quinta-feira, 29 de março de 2012

"Não sei viver sem conviver com o meu coração" (BAR)


                         

                                  Experimentando-me

Agrada-me o retorno à sala de aula. Um teste que procura traçar o perfil psicológico de um candidato ao cargo de docência apontou como dois dos traços mais marcantes de minha personalidade a propensão aos relacionamentos interpessoais e a valorização do conhecimento. Fiquei feliz, porque o teste expressou, em parte, o que penso a meu respeito, ou melhor, porque expressou o que me revelam meus textos a respeito de mim. Ele confirmou serem o amor e o conhecimento os valores mais importantes para mim.
O teste consiste na avaliação pelo candidato de um elenco de frases que dizem respeito a modos de comportamento e valores do indivíduo enquanto pessoa e profissional. Na verdade, o teste busca traçar o perfil psicológico da pessoa, não sem apreciar sua postura profissional. Para cada enunciado elencado, são apresentadas frases valorativas do tipo “Isso é sempre verdade para mim”, “Isso é ocasionalmente verdade para mim”, etc. Para as frases modalizadas, atribuem-se dois valores numéricos em sequência, como “3” e “4”,  “4” e “5”, a fim de que o candidato possa graduar sua avaliação (para mais ou para menos).
A certa altura, a psicóloga perguntou-me se eu estou engajado em alguma causa social, isso porque ficou clara minha disposição para o favorecimento da coletividade. Disse-lhe que não estou afiliado a nenhum grupo preocupado com os interesses sociais, mas lhe revelei minha preocupação com o combate a toda forma de preconceito, mormente com o preconceito linguístico, por tocar à minha formação enquanto educador. Ela cuidou nobre e justa minha preocupação, acrescentando comentários pertinentes sobre o valor da linguagem para a vida social.
Eu prefiro não me afiliar a grupos com interesses sociais em comum, para não perder a visão da totalidade, cuja preservação só me parece possível quando contemplamos espiritualmente de fora. Por exemplo, se faço militância em favor da causa dos homossexuais, posso concentrar-me tanto nos interesses desse grupo que esqueço os interesses de outros segmentos cuja reivindicação também merece atenção, tais como a dos portadores de deficiência física, das mulheres vítimas de violência doméstica, dos segmentos menos favorecidos das comunidades carentes, etc. Assim é que, posicionando-me como quem vê panoramicamente uma cidade, posso olhar para a dimensão humana e nela reconhecer-lhe os interesses, segundo as formas como ela se estrutura nos diversos níveis e categorias sociais. A militância não me agrada muito, porque lhe falta o embasamento espiritual, que só é possível pela reflexão crítica prévia. Prefiro a práxis, que é ação social respaldada na teoria. Práxis significa “atividade”, “prática”, mas não de modo geral. Trata-se de um conjunto de práticas voltadas para a existência humana, que é existência social. Todos os problemas essenciais e concretos da vida humana tocam à práxis. Importam a ela os problemas práticos da vida, os problemas imediatos. A práxis tem um propósito transformador; é ação (social) transformadora. No entanto, a práxis sem teoria é cega. Penso realizá-la quando, em sala de aula, ensino sobre a complexa relação entre língua e sociedade, e sobre o preconceito linguístico.
Também lhe falei de minha dedicação à leitura filosófica, de meu interesse em conhecer mais sobre filosofia, e  de quanto o conhecimento provindo dessa área do saber humano ajudou-me a alargar minha compreensão da realidade.
E deixei o consultório satisfeito por ter podido reconhecer-me mediante uma experimentação psicológica e por ter sido revelada a mim a confirmação das conclusões a que chego a meu respeito. Assim, sinto-me conciliado comigo mesmo. E sigo (re)escrevendo-me...

terça-feira, 27 de março de 2012

Poeminhas noturnos




Canto o amor
Como um aposentado
Tenor

(BAR)


A noite é mais sóbria
Quando não a bebemos

(BAR)


O silêncio em mim ressoa
Sombras de amores
 Que ficaram enterrados
Na alma

(BAR)


Quando tu falas
Eu calo
Apenas para ouvir-te melhor
E quando silencias
Permaneço calado
Para compreender-te

(BAR)


Outrora, a poesia em mim
Tinha uma graça incomum
Era mais bem talhada
No sangue
Nas lágrimas
Era doce
Era árida
Era um canto
Uma agonia exorcizada

(BAR)


Poemas não nascem
São abortados
Não há horas
Certas, precisos instantes
Quando sentimos
Eles estão ali
Apesar de tudo
Vivos e pulsantes!

(BAR)


"Pensamentos ilhados flutuam" (BAR)


                                            

                                                         Ilha



Sinto-me intelectualmente só. Meu espírito está exilado. Vejo tudo com mais nitidez, com mais clareza! Por que tantas pessoas são incapazes de acompanhar meus raciocínios, meus pensamentos, minhas reflexões? Por que tantos evitam os livros? Por que se negam a pensar o mundo com mais profundidade e senso crítico? Por que se mantêm à superfície de opiniões amparadas em preconceitos, em estereótipos, em ideologias cristalizadas? Por que conservam práticas de pensar empedernidas? Por que se limitam a ventilar lugares-comuns, a reproduzir o senso-comum? Por que não o superam?

E os amigos que são capazes de acompanhar-me, porque dedicados à cultura das letras, estes amigos distam de mim a quilômetros! Desculpem-me estas linhas aleijadas; é que estou me sentido asfixiado intelectualmente. Sou uma ilha de palavras mudas. Pensamentos subversivos são bens preciosos e só devemos compartilhá-los com aqueles que são capazes de, ao menos, refutá-los. Refutação exige destreza de espírito. Argumentar é uma competência que desenvolvemos, com a leitura. A argumentação é uma atividade que se realiza por meio de encadeamentos de justificativas, de declarações-justificativas num movimento contínuo, de teses, antíteses e sínteses. Ela requer elaboração racional e consistente do discurso.

Imponho-me o silêncio agora, porque pretendia escrever sobre outra coisa... Mas fugiu-me à alma o alento. É melhor assim...

"Deus escreve errado com linhas enganosas" (BAR)




 
Condição humana

A visão caída
Dos olhos escurecidos
Não é mais capaz de ver
O invisível
Nem crer no absurdo
Morre-me a última pétala
Sob a bruma
Que me conforta
Sou filho do mistério
Do imperativo da razão
Que conjuga a emoção
Que me inunda o coração
E permite ver sem crer
Eis a inversão
Sensata límpida
No silêncio da infinita
Solidão num Universo
Indiferente!
E a morte, dantes fiel amiga
Lembra-me que meu tempo é pouco
E a vida uma corrida em direção a ela
Somos todos transeuntes
Com prazo de validade.

(BAR)

