quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Amei pouco, mas o pouco que amei foi meu excesso" (BAR)


Embriagado


Eu não amo como outrora amava
Não mais amo
Como amava a dor de amar
Amo como se tem de amar hoje
Nos limites do efêmero, fluidos
Amo minguados do coração

E relendo sobre o amor que escrevi
Sobre carinhos, verdades que nunca vivi
E relendo os versos que compus
No silêncio de noites sem lua
E tendo n’alma uma atmosfera melancólica
Pesando os meus sonhos
Descubro que o amor de poema é delírio
E eu delirava! E minhas noites desvairadas!

Amo hoje como devem amar os sensatos
Se o amor trouxer alento, fiquemos a ouvir
A sonata dos amantes!
Não obstante
Trouxer à alma infelizes momentos
Uma saideira
E a conta!


(BAR)

"E minha existência é governada pela linguagem: é um silêncio que verbalizo!" (BAR)

                                                 
                                                   O meu silêncio


Ouço já os repiques de tamborins. O carnaval está aí, batendo à porta. É já chegada a hora de libertar-se da rotina e liberar a alegria, que vive aprisionada na redoma do cotidiano. Deixarei, por uma semana, os pensamentos mais instigantes numa gaveta ou silenciados na alma. Até escrevi um texto que precisa ser divulgado neste espaço; mas vou protelar sua publicação.
O carnaval, contudo, não mascara a minha crise. E ela consiste na seguinte questão: O que pretendo eu com a divulgação de meus textos neste espaço? A motivação que está na origem parece-me, hoje, nebulosa. Antes escrevia para fazer-me existir. Precisava bradar ao mundo, ou a uma ínfima parte dele, que eu existia e sofria. Os textos foram erigidos das ruínas de meu sofrimento. Um sofrimento psíquico, que é pior. Felizmente, sucedeu que eu consegui suplantá-lo. As trevas se dissiparam e novos jardins verbais ganharam vida. Hoje, cultivo flores de conhecimento e sinto, não sem inquietude, que estou condenado a ser este agricultor solitário. Escrevo a uma minoria que dá testemunho de si, ao ler-me. Não é que eu almeje a visibilidade de um grande público, mas como professor (e quem é professor bem o sabe) gostaria de que muitos tomassem parte do processo de constituição do conhecimento.
Quando escrevo, eu não ensino; eu compartilho aprendizagens. Compartilho conhecimentos, abro espaços para diálogos, reflexões. É este o propósito deste blog. E sinto pulsar forte em minha alma essa emoção que me impulsiona ao saber, mesmo que ele não me sirva de nada. A minha realização está justamente na própria atividade de constituição do conhecimento. Quando leio, me alegro. O prazer está nas palavras que leio, no que elas me revelam. Há livros que me extasiam. A leitura é minha defesa contra o mundo, é a âncora através da qual evito que minha existência fique à deriva, se perca num vasto oceano de empobrecimento da consciência crítica.
A leitura não pode estar apartada da vida. Para muitos, leitura é clausura. Muitos não concebem a relação entre ler e viver. Diante de um livro, eles só vêem o dever, quase nunca uma ponta de prazer. A leitura assemelha-se a um exame médico que não queríamos fazer mas precisamos, para que nos livremos de uma enfermidade.
Essa crise, que me desanima, não haverá, contudo, de me fazer desistir. A inquietude é que me mantém vivo. E minha existência é governada pela linguagem: é um silêncio que verbalizo!

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Tá tudo uma merda mesmo, que tragam logo o ventilador!

                                 

                                 A merda e o ventilador


O carnaval se aproximando, e eu ansioso por tirar férias de mim. O que significa isso? Quer dizer que não me ocuparei mais com as minhas inquietações. Deixarei os livros na estante por uma semana. Não lerei uma página sequer. Alhear-me-ei dos espaços virtuais da internet; ficarei desconectado. Verei minha Portela desfilar na avenida, ainda que certo de que ela não vencerá.
Por ora, faltando ainda uma semana para o carnaval, deixo-me navegar em minhas inquietações. Trago-as à cena, na esperança de que o leitor junto a mim medite sobre elas.
Um filósofo também se define por ser aquele que problematiza o que as pessoas em geral apenas vivem.
Confesso que estava aguardando a exibição do Globo Repórter de ontem, com sua matéria sobre o fim do mundo em 2012. Coisa trivial, eu sei, já que o fim do mundo é anunciado desde tempos remotos. Na virada para o ano 2000, o tema estava em evidência (e também os apocalípticos!). Essa visão apocalíptica, que tanto agrada aos pastores evangélicos – e eu diria, à comunidade evangélica – era comum no século I, tempo em que Jesus vivera. Muitos eram os profetas que viviam a anunciar o fim dos tempos. Jesus, aliás, era um judeu e profeta apocalíptico.  Seu ministério fora impregnado de sentido apocalíptico. E ele acreditava que o fim estava próximo, era iminente. Deus viria retomar seu comando sobre o mundo – comando que fora abandonado às forças malignas.
Os alardes em torno do fim do mundo são avivados em condições de profunda ignorância. Os que viveram na Idade Média pensavam que o eclipse era um sinal do fim dos tempos. Hoje em dia, evangélicos batem à nossa porta com revistas que nos apresentam os 10 sinais do fim do mundo, entre eles epidemias, catástrofes naturais, violência, etc. A ingenuidade salta aos olhos! E por que deveríamos nos surpreender, se eles se baseiam num livro escrito em parte por pessoas que tinham obsessão pela destruição completa de tudo que existe? Catástrofes naturais (terremotos, vulcões, furacões...) fizeram parte da formação do planeta e existem desde que o mundo é mundo. A violência existe desde que os homens pisaram com seus pés neste planeta. Nossa História é marcada por conflitos, guerras, combates sangrentos e breves momentos de “paz”. Houve tréguas entre uma guerra e outra, talvez. Mas sempre vivemos em guerra, donde se segue que o desejo de uma paz universal chega a ser risível.
Mas a reportagem do Globo Repórter me decepcionou. Deu-se muito espaço a superstições. Não podiam faltar a numeróloga e o astrólogo, bem como os místicos e uma rapaziada zen e naturalista, que contando com o cataclismo iminente (com data marcada para o dia 21 de dezembro de 2012), se refugiara para regiões altas onde poderia encontrar sossego, oportunidades para meditação e onde poderia harmonizar-se com a Natureza circundante! Alguém deveria avisá-los de que talvez o que quer que venha a causar a destruição do mundo não estará interessado em discriminar entre os harmoniosos naturalistas e os desarmoniosos desleixados, entre os crentes e os profanos, entre os abastados e miseráveis.
A ciência se pronunciou e a NASA acalmou os gozosos do fim! Não, ainda faltam milhares de anos para isso acontecer! Fico imaginando o contentamento dos obcecados pelas profecias da aniquilação do mundo, ao ouvir um cientista dizer que um dia a Vida chegará ao fim. Pena que eles não estarão mais aqui para assistir a tão grandioso e aterrador espetáculo!
Virando a página, passadas as convulsões espirituais em torno desta matéria tão atraente ( o fim do mundo foi adiado!), que tal agora lançar olhares sobre o patético, o trivial? A televisão nos serve pratos cheios disso, não é? O Big Brother já está batido, repisado, mas não custa fazer ver qual não é o desserviço prestado por este programa. Pessoas deitadas em sofás ou em colchonetes conversando sobre quem comeu o quê!! E essa conversa banal, típica do cotidiano de cada um de nós, é exibida para o Brasil inteiro.  E pessoas podem ficar deitadas numa cama, assistindo a uma imagem de uma piscina vazia, ou a de um quarto com pessoas deitadas, ouvindo música, ou dormindo; ou a de duas pessoas cochichando para não acordar os dorminhocos! Esses recortes banais da vida são transmitidos pela televisão e chegam aos nossos lares.
Mal acordei, e enquanto tomava café, procurava algum programa interessante na TV. Passando os canais, vi um pastor pregando à multidão e ele dizia: “não adianta fazer passeatas, este mundo é governado por forças espirituais, minha gente!; o homem pensa estar no comando, mas não está!”  E as pessoas - a massa de consciência embotada - olhava com expressão de seriedade, como se estivesse paralisada; os olhares se fixavam no pastor, e os ouvidos presos às suas palavras extravagantes e escandalosas! E fico imaginando o que estaria lhes passando pela cabeça: “isso é a pura verdade; afinal o que mais explicaria as guerras, a violência, a incapacidade de os homens se amarem uns aos outros e viverem em harmonia?”.  Tem de haver uma influência negativa que nos transcende! Bem, nessas condições desalentadoras, que nos resta senão orar? Conformemo-nos, não há jeito! Arrependamo-nos e busquemos a Deus; a corrupção continuará a vicejar nestas terras brasileiras, a saúde continuará doente, a educação mercadologizada e afundada na crise, jovens de classe média alta continuarão a agredir moradores de rua, travestis e homossexuais; Malafaia continuará pregando contra o homossexualismo; autoridades políticas continuarão apresentando projetos para o ensino da Bíblia nas escolas; nossos policiais e bombeiros continuarão a fazer greves para reivindicar reajuste salarial de tempo em tempo. E as pessoas continuarão a estampar nas redes sociais os lugares-comuns, dando ao amor e aos seus desamores aquele tom hollywoodiano banal, ou os expressarão com frases da psicologia do cotidiano! E professores formados em nossos cursos de Letras continuarão a ler menos ainda do que liam quando eram alunos  e o Brasil continuará a compor o quadro dos países com menor índice de leitores. E o papa virá aqui para falar à juventude e para garantir que esteja presa pelo cabresto da fé; afinal, ela é o futuro da Igreja ou o alicerce da prolongação de seu poder para mais dois mil anos...
Para que dar-se o trabalho de refletir sobre tudo isso? O fim está próximo e o mundo é governado pelas mãos invisíveis dos espíritos, cuja razão de ser é nos atormentar!
Tá tudo uma merda mesmo, que tragam logo o ventilador!




