sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede" (Carlos Drummond de Andrade)

             

              Quando a leitura entra em cena

É lugar-comum afirmar que ler é um meio eficiente para a aquisição de conhecimentos. Os textos são responsáveis por tornar o conhecimento socio-cognitivamente existente. Insisto neste ponto: o conhecimento como fato social só existe pela sua constituição linguística em textos. Os textos são formas de cognição social. Segundo Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004),


“Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explícito, de segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar linguisticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)

Convém enfatizar a mudança de perspectiva que se opera na relação entre texto (ou leitura) e conhecimento. Os textos não são apenas meios de aquisição de conhecimentos; mas permitem constituí-los e estruturá-los dando-lhes um formato socialmente relevante. Koch (p. 172) ainda nos ensina que “todo o conhecimento declarativo de nossa sociedade é (com exclusão daquele que se traduz em números ou fórmulas) primariamente linguístico, ou melhor, conhecimento textualmente fundado”. Não se segue daí que só podemos conhecer na base de textos. Russel nos ensinara sobre a forma de conhecimento que decorre da experiência sensível, denominada por ele de conhecimento por familiaridade.
Mas minha preocupação aqui é mostrar que, desde o advento da escrita alfabética, há uns 3.000 a.C. , entre os sumérios (posteriormente desenvolvida pelos gregos), o conhecimento pôde ser registrado, organizado e conservado para ser estendido às gerações posteriores. Não suponho, contudo, que ele tenha sido, com a escrita, democratizado; longe disso: a escrita é uma das formas de legitimar o poder e de impedir a um grande número de indivíduos o acesso ao conhecimento. E o conhecimento é um instrumento a serviço dos segmentos que detém o poder político, social e econômico.
As palavras de  Lyotard – A condição pós-moderna (2009) - esclarecem-nos sobre a relação entre conhecimento e poder:

“Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em vias de desenvolvimento. (...) Sob a forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder”
(p. 5)

No tocante às condições em que se acha o saber, o autor nos mostra que ele é, nas sociedades de consumo da era (pós-)moderna, uma mercadoria, inserida ao lado das outras nas esferas de consumo; além disso, o conhecimento tornou-se também um importante instrumento a serviço da reprodução do poder, em escala mundial.
Não pretendo, no entanto, pormenorizar a questão do status do conhecimento na sociedade pós-moderna. Quero apenas insistir, mais uma vez, que a posse de conhecimento é indispensável à maior participação social, política e cultural. E lembro, embora não possa me deter neste tema aqui, que a participação política não se cinge ao exercício do voto, mas envolve o engajamento de indivíduos em organizações, grupos e se caracteriza também pela capacidade de eles tomarem decisões e responderem criticamente ao status quo. A própria contribuição de cada um de nós para a conscientização de outros indivíduos da importância de defender a liberdade de pensamento, de lutar pela igualdade de condições, de combater toda forma de preconceito e intolerância, etc. já é uma forma de participação política. Costumo lembrar aos meus alunos que ensinar é assumir um compromisso político e, portanto, é participar politicamente da construção de uma sociedade mais justa. Na Educação, todos nós, professores, sabemos não escapar aos ideais.
Até aqui, podemos arrolar as seguintes conclusões:

a) estamos de acordo em que o conhecimento tem importância social;
b) estamos de acordo em que a leitura é o principal caminho para adquiri-lo.