                                    A obscura maneira de pensar


       Confesso que me espanto, quando examino o discurso reproduzido pelos religiosos por força da massificante doutrinação, e reconheço as inconsistências, as contradições, os disparates, a desarmonia semântica, a falta de bom-senso. Vejamos, então. Note que a oração “se Deus encheu sua vida de obstáculos” permite-nos pressupor a proposição “Deus enche sua vida de obstáculos”. O conteúdo pressuposto é inferido pela ocorrência de “se” mais o verbo no presente do indicativo, como na frase “Se ela dança, eu danço”, em que o “se” permite pressupor a proposição “ela dança” (trata-se de um evento habitual). Assim, da frase “se Deus enche sua vida de obstáculos”, eu infiro o pressuposto “Deus enche sua vida de obstáculos”, Essa afirmação, essa proposição é admitida como consensual, verdadeira, em algum sentido. Assim, quem a produz assume que a crença em que Deus pode causar-nos obstáculos é verdadeira, é válida. Pois bem. Mas aqui se verifica o primeiro problema de ordem lógico-semântica. Esse pensamento entra em conflito com uma série de pensamentos a respeito de Deus, consensualmente válidos para a comunidade religiosa, como os que ensinam ser Deus um ser de amor, um ser que é providente, que nos quer fazer o bem, que é moralmente bom e justo (embora nem sempre os predicativos bom e justo possam ser ditos de um mesmo sujeito: alguém que é bom pode nem sempre ser justo; e, se acaso for justo, não estará necessariamente produzindo o bem extensivo a todos). Ocorre que pensamentos como “Deus pode criar obstáculos para a nossa vida” e “Deus é bom e providente” não podem coexistir numa mesma formação discursiva (se bem que a formação discursiva no domínio discursivo religioso inclui como parte de sua normatividade as lacunas, as contradições e os desvios lógico-semânticos de toda sorte). Não paremos por aí. Fiquemos mais perplexos, ao considerar o que vem depois daquele enunciado. Note que se justifica o que foi assumido como pressuposto antes. Assim, “Deus te enche a vida de obstáculos”, mas o faz “porque conhece sua capacidade de superar cada um”. Lembrou-me Freud, que ensina sobre as três fontes do sofrimento humano: a fragilidade do corpo, as relações sociais e as forças da Natureza indiferente. Bem, os religiosos acrescentam a esta uma outra fonte, a saber, Deus. Ele é também fonte de nosso sofrimento, ele o produz. E a perversidade dele é tal, que ele o produz para que demonstremos nossa força de superação, com que propósito não sabemos... Mas fico imaginando se uma mãe ou um pai amorosos, embora acreditassem ou soubessem da força que seu filho tem para superar problemas na vida, iria querer infringir-lhe sofrimento. Que pais encheriam seu filho de obstáculos, com a única razão de verificar sua força de superação? Certamente, se agissem assim, seriam moralmente censurados, já que seu comportamento estaria desafinado com os padrões morais esperados por pais que desejam a felicidade dos filhos. E mais: a ideia de que poderia existir um ser todo-poderoso que, por um capricho obscuro, pode julgar conveniente lançar-me uma série de dificuldades na já aridez da vida é, para mim, apavorante. Longe de me confortar. Ora, já não nos bastam os problemas que nos atingem casualmente, sem que sejamos por eles responsáveis?
Finalmente, se observarmos o fim da mensagem, chegaremos a uma conclusão que dispensa demasiada ponderação: NÃO É E NUNCA SERÁ O SOFRIMENTO UM OBSTÁCULO PARA A FÉ, PARA A CRENÇA NA EXISTÊNCIA DE UM DEUS BOM E TODO-PODEROSO, CHEIO DE AMOR PELA HUMANIDADE E DECIDIDAMENTE INTERESSADO PELO DESTINO DE MULHERES, HOMENS E CRIANÇAS DESTE MUNDO. REPITO: O SOFRIMENTO EM ESCALA MUNDIAL NUNCA SERÁ UM ESTORVO PARA A FÉ. AO CONTRÁRIO, É SEU COMBUSTÍVEL. A FÉ É MAIS FORTE NO SOFRIMENTO OU GRAÇAS A ELE. O SOFRIMENTO PRECISA SEMPRE SE FAZER PRESENTE PARA QUE CONTINUEMOS, PARA QUE NÃO DESISTAMOS DE ACREDITAR EM DEUS. POR ISSO, ENTRE OS RELIGIOSOS, É COMUM OUVIR “ÉS UM HOMEM DE POUCA FÉ”, SEMPRE QUE NOS VEMOS FRAGILIZADOS EM FACE DE ALGUMA DIFICULDADE. O sofrimento é uma VIRTUDE, sofrer é DESEJÁVEL para que a crença seja mais forte, mais viva, mais poderosa. E Epicuro continua inaudível, infelizmente, mas ele incomoda. Ah! Se incomoda!


"Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. 
Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus.
Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus.
Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus.
Se pode e quer, que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então existência dos males? 
Por que razão é que não os impede?"

(Epicuro)

sábado, 24 de março de 2012

"A educação é uma coisa admirável, mas é bom recordar que nada do que vale a pena saber pode ser ensinado." (Oscar Wilde)

                             

                                           A educação medieval
           
                              Quando Deus se torna soberano


1. Primícias

A seriedade com que desempenho o papel de agente de uma escrita formativa leva-me a alguns cuidados sobremaneira indispensáveis ao êxito de meu trabalho. Os cuidados a que me refiro dizem respeito a uma detida perquirição dos pensamentos que me vão trafegando no espírito, à medida que vou escrevendo, e também à conformação da intenção ou do plano textual à sua realização. Essa meticulosidade é razão de muita ansiedade, por isso, sem mais delongas, enuncio, a seguir, meu intento, ao compor este texto.

2. Assentando o terreno

Eu espero, aqui, conseguir mostrar de que modo a ideologia religiosa influenciou decisivamente as diretrizes educacionais, durante o longo período recoberto pela designação de Idade Média (que durou mil anos, desde a queda do Império Romano, em 476, até a conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453). À medida que as civilizações se desenvolviam, essa ideologia tomou corpo na forma de dogmas e doutrinas, fortalecidas e disseminadas, no Ocidente, após a queda do Império Romano, por uma Igreja Cristã que administrava e centralizava o saber,
Essa delimitação é necessária, em função da natureza deste texto e dos objetivos, certamente, modestos a que se presta. Concepções e tradições religiosas também influenciaram a pedagogia de povos antigos, no Oriente, como na China, na Índia e na Mesopotâmia. A respeito da educação desenvolvida por esses povos, entre os quais devemos incluir também os hebreus, de quem provêm os valores e as tradições contidas no Antigo Testamento, que chegou até nós pela Bíblia, vale notar que, devido à orientação religiosa de suas práticas, a educação pouco favoreceu para provocar mudanças nas estruturas sociais. Tais civilizações tinham em comum a tendência à conservação do status quo, de tal sorte que a mudança, quando havia, era bastante lenta.
A importância desta revisão histórica das formas como a religião, especialmente a cristã, entre nós, imiscuiu-se nas esferas da política e da educação e de suas consequências se justifica pela observação, em nossa modernidade, da insinuação de medidas políticas de orientação religiosa, como as que propõem o ensino da Bíblia ou a prática da oração do Pai Nosso antes do início das aulas, em escolas municipais (como as de Ilhéus). Seria isso um sinal de ameaça à laicidade do Estado brasileiro? Essa pergunta só pode ser formulada na base do pressuposto de que o Estado brasileiro é verdadeiramente laico. Os mais céticos, entre os quais estão agnósticos e ateus, desconfiam disso; os mais radicais negam-no.
Antes, porém, de se argumentar no sentido ou não de uma ameaça à laicidade do Estado, convém precisar o que significa dizer que um Estado é laico. Isso é uma questão a ser discutida em outra oportunidade. 
A minha postura político-pedagógica está afinada com a tendência atual entre os educadores em insistir na necessidade de uma formação cultural permanente, continuada, autogerida, fundada no valor do desenvolvimento da consciência crítica. Portanto, de uma consciência capaz de ir na contramão do que Habermas chama razão instrumental, que, retirando dos seres humanos sua autonomia (crítica e reflexiva) está a serviço da dominação da natureza com fins práticos e lucrativos. A razão instrumental, ensinará Habermas, só nos diz o que fazer e como fazer, de modo a alcançar determinados fins, mas ela é insuficiente, no momento em que nos perguntamos sobre as consequências últimas do desenvolvimento da ciência e das tecnologias para a existência humana; quando nos perguntamos sobre seu valor na construção do sentido da vida humana. A ela subjaz a ideologia da competência, da eficácia, do sucesso, do progresso, que está na base da transformação do conhecimento em mercadoria.
O processo de mercadologização da Educação, em nosso país, a saber, a subsunção da Educação à Economia torna as relações entre educadores, educandos e conhecimento em relações entre prestadores de serviço, clientes e mercadoria, negociável em troca de outra mercadoria, chamada diploma ou certificado.
A tese da formação cultural permanente, que supõe, com Adorno, o estudo da filosofia, se contrapõe a um dos problemas que a modernidade coloca para o educador: o imperativo da especialização profissional. A necessidade sempre urgente de formação de especialistas é consequência do grande desenvolvimento alcançado pela ciência e a técnica (assumindo esta a forma de tecnologia) nos fins do século XX. Evidentemente, quanto mais complexas e rigorosas são as etapas desse desenvolvimento tanto mais profissionais competentes são necessários ao cumprimento de suas atividades. Há dois problemas evidentes ligados à especialização: o primeiro diz respeito ao surgimento da ideologia da competência, que supõe uma distinção entre os que detêm o saber especializado (o vulgo expert) e, portanto, o poder para dirigir, recomendar; e os incompetentes, privados do saber, que devem pela autoridade daqueles guiar-se. O segundo problema diz respeito à fragmentação do saber, já que o especialista só domina um setor do conhecimento humano, tendo dificuldades na tomada de decisões epistemológicas e éticas.
No tocante à formação cultural permanente, que pressupõe o estudo da filosofia, as palavras de Dalbosco, em Problemas da atualidade da teoria crítica? (2008), exprimem bem a postura político-pedagógica por mim assumida:

“Não se trata (...) de um estudo mecânico dos temas e das disciplinas que compõem o arcabouço do saber filosófico nem de repeti-lo, por meio de uma prova oral ou escrita, mas sim de sua apropriação viva e dinâmica, que leve o candidato a pensar sobre o seu próprio fazer profissional. A importância da filosofia e da formação cultural, em sentido amplo, na formação dos futuros professores justifica-se em provocar sua auto-reflexão, auxiliando na construção do espírito crítico sobre seu próprio fazer profissional, levando os estudantes a se “desprovincializar” de seu mundo, exigindo que imitem mecanicamente o que é considerado como culto ou erudito”.
(p. 198)



3. A Idade Média

3.1. No Oriente, o Império Bizantino

Bizantino refere-se à antiga cidade grega Bizâncio, formada no século VII a.C. O Império Bizantino é a forma do Império Romano do Oriente, que permaneceu relativamente bem estruturada, a despeito da fragmentação do Império no Ocidente. Ele abrangeu a Grécia, a Ásia Menor, o Oriente Médio, algumas regiões da Itália, o norte da África e o sul da Espanha.
Em relação ao Ocidente, a civilização bizantina manteve-se bem adiantada econômica e culturalmente, tendo preservado a forma de administração da tradição romana. Não é meu objetivo descer a pormenores históricos, mas apontar acontecimentos que tocam à influência da religião na educação dessa época. Evidentemente, precisamos compreender o modo de organização das sociedades que nesses tempos existiam.
Os imperadores bizantinos, com o tempo, investiram-se de maior poder, o que os levou a questionar o poder do papa de Roma. Tal foi o impacto dessa divergência, que, em 1054, criou-se a Igreja Cristã Ortodoxa Grega, acontecimento conhecido como Cisma do Oriente. Passaram a existir duas igrejas separadas: a de Roma, católico-apostólica e a ortodoxa grega.
O surgimento do Islã, no século VII, se deve à atuação do profeta Maomé, a quem coube unir as tribos que viviam em permanente conflito, na Península Árabe. O conflito não favorecia o comércio. Graças à pregação do profeta, a unificação das tribos se deu, sem que ele tenha abdicado da ação de guerra. Seu feito mais significativo talvez tenha sido a instauração de um governo teocrático, que se caracteriza pela não separação entre Estado e religião.
É importante levar em conta que a civilização islâmica conseguiu assimilar, a par dos elementos da própria cultura árabe, os elementos das culturas dos povos conquistados, já que, com a morte do profeta, o império continuou a expandir-se para o Oriente Médio, o norte da África e, finalmente, a Península Ibérica, na Europa. Assimilando as culturas locais, a civilização islâmica enriqueceu e se diversificou. Assim é que os árabes conheceram a filosofia, a ciência e a literatura dos gregos antigos e puderam traduzir diversas obras clássicas que viriam a ser conhecidas pelos romanos. Por exemplo, os cristãos da Escolástica (uma forma de expressão da filosofia cristã, que encontrou apogeu no século XIII) puderam ter contato com o pensamento de Aristóteles.
No tocante à educação bizantina, a despeito da ênfase religiosa e a preocupação com as heresias, o ensino prezou as tradições do humanismo antigo. Não havia nas escolas, de modo geral, o predomínio do ensino religioso; nelas também se estudavam as obras clássicas pagãs. Nesse aspecto, diferia da educação cristã ocorrida no Ocidente, profundamente marcada pelo princípio da autoridade, conforme veremos. Os estudos religiosos eram feitos exclusivamente nas escolas monásticas e eram orientados pelo interesse espiritual e pela vivência ascética, hostil, portanto, ao humanismo pagão. Na escola patriarcal, cujos professores eram eleitos pelo Patriarca, o ensino não se cingia à formação religiosa, a despeito de seu rigor. Havia interesse pela tradição clássica, sempre tendo em vista a elaboração de um humanismo cristão próprio.
A educação bizantina tinha duas metas, inspiradas no modelo de educação da Antiguidade Clássica: formação humanista e capacitação de funcionários para a administração do Estado.
Devemos aos árabes um renascimento cultural, particularmente o ocorrido no século VIII, em Bagdá, com a criação da “Casa da Sabedoria”, que abrigava uma biblioteca e um centro de ensino e estudos, bem como um corpo de tradutores competentes a quem coube a tradução de obras advindas da Índia, China, Alexandria e Grécia.


4. No Ocidente, A educação cristianizada

É particularmente interessante o contexto sócio-histórico da Europa Medieval, também chamada Europa cristã. Alguns historiadores distinguem, no ocidente europeu, dois períodos. Um deles é conhecido como Alta Idade Média, que se caracterizou pelas invasões bárbaras e pela formação dos primeiros reinos germânicos. Esse período foi marcado pelo despovoamento das cidades e pela crescente ruralização, que se estendeu até o século X. É na virada do ano mil, que surge a Baixa Idade Média, e com ela o repovoamento das cidades, acompanhado do renascimento do comércio, do ressurgimento das artes, das lutas sociais e religiosas.
Nesse período, as escolas desapareceram, o Direito Romano caiu em desuso, também o sistema escravista foi perdendo terreno para o trabalho dos servos que, embora gozassem de liberdade, estavam subordinados à autoridade dos senhores. Ia-se configurando, assim, a sociedade feudal, cujas formas de organização eram variadas e cujo desenvolvimento não se deu ao mesmo tempo em todos os lugares. Tratava-se de uma sociedade de base aristocrata, altamente hierarquizada. No alto da pirâmide, estavam a nobreza e o clero. O rei viu seu poder enfraquecer devido à divisão de territórios, à autonomia dos senhores feudais e, posteriormente, à supremacia do papa.
Nas sociedades feudais, a condição social era determinada pela relação que os indivíduos mantinham com a terra. Assim, somente os proprietários (nobreza e clero) tinham o poder e a liberdade. Embora para alguns estudiosos sejam mais antigas, as raízes do capitalismo já eram notáveis nas condições de vida feudal. No extremo, viviam os despossuídos, que deviam serviços ao seu senhor; eram os servos da gleba, que não tinham a possibilidade de abandonar as terras.
A conservação da herança cultural greco-latina, a despeito das condições sociais turbulentas desse período, foi possível graças à iniciativa de monges, os únicos letrados, uma vez que tanto os servos quanto os nobres não sabiam ler. Aqueles preservaram as obras da cultura greco-latina em mosteiros. Entendemos, agora, porque foi possível à Igreja exercer o controle sobre a educação, estabelecer os princípios morais, políticos e jurídicos da sociedade medieval.
Devemos à ascensão da burguesia, no século XI, a oposição ao poder dos senhores feudais e à ortodoxia religiosa. Claro é que a Igreja resistiu às formas de contestação de seu poder, criando a Inquisição ou Santo Ofício, no século XIII, com o objetivo de punir os hereges (e vale dizer que hereges, etimologicamente, caracterizam tão-só aqueles que escolhiam seguir uma dada corrente filosófica).
Um acontecimento importante na cristianização da educação nessa época é o surgimento das escolas cristãs, situadas ao lado dos mosteiros e catedrais. Isso levou a que os funcionários do Estado fossem substituídos por religiosos, únicos capazes de ler e escrever. Chamo atenção para a estreita relação entre poder e saber: cada vez mais o Estado dependia da atuação dos clérigos cultos nas atividades administrativas, mesmo que as pessoas, entre as quais padres, já demonstrassem desinteresse em aprender a ler e escrever, devido à regressão econômica. Esta, por sua vez, se deu pelas conquistas do Islã, de tal modo que os europeus não puderam mais ter acesso ao mar Mediterrâneo, principal via comercial.
Ao estudarmos essa história longa, marcada por períodos de ascensão e declínio nos mais diversos âmbitos (econômico, cultural, social e político), creio ser possível admitir uma constante: sempre que o comércio se revitaliza, as forças subversivas reaparecem. Em outras palavras, a melhoria das condições sócio-econômicas de um dado segmento (no caso, dos burgueses) acarretou a mobilização opositora ao poder dos senhores feudais e do clero. Claro é que o levante atendia aos interesses dos burgueses, não da população espoliada. O poder burguês passou, assim, a competir com o poder do nobre e do clero: o burguês na cidade; o nobre, no castelo; e o padre, no mosteiro.
Insatisfeitos com a educação religiosa, acusada de muito formal, rigorosa e restrita aos interesses do clero, a burguesia emergente lutava pela instituição de escolas seculares, que oferecessem uma educação voltada para a vida prática. Até então, a educação era de caráter estritamente religioso, voltada para a instrução dos clérigos, seus privilegiados e, quando se destinava aos leigos, era limitada à instrução religiosa. Os mosteiros é que detinham o monopólio da ciência, tornando-se o centro fechado da cultura medieval. As obras da cultura greco-latina eram estudadas e reinterpretadas à luz do cristianismo.
A situação educacional das mulheres provenientes da burguesia começou a mudar com o surgimento das escolas seculares, antes disso não tinham acesso à educação formal. A mulher pobre trabalhava com o marido e permanecia, tal como ele, analfabeta. As meninas provindas da nobreza estudavam música, religião, trabalhos manuais femininos e alguns rudimentos de artes liberais nos limites do castelo. Quando incentivada a educação das meninas, ela servia apenas para submetê-las à condição doméstica e a preservá-las como depositárias dos valores do casamento e da maternidade.
A mesma limitação da educação da mulher também podia ser observada no tocante ao servo da gleba (feudo onde vivia o servo). Para melhor compreendê-la, cabe notar o seguinte:
      1. Na Idade Média, a sociedade conservava por longos períodos (séculos) suas estruturas e as mudanças eram lentas; além disso, era profundamente hierarquizada;