  

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

"A revelação não se dá pela fé; mas pela reflexão filosófica" (BAR)

                               

                                    Por que milhões se enganam?

Decerto, a ninguém agrada ser enganado. E muitos de nós nos revoltamos quando descobrimos que estávamos sendo enganados. Por exemplo, é o caso de quem vai a um médico para buscar tratar-se de alguma enfermidade e depois descobre que esse médico fraudou seu próprio diploma. Confiamos nele como alguém que detinha a competência necessária ao exercício da medicina; dispensamos-lhe nossa (porque acreditamos que seu comportamento era a expressão de conhecimentos sólidos que adquiriu ao longo dos anos em que cursou medicina). E, num instante, cai pesadamente sobre nós o desencanto: a farsa foi descoberta! Sentimo-nos iludidos; o que acreditávamos não era real (desilusão!). Aquele homem de jaleco branco diante de nós não era um médico, era um farsante, um velhaco. Alguns de nós nos culpamos, e nos perguntamos “como pudemos ser tão ingênuos, tão crédulos?”.
Não é custoso ver que viver em sociedade exige que estabeleçamos relações assentadas em confiança. Ela não só é importante para assegurar a validade dos modelos de referência na base dos quais nossas vivências se desenvolvem mas também para que estejamos motivados a estabelecer acordos, compromissos, fazer promessas, traçar planos que poderão ser cumpridos. Por um lado, nós compartilhamos, em nossa cultura, com os outros modelos de realidade - confiamos estar num consultório médico, diante de um médico, por exemplo; confiamos estar numa sala de aula aprendendo sobre História diante de um professor devidamente capacitado para tanto - ; por outro lado, qualquer forma de agregação humana exige certo grau de confiança para que as necessidades de grupo sejam satisfeitas. A confiança é o que nos resta em face da consciência de que não podemos sempre conhecer verdadeiramente as pessoas.
  A condição básica para que tenhamos confiança é a falta de informação plena. Por exemplo, confiamos que tanto o engenheiro que elaborou a estrutura de nosso prédio (a planta) quanto os operários que trabalharam em sua construção detinham a competência necessária ao empreendimento.  Se não fosse assim, como poderíamos viver sossegados sob um teto? Não temos escolha senão confiarmos, já que, como assinala Giddens, em As consequências da Modernidade (1991),

“(...) não haveria necessidade de se confiar em alguém, cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos processos de pensamento fossem transparentes, ou de se confiar em algum sistema cujos procedimentos fossem inteiramente conhecidos e compreendidos”
(p. 40)

Para Giddens, a confiança une fé à crença; mas desta última se distingue, visto ser a crença uma atitude que afirma com certo grau de probabilidade ou certeza a realidade ou verdade de um dado estado-de-coisas. Comparada à crença, a confiança é, concluirá Giddens, cega.
Eu não descerei a pormenores no tocante ao conceito de confiança. Quero apenas mostrar que a confiança surge no momento em que nos vemos destituídos de conhecimentos ou informações importantes que poderiam nos dar alguma segurança nas nossas ações ou nas tomadas de decisão. Temos, em geral, boas razões para confiar em que nossos policiais foram preparados para a garantia da ordem pública. Sabemos, no entanto, que o grau de nossa confiança pode declinar sensivelmente sempre que tomamos conhecimento de casos de corrupção na corporação, quando, por exemplo, policiais se envolvem em negociatas com traficantes de droga, ou quando descobrimos que entre eles há homicidas. Como não podemos, no entanto, supervisionar a formação desses homens, como ignoramos muito sobre como são realizadas as provas e o treinamento destinado a capacitá-los, resta-nos confiar em que o serviço que nos é prestado e pelo qual pagamos satisfará as nossas necessidades de segurança. Quando isso não se verifica, desconfiamos e tendemos a protestar, reivindicar fiscalização ou reforma na instituição.
Tendo em vista o exposto, passarei, doravante, a me ocupar com o desenvolvimento do tema deste texto. Tratarei aqui de um engano; antes, porém, de fazê-lo, preciso ancorar meus pensamentos em alguns trechos colhidos da obra Quem Jesus foi, quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman. O primeiro que merece nossa atenção é o trecho em que o autor apresenta-nos o tema de seu livro. Em negrito, destaco os fragmentos a que devemos dispensar atenção acurada:

“Este livro, portanto, não é sobre minha perda de fé. É, porém, sobre como certos tipos de fé – especialmente sobre a fé na Bíblia como se ela fosse algo historicamente inequívoco e a Palavra inspirada por Deus – não se sustentam à luz do que nós, como historiadores, sabemos sobre a Bíblia. Os pontos de vista que apresento neste livro são matéria comum entre os acadêmicos. Não conheço um só estudioso da Bíblia que vá aprender qualquer coisa neste livro, embora eles possam discordar de certas conclusões aqui e ali. Teoricamente, os pastores também não deveriam aprender muito com ele, já que este material é amplamente apresentado em seminários e faculdades de teologia. Mas a maioria das pessoas nas ruas e nos bancos das igrejas nunca ouviu isto antes. Isso é uma vergonha, e chegou o momento de fazer algo para resolver esse problema”.
(p. 31)

Já escrevi um texto, que postei neste blog, em que me ocupei com o que penso ser uma revelação dramática, a saber, dos 27 livros do Novo Testamento, 19 são produtos de falsificações. Exceto as sete epístolas atribuídas a Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon), bem como o Apocalipse de João (conquanto não se tenha certeza sobre quem foi esse João), os demais textos (total de 19) se distribuem em três grupos: 1. textos cujos autores não são as pessoas que alegam ser (O João do Evangelho não é o João discípulo de Jesus, outra pessoa escreveu usando o nome João; Mateus não escreveu o texto   Mateus); 2. textos cujos autores têm o mesmo nome de uma personalidade conhecida (o livro de Tiago foi escrito por alguém que se chamava Tiago, mas o autor não alega ter sido Tiago, irmão de Jesus); 3. textos cuja autoria é falsa, também chamados “pseudepigráficos”.
Antes de iniciar a produção deste texto, estava eu envolvido na leitura de mais um capítulo do livro de Ehrman, e tendo deparado com o excerto abaixo citado, apressei-me em expor os pensamentos que se desnudarão à consciência do leitor, à medida que avançar na leitura. Ehrman, no referido trecho, aponta-nos a dificuldade que mesmo os estudiosos acadêmicos têm de admitir que os textos fabricados do Novo Testamento são fraudes. Leiamos com atenção:

“Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes – afinal, é da Bíblia que estamos falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, e é isso que eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi escrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista que representavam”.
(p. 154)

Chamo atenção para o trecho “afinal, é da Bíblia que estamos falando”. O articulador discursivo “afinal” introduz um enunciado que encaminha para uma conclusão que se pretende consensual. O raciocínio pode ser compreendido, se distinguirmos suas partes da seguinte forma:


Premissa explícita – “Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes”
Pressuposto – A Bíblia é infalível e não questionável (senso-comum) (afinal)
Conclusão – A Bíblia não pode ser questionada.