No entanto, também devemos estar de acordo quanto ao fato de que não conseguiremos estimular jovens e adultos a ler mais pela via argumentativa que ressalta a importância sócio-política e cultural dessa prática. Não estou interessado aqui  em apresentar propostas para o incentivo à leitura. Quero apenas insistir em que ela não é uma atividade lúdica, muito embora possa causar prazer. E é sobre o prazer que a leitura pode provocar em nós que repousa meu interesse.
Não foi exatamente durante o período em que me graduava que comecei a experimentar prazer na leitura. Provavelmente, porque as leituras que nós, então estudantes, devíamos fazer dos textos que nos eram dados pelos professores visava sempre a alguma avaliação (trabalhos ou provas). Parece-me que toda leitura orientada para uma avaliação pedagógica é uma atividade pouco prazerosa. O prazer sucumbe ao propósito de, pela leitura, lograrmos êxito no exame a cuja realização ela se destina. A finalidade da leitura, seja na escola, seja na universidade, é a realização de atividades. Lê-se porque se tem de fazer testes, exercícios de avaliação de aprendizagem (incluindo seminários, redações...), provas e testes.
 Outro fator que obstaculiza o prazer diz respeito a interesses pessoais por um ou outro tema. Sabemos, como leitores, que há temas que nos interessam e outros que não nos interessam. Na escola, especialmente, temos de ler textos que não nos agradam.  Os que não apreciam as aulas de biologia precisam ler a matéria de biologia no livro didático (não estou pressupondo que os alunos leiam, realmente; em geral, o professor passa-lhes um questionário e eles se baseiam nele para realizar a prova). De qualquer forma, eles precisam ler os capítulos em que se acham  as respostas das questões propostas.
Quero dizer que a leitura não é uma atividade restrita às aulas de português. Os alunos são expostos à leitura, nas aulas escolares, durante todo o tempo em que delas participam. A escola é o espaço para a leitura, por excelência.
Há um discurso pedagógico, talvez influenciado pelas posições de Paulo Freire, que insiste em que o trabalho de leitura deva ser orientado de tal modo, a abranger o universo sócio-cultural em que vive o aluno. Este seria incentivado a ler mediante a leitura que ele possa fazer do próprio mundo; em outras palavras, ele leria textos que toquem às suas experiências de mundo, textos que representem aspectos do mundo que lhe são acessíveis por suas experiências sociais imediatas. Esse é um caminho que tem-se mostrado profícuo, mas é necessário ultrapassá-lo, já que não conseguiremos, se apenas nos limitarmos a segui-lo, alargar-lhe a consciência de mundo. Por exemplo, o professor que trabalhe com letras de funk com uma turma de jovens da periferia, numa escola pública, elaborando sobre elas atividades de interpretação, deve saber que está contribuindo para uma tomada de consciência deles da realidade social em que vivem (caso a letra da canção retrate aspectos importantes dessa realidade); no entanto, deve reconhecer também que ainda estará reforçando a limitação deles a essa realidade (conserva-se a exclusão). Eles precisam ter acesso a outros modelos de mundo, textualizados; a outras visões de mundo, a outras formas de compreensão da realidade. Uma maior participação cultural, aqui, significa, principalmente, conhecer outras produções culturais que não só a dos membros que pertencem à sua realidade social.
Mas voltemos ao prazer na leitura. Esse prazer é o prazer do desvelar. Desvelar que nos incute o deslumbramento. Ler é “retirar o véu”. Véu da ignorância. O deslumbramento é o encanto, o maravilhamento que experimentamos quando conhecemos, ou seja, quando tornamos presente à consciência algo que ignorávamos. É o que sinto quando meu espírito se embrenha nas páginas de livros, quando ele trafega pelas amplidões que lhe abrem as palavras.
Só pode haver prazer em ler, se o sujeito leitor é capaz de reconhecer o valor do saber ou do conhecer como um imperativo da condição humana. Ler por qualquer obrigação castra o prazer. Da mesma forma, ler sem reconhecer a importância do conhecimento dificilmente será uma atividade que provoque deslumbramento.
Ler porque é necessário conhecer. E conhecer pode sim causar prazer. Um prazer intelectual, que nos engrandece, que nos contenta, que nos torna mais atuante, a despeito das tendências conformistas.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"A solidão desola-me; a companhia oprime-me" (Fernando Pessoa)

                    

                           Pensamentos dispersos


Vezes há em que precisamos parar. Simplesmente, cessar de pensar tanto, de ler tanto e de projetar. Há momentos em que preciso simplesmente reler, rever, re-experienciar, relembrar, revisitar os produtos de minha labuta verbal. Foi isso que fiz, ao ler breve e descompromissadamente meus textos antigos no blog, mas também os comentários que a eles se seguem. Notei que muitos não se acompanham de comentários; apercebi-me de que meu grupo de seguidores reúne hoje alguns outros simpatizantes. Houve um pequeno crescimento, mas nada ainda comparável ao número de seguidores que observo nas páginas de outros bloguistas, que encerram grupos com mais de 400 leitores.
Não é que eu me preocupe com o fato de meus textos não angariarem muitos leitores; alguns dos poucos que decidiram acompanhar meu blog são leitores assíduos de meus textos, ainda que estes possam incomodá-los de algum modo (talvez por insistir em cutucar suas crenças mais arraigadas e vitais).
Por um instante, pus diante de mim o livro Ecce Homo, de Nietzsche, a fim de nele buscar algum trecho que me infundisse um sentimento de potência, de superação que, no filósofo, não raro, era amparado numa soberba com que aquele homem de saúde frágil fazia valer seu espírito. Nietzsche, conforme nos revela em um de seus textos nesta obra, só atacava as coisas grandiosas. O cristianismo está entre essas coisas que lançou aos confins do mundo seus hinos de vitória. Nietsche via aí a moral do rebanho, dos decadentes, na qual se baseia a doutrinação incansável que se vem propagando há mais de dois mil anos.
No entanto, não podia seguir adiante, porque senão estaria eu novamente a me ocupar com os pensamentos. E este texto é erigido para negar a atividade de pensamento, para rejeitar as reflexões que teimam em perturbar o desejo de simplesmente reler, rever, re-ssentir, rememorar. Escrevo como quem regressa a sua terra natal e se pasma com suas mudanças.

O dia seguinte...