      2. Os homens da época foram convencidos de que cada indivíduo tinha sua posição social determinada por Deus, quer fosse ele religioso, quer fosse nobre, quer camponês.

Tendo em conta o exposto acima, cada segmento cumpria uma função que lhe estava predestinada por Deus. Por isso, não se cogitava de ensinar a ler e a escrever os camponeses; cria-se bastante a eles a formação cristã. A Igreja não poupou na ostentação dessa crença, erigindo catedrais góticas imponentes, que exaltavam a espiritualidade, e produzindo livros repletos de ilustrações para facilitar a compreensão dos analfabetos (que eram a maioria).
Eu não poderia deixar de notar um acontecimento revolucionário, do ponto de vista cultural e político, do qual foi protagonista o então imperador de um vasto território Carlos Magno. Estamos agora no final do século VIII e início do século IX. Seu mérito consistiu em reformar a vida eclesiástica e o sistema de ensino. Para tanto, trouxe para sua corte insignes intelectuais. Àquela época, destacou-se a escola palatina (assim denominada porque funcionava ao lado do palácio). Essa escola deu origem a um movimento de reestruturação das escolas monacais, das escolas catedrais (que se situavam ao lado das igrejas, nas cidades) e das escolas paroquianas. O conteúdo do ensino compreendia o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (geometria, aritmética, astronomia e música). Eram, pois, sete as artes liberais (porque destinadas ao indivíduo livre). Na realidade, essas disciplinas foram resgatadas do modelo de educação clássico. Claro é que a visão de ciência dessa época ainda era incipiente: por exemplo, a astronomia mesclava-se com a astrologia; a geometria entremeava discussões sobre as formas perfeitas. O rigor científico, baseado na observação e experimentação, só se faria notar com a revolução provocada por Galileu, no século XVII.

4.1. A educação pagã e  a educação cristã

Por um momento, quero calar o teor pedagógico desta exposição para dizer que receio que o leitor esteja já enfadado, em virtude da extensão e da natureza histórico-narrativa do texto. Ponderando melhor, seja como for, creio estar conseguindo, até então, satisfazer meu anseio pelo conhecimento, pela compreensão histórica, ainda que não exaustiva, da intricada relação entre práticas educacionais e religiosas no período designado Idade Média. Parece-me razoável afirmar que a consciência histórica levada a efeito na leitura deste texto pode contribuir para elucidar posições sobre haver ou não ameaça à laicidade do Estado brasileiro. É evidente que o modo de organização social, as estruturas jurídicas (embora para os especialistas em Direito nossa legislação esteja ultrapassada), a política e a cultura da Idade Média não são os mesmos do Brasil de hoje. Não suponho que se possa notar aqui, no tocante à influência de medidas de inspiração religiosa voltada para a Educação, algo parecido com o que ocorreu na Idade Média. Não corremos o risco de ver minada a secularização de nossa sociedade. Mas devemos compreender como era um Estado teocrático para melhor entender o sentido da laicidade. Creio que a laicização de um Estado está diretamente relacionada à conquista e, mormente, ao aperfeiçoamento da democracia. Nesse sentido, costuma-se suspeitar de uma democracia plena aqui no Brasil, em virtude das profundas desigualdades sociais que perduram e dificultam o exercício pleno da cidadania. A democracia, ao contrário, da tirania ou do totalitarismo, permite-nos trabalhar as contradições da sociedade e fazer avançá-la no sentido de produzir condições de maior igualdade e justiça sociais. A democracia é uma conquista preciosa, muito recentemente reconquistada no Brasil, depois de mais de vinte anos de regime ditatorial implementado pelos militares.
A laicidade de um Estado só é possível num regime político democrático. É no interior de uma democracia, a despeito de ser engendrada por um sistema econômico explorador, como o é o sistema capitalista, que a laicidade deve ser pensada e mantida. A história nos ensina que onde houve regime teocrático, evidentemente, não foi possível a democracia. Onde a voz de Deus foi soberana a voz do povo foi calada. Deus, nessas sociedades, não estava a favor do povo, estava a serviço dos interesses das classes dirigentes, basicamente autoridades religiosas. Atualmente, observamos regimes teocráticos apenas no Oriente Médio, especialmente nos países islâmicos. A democracia é peculiar ao Ocidente. No regime teocrático, política e religião ocupam a mesma esfera. Assim, a classe que detém o poder sobre o Estado determina os preceitos morais, educacionais, espirituais e culturais. São atualmente países declaradamente teocráticos o Irã, o Omã, a Arábia Saudita, o Sudão, o Iêmen e a Mauritânia. O Vaticano é um exemplo de um país do Ocidente teocrático católico. Costa Rica, Malta e Mônaco também reconhecem o catolicismo como sua religião de Estado.
Voltemos agora à revisão da história da educação na Idade Média. Recordem-se os acontecimentos que marcaram esse período, erroneamente denominado de Idade das Trevas por ideólogos do Renascimento. Contrariamente ao que julgavam, houve grande expressão cultural heterogênea e revitalizações econômicas e sociais.

1.      Renascimento do comércio;
2.     Florescimento das cidades;
3.      Surgimento da classe burguesa
4.      As Cruzadas;
5.     Consolidação da instituição da cavalaria.