O articulador “afinal” introduz um enunciado que encaminha à conclusão “a Bíblia não pode ser questionada”, ou seja, a Bíblia, como produto da “mente” de Deus não pode ser considerada fraudulenta. Como símbolo de poder, a Bíblia revestiu-se historicamente de uma impermeabilidade à crítica. Desqualificá-la como fraude é atrair para si reações virulentas do poder eclesiástico secular e de seus subordinados. O enunciado introduzido por “afinal” diz implicitamente “a Bíblia não pode ser questionada”. A sua "áurea sagrada" (entenda-se por "áurea sagrada" um valor atribuído pela ideologia dominante, pelo poder da Igreja primitiva) a protege contra qualquer suspeita!
Outro trecho, logo abaixo deste, será ilustrativo do engano que incide sobre milhões de pessoas no mundo que abraçam o cristianismo. Elas se enganam porque não têm consciência de que o livro que tanto adoram e no qual confiam para determinar seus valores, dirigir suas ações e revelar "verdades" eternas sobre o mundo é produto de uma fraude. E, diga-se de passagem, fraudes eram muito comuns no mundo antigo (embora fossem desaprovadas) (v. Bart, p. 132).
Os ateus têm razão ao criticar duramente pastores e padres que, de forma maliciosa, mantêm seus correligionários na ignorância, ludibriando-os, se beneficiando à custa de sua credulidade e ingenuidade. Façamos nossa crítica em forma de denúncia: denunciemos uma exploração não só econômica (sempre que nos damos conta do grande enriquecimento das igrejas), mas também intelectual. O poder é mais forte quando não pode ser questionado; isso significa dizer quando não é dado saber àqueles que se submetem às autoridades. É mais fácil legitimar o poder, que se apresenta como aceitável, pela simples manutenção da ignorância sobre suas bases. 
Leiamos as seguintes palavras de Ehrman:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo o Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério.
E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(id.ibid.)

O nosso palpite, que é o do autor também, é que simplesmente a visão de que os textos do Novo Testamento são produto de falsificações ou fraudes, embora conhecida dos pastores e  dos padres que outrora frequentaram as aulas dos seminários, não é ensinada aos crentes que sentam nos bancos das igrejas. E o engano  envolve o indivíduo desde a infância. É lamentável que crianças, adolescentes e jovens sejam estimulados a ler a Bíblia de modo devocional e sejam levados a acreditar que estão diante de textos autênticos, textos que, segundo creem, lhes revelarão verdadeiramente a “Voz de Deus”. Não é isso, definitivamente, que eles revelam. Eles revelam as vozes de muitos homens (um leitor familiarizado com os estudos linguísticos, dirá comigo, os textos são polifônicos, embora a polifonia se dê em meio a fraudes). Os textos são produtos das visões que muitos homens tinham sobre a identidade de Jesus, sobre seus ensinamentos, sobre os acontecimentos ou superstições em torno de sua vida (por exemplo, o significado da crucificação, da sua morte, da Ressurreição, etc). E estes homens não foram aqueles que o acompanharam. Eram homens que viviam em outras regiões, que partilhavam de um código cultural diferente e que, quase certamente, detinham um grau maior de instrução e conhecimento de grego (língua em que a Bíblia fora escrita originalmente e cujo conhecimento escapava aos verdadeiros apóstolos, que eram indivíduos ignorantes e falantes de aramaico).
Não é intenção de Ehrman levar o seu leitor a deixar de acreditar em Deus. Ele escreverá, à página 30, “Eu decididamente não acho que a crítica histórica leva necessariamente à perda de fé”. Isso parece ser verdade, quando ele nos dá testemunho de que há entre seus colegas acadêmicos, que se dedicam ao estudo histórico-crítico das Escrituras, aqueles que conservam sua fé e atuam em igrejas. No caso de Ehrman, sua fé deixou de ocupá-lo quando não mais conseguiu conciliar a crença em um Deus que é amoroso e bondoso com a evidência do sofrimento em larga escala no mundo. Disso ele tratará no seu instrutivo livro O Problema com Deus, onde busca discutir as respostas dadas pelos autores bíblicos à questão de por que há tanto sofrimento no mundo. Esses autores se esforçaram por dar explicações para o fato de que sofremos, a despeito de haver, como criam, um Deus bondoso e providente.
Dizer que uma análise histórico-crítica da Bíblia não leva necessariamente ao ateísmo não implica dizer que ela não leve. Ela pode levar ao ateísmo, caso o leitor já esteja habituado a assumir uma atitude filosófica diante do mundo. Dela já tratei em outro texto. A atitude filosófica é uma atitude crítico-reflexiva, assentada no questionamento, na busca pela verdade. Ela quer saber e, para tanto, indaga: o que é?,  como é?,  por que é?, para que é?.
A complexidade do fenômeno religioso excede os limites deste texto. Sob muitos aspectos, a fé religiosa tornou-se insustentável para mim. O caminho para questioná-la foi, entretanto, aberto pela filosofia. Descobri que a atitude filosófica era incompatível com a atitude de fé. A adoção do ateísmo por mim é, portanto, fundamentada em leituras aturadas, no convívio com livros de filosofia e outros. Quando assumimos a atitude filosófica, quando aprendemos com a filosofia a pôr em discussão nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes, nossas visões de mundo antes insuspeitáveis, torna-se dificultoso continuar a conformar-se às formas como a realidade se nos apresenta.
É com as palavras de Betrand Russell, em Os problemas da filosofia, citado por Marcondes, em A Filosofia: o que é, para que serve? (2001), que dou a saber ao leitor o valor da filosofia quando o descobri em minha vida:

“O valor da filosofia deve ser procurado em sua própria incerteza. O homem que não tem nenhum conhecimento de filosofia atravessa a vida aprisionado aos seus preconceitos provenientes do senso comum, das crenças habituais de seu tempo e de sua nação, e das convicções que cresceram em sua mente sem a cooperação ou o consentimento deliberado da razão. Para tal homem, o mundo tende a tornar-se definitivo, finito, óbvio; os objetos comuns não lhe trazem questões e as possibilidades desconhecidas são desdenhosamente rejeitadas. Ao contrário, tão logo começamos a filosofar, descobrimos que mesmo as coisas mais cotidianas nos trazem problemas para os quais só podemos dar respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os libertam da tirania do hábito
(...)”

(pp. 14-15)

A filosofia é uma atividade em aberto; é uma forma de discurso que coloca em dúvida seu próprio significado. A filosofia questiona a si mesma. Não há uma filosofia, mas muitas filosofias, já que filosofia não é o que resulta da atividade de pensar, mas a própria forma dessa atividade; filosofia é ação que se realiza com o pensamento, com o logos (discurso, palavra).
 Um filósofo não se define como aquele que é versado em diversas filosofias. Todo homem pode ser filósofo quando assume a atitude filosófica. A competência de um filósofo não se mede pelos conhecimentos que têm da História do pensamento filosófico. Mesmo que eu seja um especialista no pensamento de Descartes, que tenha lido e relido suas obras e produzidos dissertação, tese e artigos sobre seu pensamento, não seria eu ainda um filósofo. Filósofo é aquele que não se limita a viver como se a realidade fosse algo já dado, pronto, acabado; ele se posiciona diante dela como quem a toma como um problema a ser investigado e compreendido. Ele é quem reflete, argumenta, discute. No exercício de sua atividade, importam mais as questões que levanta do que as respostas que possa vir a obter para elas. Afinal, as respostas sempre poderão vir a ser questionadas e revisadas. Importa, na atividade de filosofar, o modo como as questões são formuladas, o modo como argumentamos sobre elas; são pois, os caminhos de reflexões que abrimos que são caros na definição do que é ser filósofo. Ele não é o sábio, não é o erudito; é, como ensinou Sócrates, aquele que reconhece sua ignorância, mas munido do espírito questionador, ávido pelo saber, busca remover o véu dessa ignorância, busca pôr em xeque suas próprias convicções, bem como as crenças provenientes do senso-comum. Filosofia é sinônimo de libertação, portanto incompatível com sistemas dogmáticos, incompatível com crenças infundadas.
Não é a Bíblia que deve ser matéria nas salas de aulas de nossas escolas; mas a filosofia!