E cá estou eu novamente... Em face do computador, alinhando estas palavras, estruturando-as de modo a compor enunciados que configurem um texto que atenda às minhas necessidades interacionais.
Por vezes, quando entretido com as minhas leituras, sinto engrandecer-me dentro de mim um espírito empreendedor, germina-me um ânimo que faz com que meus pensamentos estejam sempre adiante de mim; eles se antecipam às palavras; mas não tarda para eu me convencer de que o tempo de vida que me é permitido por minha condição humana é relativamente curto em face dos grandes projetos nos quais nós, seres humanos, podemos nos engajar. É claro que esse reconhecimento não constitui razão suficiente para levar à derrocada as pretensões mais viris de um espírito ávido pelo saber.
Eu abrigo uma inquietude intelectual que não me deixa descansar, até que eu ponha diante de meus olhos um texto que testemunhe meus sentimentos e pensamentos mais viscerais e urgentes. Enquanto escrevo este texto, fico a catar textos ou blogs sobre autores cujas produções intelectuais eu admiro, como as de Bart D. Ehrman. E tudo que vou achando, deixo arquivado on-line. Talvez, esses materiais me sirvam em tempo para trazer a lume novas arquiteturas verbais.
É justamente por haver em mim um sentimento de urgência de conhecimentos e um ânimo sempre renovado de compartilhá-los que eu não me satisfaço em lecionar por mera conveniência financeira. A mim me incomoda o ter de “dançar conforme a música”. Um professor acomodado é um professor resignado, vencido pela frustração. E a frustração - certamente, inevitável, muitas vezes - é como um sentimento que deve ser exorcizado. A luta contra a frustração parece ser a única saída para os professores, a menos que eles estejam dispostos a desistir de seu compromisso pedagógico.
O mesmo vale para aqueles que, mesmo não sendo professores, dedicam-se a escrever sobre temas intelectualmente estimulantes. Quando diante de um público desinteressado, resta-nos decidir se nos vale trazer a lume nossos pensamentos ou deixá-los estampados em páginas dentro de uma gaveta. Por anos, escolhi a segunda opção. Felizmente, conclui que estava desperdiçando meu tempo em escrever para mim mesmo. Não há escritor sem leitores e não há textos sem leitores . Não pretendo agradar a um grande público; e acredito que meus textos não são feitos para uma grande quantidade de pessoas. É possível que meu estilo estorva a compreensão, dificulte a leitura, enfade. Eu tenho me preocupado em escrever com menos rigor formal e com menos formalidade. No entanto, não escapo à satisfação de lapidar a linguagem, enquanto me sirvo dela para escrever. Gosto de me envolver neste trabalho laborioso de arranjar palavras, selecioná-las cuidadosamente, apagá-las quando não me parecem oportunas, reinventá-las, rearranjá-las quando parecem ocupar um lugar inadequado nas estruturas sintáticas.
Eu não fujo aos equívocos. Sempre que releio meus textos, antes de divulgá-los, encontro-os em penca. Como palavras ou acrescento-as onde não são necessárias. Extrapolo as exigências da sintaxe, e, não raro, subverto a semântica. Escrevo coisas que me parecem sem sentido, depois de duas ou três leituras. Apresso-me a reescrever e, ainda assim, fico com a impressão de que não era bem o que eu queria ter dito.
Aceito a ideia de que a escrita não é uma terapia; nem sempre ela entretém; nem sempre traz felicidade. Pode, no entanto, trazer um bem-estar, quando, através dela, produzimos uma catarse. Aceito também a ideia de que as palavras nos traem; certamente; não estamos no controle dos sentidos, ignoramos os sileciamentos que vazam delas; a linguagem é opaca, não é transparente. Se nossa alma sangra, se as palavras nos causam sofrimento, se a escrita torna-se, assim, uma atividade dolorosa, disso não se segue que não sirva para afugentar nossos fantasmas, para restituir o que se perdeu em nós. Penso a escrita como uma atividade de que me ocupo para resolver um problema. É possível que, ao final dela, o problema ainda persista, mas vale o esforço, a entrega, a tentativa de domesticar as palavras que parecem desafinar os sentimentos, desalinhar-se, desarmonizar-se com os pensamentos e traçar a inexatidão dos dizeres que se calcam ininterruptamente sobre os já-ditos.
Escusa dizer quanto a linguagem me causa admiração e fascínio. E estudá-la na universidade é, decerto, uma atividade na qual me envolvo com grande prazer. Nestes mais de dez anos de dedicação aos estudos sobre linguagem, aprendi muito, mas tive poucas oportunidades para transmitir o que aprendi e, quando o fiz, ensinei muito pouco. E, em muitas ocasiões, minhas aulas não correspondiam qualitativamente ao legado de conhecimentos acumulado nestes mais de dez anos. Quem leciona pode imaginar por que razões as minhas aulas, por vezes, me frustravam. Não me delongarei nesse tocante.
Quando descobrimos que o discurso não se confunde com o texto e não é um dado apartado da realidade, quando descobrimos que o discurso é um acontecimento sócio-histórico de produção de sentidos, que ele não representa a realidade, mas a (re)constrói; quando descobrimos que o autor não é senhor do seu discurso, não está no controle dos sentidos previstos pelo seu texto, que não há discursos sem ideologia (portanto, que é a ideia da neutralidade do discurso é um efeito da ideologia), que identidades são discursivamente construídas, que discursos são práticas sociais nas quais os homens se envolvem também para constituir, reproduzir e alterar as estruturas sociais; quando descobrimos que também pelos discursos legitimamos o poder – e as descobertas não param por aí -; quando estamos a par de tudo isso, então somos capazes de reconhecer quão ricas são as reflexões sobre a linguagem e quão fundamentais à nossa vida são as atividades linguajeiras. Toda empresa intelectual passa, necessariamente, pela linguagem.
Em suma, discursos tanto podem aclarar consciências quanto podem estorvá-las; tanto podem libertar, quanto podem aprisionar, subjugar, embotar. Todo debate, toda discussão é um exercício de compromisso e confronto com a linguagem; não escapamos à linguagem; não escapamos às palavras; e não temos, portanto, acesso direto ao mundo, à realidade. O que sabemos sobre o mundo sabemos somente pelas nossas lentes linguísticas, pelas nossas visões, pelas nossas interpretações. Não escapamos dos pontos de vista.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"O jeito de ver pela fé é fechar os olhos da razão". (Benjamin Franklin)

                        

                     
                             O que todo religioso deveria saber
                       O valor do conhecimento para a emancipação dos homens