Antes de começarmos a compreender em que bases filosóficas se desenvolveu a educação cristã e de compreender, em decorrência delas, como se iniciou a formação de uma doutrina que buscava conciliar fé com razão, muito embora esta última estivesse sempre a serviço da primeira (a razão estava subordinada à fé), precisamos considerar alguns fatos importantes. Em primeiro lugar, o cristianismo se tornou, com a queda do Império Romano e sua inevitável fragmentação, uma força unificadora de toda a Europa. Como fossem letrados, os clérigos se apropriaram do patrimônio cultural herdado da era greco-romana. Mas tinham eles outro interesse, diferente dos pensadores clássicos. A produção intelectual clássica era fundada no intelectualismo e naturalismo gregos, aos quais os clérigos opuseram o espiritualismo cristão. Urgia a necessidade de adaptar o legado da produção intelectual clássica aos propósitos da fé cristã. Elementos filosóficos, portanto, deveriam ser aproveitados, mas não sem antes passar pelo crivo da reinterpretação nos moldes de uma visão de mundo cristã. Foi o que sucedeu, conforme veremos.
Vale notar que os antigos filósofos refletiram sobre um Deus único, mas o fizeram no plano puramente intelectual, sem o propósito de construir uma doutrina da Criação e da Providência, que aliás não faziam sentido para eles, visto que, perspicazes, ao contemplar o mundo, concluíram que Deus só poderia ser um princípio ordenador impessoal desinteressado do destino humano. Trata-se do velho e insuperável problema da Teodicéia (ou o Problema do Mal), do qual já tratai muitas vezes em meus textos e ao qual não retorno, porquanto não é este meu propósito; mas vale tê-lo sempre em mente como um problema espinhoso para a fé.
Também em suas reflexões morais os gregos não exigiam culto rigoroso, tampouco se preocupavam com a ideia de vida eterna. Os cristãos, por sua vez, estavam preocupados com estes temas. Coube a eles subordinar a vida terrena aos valores celestiais,  aviltando-a. Eis outra inversão da ideologia cristã: a vida real provém dos Céus, não está na terra. Os valores supremos são os valores espirituais e os valores mundanos devem ser rejeitados. A fruição da vida após a morte depende da obediência aos preceitos de Deus e do acolhimento dos valores espirituais que provêm de Deus que habita os Céus (entenda-se o as Alturas). A estrutura ideológica do mundo medieval localizava o homem na região intermediária entre o céu e o inferno, e ele era entendido como ser constantemente em conflito, porque afligido pelas tentações mundanas, pelo temor ao inferno, caso sucumbisse a elas, e a necessidade de redenção pela obediência à Vontade de Deus, que lhes prescrevia a adoção rigorosa dos valores espirituais (provindos dos Céus).
Os monges precisavam adaptar o legado greco-romano à ideologia cristã, já que só assim poderiam alcançar a coesão e coerência necessárias à formação de uma doutrina poderosa. Alguns elementos da filosofia clássica poderiam estimular reflexões incongruentes com os seus interesses. Que fizeram os monges? Se reuniram, enriqueceram as bibliotecas e trabalharam paciente e cuidadosamente na tradução para o latim dos textos selecionados da literatura e filosofia gregas. Coube a bibliotecários, obedecendo a ordens superiores, determinar as leituras permitidas e proibidas, com vistas a garantir a preservação da fé cristã a qualquer custo.
O esforço da adaptação caminhava no sentido de fazer ver que a razão e a fé não se opunham e podiam ser conciliadas, embora, como disse, a fé se sobrepusesse à razão. O ajuste do pensamento grego (particularmente de Platão e Aristóteles) aos interesses de doutrinação se orientou pela ideia de verdade revelada por Deus, pela crença na autoridade inquestionável dos textos sagrados a que se deve submeter pela graça da fé. Era preciso que o pensamento grego se adaptasse ao novo modelo cristão de ser humano.
Assim é que a filosofia cristã, com o tempo, foi sistematizada em duas correntes ou escolas: a Patrística e a Escolástica. É forçoso considerá-las a seguir.

4.2. A Patrística

O nome Patrística se deve ao fato de ter sido uma filosofia desenvolvida por padres, ainda no período da Antiguidade ( do século II ao V). Sua importância se fez sentir na Idade Média, graças muito ao trabalho de Santo Agostinho. A intenção desses padres filósofos era apologética, ou seja, pretendiam defender a fé cristã e converter os não-cristãos. Para tanto, era necessário conciliar a fé com a razão, pois acreditavam que só assim podiam compreender a natureza de Deus e os valores da vida moral.
Essa filosofia inspirou-se no platonismo, assumindo a forma de um neoplatonismo e se ocupou com temas caros ao filósofo grego Platão, dois dos quais interessavam fundamentalmente: a oposição entre o mundo das aparências e o mundo das essências e a teoria da reminiscência. Para compreender essas duas doutrinas, é preciso revistar, de leve, o pensamento de Platão.
A alegoria da Caverna ilustra o pensamento de Platão ao propor a distinção entre um mundo das aparências, acessível pelos sentidos, mas enganoso; e um mundo das essências, das formas perfeitas, e verdadeiro, acessível tão-só pelo intelecto. Platão, como se sabe, deu ênfase à realidade suprassensível e propunha que o conhecimento verdadeiro só poderia ser alcançado pelo intelecto, pela superação do mundo das aparências. O conhecimento que provém dos sentidos é imperfeito, é mutável e leva a equívocos. Apenas o conhecimento das formas imutáveis e perfeitas, através do intelecto, é o conhecimento verdadeiro. Donde provém esse conhecimento? Responderá Platão: da alma. Para ele, e agora já consideramos a teoria da reminiscência, a alma humana, tendo antes contemplado as essências no mundo das formas perfeitas, ao encarnar neste mundo, conta com os sentidos para propiciar as lembranças. Não são eles fonte do conhecimento. Aprender, para Platão, é tornar consciente, claro ao espírito, o conhecimento que já se acha na alma, embora obscurecido pela matéria, por ocasião do contato dela com as essências. Que fez então Agostinho? Atribuiu a Deus o valor de fonte donde o homem recebe as verdades eternas. Mas disso não se segue desprezar o intelecto; segundo Agostinho, Deus ilumina a razão humana para que possa pensar correto. A posse da verdade vem do interior, já que “Cristo habita no interior do homem”. Na concepção de Agostinho, a educação só pode se dar pela iluminação divina.
Santo Agostinho presenciou a invasão dos vândalos que vieram a se estabelecer em Hipona (norte da África) onde atuou como bispo. Veio a adotar a doutrina maniqueísta (de maniqueus), segundo a qual há princípios opostos regendo o mundo: o bem e o mal, a luz e a escuridão, em conflito eterno. Na Idade Média, destacou-se a contribuição dos enciclopedistas que levaram adiante o trabalho de adequação da cultura grega às verdades teológicas. Coube a eles ler os clássicos gregos, conhecer o programa das sete artes liberais e consultar os manuais de estudo.

4.3. A Escolástica

Não há dúvida de que a Escolástica exerceu maior influência filosófica e teológica na formação da doutrinação cristã, no período medieval. Desenvolveu-se a partir do século IX, tendo alcançado apogeu no século XIII e início do século XIV; posteriormente, conheceu a queda com o advento do Renascimento. Seu nome se deve ao fato de ter sido uma filosofia ensinada nas escolas. O professor, que inicialmente ensinava as artes liberais, passou a lecionar filosofia e teologia, e foram chamados de magister. A filosofia tornou-se obrigatória na agenda do teólogo, mas devia ser estudada à luz da visão de mundo cristã. Era necessário impor-lhe limites. Uma vez que a razão estava a serviço da fé, a filosofia devia servir à teologia (ancilla teologiae).
Entre os escolásticos, Aristóteles foi a voz responsável por dar ao trabalho de formação doutrinária o colorido filosófico. O embasamento argumentativo se valia da lógica aristotélica, formalizada no silogismo, que, por sua vez, se estrutura em torno do raciocínio dedutivo. Instrumentalizados com a filosofia aristotélica, vários comentadores da Bíblia e dos escritos dos primeiros Padres da Igreja forjaram o método escolástico, que se organizava na sequência: leitura-comentário das questões-discussão. Nem sempre as discussões eram proveitosas, já que tinham de confirmar a crença nas verdades reveladas e não podiam ultrapassar a ortodoxia religiosa.
Além de sua lógica, a filosofia aristotélica foi interessante aos escolástico ao propor a questão dos universais. Universais são termos que abrangem uma totalidade, compreendendo-a sem discriminar suas partes Para Aristóteles, o universal é aquilo cuja natureza pode ser afirmada para diferentes sujeitos. Assim o homem é um universal, ao passo que Sócrates é um indivíduo, um singular.
Entre os escolásticos, os universais remetiam ao problema das espécies (cão, gato) e dos gêneros (animal). Assim, perguntava-se sobre ter ou não o universal uma realidade objetiva. Ou seja, os universais são uma realidade? Existe a entidade ‘animal’ ou se trata apenas de um conceito? Se o universal (animal, humano...) é apenas uma ideia, então só tem realidade mental.  Essas questões levaram ao surgimentos de tendências discordantes. Os realistas defendiam que os universais eram reais. Os conceitualistas, ao contrário, julgavam que os universais não são reais, mas simples ideias cuja existência é mental.
Os realistas representavam os ortodoxos, os quais defendiam a tradição, a autoridade e a verdade absoluta da fé. A lógica aí é que, como não importassem os individuais, era necessário desenvolver uma pedagogia perene, assentada em valores eternos, imutáveis. Por outro lado, os conceitualistas, defendendo o individual como real, propunham que a verdade não é a fé, mas a razão humana. Aqui já se insinuava o racionalismo burguês, que viria a fortalecer-se com o Renascimento e que é a marca fundamental da Idade Moderna.
Vale ainda referir a posição dos nominalistas, dentre os quais se destacou Guilherme de Ockham (séc.XIV). Os nominalistas julgavam que os universais eram tão-só nomes, portanto, formas destituídas tanto de realidade objetiva quanto de realidade mental.
O apogeu da Escolástica se deveu muito ao trabalho de Tomás de Aquino (1225-1274), santificado pela Igreja. Inspirando no pensamento aristotélico, São Tomás defendia que a educação é o processo pelo qual aquilo que é potencial deve tornar-se real. A educação, assim, faria desenvolver as potencialidades latentes na criança. Essa concepção de educação assenta na teoria aristotélica da matéria e da forma. Conquanto fosse importante a vontade humana no processo educacional, o ensino depende das Sagradas Escrituras e da graça da Providência divina, visto que temos uma natureza corrompida pelo pecado.
A metafísica de São Tomás de Aquino redundará na ética, na medida em que ensina o indivíduo, que detém a inteligência pela graça de Deus, a fazer uso correto dela, discernindo, entre os bens diversos, o Bem supremo. Assim, segundo o teólogo, “O bem objetivo, único capaz de proporcionar à natureza humana a felicidade perfeita, é Deus. A razão, secundada pela revelação, mostra o caminho que se deve seguir para alcançá-lo”.
O problema foi que a teoria desenvolvida por São Tomás distanciou-se muito do vivido e o uso indiscriminado da lógica acarretou uma verborragia vazia e um excessivo formalismo. Também constituiu um problema a supervalorização da dedução em detrimento da indução, graças à qual o conhecimento pode avançar. No final da Idade Média, a aceitação inconteste do princípio de autoridade, de que Tomás de Aquino foi expressão, abrandou o espírito crítico e impediu a autonomia de pensamento. Isso dificultou o desenvolvimento das ciências (veja-se Galileu que teve de enfrentar o processo da Inquisição no século XVII).
O século XIV, no entanto, produzia forças que alimentavam a visão crítica, possibilitando a revisão do mundo cristão-medieval. Lançavam-se as primícias de um humanismo baseado em valores laicos, mundanos, centrados mais no indivíduo e na política. A educação que, até então era gerida numa visão teocêntrica, pôde se desenvolver, posteriormente, com o Renascimento (XV-XVI), numa visão antropocêntrica e humanista, centrada no valor da racionalidade.