Meu canto embriagado














Aceno

 Quando nasci
a vida me escorreu
para um copo

Onde a bebi
Embriagado dela
Hoje
Resisto à morte

Com um aceno ébrio.

       (BAR)                        

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Era uma vez...

                                     

                                           Confessionário


Num átimo de coragem, ousou o diabo romper os portões do Céu e lançar sobre Deus um temporal de questões:

- Você precisa me ouvir e o fará agora, de uma vez por todas! – vociferou o diabo, muito íntimo de Deus.
- Fale-me que te ouço!
- Pois bem. A situação lá embaixo tá feia. Há uma rapaziada lá que tá querendo fazer política a qualquer preço. Lançam mão do seu nome para perpetrar e justificar os atos mais abomináveis! Recentemente, surgiram os homens-bomba dispostos a matar a si mesmos e a quem quer que esteja nas mediações. Eles acreditam cumprir o que ensinam suas Escrituras.
- Ouvi alguma coisa a respeito!
- E o que está disposto a fazer? Não vê que estão usando seu nome para deflagrar violência? Há uma rapaziada lá que nega ferrenhamente sua existência. Também pudera, já que você não dá sinais de que está no comando. Aliás, se não sabe, até escreveram um livro, que chamam de Escrituras Sagradas. Nele, conta-se que o senhor delegou a mim o comando do mundo e isso explica o sofrimento que assola as criaturas que lá vivem. Eu sou sempre o culpado! Estou farto disso!
- Alguém tem de ser o bode expiatório. Afinal, eu sou bom, excessivamente bom, lembra? É assim que me concebem.
- O senhor é bom? Se o senhor delegou a mim, como acreditam, o controle sobre o mundo e se sou eu mau tal como me representam, então o senhor é mau também. Se fosse bom, assumiria o comando. Mas devo dizer que nada tenho a ver com isso. Sou inocente de qualquer acusação. É você que é todo-poderoso e nada faz por merecer tamanho prestígio.
- Assim me chamam?
- Sim, há milhões de criaturas que creem ser você o Senhor do Universo, o Poder absoluto, irrevogável. Para esses milhões, você pode tudo. Só não pode evitar que terremotos, tsunamis arrasem países e matem milhares de pessoas, nem que epidemias ceifem milhões de vidas.
- Não sabia disso. Então, sou muito adorado?
- Sim, erigem até templos em seu nome. Estranhamente, alguns ruem com um terremoto. E muitos fretam ônibus em viagens longas para visitar igrejas e participar de romarias. Às vezes, nessas ocasiões, morrem muitos em acidente. Ah! É claro que o senhor tem muitos nomes e não há um consenso sobre a sua verdadeira identidade. Por vezes, o senhor é um Pai misericordioso, mas punitivo, irado, rabugento. Suas imagens são conflitantes. Há também criaturas que creem em outros deuses!
- Em outros deuses? Como ousam!?
- Ué, o senhor é que as fez assim! Elas são muito criativas!
- Mas eu sou o único Deus, só existe um Deus. Sou Eu! Revelei isso!
- Pois é, mas parece que falsificaram as escrituras!
- Pérfidos!
- Você deveria sabê-lo. Vamos lá. Raciocine comigo. Você criou o universo, pelo menos é isso que ouço lá embaixo. O senhor criou o mundo, o planeta Terra, por quem parece ter certa predileção. Lá o senhor permitiu a vida. Criou a água, elemento primordial, o fogo, o ar, e a terra. Colocou lá uma flora rica e exuberante, uma fauna igualmente rica e diversificada. Há coisas boas lá embaixo, eu reconheço. Mas você também não aliviou a mão, né?. Em contrapartida, criou vírus, bactérias, parasitas, o mosquito da dengue (que aliás tem causado epidemias no Rio de Janeiro (e olha que lá tem muita gente de fé!). Você sabe onde fica essa cidade, né? No Brasil, um país onde vivem muitas pessoas religiosas! Bem, daí você, não satisfeito, criou terremotos, vulcões, furacões, tsunamis, asteróides, meteoros e, claro, o ser humano. Dizem que foi sua melhor obra! Eu discordo. Um ser tão bom quanto o senhor bem que podia ter feito um pouco melhor. Essas criaturas, se abandonadas a si mesmas, tendem a se matar umas as outras. Parece que a Natureza as pré-dispôs a atender ao imperativo da sobrevivência. Você devia sabê-lo. Os genes são egoístas!
- A maldade humana é fruto do pecado!
- Ora, faça-me o favor! Deixa disso! Balela! Pecado é uma criação daquelas criaturas para explicar a contradição insuperável: como poderia haver um deus bondoso e interessado na sorte de suas criaturas, dotado de poder infinito de atuar em favor delas, diante da existência de tanto sofrimento, de tanta maldade... daí criaram o pecado, para explicar por que aquelas criaturas sofrem! O senhor não poderia criar o pecado, isso seria contra-senso. Mas são os contra-sensos que sustentam aquelas criaturas na fé em você.
- Decerto, eu não criei o pecado. Eu criei os homens bons!
- Vejo logo que o senhor não entende nada de genética, de cultura. O que me parece é que o senhor fez uma grande merda e não quer admitir. Diz logo que a criação saiu do controle, só isso pode explicar os terremotos, os vulcões, as imperfeições tão evidentes na Natureza! Confessa... você não fez o melhor, algo saiu errado. A matéria resistiu ao seu poder e tomou forma por si mesma. Sua credibilidade está sendo questionada!
- Como pode questionar-me?
- Ora, depois do Holocausto, duas Guerras Mundiais, do 11 de Setembro, de Hitler e Osama Bin Laden, de epidemias que dizimam milhões de criaturas, não me surpreende que os mais esclarecidos e críticos julguem não existir deus nenhum. Você deu motivos! Se quisesse que realmente levassem-no a sério, teria dado sinais claros, a começar por eliminar a grande quantidade de microorganismos nocivos à vida das demais espécies. Eu sei que algumas bactérias são úteis, mas você poderia ter feito diferente. Sabia que as criaturas morrem de infecção por bactérias?  Você sabia que o câncer atinge não só os seres humanos, mas também plantas e vários animais? Para certa classe de homens você é o pior erro da História, uma invenção que insulta a dignidade de muita gente que luta por uma sociedade mais justa. Seu nome cingiu a humanidade. Eles discriminam, segregam em seu nome.

Deus, em silêncio...

- Por que você criou tudo que há?
- Porque eu não existiria sem que houvesse quem pudesse dar testemunho de mim!
- Então, você está me dizendo que sua existência depende da existência daquelas criaturas que chamamos “homens”. Sem elas, você não teria razão de ser. Continuaria vivendo em sua solidão cósmica e infinita. Você não deu aos demais animais a capacidade de professar fé em seu nome. Só os homens o fazem. Deles depende sua memória. Você só tem força na consciência dessas criaturas. Se o mundo fosse habitado apenas pelos animais de consciência pouco desenvolvida, você não existiria. A menos, é claro, que lhes desse a capacidade de pensar e lhes tivesse dotado da capacidade para professar crença em você. Você teria de lhes dotar de um cérebro com dimensão e propriedades específicas, como o cérebro humano. Qual é o propósito da criação? O que pretendeu ao criar os homens, o mundo?
- Para que vivam junto a mim, quando morrerem!
- Só?
- É. O propósito da vida é obter a vida eterna obedecendo a minha Vontade.
- Tá bom. Mas para isso seria necessário criar um mundo repleto de tanto sofrimento, seria necessário fazer que suas criaturas suportassem males, vivessem vidas de privação, ou morressem em tenra idade, para poder gozar da eternidade ao seu lado? Por que não as criou prontas para viver ao seu lado? Por que não criou um mundo em que você se faria visível, verdadeiramente pessoal e atuante? Essa lógica do “sacrifício leva à salvação” soa pedagogicamente repugnante. Isso parece coisa de certa classe de homens antigos, que educavam através da punição. Suspeito que você é uma invenção dos homens!