   A conversa se estendia deliciosa, quando minha amiga indagou-me sobre o ter-me tornado ateu. Embora conserve sua fé, ela está entre as raras pessoas de fé que se dispõem a ouvir de bom grado um discurso polêmico. Decerto, ela não abraça a religião como as ovelhas cegas e surdas que se sentam enfileiradas nas igrejas. Ela pediu-me que justificasse a adoção do ateísmo e silenciou para que eu falasse, só interrompendo para corroborar alguns de meus argumentos.
Ambos fomos criados na tradição católica, mas, até então, apenas um de nós teve a coragem de romper com essa tradição. Este texto que ofereço à leitura pretende fazer ver que a minha adoção do ateísmo se deveu a razões tão-só intelectuais. Também neste texto dou a saber aos leitores um pouco do que venho aprendendo sobre religião, particularmente, sobre a Bíblia. Para tanto, trarei à baila as contribuições de um dos mais renomados especialistas nos estudos da Bíblia e da origem do cristianismo, autor cujos livros tenho lido com deliciosa atenção, Bart D. Ehrman. Em seu livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, o leitor estará diante de um discurso claro, acessível e honesto. O autor nos ensina, entre outras coisas, sobre as discrepâncias entre os evangelhos, sobre suas contradições, sobre as ficções bíblicas e as dificuldades encontradas pelos historiadores em usar os evangelhos como fontes históricas.
Os meus leitores sabem que tenho escrito pouco ultimamente, por isso pretendo com este texto satisfazer essa carência. É possível, portanto, que ele exceda ao número de linhas ao qual, ultimamente, tenho limitado meus textos. Peço-lhes, pois, paciência.
Sem mais delongas, a adoção do ateísmo por mim resulta de uma aturada convivência com os livros. Tenho insistido em que minhas posições ateístas são intelectualmente fundamentadas. Não me tornei ateu por uma revolta contra as circunstâncias adversas nas quais vi minha vida envolvida; mesmo depois das dificuldades de saúde por que passei, conservei minha fé durante certo tempo. Sucede, contudo, que havia já em minha alma o germe da inquietude, do questionamento, da necessidade do conhecimento. A força motriz de meu ateísmo repousa justamente nessa necessidade de conhecer, de saber, de buscar a(s) verdade(s).
E os leitores que me acompanham desde que decidi publicar em blog meus escritos sabem bem que dois são os maiores valores em minha vida: o amor e o conhecimento. Valores, quer de um ponto de vista ético, quer de um ponto de vista utilitário, são indispensáveis à vida humana. A moral está fundamentada em valores. Em certo sentido, valores consistem em tudo que acarreta felicidade aos homens. Pois bem: o amor e o conhecimento trazem-me felicidade. E, se considerarmos a brevidade da vida e o fato de que certamente morreremos, pareceu-me mais profícuo dedicar-me a (viver ou pensar) o amor e acumular conhecimento.
Vou-me ater à necessidade de conhecimento. Apercebi-me de que o conhecimento é um valor intrínseco à condição humana graças à minha dedicação à leitura de livros de filosofia. A minha incursão neste terreno foi determinante para o meu reconhecimento do valor do saber. Com a filosofia, reconheci que ignorava. Os homens têm, nesse tocante, duas escolhas: ou buscam a ascensão ao conhecimento, reconhecendo, felizmente, que ignoravam, ou continuam ignorando que ignoram. Essa última escolha é comum entre os religiosos: eles permanecem ignorantes de sua própria ignorância. Eles ignoram que ignoram. Na verdade, espero fique claro, no decorrer desta exposição, que as pessoas de fé são ludibriadas.
No que toca à necessidade de conhecimento, gosto de referir uma passagem que se topa no livro Introdução à Filosofia – histórias e sistemáticas (2004), de Roberto Rossi. À página 37, do capítulo quarto, dedicado à consideração da realidade como objeto de saber, escreve o autor:

“Se a realidade fosse simplesmente um dado, não precisaríamos conhecê-la. Os outros seres vivos, tratando a natureza como um dado, apenas se adaptam a ela, aprendendo só o suficiente para sobreviver. Precisamente porque a realidade é um problema, o homem sente a necessidade de conhecê-la. E ela se revela problemática, somente porque o homem a põe em discussão como tal, em virtude de um critério alternativo, que lhe vem daquele conhecimento primeiro da verdade perdida.”

Espero que o leitor me acompanhe na avaliação que farei deste passo. Atentemos para a primeira frase. Admitir ser a realidade um dado significaria dizer que ela se impõe a nós como algo independente e como algo que não demanda conhecimento. Sabemos que o organismo dos animais são uma extensão do meio em que vivem; para eles, a realidade não é objeto de conhecimento. Tudo que precisam saber para sobreviver na natureza já está inscrito em seu organismo; eles estão geneticamente pré-dispostos aos atos necessários à sua sobrevivência. A relação dos homens com a realidade é diferente: para nós, que dispomos da razão e da linguagem (que representa um grande salto de nossa espécie), a realidade não é algo que pré-existe a nós, é algo que precisa ser (re)construído em nossas experiências de mundo. Nossa sobrevivência como espécie depende, em grande parte, do desenvolvimento de conhecimentos sobre ela. As nossas relações com a realidade são mediadas pela linguagem; a realidade entra em nossa consciência, em forma de conhecimento, graças à função de simbolização inerente à linguagem. Sabe-se, hoje, que nossa mente é um processo, ou melhor, um processador de informações (de símbolos). E o conhecimento da realidade - sua (re)construção contínua - se dá pela sua estruturação em categorias fornecidas pela linguagem.
Ora, está claro também que a realidade só é um problema na medida em que os homens a colocam em discussão, o que significa dizer que a submetem a um tratamento discursivo. Essa atitude é, insistentemente, rejeitada pelos religiosos, em geral, que não parecem dispostos a encarar suas crenças religiosas como um problema a ser debatido. Para eles, a realidade da religião é algo dado. Tais quais os animais, eles se adaptam a ela. Vale dizer que essa questão de adaptação ao que se sabe por herança de gerações anteriores é lucidamente desenvolvida por Daniel Dennett, em Quebrando o Encanto – a religião como fenômeno natural (2006). Vou citar um trecho interessante, com que o autor nos ensina sobre essa disposição dos homens (compreensível do ponto de vista de sua evolução) à adaptação às condições que resultaram de uma dada herança de grupos. O próprio filósofo, em debates, insiste na ideia de que as religiões devem ter o mesmo tratamento dispensado a questões políticas ou de interesse público (ou seja, não são imunes ao crivo da razão). É justamente o argumento a que me inclino, segundo o qual é necessário quebrar a “áurea” que torna a religião um assunto inatacável. A religião é uma realidade demasiado humana para não ser passível de discussão, de avaliação racional.
Atentemos para este trecho, em que o filósofo, apoiando-se no arcabouço teórico proveniente do darwinismo, nos ensina sobre nossa tendência sistemática à adaptação às condições culturalmente determinadas:

“Nossos cérebros se desenvolveram para se tornar processadores de palavras mais eficazes, e eles podem também ter evoluído para implementar com maior eficácia os hábitos culturalmente transmitidos das religiões populares. (...) Não há, de fato, razão alguma para supor que os animais tenham qualquer ideia a respeito dos motivos que os levam a fazer o que instintivamente fazem, e os seres humanos não são exceção. A diferença entre nós e outras espécies é que somos a única espécie que se preocupa com sua ignorância! Ao contrário de outras espécies, sentimos uma necessidade geral de compreender, de modo que, mesmo que ninguém deva compreender ou possuir a intenção de inovar qualquer dos projetos que criaram as religiões populares, deveríamos reconhecer que as pessoas, naturalmente curiosas, reflexivas, e dotadas de linguagem na qual enquadrar e reenquadrar suas perplexidades, teriam apresentado a probabilidade – ao contrário das aves – de se perguntar qual seria o significado desses rituais. A coceira da curiosidade não é forte em algumas pessoas, aparentemente. A julgar pela variação observável ao nosso redor hoje, seria justo apostar que apenas uma pequena minoria de nossos ancestrais chegou a ter o tempo ou a inclinação para questionar as atividades em que se engajaram com seus parentes vizinhos”.
(p. 173)
(grifos meus)

Grifei alguns fragmentos que me pareceram mais importantes para a compreensão desse trecho. Elenco abaixo essas ideias:

1º - Ignoramos, tanto quanto os animais, as motivações que nos levam a comportar-nos de modo instintivo;

2º - Em geral, nos preocupamos com a nossa ignorância, muito embora haja muitos dentre nós que permanecem ignorantes de sua ignorância;

3º - Somos, naturalmente, pré-dispostos ao conhecimento.

Ora, se somos dotados de uma inquietude cognitiva, o que explica a permanência na ignorância sobre determinados temas?. Mais especificamente, o que explica a tendência de os religiosos permanecerem ignorantes sobre a falsidade dos fundamentos de sua fé ou de sua religião? O que explica a conformação deles a um sistema doutrinário repleto de inconsistências e embustes? Dennett procura responder a esta questão, no referido livro (recomendo a leitura). O imperativo evolutivo é, de fato, um bom caminho explicativo, mas parece-me que não devemos atribuir a ele um poder explicativo absoluto. Devemos reconhecer que, a par desse determinante herdado pelo processo evolutivo, que leva os homens a fiarem-se naquilo que se sabe (ver. Dennett, p. 174), há o determinante cultural, ou seja, a atuação de gerações como adestradores de comportamentos. Parece lícito admitir que, historicamente, a Igreja, acumpliciada com o poder político, foi decisiva, como instituição ideológica, para a conservação das pessoas de fé em suas crenças, de cuja validade elas sequer suspeitam. Acredito que a conciliação entre os dois caminhos (o evolutivo e o cultural) constitui o modo mais eficaz de explicar por que as pessoas de fé permanecem irresistivelmente apegadas às suas crenças religiosas.
Nesta oportunidade, procurarei mostrar, valendo-me das considerações de Ehrman (na obra já referida), como é possível manter os religiosos ignorantes de sua própria ignorância, o que significa dizer fiéis ao que sabem graças ao adestramento perpetrado pelas instituições eclesiásticas há séculos. Espero que as luzes do conhecimento esclareçam as escuridões dos espíritos que ainda insistem em conservar sua credulidade. Espero que a névoa da ignorância seja dissipada e que as cortinas do esclarecimento se abram, revelando o engodo, a trapaça. Espero que meus leitores compartilhem comigo o pasmo que experimento sempre que, ao me dedicar à leitura, descubro que minhas suspeitas se confirmaram, ou  sempre que reconheço a vasta quantidade de conhecimentos de que, há anos, eu me privei.


1. Removendo o véu: que se faça a luz!

É notável na produção intelectual de Ehrman a sua honestidade. Como fizera em O problema com Deus, o autor nos conta sobre seu ingresso no seminário. Ele cursou o Seminário Teológico de Princeton (e chegou a ser pastor evangélico). Naquele tempo (1978), o jovem Ehrman entrara para a universidade com o único propósito de confirmar suas certezas de fé. Conta-nos, à página 10:

“Como um convicto cristão confiante na Bíblia, eu tinha  certeza de que ela, em todas as suas palavras, tinha sido inspirada por Deus. Talvez tenha sido isso o que me levou ao meu estudo intensivo”.

