmo, e não para além dele. O valor está no processo de conhecer, na descoberta, no desvelamento da verdade. O valor está no conhecimento em si. Busco o conhecimento porque não me contento de viver comodamente no e com o mundo. É preciso incomodá-lo e incomodar-se, ou desacomodar-se. Estranhamente, a coceira da curiosidade não é tão intensa em muitas pessoas. Para muitas, a realidade não constitui um problema para o pensamento; para muitas, os preconceitos correntes, as opiniões agastadas, os clichês e as ideologias (representações que visam a legitimar uma dada ordem social) não passam pelo crivo de uma consciência crítica. Basta-lhes reproduzi-los.
E sigamos em frente, ruminando as velhas fórmulas para viver sem nos contaminar pelo desassossego.
Agradou-me uma conversa que tive com uma amiga coordenadora, amante dos livros como eu. Falávamos da ignorância do professor de língua (particularmente, do professor de português) sobre seu papel como agente de formação cultural ampla. Tem ele o privilégio de transitar pelas diversas áreas do conhecimento, mormente pelas áreas humanas, que recobrem linguística, sociologia, antropologia, história, psicologia, filosofia, pedagogia, etc.. Ele não se identifica com um policial da gramática normativa. Uma vez que lhe compete formar indivíduos cada vez mais competentes no uso de sua língua materna, deve ele assumir o papel de mediador entre o sujeito cognoscente e os objetos de conhecimento que se funda textualmente. O trabalho sobre textos permite a ele um enriquecimento cultural de que pode e deve tirar proveito, dando aos estudantes o direito de dele participar. Pensemos numa situação em que o professor trabalhará com um texto que trate de algum aspecto da teoria de Marx, ou que a ele faça referência. Veja-se o texto O sonho dos ratos, de Rubem Alves (http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=13678&cat=Contos&vinda=S).
            Um leitor arguto e familiarizado com algumas ideias de Marx poderá empreender uma leitura que trará à tona alguns aspectos do pensamento de Marx; será, inclusive, capaz de “ver” o intertexto em “quando se estabelecer a ditadura dos ratos”. Marx advogava a necessidade de instituir-se nos países capitalistas, depois de superada sua formação socioeconômica, a “ditadura do proletariado”, metáfora com que Marx exprimia a nova forma política que assumiria a sociedade, quando o proletariado tomasse o controle do Estado (um Estado que supunha o filósofo viria a desaparecer, com a consolidação do comunismo, que não se daria sem a transição do capitalismo para o socialismo).
É preciso que os professores de português reconheçam que sua formação acadêmica possibilita-lhes as condições adequadas e necessárias para que eles tenham coragem de caminhar por outros terrenos do conhecimento humano que se entrecruzam, porque todos mediados pela linguagem, porque todos socialmente fundados em textos. Textos não são só meios de transmitir conhecimento, mas formas de cognição social, formas de constituição do conhecimento. O conhecimento socialmente circulante, assimilado, reconstruído, reinterpretado é conhecimento textualmente fundado. Preciosa é a lição de Ingedore Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004):

“Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explicito, de segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar, linguísticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)

A certa altura, reconhecemos o cuidado que devemos ter nós, que dedicamos a vida ao cultivo do intelecto, de não sermos intolerantes. É que tendemos a rejeitar a mediocridade intelectual; tendemos a não suportar o convívio com pessoas a quem basta seguir as diretrizes da mídia, do consumo de massa, da publicidade, da moda, das ideologias dominantes. Eu, contudo, lhe chamei a atenção para o fato, não menos relevante, de que sobre nós recai o peso de um estereótipo, em geral associado a características tais como ser enfadonho, entediante, “sério”, pessimista, “crítico” (na acepção pejorativa do termo, ou seja, como qualidade de quem aponta os aspectos negativos de um ser ou coisa, de quem é mal-humorado). O erro aqui salta aos olhos: somos críticos, porque indivíduos habituados a analisar, julgar, examinar os fatos, os acontecimentos, as feições do real, as opiniões correntes, a vida tal como ela se nos manifesta nas suas dimensões física e humana (social, cultural, política, antropológica, histórica...). Fazer a crítica é analisar, discernir os aspectos relevantes numa dada questão, é assumir uma postura de questionamento, uma atitude de investigação para obter a verdade. A crítica é uma atividade espiritual por que o agente avalia, analisa as coisas, sem prejulgá-las, sem apoiar-se em preconceitos.
O intelectual é aquele que se dá o direito à suspeita e à dúvida. É também aquele que reconhece ser sempre proveitosos e prazerosos os voos edificantes do espírito, sem embargo de, para muitos, valer mais viver à superfície da vida.