E não obtendo resposta de Deus, o diabo anuncia, em desfecho.

- Não me sendo apresentado argumento contrário, declaro que sou ATEU. E não sou responsável por mal nenhum. Você poderia ter dado cabo de mim, evitando assim que homens atribuíssem a mim supostas possessões, perdição e males através de muitas gerações. Somos cúmplices de um delírio. Agora, estou indo...
- Para onde?
- Para os confins do Universo, onde ficarei em paz!
- Espere! Eu vou com você. – bradou Deus.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

"A meta de uma discussão ou debate não deveria ser a vitória, mas o progresso." (Joseph Joubert)

Aos colegas ateus:





"Estou de acordo. Sou ateu, mas isso não me obriga a concordar com todos os colegas em todas as questões. Um partido, uma congregação não se forma com indivíduos que estão sempre de acordo; há os dissidentes. Já critiquei o modo como muitos ateus adotam um discurso neocientificista auto-suficiente, um discurso com que supõem poder responder a todas as questões colocadas pela religião ou outras doutrinas metafísicas. Eu posso aceitar a teoria do Big Bang (é a teoria paradigmática que, embora atraia divergentes no tocante a um ou outro aspecto, continua aceitável até que possa vir a ser refutada). Concordo que a hipótese de Deus para explicar o surgimento do universo traz sérias complicações. Ainda que assumíssemos haver um projetista, um exame cuidadoso nos mostraria que ele não pode ser o deus cristão. Tratar-se-ia de um deus completamente desinteressado da sorte dos homens neste mundo, de um deus impotente, de um deus coagido pelas leis da física, pela constituição mesma do universo. Seria um deus fraco (nada comparável ao deus grandioso do cristianismo). Seria um deus que ao criar, perdeu o controle sobre os elementos primários da criação e que, embora tenha projetado uma natureza exuberante, NÃO O FEZ PERFEITA! (ao contrário do que supõe a maioria dos religiosos, aliás perfeição é impensável nos padrões humanos, é ideal). Claro não precisamos da hipótese de Deus para explicar a origem da vida. Mas a ciência silencia em face da morte. Cientistas lidam com a vida. Médicos estão comprometidos em salvar vidas, em restituir a saúde, em preservá-la. A morte é o fim, é onde cala a voz científica e onde se abre o vazio a ser preenchido pela voz do coração, da superstição (se quiserem assim chamar), do sentimento. Diante de um defunto, o médico diz: eis uma matéria inanimada, sem vida. Eis um corpo cujo cérebro deixou de funcionar; portanto eis um morto. Este corpo, que outrora sentia, pensava, estudava, falava, escrevia, trabalhava, amava, chorava, sofria, pulava de alegria, viajava, casava, divorciava-se, se apaixonava, planejava, compunha poesia, emocionava, criava ... este corpo que um dia existiu (se relacionava), é aproveitado para estudos de anatomia. Faço um apelo não à razão, mas à emoção. Nós, seres humanos, não somos só animais racionais, somos pessoas emocionalmente complexas. Somos seres de desejo, de emoção. Viver é emocionar-se, não é só pensar, não é só racionalizar. Não vamos conseguir êxito tentando convencer os religiosos ou os espíritas de que a morte é o fim de tudo, de que viemos do pó e retornaremos ao pó... essa visão niilista não logrará êxito. Enquanto os cientistas nos chamam atenção para a singularidade de nosso estágio na longa cadeia evolutiva, que nos torna uma espécie notável, sob vários aspectos, os religiosos ou espiritas vêem nisso um sinal de que há em nós um substrato que resiste à aniquilação orgânica quando da morte. A crença na possibilidade da inesgotabilidade da vida não me incomoda. Se a maioria apenas a desejasse, sem pretender universalizá-la, sem pretender transformá-la em doutrina, sem fazer dela uma religião, talvez não houvesse muito por que nos opormos. Ficaríamos com o desejo, mas continuaríamos sempre dispostos a dar voz a nossa única certeza: a de que morreremos. O que isso realmente significa é algo que nos está velado. Antes de bradar "todos vamos morrer aceitem isso", olhemos ao nosso redor, vejamos quantos desgraçados chegam ao mundo e que, por circunstâncias adversas pelas quais não foram responsáveis (ou vocês responsabilizariam uma criança que nasceu com um problema congênito, que nasceu em regiões pouco favoráveis à sua sobrevivência?). Uns nascem em berço de ouro, uns são acolhidos pelos pais; outros nascem em condições de pobreza e são, às vezes, abandonados. Uns morrem muito cedo, ainda crianças; outros vivem uma vida longa de privações, de sofrimento. O que é certo é que o sofrimento tece as malhas da existência humana. O budismo tem a nos ensinar muito a esse respeito (em parte, pode-se aproveitá-lo). É notável que cientistas como Richard Dawkins convoquem a todos nós a usufruir a vida, que é única e valiosa, mas tenham forçosamente de sufocar o sentimento, de ignorar que milhões de pessoas são privadas de gozar desse privilégio. Para muitos, a vida é dura, para muitos a vida é uma desgraça, para muitos a vida não passou de alguns dias. Serão estes infortunados recompensados de algum modo? Terá a passagem deles neste planeta se limitado ao infortúnio, à desgraça, à infelicidade? Não sabemos. Aqui a ciência sai de cena. E o mistério nos abraça, nos envolve a todos. Somos filhos desse mistério. Contentemo-nos com ele, sem nunca desistir da Vida!"

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Como todos os sonhadores confundi o desencanto com a verdade!" (Sartre)

                  


                                        Desencantos verbais

O convívio  com os livros me desencanta. Falarei de mim aqui, do que me diz respeito. A leitura é a atividade de que me ocupo cotidianamente e à qual dispenso uma grande quantidade de tempo. E quanto mais leio, quanto mais aprendo e quanto mais reconheço quão vasto é o terreno de minha ignorância, mais quero percorrê-lo. No entanto, esse percurso incita-me a levantar-me com rigor crítico em face de tudo que me permito perceber. Tudo carece de clareza: compreende os acontecimentos, as opiniões, as ideias, as imagens, os textos que se apresentam a nós como objeto de interpretação, ou seja, de leitura. Estamos a todo momento lendo o mundo, buscando apreendê-lo pela leitura da palavra. O equívoco, aos incautos, é inevitável: pensam que o texto reflete o mundo tal como é. Enganam-se: o mundo é textualizado. O texto (ou discurso) reconstrói o mundo, fornece um modelo de mundo – o modelo de mundo textual.
Parece-me que a vida perde um pouco de sua força quando abandonamos nossos projetos. O homem é um projeto, ensinara Sartre; abandonar projetos é abandonar a si mesmo. Os livros me entulham a cabeça de projetos; estimulam-me até as vísceras os pensamentos, sacode-os, fazem-nos vibrar na milionésima potência do desejo de ser mais. Ante a mim, excertos de conversas sobre o tema ateísmo. Estampados na tela do computador os enunciados diversos de participantes, mal amparados argumentativamente. Um deles é até honesto, ao confessar não ser bom com as palavras. Excogitei da ideia de escrever sobre tais contribuições a fim de patentear aos meus leitores as inconsistências, os lugares-comuns, a fragilidade dos argumentos. Fá-lo-ia com o propósito de justificar meu desencanto ao envolver-me nesses debates pouco férteis. Há, devo dizer, aqui ou ali, uns que se destacam e isso me aproveita; no entanto, a quantidade de pensamentos rasos nutridos ora no letramento científico (não suponho que seja adequado, longe disso), ora amparado no adestramento doutrinário, faz-me desistir da empresa.
Como nossas relações uns com os outros e com o mundo são mediadas pela linguagem, os desentendimentos, as más interpretações, o equívoco estão sempre virtualmente presentes. O entusiasmo com que defendo minhas posições ateístas foi incomodamente notado. Não obstante, a indiferença mútua (entre mim e os religiosos) tem sido uma espécie de terreno comum onde viceja complacência. Quando me imiscuo em debates (imiscuo-me porque os debates são “coisas” alheias), procuro uma saída, lanço luzes que alcançam os caminhos obscuros que se abriram, luzes que permitem avanços. Alguns os reconhecem e se agradam deles; outros os ignoram. Nunca sou a voz primeira (não existe uma voz primeira, adâmica!). Aprendi com a filosofia a demorar-me na observação, no exame silencioso, na contemplação, na admiração. Só tomo parte quando reconheço a oportunidade, quando uma brecha de silêncio se nota e o silêncio pede para ser preenchido com minhas palavras, que abrirão outros silenciamentos. O silêncio é fundante. A linguagem NÃO É TRANSPARENTE; pelas palavras escorrem silêncios. Explico-me: nunca dizemos tudo que temos a intenção de dizer. É por um efeito ideológico que acreditamos na suficiência da linguagem, na sua completude, na sua transparência, na sua capacidade de fechar o sentido, de dar-lhe um acabamento, de dar-lhe limites precisos no discurso que produzimos. Mas os sentidos vazam, seguem direções diversas. O trecho abaixo, colhido de As formas do silêncio (2007), de Eni Puccinelli Orlandi, ilustra bem o que venho dizendo a respeito do lugar do silêncio na linguagem:

“As palavras são cheias, ou melhor, carregas de silêncio. Não se pode excluí-lo das palavras assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só pela verbalização”.

(p. 67)

Se não se pode recuperá-lo apenas pela verbalização, então o sentido do silêncio extrapola a linguagem; está situado nos intervalos entre as palavras ou atrás delas. Está para além da materialidade do texto. Veja-se o caso das paráfrases. A paráfrase não é uma mera reprodução do significado por meio de combinações sintáticas diferentes; há sempre algo que escapa; há sempre um silêncio rico de significações. O silêncio não é o vazio, o sem-sentido, mas a condição mesma para o sentido, a fertilidade para os sentidos. Ele atravessa as palavras.
Oponho-me ferrenhamente aos discursos dogmáticos e autoritários também porque pretendem sufocar o silêncio, porque pretendem dizer o sentido definitivo, porque nos querem fazer crer que nada mais há para ser dito.
Basta-me, por ora.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A religião do Imperador

                          
                           Para fazer a crítica
                         A originalidade do Cristianismo

Todo aquele que escreve o faz pressupondo uma audiência, mas não formada por quaisquer leitores, mas de leitores tipificados. O projeto do trabalho artesanal que é a escrita deve, para lograr sucesso, prever uma classe de leitores interessados, sobretudo, no assunto de que haverá de se tratar. Creio, porém, que o bom escritor não é aquele que acerta na previsão de sua audiência (é possível que os leitores em potencial sequer tomem conhecimento do texto); o bom escritor é aquele que compõe uma obra (textos ou livros) que satisfaz a si mesmo. O ganho aí não advém da grande projeção de sua obra, que se lança à incerteza dos temperamentos, gostos e inclinações dos leitores; o ganho advém do reconhecimento pelo escritor de que, ao compô-la, auferiu avanços intelectuais. É que escrever faz avançar o conhecimento. Eu escrevo também para, meditando sobre o que aprendi, em minhas leituras diárias, consolidar conhecimentos. A escrita permite-me, pois, experimentar esses conhecimentos.
Tenho-me comprometido com a causa ateísta nos debates em redes sociais, não sem alguma insatisfação. Enfado-me com a forma agressiva como os participantes atuam na defesa de suas posições infensas à religião, particularmente cristã – uma agressividade que, em alguns, mascara o empobrecimento de uma retórica embasada culturalmente, do que resulta a enxurrada de palavreados (ou a escassez deles) que não fazem senão, basicamente, insistir na supremacia do discurso científico sobre a irracionalidade, supostamente inerente, do discurso religioso. Trata-se, aos olhos de um debatedor arguto, da disseminação sem peias da ideologia do neocientificismo, agora mais robusta e disposta a declarar guerra às aspirações “infantis” alimentadas pela religião. Ela reza o poder indiscutível de a ciência fornecer explicações amplamente aceitas sobre a nossa origem e, como se não bastasse, quer fazer crer aos religiosos que essas explicações devem ser suficientes para nos confortar em face da certeza de que morreremos, em face da consciência de que a vida se passa entre dois nadas. Essa ideologia (aliás, muito ingênua, já que ignora toda uma literatura dedicada a repensar o alcance do projeto da cientificidade) quer dissipar o absurdo, conferindo ao Nada quase a mesma qualidade que tem o sagrado, num sentido específico: tanto um quanto outro exige conformação. Temos de aceitar o fato de que viemos do nada e retornaremos ao nada, e temos de reconhecer que o sentido da vida não é transcendente, mas imanente, não é dado por um Deus grandioso, de cujo plano cósmico todos nós participamos por uma relação pessoal de amor e obediência, mas é vivido por nós e dependente da atribuição de significações feita por nós às nossas experiências de mundo.
O erro nesta postura crítica e agressiva repousa na ignorância ou desleixo na consideração da gênese cristã, da história de sua consolidação como a religião do império de Constantino (no ano 312 de nossa era), repousa também na negligência na consideração dos aspectos que tornaram o Cristianismo superior tanto ao paganismo quanto as religiões orientais. Em suma, repousa na falta de uma visão critica sobre a estrutura do que Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou cristão (2011), chamou de “fabulação” desenvolvida pelo cristianismo.
Procurarei mostrar, no que se segue, que as posições ateístas não podem limitar-se a margear a ideologia cristã; deve atingir-lhe o núcleo, deve penetrar-lhe as vísceras, e isso só é possível se conhecermos a história de sua formação, se conhecermos a sua narrativa, as forças que tornaram essa religião tão grandiosa e poderosa no mundo ocidental.

1. O contexto sócio-histórico no século IV

A conversão sincera do imperador Constantino, em 312, ao cristianismo foi um fato determinante para a ascensão dessa religião. Ela se tornou a religião digna de seu trono. Constantino fora um imperador complacente com os ritos pagãos que ainda sobreviviam, a despeito de ter assumido o cristianismo como a religião oficial do império.
Dentre os motivos que levarão o imperador a converter-se ao cristianismo, depois de um sonho em que Deus teria se revelado anunciando-lhe a vitória na batalha que visaria a tomar a Itália de Maxêncio, de quem os cristãos diziam era um perseguidor, está a crença acalentada por ele segundo a qual um grande imperador deveria ter um grande deus.
A cristianização do Império foi lenta, mas promissora graças ao poder de Constantino. O historiador Paul Veyne, cujo trabalho referi acima e no qual minhas reflexões se apoiarão, esclarece-nos:

“Graças a Constantino, a lenta porém completa cristianização do Império pôde começar; a Igreja, de “seita” proibida que tinha sido, tornou-se mais do que uma seita lícita: estava instalada no Estado e acabará um dia por suplantar o paganismo como religião integrada aos costumes. Durante os três primeiros séculos, o cristianismo permaneceu como uma seita, porém de modo algum no sentido pejorativo que os alemães dão a essa palavra (...)”.
(pp. 29-30)

O cristianismo, de fato, se tornaria superior ao paganismo, como veremos, mas não deixou de apropriar-se de alguns de seus elementos. Continuemos notando, por ora, que o cristianismo, a despeito de ter-se tornado a uma religião legal por força da adesão cordial do imperador Constantino, teve de enfrentar a hostilidade e indiferença populares, bem como passou a constituir “o grande problema religioso do século ou seu pior erro” (p. 35) na opinião de eruditos. Deve-se dizer que o cristianismo só veria a se tornar a religião oficial do Império Romano no fim do século IV com Teodósio. Mas antes mesmo de seu reconhecimento como religião oficial, o cristianismo era o tema preferido nos debates públicos. No século III, a  questão de maior interesse, que entrava na pauta das discussões sociais, era a das grandes verdades e do destino da alma. A inquietação provocada nas classes dominantes decorria da questão de saber qual era o lugar do cristianismo em relação ao paganismo.
Decerto, o cristianismo se tornou superior ao paganismo, atraindo nos séculos posteriores milhões de adeptos. Mas a questão a ser ventilada é: quais os fatores que foram determinantes do poder dessa nova religião? Ou, em outras palavras, o que explica sua grande influência sobre milhões de pessoas no mundo ainda hoje? A resposta encontra-se no reconhecimento de três principais forças com que contou o cristianismo: a autoridade de Constantino, a autoridade da Igreja e a originalidade e carisma de seu Salvador, Jesus Cristo. Vou-me deter a considerar o papel desempenhado pela figura do Salvador, articulando-o ao projeto cristão: a de ser uma religião do amor. Eis aqui a força propulsora de sua grande influência.