Sucedeu que as aulas no Seminário frustraram seu desejo de confirmação de sua fé, embora ele estivesse apaixonadamente disposto a argumentar contrariamente àqueles que insistissem em negar à Bíblia qualquer inspiração divina, patenteando suas contradições:

“Como bom cristão evangélico, estava pronto para demolir quaisquer ataques à minha fé bíblica. Eu podia responder a qualquer aparente contradição e a solucionar qualquer potencial discrepância na Palavra de Deus, fosse no Antigo ou no Novo Testamento. Eu sabia que tinha muito a aprender, mas não iria aprender que meu texto sagrado tinha algum equívoco”.
(p. 11)

Todavia, o autor não conseguiu resistir, por muito tempo, à força das evidências, muito embora, inicialmente,  permanecesse contrafeito:

“Algumas coisas não aconteceram como planejado. O que realmente aprendi em Princeton me fez mudar de ideia sobre a Bíblia. Não mudei a maneira de pensar com boa vontade – fui derrotado gritando e esperneando. Orei (muito) por causa disso e lutei (de forma extenuante) contra isso, resistindo com todas as minhas forças. (...) E após um bom tempo ficou claro para mim que minha antiga visão da Bíblia como a revelação inequívoca de Deus era absolutamente equivocada”.

(id.ibid.)
(grifo meu)

Está claro, pois, que Ehrman foi capaz de, por seu compromisso com o saber, abandonar suas opiniões sobre a Bíblia. E mais: ele foi honesto ao confessar isso. E terá a ousadia de nos revelar o que há nos bastidores que sustentam nossas convicções de fé.
Na seção seguinte, intitulada de Um ataque histórico à fé, Ehrman nos apresentará a perspectiva histórico-crítica, sob a qual a Bíblia é estudada nos centros acadêmicos por estudiosos cristãos, evangélicos, agnósticos (e possivelmente ateus). E nos lembra que eles não se preocupam em discutir a existência ou não de Deus. Deus não é a questão sobre a qual se debruçam. Adotando o método crítico-histórico, esses acadêmicos se preocupam em estudar a bíblia como uma obra humana, como um produto cultural e histórico, muito embora reconhecidamente os textos dela não possam ser usados como fontes históricas confiáveis. Nas palavras de Ehrman:

“Nos últimos duzentos anos, os estudiosos conseguiram um progresso significativo na compreensão da Bíblia, com base em descobertas arqueológicas, avanços em nosso conhecimento do grego e do hebraico arcaicos, línguas nas quais os livros das Escrituras foram originalmente escritos, e profundas e penetrantes análises históricas, literárias e textuais. É uma enorme empreitada acadêmica”.
(p. 13)

Estudos sérios desenvolvidos por estudiosos competentes e dedicados à produção do conhecimento só podem contribuir para a elucidação de nossa consciência. Ler a Bíblia na perspectiva histórico-crítica, e não devocional (que é comum entre os religiosos), é poder conhecer a verdade por trás dos textos desta que é a obra mais reverenciada do mundo. No entanto, como bem observa Ehrman (e eu já havia intuído isso antes de lê-lo), as pessoas, em geral, desconhecem os resultados do trabalho desses profissionais; ignoram as suas contribuições, (quase) nada sabem sobre as circunstâncias históricas, culturais, ideológicas nas quais a Bíblia foi fabricada.

“Mas essas visões sobre a Bíblia são praticamente desconhecidas da população em geral. Em grande medida, isso acontece porque aqueles que passam a vida profissional estudando a Bíblia não conseguiram transmitir esse conhecimento ao público em geral e porque, por várias razões, muitos pastores que tiveram contato com esse material no seminário não o partilham com os membros de suas igrejas quando assumiram seus cargos (...).”
(id.ibid.)
(grifo meu)


De passagem, gostaria de notar que a mesma situação de ignorância geral se observa na área dos estudos da linguística atinentes às relações entre língua e sociedade. A ideologia da correção idiomática, segundo a qual existem formas essencialmente corretas e erradas de usar uma língua persiste com muita força na consciência das pessoas (letradas ou não). Eis mais um desafio a ser superado!
Note-se bem: além da ignorância geral sobre os estudos bíblicos desenvolvidos pelos acadêmicos, há também a ocultação dessas contribuições pelos membros das igrejas, quando exercem o ministério. A farsa começa a ser revelada!
Qual é o valor do método histórico-crítico? O que ele nos permite conhecer? Ehrman nos ensinará a respeito dessa abordagem, na página 16. Leiamos com atenção:

“A abordagem histórico-crítica tem um conjunto de preocupações distinto, e portanto, implica um conjunto de perguntas diferentes. No cerne desse ponto de vista está a questão histórica (daí o nome) daquilo que os textos bíblicos significavam em seu contexto histórico original.”

Uma das perguntas aventadas por esse método é “quem foram os verdadeiros autores da Bíblia? Sabe-se que alguns dos autores de textos bíblicos não foram as pessoas que declaravam ser.