quarta-feira, 7 de março de 2012

"Se estivermos sempre de acordo, é sinal de que nos acomodamos" (BAR)

                                    

                                                Conche
                                   E a felicidade da filosofia
                                             Reflexões incipientes sobre ser filósofo e ateu

Coloquei uma pilha de livros junto a mim. Terminei de ler um capítulo de um deles e, tão-logo iniciara a leitura de um capítulo de outro livro, inquietaram-me “vastas tempestades elétricas cerebrais” (Nicolelis, 2011: 55), a que chamamos de “pensamentos”. Eis aí a definição neurocientífica de pensamento. Longe de representar a experiência fenomenológica que temos de pensamento – experiência esta de base simbólica (pela força do signo) -, essa definição encerra a base neurofisiológica do pensamento. Não é este tema que me ocupará nesta nova oportunidade que tenho de escrever. Vou-me ocupar com reflexões sobre o testemunho de Marcel Conche, em seu livro Análise do Amor (livro cuja leitura recomendo a todos que me leem).
A grande maioria de meus textos que divulgo neste espaço dá testemunho da aturada convivência que tenho com os livros. A leitura me fertiliza os pensamentos. E os trechos de Conche, sobre os quais recairão minhas reflexões, vêm a propósito justamente num dia em que, há pouco, ocupava-me a alma a robusta ideia do direito que tem a voz ateísta de também fazer-se massivamente presente nas redes sociais de relacionamentos virtuais. Apercebi-me de que abundam, naqueles espaços on-line, mensagens de inspiração religiosa. Também, nós, ateus, temos o direito de manifestar nossas posições, através de pensamentos nossos ou alheios, de postagens com imagens (embora não depreciativas) que representem a(s) verdade(s) ocultada(s) pela religião.
O texto de Conche é, como dizia, um testemunho de seu amor à filosofia, um testemunho de como se tornou filósofo, de como a filosofia contribuiu significativamente para que ele se desafogasse do emaranhado de ideias, crenças e convicções lapidadas no obscurantismo, na ignorância, na falsidade da tradição cristã de que ele foi herdeiro. Assim é que, em suas palavras confessionais, plasmei uma imagem de mim. Sentia-me representado nas experiências em que ele estivera envolvido e que tratava de representar com aquelas palavras. É disso, pois, que tratarei, ao procurar reler este texto, ou melhor, parte dele. Os trechos que citarei constam do capítulo Tornar-se grego, no qual Conche conta-nos sobre sua descoberta dos sábios gregos, a cujos conhecimentos deve não só o reconhecimento do valor humano da filosofia, mas a assunção de sua condição de ateu. Sim, Conche se reconhece ateu no momento mesmo que descobre a filosofia, mormente o espírito filosófico dos gregos antigos.
Cuido poder, agora, enunciar minha tese, que tem a forma que se segue:

A superação do pensamento religioso-místico só é possível pela descoberta do espírito filosófico.

Entendo por espírito “consciência”, ou, se preferirem, “pendor”. E por que falo em “descoberta” desse pendor filosófico? Nesse tocante, minha tese é consonante com a posição de Conche, que será por mim aqui explicitada e (re)pensada. Estou de acordo com Conche quanto ao fato de o normal no homem é viver indagando, questionando, entregando-se ao exame crítico do mundo em que vive. Por isso, todos nós somos filósofos em potencial. Todos os indivíduos, sempre que lhes são dadas as condições necessárias, são capazes de descobrir esse “espírito filosófico” adormecido em sua mente. É o que sucedeu comigo, com Conche e, provavelmente, com todos que se decidiram pelo valor da razão.
Leiamos o trecho com que Conche inicia o capítulo, já referido acima:

“Filosofar parece-me a única atividade normal do homem: do homem qualquer, entendo, sem gênio particular, mas também do homem de gênio (do artista, do poeta) na medida em que é, vivo ou moribundo, um homem como outro; porque  o que é normal para o homem não é – não é simplesmente – comer, beber, dormir, amar, coisas que os bichos também fazem, não é viver – limitar-se a viver – nem trabalhar para comer e comer para viver, mas é não viver sem refletir, isto é, sem se perguntar o que faz no mundo, o que é o mundo, o que significa a vida – em suma, o que é normal para o homem é não viver sem filosofar (...). Vou contar agora como se tornar filósofo: para mim significou tornar-me grego”.

(p. 103)
(grifo meu)

Lendo este trecho de Conche, rememorei momentos remotos da minha vida (talvez, não tão remotos assim, embora por tê-los abandonados, mo pareçam) em que escrevia com desgosto pela superficialidade das vivências sociais. Em meus escritos mais antigos, eu demonstrava minha insatisfação com a convivência com pessoas psicologicamente superficiais, que vivem à superfície da vida, que, existindo, limitavam-se a boiar em seu cotidiano intelectualmente infértil. Sentia-me profundamente deslocado, dessituado. Faltava-me  conseguir afinidade intelectual, o que não encontrava nas pessoas com quem conversava. A solidão daqueles tempos fecundou-me exuberantemente o espírito, mas, ao mesmo tempo, apartou-me das convivências diárias com certas pessoas, visto que nelas não encontrava eco de intelecto que me atraísse, tão-só os assuntos de sempre, triviais e cansativos. Esse sentimento de desconforto, esse desagrado de que me imbuía inspiraram-me o pensamento “Há sempre um livro entre mim e o outro”. O leitor poderá compreendê-lo melhor agora quando resgato vivências passadas. É possível que construa outros sentidos para ele; mas eu, com ele, pretendia anunciar: convivo com pessoas para as quais o livro é um estranho, sendo eu também um estranho para elas. O leitor poderia também interpretar o livro como um silêncio que intermediava a minha relação com o “outro” (que não tem face, que poderia ser qualquer um). Sinto que, se eu me aventurar a pensar sobre o que escrevi, sobre os pensamentos que registrei no papel, iniciarei um vasto e doloroso processo de escavação de meu ser, ou desse “eu” que é um conjunto de imagens de si, que mudam e que são contraditórias. Ensinou-me isso o psicanalista J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009). Isso parece confirmar a verdade sobre nossas intuições de nós mesmos: o “eu” que não é senão uma “entidade imaginária”, uma ficção de nosso cérebro; este “eu” nos escapa, e isso explica o sentimento que temos dele como algo inexplicável. Nós não nos entendemos, desconhecemos, em profundidade, esse “eu” imagético. Convém voltar às reflexões de Conche.
Conche mostrará a importância da filosofia na formação do indivíduo como um todo complexo. Lembrar-nos-á que o indivíduo “é antes de mais nada produto de uma coletividade em que, por uma educação de caráter tradicional, não racional, ele é formado para a particularidade, tão longe da singularidade” (ibid.id.). A singularidade é alcançada tornando-se filósofo. A essa altura, num claro movimento polifônico, evoca as vozes que nos ensinam sobre a atitude filosófica, melhor seria, sobre o que é ser filósofo. Não me canso de insistir sobre essa atitude, visto que ela determina a forma como escolhemos viver: conformados ou inconformados? Resignados ou revoltados? Tolos ou argutos ? Desinteressados ou comprometidos? Alienados ou atentos? Escreverá o autor, na mesma página:

“O filósofo terá de se tornar singular e, para tanto, terá de romper com os juízos prontos, com os valores estabelecidos, com os imperativos de uma sociedade fechada, por ter feito a escolha da razão, isto é, do universal.A razão espera, em cada um de nós, que a escolhamos; ela é o poder de rejeição, de questionamento, de liberdade, inerente a cada um de nós. Porque todo indivíduo humano tem vocação para se tornar filósofo; e, no entanto, tornar-se um homem filósofo, a pressão da coletividade é tamanha que isso não acontece”.
(ibid.id.)