2. Uma religião do amor

“Poucas religiões – talvez nenhuma – conheceram no correr dos séculos um enriquecimento espiritual e intelectual igual ao do cristianismo; no século de Constantino, essa religião ainda era sumária, mas, mesmo assim, superou o paganismo”.
                                                                 (p. 35)

O cristianismo se destacou por constituir-se numa religião que professava o amor (o amor a Deus, o amor ao próximo, portanto, a fraternidade). Esse amor, entretanto, não entrava nas letras dos textos primitivos cristãos, que se ocupavam com a pregação de uma obediência à Lei de Deus. A despeito de professar o amor, o cristianismo jamais abandonou seu compromisso por estabelecer uma moral rigorosa conforme à Lei de Deus. Nesse sentido, assemelhava-se às seitas filosóficas da época; delas se distinguia, no entanto, pela promessa de uma retribuição original: a existência humana passa a ganhar uma significação metafísica, já que tornara-se parte de um plano cósmico elaborado por Deus. Esse ser era um ser vivo, absoluto e eterno.  A relação entre os indivíduos e Deus passou a ser uma relação pessoal, íntima, assentada no amor mútuo e na autoridade, que a tudo governa (mesmo que seu governo se dê por representantes determinados pela sua Vontade). Escreve Veyne:

“Graças ao deus cristão, essa vida recebia a unidade de um campo magnético no qual cada ação, cada movimento interior adquiria um sentido, bom ou mau – sentido que o próprio homem não se dava por si próprio, diferentemente dos filósofos, mas o orientava na direção de um ser absoluto e eterno, que não era um princípio, mas um ser vivo”.

(p. 37)

É preciso frisar bem o tipo de relação que o cristianismo instaura entre os homens e Deus: uma relação pessoal que se estabelece pelo interesse que Deus tem na alma de cada indivíduo. Há uma paixão mútua entre cada ser humano e Deus. Essa relação em nada se compara ao tipo de relacionamento entre homens e divindades no paganismo. Aqui os deuses viviam para si mesmos e só se interessavam pelo destino dos homens, caso houvesse algum benefício em troca. Para efeito de ilustração desse novo modelo de relacionamento entre homens e divindade instaurado pelo cristianismo, Veyne propõe-nos uma situação imaginária:

“(...) uma mulher do povo podia ir contar suas infelicidades familiares ou conjugais à Madona; se as tivesse contado a Hera ou Afrodite, a deusa se perguntaria que extravagância tinha passado pela cabeça daquela tola mulher que lhe vinha falar de coisas com as quais ela não tinha nada a ver.”

(p. 37)

A figura do Messias, o Cristo, é o elemento fulcral dessa ideologia do amor incondicional e universal propalada pelo cristianismo. É ele o representante fundamental de quem irradia esse amor. Esse amor provém de uma Família, cujos membros são o Pai, a Mãe, o Filho (Cristo) e o Irmão. Isso explica a tenaz rejeição da Igreja, em nossos tempos, à formação de famílias que se desviam desse modelo. O cristianismo instaura um modelo de Família, na figura soberana de um patriarca celestial, ao qual se subordina a mãe, o filho e o irmão; em outras palavras, se deve subordinar toda a humanidade.
O Filho – o Cristo – é o intermediário da relação entre os homens e deus. Mas vale lembrar que esse Deus, cuja Lei é inexorável e severa, está interessado no destino das almas, e não apenas na sorte dos reinos, dos governos, da humanidade.
Não é a dimensão humana de Cristo que importará, mas sua natureza sobre-humana. É este Homem-Deus que se sacrificou pela humanidade e é ele o único caminho que leva a Deus. A superioridade do cristianismo se deve também à autoridade e ao carisma do Messias. Escreverá Veyne nesse tocante:

“Uma patética relação de amor reunia de modo profundamente piedoso a humanidade e a divindade em torno do Senhor Jesus. Entretanto, por sua vez, a alma humana recebia uma natureza celeste. O paganismo não ignorara totalmente a amizade entre uma divindade e um determinado indivíduo (...); em compensação (...), ignorou qualquer relação apaixonada e mútua de amor e de autoridade, relação que não termina nunca, que não é ocasional como no paganismo, porque é essencial tanto para Deus como para o homem. Quando um cristão se punha em pensamento diante de seu deus, sabia que não deixava de ser olhado e de ser amado. Enquanto os deuses pagãos viviam antes de tudo para si mesmos.”
(p. 41)

A Cruz não é símbolo de maldição, de morte, mas da vitória de Cristo sobre ela. A cruz é símbolo de Salvação e, aos olhos dos cristãos, importa a Ressurreição do Messias, não tanto sua Paixão. Aqui vê-se insinuando a crença em que o sofrimento é um mal necessário ao alcance da Ressurreição através de Cristo. Precisamos suportar o sofrimento confiantes na palavra de Deus, de que fora testemunha Jesus Cristo, para vencermos a morte, como Cristo a venceu. Lembrará Veyne a respeito da importância de Cristo:

“(...) Cristo não era um ser mitológico vivendo em uma temporalidade feérica. Diferentemente dos deuses pagãos, ele “era real” e até humano. Ora, sua época era muito receptiva aos “homens divinos”, aos taumaturgos, aos profetas que viviam entre os homens e que muitos tomavam por mestres”.
(p. 43)


3. A natureza do Deus cristão

No Cristianismo, Deus e homens têm entre si uma relação pessoal, íntima. Esse Deus é resultado de um antropomorfismo, ou seja, pensado como um Ser a quem se atribui qualidades humanas, embora elevadas a graus não mensuráveis em termos humanos. Por um processo ideológico, a filiação entre homem e divindade, no cristianismo, tomou forma no seguinte enunciado: “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”. Esse Deus é, ao mesmo tempo, Pai e autoridade. A ele não se deve mais render oferendas, mas obedecer à sua Lei. A moral desempenha, no cristianismo, um papel fundamental, não conhecido no paganismo.
Com um Deus absoluto e todo-poderoso, fonte de severidade e amor, criador de todas as coisas, a narrativa cristã pôde conceder à existência humana um sentido metafísico e sublime. Pôde ainda explicar a nossa origem e o nosso destino após a morte do corpo.
É interessante pensarmos mais uma vez na relação entre Deus e os homens, dentro do projeto cristão. Deus rebaixa-se tomando parte da natureza de um homem, chamado Jesus, a quem coube restaurar a aliança desfeita entre homens e divindade, devido ao pecado daqueles. Disso se segue que o Cristianismo promove uma íntima aproximação entre os homens e seu deus.
Cabe aqui tornar clara a importância do Deus cristão no fortalecimento da fé e no grande alcance que teve esta religião que, desde a origem e durante os tempos vindouros, andara de mãos dadas com o poder político. Veyne mostrará, além disso, que não é a natureza monoteísta que distingue o cristianismo do paganismo (a rigor, o cristianismo não deixa de professar um politeísmo, se considerado o valor providencial das figuras de Jesus e Maria), mas a grandiosidade de seu Deus:

“A originalidade do cristianismo não é o seu pretenso monoteísmo, mas o gigantismo de seu deus, criador do céu e da terra, gigantismo estranho aos deuses pagãos e herdeiro do deus bíblico; o deus do cristianismo é tão grande que, apesar do seu antropomorfismo (o homem pode ser feito à sua imagem), pôde se tornar um deus metafísico: sem deixar de manter seu caráter humano, vivo, apaixonado, protetor. O gigantismo do deus judeu permitirá que ele um dia assuma a função de fundamento e de autor da ordem cósmica e do Bem, função desempenhada pelo deus supremo no pálido deísmo dos filósofos gregos”.