“(...) É possível (sim) que alguns autores de certos livros bíblicos na verdade não fossem ou tenham sido quem alegavam ser – por exemplo, que 1 Timóteo na verdade não tenha sido escrito por Paulo, ou que o Gênesis não tenha sido escrito por Moisés? Em que época esses autores viveram? Em que circunstâncias escreveram? Que questões estavam tentando abordar em seu próprio tempo? Como eles foram afetados pelas suposições culturais e históricas de sua época? Que fontes utilizaram? De quando são tais fontes? É possível que os pontos de vistas desses materiais diferissem uns dos outros? É possível que os autores que as utilizaram tivessem visões distintas tanto de suas fontes quanto uns dos outros?
(...)
(pp. 16-17)

Quantas questões podem ser exploradas pela adoção de um método que visa a descobrir a história real por detrás das Escrituras! E não posso deixar de notar minha perplexidade, quando, diante de um religioso portando a Bíblia, ouço-o dizer a respeito da verdade inabalável contida neste livro. Fico perplexo com a sua ignorância, com a sua ingenuidade. E, ao passar por uma igreja abarrotada de gente, lamento que permaneça ali ludibriada por discursos que lhe entorpecem a consciência, com uma série de embustes, de ficções, de crenças seriamente nocivas à inteligência.
O autor nos adverte sobre a questão da inconsistência das interpretações comuns em virtude, especialmente, de não termos acesso aos textos originais. As interpretações da Bíblia, que tão reverenciadas são pelos religiosos e ensinadas a eles pelas autoridades eclesiásticas, podem indicar (como indicam) a descontextualização das mensagens de seus autores. Segundo Ehrman,

“E se nem dispomos de palavras originais? E se, ao longo dos séculos durante as quais a Bíblia – tanto o Antigo Testamento em hebraico, quanto o Novo Testamento, em grego – foi copiado à mão, as palavras tiverem sido modificadas por copistas bem-intencionados mas descuidados, ou por copistas plenamente conscientes de que desejavam alterar os textos para fazer com que dissessem o que eles queriam?”
(p. 17)

Limito-me a sugerir a leitura da página 18, em que Ehrman aponta os principais problemas encontrados nos textos bíblicos, como, por exemplo, a grande probabilidade de a conquista da Terra Prometida ter sido baseada numa lenda.
A situação dos estudantes ingressos na universidade muda. Inicialmente dispostos a conservar suas convicções de fé, rendem-se à força das evidências.

“E assim que esses estudantes baixam a guarda, admitindo que pode haver equívocos na Bíblia, sua compreensão das Escrituras sofre uma mudança radical. Quanto mais leem o texto cuidadosa e intensamente, mais erros encontram; então começam a entender que na verdade a Bíblia faz mais sentido quando se reconhecem suas inconsistências, em vez de se insistir teimosamente que não há nenhuma, mesmo quando elas são tão evidentes”.
(p. 19)

Desacomodar-se, ter a ousadia de ver para além das aparências, superar, com coragem, o legado de equívocos, de enganos, de falsidades que nos foi transmitido por nossa educação religiosa; ao menos, desconfiar de que podemos estar redondamente enganados – essa é a lição que aprendemos nesse excerto.
A seção Do Seminário ao Púlpito, na página 25, é dedicada à observação de que os conhecimentos adquiridos pelos estudantes do seminário, justamente aqueles que são revelados pelo método histórico-crítico, não são transmitidos aos fiéis, quando aqueles se tornam sacerdotes (ou pastores).

“Uma das características mais impressionantes e chocantes do cristianismo hegemônico é que os seminaristas que aprendem o método histórico-crítico em suas aulas sobre a Bíblia parecem esquecer tudo sobre as abordagens críticas das Escrituras, as discrepâncias e contradições, descobrem todo tipo de erros e equívocos históricos, se dão conta de que é difícil saber se Moisés existiu ou o que Jesus realmente disse e fez, descobrem que há outros livros que um dia foram considerados canônicos mas acabaram não sendo incorporados às Escrituras (como outros Evangelhos e Apocalipses), passam a reconhecer que um bom número de livros da Bíblia é assinado por pseudônimos (por exemplo, escritos em nome de um apóstolo por outra pessoa), que na verdade não temos as cópias originais de nenhum dos livros bíblicos, apenas versões feitas séculos depois, todas elas alteradas. Eles aprendem tudo isso e, ainda assim, quando entram para o ministério da Igreja, parecem deixar isso de lado.”

Nenhuma pessoa gosta de ser enganada. Os consumidores sabem bem disso, quando procuram seus direitos no PROCON. Mas as pessoas que se sentam nos bancos de igrejas estão sendo enganadas há séculos, sem sequer desconfiar disso! Aqueles que lhes falam com a autoridade de especialistas na Palavra de Deus estão iludindo-as, ocultando-lhes os fatos, os conhecimentos que adquiriram nos anos em que se dedicaram a estudos seriamente comprometidos com a verdade. As religiões forjam as suas “verdades” inabaláveis, que não são senão resultados de produções falsificadas.
Ehrman conta-nos ainda sobre sua experiência como palestrante, que ensinava aos estudantes sobre as discrepâncias encontradas entre os Evangelhos:

“Em minhas palestras, falei sobre por que os historiadores têm dificuldade em usar os Evangelhos como fontes históricas, dadas as suas discrepâncias e o fato de que foram escritos décadas depois da vida de Jesus por autores desconhecidos que herdaram os relatos sobre eles da tradição oral, facilmente alterável”.
(pp. 25-26)