O século XX, após testemunhar as duas Grandes Guerras, foi também uma época marcada por acentuados questionamentos sobre o valor e o poder da razão. Parece-me que, nos dias atuais, as tempestades efusivas de ataques à razão tenham encontrado um ponto de descompressão. Estamos mais sóbrios, mas conscientes dos limites, das pretensões da razão; há esforços contínuos no sentido de discutir, por exemplo, a problemática gerada pela aplicação da tecnologia nas ciências, pela influência do que ficou conhecido por razão instrumental (objeto de crítica do filósofo Jürgen Habermas) – aquela que, servindo ao estabelecimento de meios para alcançar fins determinados, acarreta a dominação técnica do mundo, destituindo o bem de sua autonomia, que passa a ser submetido às regras que entram em jogo na dominação técnica do mundo natural -,etc.
Conche não deixa de nos lembrar a importância da razão como condição para a compreensão de nós mesmos e do mundo em que vivemos. A despeito das suspeitas lançadas sobre a razão – suspeitas que as religiões organizadas adoram alardear, para depreciar o compromisso racional que os homens tem com o mundo – ainda continuaremos a falar da razão (ou razões), que é produto histórico, porque o mundo social, natural e nossas ações fazem sentido. Onde houver a busca pelo sentido, haverá a voz da razão. A razão é, então, esta condição que nos permite compreender como se constrói os sentidos do mundo. A razão nos habilita a produzir sentidos, explicações, a compreender o mundo. Disso se segue que não falta razão aos religiosos, tampouco aos sistemas de crenças que defendem; afinal, tais sistemas procuram produzir um sentido para o universo, para a vida humana, para as relações humanas (ainda que falso). Vale dizer que o sentido na religião se trama na fantasia; só pela razão crítica é possível desconstruí-lo. Não obstante, tanto ateus quanto religiosos exibem uma atitude racional em face do mundo (embora estes últimos não o façam quando se comprometem em defender a doutrina a que aderem). Chauí, à página 84, de seu Convite à Filosofia, dá-nos a saber o seguinte:

“(...) A atitude racional de conhecer a realidade não é senão o trabalho do pensamento para apreender, compreender e interpretar o sentido das coisas, dos fatos, das ideias, ações e valores humanos. É esse ideal do conhecimento que é conservado quando continuamos a falar em razão”.

A razão permite-nos interpretar e conhecer a realidade pelo exercício do pensamento elaborador e reflexivo. A razão permite-nos construir o sentido das coisas. Nos sistemas religiosos, contudo, a razão perde autonomia, está submetida a representações da fantasia, da imaginação. Ela serve à produção da ficção. Ela é sufocada em face de construções (discursivas) de modelos de mundo imaginário. Nesse domínio, a razão se deturpa, se contamina por ideias ou crenças (já que só crenças nos movem, fazem nos comportar de uma dada maneira, por elas lutamos, e muitos de nós por elas morremos) que vão determinar a estruturação de nossos raciocínios. Estudos científicos mostram como nosso cérebro pode aceitar como verdadeiras ideias ou crenças que, libertos das pressões de determinadas formas de “lapidação social”, consideraríamos indubitavelmente falsas.
Doravante, importa ver qual não foi meu sentimento de cumplicidade com autor nas experiências que, nos trechos a seguir, nos relata. Veja-se como a voz da razão bramiu do interior de seu ser. O autor nos confessa ter nascido num ambiente católico, mas a herança cultural que recebera deixou de satisfazer o seu espírito questionador.

“Tendo nascido num país cristão, numa família católica, enquanto, de um lado, meu poder de reflexão despertava e minha vocação filosófica se revelava desde o início da minha adolescência, de outro, eu me via confrontado com as noções de “Deus”, “alma”, “imortalidade da alma”, “pecado”, “arrependimento”, “amor ao próximo”, etc., que, por efeito da pressão e da impregnação educativas haviam adquirido uma espécie de evidência”.
(p. 104)

“A pressão e impregnação educativas” ainda mantinham firmes minhas crenças religiosas, na adolescência. A descoberta do espírito filosófico deu-se em mim mais tardiamente. No entanto, o sentimento de verdadeira libertação do obscurantismo religioso, experimentado por Coche, me foi o mesmo. Preciso dizer que, a despeito de conservar minha crença em Deus, ainda na adolescência, manifestava, sempre que podia, severas críticas à doutrina e às posições da Igreja. Parecia-me ser possível (como o é para muitos ainda que acreditam em Deus) a cisão entre Deus e Igreja, de sorte que eu podia crer em Deus sem defender a Igreja e sua doutrinação (sempre que esta era tomada para parâmetro de avaliação de questões sociais sérias, como o aborto e o uso da camisinha). Sem me delongar nesse tocante, a descoberta por mim da filosofia foi determinante do abandono de uma tradição que me condicionou a aceitar ideias e crenças sem examiná-las com rigor racional. Escreve-nos Conche:

“(...) minha razão me premia a afastar a ideia de transcendência. O sofrimento das crianças, considerado mal “absoluto”, pareceu-me constituir um argumento invencível a toda e qualquer teodicéia. Como Deus sem Providência me parecia inconcebível, afastei a noção de Deus. Vi-me ateu, para grande satisfação da minha razão, talvez também para minha satisfação pessoal”.
(ib.id.)

A razão, em mim, rugiu e tomou o lugar honroso que lhe cabia. Na página seguinte (p. 105), Conche patenteia-nos o significado do cristianismo:

“O cristianismo havia significado e significava para mim o sofrimento: o sofrimento da razão, porque a ideia de Deus não é clara, as “provas” não provam, os testemunhos são duvidosos, os milagres impossíveis – mas eu tinha posto fim a tal sofrimento afastando a ideia de Deus, que agora eu sustentava que só tinha sentido se se admitisse a Revelação, logo apenas para e pela fé; em seguida, o sofrimento da alma e do coração, por eu me viver como um “pobre pecador”, isto é, sempre com uma ideia deprimente de mim mesmo”.