(p. 39)
(grifo meu)
Cabe salientar as qualidades do Deus cristão: um ser absoluto, portador de qualidades humanas, de presença viva, amante de cada indivíduo, zeloso, piedoso e Pai bondoso.  Um Deus grandioso a quem os homens devem amor e obediência.


4. Uma nova era para a imaginação: a soberania da fé a despeito das inconsistências

Não é a crença na imortalidade da alma que tornou o cristianismo uma religião poderosa. Essa crença era comum a muitas doutrinas e lendas, no mundo pagão. Tampouco, segundo o autor, não parece ser correto derivar o sentimento religioso do medo da morte. No caso do cristianismo, a crença na vida além-túmulo depende da crença em Deus e na fé em sua Palavra.
A esta altura, e no que se seguirá, quero chamar a atenção dos debatedores ateus para o fato de que as inconsistências que se deixam ver na doutrina cristã não constituem, ao que parecem, um problema para a fé cristã. Veyne nos ensinará o porquê.
Nós, ateus, insistimos, por exemplo, na incompatibilidade entre o dogma do Inferno e a crença num deus bom, amoroso e piedoso. Insistimos ainda na incongruência que há entre um elemento representativo do Mal (o inferno) e um Deus que ama suas criaturas e demonstra para com elas compaixão.
O dogma do Inferno constitui um grande problema para teólogos e filósofos cristãos. Agostinho chegou a dizer que a justiça de Deus não se identifica à nossa, afirmação que não deixa de entrever uma contradição, já que entra em conflito com o antropomorfismo atribuído a Deus. Assim, Deus, embora semelhante aos homens em muitos aspectos, distingue-se deles na concepção de Justiça. A justiça de Deus não é a dos homens. Pensar assim é fugir ao problema acarretado pela crença na destinação dos ímpios ao Inferno. É ignorar o fato de que as qualidades apreciadas por nós atribuídas a Deus são qualidades nossas. O Deus cristão, sendo produto de um antropomorfismo, haverá, forçosamente, de ter um senso de justiça semelhante ao nosso, ainda que a ele possamos acrescentar a característica 'perfeita'. 
Veyne descreve o quadro dramático que se constrói com a introdução do dogma do Inferno na construção imaginária de um Deus que é bom e amoroso:

“(...) o deus de amor e de justiça é também o deus que preparou para uma infinidade de seres humanos, ao cabo de uma prova ou de uma loteria da qual era o inventor, um confinamento num campo de permanência eterna para impressionantes suplícios sem fim. Eis o que diz um teólogo atual: “É uma questão de saber por que esse Deus tão amoroso desejou uma ordem de coisas incluindo o pecado e o Inferno; definitivamente, a questão é insolúvel”.
(p. 49)

Talvez, o leitor, a esta altura, ria-se da seriedade com que o teólogo trata da suposta “questão”, sendo incapaz de ver que a incrível dificuldade a que se refere não é senão produto do pensamento humano. Enunciar “Deus é amoroso, mas Deus reservou um inferno para os descrentes” é articular proposições contraditórias. Ou Deus é amoroso e nos reserva o Paraíso, por sua piedade, ou Deus é juiz imparcial, para quem o amor pouco vale, quando tem de decidir que pena será aplicada.
O autor nos dará uma explicação para o fato de, não obstante a crença na existência do Inferno, para onde serão levadas as almas subversivas, os crentes ainda se manterem firmes na fé em Deus. Para o autor, o que explica isso é o fato de o Inferno não ser senão uma representação, uma ideia que não tem a força do amor e da fé que eles dispensam sobre Deus.

“De tal modo que, a inconsistência, além de seu grande efeito melodramático, não leva à revolta ou à descrença: nos cérebros, os afetos e as ideias não estão na mesma camada”.

(p. 49)
(grifo meu)

O amor a Deus suplanta a incoerência, ou, ao menos, a mascara aos olhos da alma. No Cristianismo, o sentimento é mais forte do que o intelecto; a inteligência é suplantada pela crença na crença em Deus (conforme sugere Daniel Dennett). O autor nos lembra ainda que “uma doutrina religiosa não é uma teoria da justiça e também não pretende ter uma coerência filosófica” (id.ibid.). Para ele, a introdução da ideia de Inferno mais valoriza a doutrina do que a prejudica, mais atrai do que repele. Considerado por ele uma espécie de best seller, ao unir amor ao terror, o cristianismo exibe sua força de atração, já que

“Os inventores do Inferno e das penas eternas em dobro (o fogo no sentido próprio da palavra, o castigo da privação de Deus) acreditaram em um thriller que obtivesse um grande sucesso: aterrorizou um grande público, porque as pessoas sempre se deixam impressionar pelas ficções apavorantes; quanto aos autores do thriller, sem dúvida lhes agradava imaginar os inimigos da Verdade sendo queimados”.

(p. 50)

É à luz da metáfora do best seller que podemos compreender dois fatos importantes relativos ao poder do cristianismo. O primeiro diz respeito à sua influência socio-histórica; o segundo à permanência de sua influência psicológica a despeito das inconsistências de sua doutrina. Para ilustrar o primeiro fato, o autor nos dá a saber a metáfora do best seller:

“O sucesso do cristianismo talvez possa ser comparado a um best seller (no caso, de uma obra-prima mundial, aos olhos do incréu que sou). Ele “agarra pelas tripas” seus leitores e, se agarrar não chega a atingir as multidões, pelo menos atinge a religião dominante precedente, no mínimo a uma elite espiritual ou ética vinda de todas as classes da sociedade, ricos e pobres, ignorantes e cultos ou semicultos, entre os quais um certo imperador”.
(p. 44)

A trama do enredo deste best seller envolve psicologicamente seus leitores (crentes). Todavia, para que seja envolvente, o best seller deve incluir, segundo o autor:

“Um pai misericordioso mas impiedoso, uma loteria do tudo ou nada, os pavores infernais que aumentam o sucesso do best seller envolvendo as imaginações (a pintura religiosa o testemunha), e que tudo isso seja santo: não pedimos mais nada”.

(p. 50)

Esse best seller inova na medida em que fornece uma representação da mundo no qual só há duas espécies: o Deus amoroso e os homens que ao poder do primeiro deve submeter-se. Esse Deus reserva um destino sublime, elevado, para eles após a morte e eles o provam em seus corações. Há um preço nisso: a adoração, a obediência, a humilhação do humano em face da grandiosidade de Deus.
Com o advento da Igreja, a palavra de ordem passou a ser obediência moral. Com a Igreja, impunha-se aos crentes a disciplina, o rigor na execução dos mandamentos de Deus, na obediência à sua Lei. Quanto ao amor, deve ele circunscrever-se ao interior, habitar as regiões mais íntimas da alma. E que lá permaneça como uma força que alimenta a fé em Deus.

Acredito ter conseguido aqui pavimentar um caminho seguro onde possam se situar as posições críticas dos ateus. Compreender as motivações que levaram o Cristianismo a gozar do status como religião predominante no mundo ocidental em nossa era é indispensável a uma argumentação que pretenda ir além dos dizeres agastados e impregnados de grande dose de agressividade, que não fazem senão caminhar em círculo.
Antes de fazer o exame, precisamos conhecer melhor o objeto sobre a qual ele recai. A crítica ateísta é infértil ou cega sempre que simplesmente martela a irracionalidade, ressalta a ilusão ou insistem em ridicularizar a ingenuidade daqueles que acreditam em deus.