Desejo me deter um pouco neste trecho, porquanto entendo repercutir ele vivamente em meu espírito. É o que eu sentia também, nos momentos mais tenebrosos e aterradores de minha depressão. A imagem do “eu” que construía era demasiado negativa, aviltante. Às visões cristãs do homem, do mundo, da existência mesma pecaminosa do homem, devo as interpretações distorcidas e punitivas que eu fazia de mim mesmo. Entendamos isso. Conche nos ajuda a compreender o cristianismo como religião do sofrimento, por um lado; e religião da culpa, por outro. Nunca me esqueço do momento em que, iniciando a missa, o padre convocava a multidão a bradar em uníssono “somos culpados e reconhecemos nossa culpa”. Não me lembro exatamente da forma das expressões, ou seja, como os enunciados eram proferidos, mas a prática discursiva ainda me lembra: éramos instados a reconhecer que somos pecadores e culpados pelos nossos pecados e devíamos ali pedir perdão a Deus. O sentimento de culpa, no cristianismo, deve ser constantemente alimentado, martelado na cabeça dos fiéis, porque é esse sentimento que os mantém presos à crença na Igreja, como instituição porta-voz da Vontade de Deus, e no próprio Deus, como Juiz cósmico e absoluto. O sentimento de culpa causado pela natureza inalteravelmente pecaminosa do homem é o “arreio” que mantém preso e disciplinado o rebanho. Esse mecanismo de escravização da consciência, que consiste em infundir sentimento de culpa com vistas a conservar a adesão dos fiéis ao universo simbólico e ritualístico da sua religião (no caso especial, da religião cristã) não pode ser percebido como tal, já que ele é construção ideológica e, portanto, coerente com o sistema doutrinário e teológico, que lhe confere base explicativa. 
A doutrina capta um dos sentimentos que nós experimentamos, muita vez: o de culpa; mas ela também capta a consciência que temos de que tendemos a desobedecer a autoridades, de que tendemos a subversões, e também de que temos grande suscetibilidade às nossas paixões (somos coléricos, somos egoístas, ambiciosos, desejamos os excessos, etc.). Vejam-se os sete pecados capitais! Disso se segue que ela impõe a obediência irrestrita a Deus, ou a sua Vontade, exige muito de nós, em sacrifício de nossa natureza. Ela nos implode no íntimo (no ser), na medida em que coloca-nos imperativos que nossa natureza é incapaz de seguir, como “amar a Deus sobre todas as coisas” ou “amar ao próximo como a si mesmo”.
Insisto sempre que o cristianismo se desenvolveu com uma retórica que promove o aviltamento da condição humana. Donde se segue o anunciar que somos pecadores desde o início dos tempos. O cristianismo é a religião do excesso ou extrapolação do imperativo moral. Não nego seu valor na construção de nossa moralidade ocidental, mas quero fazer ver que, em certa medida, suas exigências excedem os padrões humanos, ou melhor, excedem os limites de nosso senso moral (que se desenvolveu, em parte, para alguns, no longo processo da evolução natural). A moralidade pode ter raízes evolutivas na espécie humana, mas claro é também que seu desenvolvimento depende de processos formativos pela cultura.  E quero insistir em que a Bíblia, se lida cuidadosamente, não pode servir de parâmetro para a moral de homens justos que vivem no ocidente do século XXI.
No cristianismo, sofrimento é uma virtude. Isso é patente quando ouvimos ou lemos coisas do tipo “o sofrimento nos faz crescer”, “o sofrimento nos fortalece”. Há, na ideologia cristã, dignidade em sofrer. Cristo encarnou essa dignidade. É ele a figura central graças à qual essa concepção pôde tornar-se o pilar da fé. O sofrimento de Cristo é um exemplo de sofrimento para os cristãos. Com a mesma força e resignação com que Cristo suportou seu suplício até a morte pela crucificação, também os cristãos deverão enfrentar seu sofrimento, seus percalços. Na lógica cristã, não devemos nos revoltar com o sofrimento que nos acomete, devemos aceitá-lo, devemos nos resignar a ele e devemos nos sentir conformados na consciência de que o merecemos, porque somos pecadores. O sentimento de culpa mantém-nos resignados ao sofrimento, porque ela fornece uma justificativa coerente. Somos culpados pelo nosso sofrimento - eis a lógica cristã: o reconhecimento da culpa ou mesmo a necessidade obsessiva de nos sentirmos culpados nos leva a aceitar o sofrimento.
A fé não se abala com o sofrimento; ao contrário, ganha mais força. Isso já foi notado por homens mais competentes do que eu, mas não nos deixa de surpreender até hoje. A fé estará sempre divorciada da razão, nesse sentido, porque não nos permite entender que o sofrimento não nos torna dignos, não nos beneficia, que todo esforço da vida segue no sentido de evitá-lo. Não há, definitivamente, recompensa alguma em sofrer. Não há benefício no sofrimento. A fé não nos permite ver isso. A razão prescreve: "se algo não lhe serve para livrá-lo do sofrimento, dispense-o!" A fé, ao contrário, prescreve: “ainda que algo não lhe sirva para afastar ou evitar o sofrimento, não o dispense, agarre-se a ele com mais força”. Isso explica porque encontramos ainda hoje aqui e ali masoquistas cristãos que se flagelam. O cristianismo é a religião do culto ao sofrimento e da dor. Assim, o cristianismo ensina que o sofrimento é justo, porque pecamos e só podemos chegar a Deus pelo reconhecimento de que somos culpados. Só  pode, contudo, se inclinar a Deus aquele que se arrependeu, após ter se reconhecido culpado. Pecado-sofrimento-culpa-arrependimento esse é o caminho torturante e aviltante, único aliás, que nos leva a Deus. A consequência pode ser desastrosa para o psiquismo humano: o pecado, um flagelo psíquico; o sofrimento, o bem necessário; a culpa, uma auto-punição reconhecida; e o arrependimento, uma dor ofertada a ideia de Deus em sacrifício. O fiel se sacrifica, é ele também o cordeiro sacrificado para a adoração da ideia de Deus.
Conche, então abandona a religião, permitindo que a filosofia ocupe o lugar que antes era ocupado por aquela:

“(...) a filosofia significava para mim a felicidade e, dia após dia, me proporcionava tal felicidade”.
(ibid.id.)

Não era, entretanto, qualquer filosofia que lhe acarretou felicidade.  Era a filosofia de Montaigne, de Lucrécio, de Epicuro, dos céticos e dos pré-socráticos. Confrontada ao espírito religioso, o espírito filosófico descoberto por Conche permitiu-lhe estimar o homem e o coração humano.

“(...) Montaigne considerava Sócrates uma figura mais elevada do que Jesus Cristo; constatei que, sendo o evangelho impotente para modificar o coração do homem, não havia cristãos de fato; perguntei-me enfim se havia sentido em propor, como Jesus Cristo, um ideal impossível aos homens. (...) senti crescer minha estima pelo homem e pelo coração humano.”

(p. 106)
(grifo meu)

Conche seguirá meditando sobre o significado de “tornar-se grego”. Observará, no decorrer de suas meditações, que há muitas filosofias gregas e que teve, por isso, de escolher umas por exclusão de outras. As preocupações do filósofo que daí se seguem não me interessarão aqui.
A esta altura, e intentando pôr um  termo a este texto, posso apresentar algumas conclusões a que se pode chegar após a leitura deste texto:

1a) clara está a influência que os livros exercem na minha formação intelectual e humana; clara está a minha intimidade com os livros, a minha insistência em recorrer a eles como espaços de abertura para o diálogo com o leitor;

2a) Uma posição ateísta bem fundamentada depende de que esteja nela pressuposto um espírito filosófico. Dele depende sua consistência. Lembro que a filosofia desanuviou-me a consciência, abrindo caminhos para que eu me tornasse ateu;

3a) Tanto a descoberta do espírito filosófico quanto a adoção do ateísmo tiveram uma repercussão muito benéfica em minha alma. Tanto uma quanto outra infundiram em mim um sentimento de profunda libertação e felicidade;

4a) Não há demérito em abandonar um conjunto de crenças e convicções sedimentadas na consciência por força de uma longa tradição cultural, para assumir um sistema de visão de mundo contrário, que nos pareça vantajoso ou útil.

A tradição não pode nos determinar, não pode ditar quem somos ou seremos. Ela não pode servir, para todos os atos de nossa vida, como parâmetro inquestionável.  Não é porque cresci e me formei numa tradição que me inculcou valores e crenças aparentemente coerentes sobre como o mundo funciona que tenho eu, forçosamente, que me agarrar a ela até a morte. Comportar-se, assim, é rejeitar a possibilidade de descobrir o espírito filosófico em si. É evitar avançar na compreensão mais profunda e sólida do mundo (eu diria “mais verdadeira”).É preciso ousar! É preciso desconfiar, ao menos uma vez, para descobri-lo. Eu ousei! Eu decidi por outros valores: não mais a Bíblia e seus discursos que, hoje, descobri resultarem de falsificações e fabricações por escribas inescrupulosos; e sim o saber filosófico com seus vastos jardins de reflexões.
Não mais o dogmatismo, mas o exercício do pensamento livre e crítico. Não mais as respostas prontas que dizem “verdades” insuspeitas, mas as questões; as dúvidas mais do que as certezas definitivas; o debate racional e equilibrado, e consistente, mais do que a pregação cansativa, as ladainhas e a martelação dos dizeres cristalizados, dos clichês vazios e enfadonhos.
Para uns, posso parecer enfadonho e desagradável; para outros, interessante e admirável. Não pretendo agradar a todos; não sou mais cristão! Ou não traz o cristianismo ainda um sentido universalizante, a saber, a pretensão de ser uma religião universal - e única verdadeira? Não sou mais o dono da verdade, não detenho verdade, mas esforço-me por buscá-la onde quer que ela esteja; julgo válida a empresa; por isso também a religião tornou-se-me dispensável e somente quando eu a abandonei repousei minha alma na felicidade filosófica.