É, realmente, possível continuar confiante na credibilidade de textos discrepantes, escritos décadas depois da morte do homem em cujos ensinamentos eles foram inspirados, de textos resultantes de uma tradição oral? A Bíblia, como se compreende bem, é produto de muitas bocas e mãos humanas.
Conto ainda com a paciência de meu leitor para levar a bom termo este texto. Como professor universitário, Ehrman nos deixa um ensinamento importante:

“(...) outro dos meus principais objetivos – que deveria ser o de qualquer professor universitário – é fazer com que os alunos pensem.”
(p. 28)

Como professor universitário, dou razão ao autor, muito embora reconheça quão dificultosa é essa empresa. É razoável esperar que alunos universitários venham a se interessar pela reflexão crítica e, decerto, cabe ao professor criar as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Fazê-los pensar é indispensável ao sucesso de seu desempenho acadêmico. Todavia, não podemos esperar a mesma inclinação à reflexão dos homens de fé, pelas razões que depreendemos de tudo que foi exposto aqui. Não será com algumas aulas e discussões que conseguiremos livrar as pessoas do adestramento desenvolvido em mais de dois mil anos de erros e falsidades. A despeito de suas contradições e inconsistências, a Bíblia é o livro mais vendido do mundo, portanto mais acessível às pessoas, independentemente de seu grau de escolarização.
Recentemente, li uma reportagem sobre um estudo que procurava corroborar a hipótese de que quanto maior a escolaridade de alguém menos propenso a adotar crenças religiosas estará. Essa correlação entre maior grau de escolarização e rejeição de um comportamento religioso já havia sido por mim sugerida. No entanto, minhas experiências na faculdade onde trabalhava pareciam derrubá-la. Além de qualificar-se com um mestrado (ou mesmo um doutorado), o professor universitário precisa ser alguém interessado em estudos sobre religião. O que observei foi a reprodução dos lugares-comuns que povoam as visões ou opiniões dos religiosos em geral. Quando a temática era Deus, eles não hesitavam em vomitar as concepções herdadas ao longo de anos de exposição ao discurso doutrinário religioso.
Tenho, por ora, que concluir que as pessoas religiosas são as menos interessadas em religião. Pode parecer contraditória essa declaração, mas a esclareço. Parece-me que, para seguir uma religião, é preciso demonstrar pouco ou nenhum interesse em estudá-la seriamente. Para os religiosos, a sua religião é um dado. Eles a herdaram de seus pais e, por um pragmatismo, levam-na adiante, apegados a ela, sem questioná-la.
Como ficou claro aqui (e em outros textos de cunho ateísta), eu ousei questioná-la e abandoná-la. E meu esforço, neste texto, consistiu em fazer ver que, tornando-me ateu, pude estudar e aprender mais sobre religião. Tornando-me ateu, aprendi sobre teologia e a história da formação do cristianismo. Tornando-me ateu, acumulei mais conhecimentos históricos e filosóficos. Tornando-me ateu, corroborei o valor do conhecimento e continuei dedicado ao repúdio a toda forma de ignorância que escraviza, que embota a consciência, que conforma, que resigna e submete. Tornando-me ateu, aprendi mais sobre as relações entre a Igreja e os Estados ditatoriais, sobre a cumplicidade entre os sacerdotes e os tiranos, na longa história da formação do cristianismo. E meus estudos prosseguem, e minhas leituras não cessam, porque o conhecimento é uma busca ininterrupta e nenhum sistema de crenças poderá pretender traçar-lhe um limite definitivo.

 http://ateusdobrasil.com.br/p/1655/



quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

"é sempre mais do mesmo" (Renato Russo)


                                              Mesmice

Após muitos dias sem envolver-me na leitura, decidi recolher-me nas páginas de alguns dos meus muitos livros. Não só o prazer da atividade em si me estimulava, mas também o intento de inspirar-me para tornar a escrever. Escrevo agora, a despeito de não tê-lo logrado. Não estou inspirado; portanto as palavras que figuram aqui são empurradas como móveis que precisam preencher outros espaços.
Estou enfadado da mesmice: dos lugares-comuns que circulam nos ambientes de relacionamentos on-line, dos programas de baixa qualidade cultural oferecidos pela televisão (o Big Brother voltará a ser exibido em janeiro), das frases agastadas que se proferem nessa época do ano (“que seus sonhos se realizem no próximo ano”). Estou enfadado das superstições, simpatias que, nessa época, especialmente, influenciam os espíritos crédulos. Estou enfadado da insistência nas promessas (que não se cumprem). Dos programas que convocam astrólogos, pais de santo, numerólogos e outros tipos de trapaceirólogos que falam à massa sobre as previsões para o próximo ano.
Enfado-me da programação da noite de réveillon. Da Globo com seu Show da Virada e as figurinhas repetidas de sempre (o time dos sertanejos e Ivete Sangalo). Enfado-me com a queima de fogos em Copacabana. Uma mesmice. Não me interessam os efeitos pirotécnicos que se estampam no céu. Não me despertam fascínio; apenas enfado. Enfado-me também com as compras natalinas; com as pessoas que deixam para comprar os presentes na última hora e as mesmas reportagens sobre esses atrasadinhos. Enfastia-me o consumismo típico dessa época; os shoppings lotados, o centro da cidade fervilhante de gente!!! E o sol calcinando a cabeça dos que se apressam para não deixar de dar uma “lembrancinha”!
E tudo que me enfada nesta época do ano haverá de se repetir no próximo ano. O Natal e o Ano Novo já não me encantam mais como outrora. Eu cresci. Foi-se o tempo em que essas datas me entretinham.
É chato ser um adulto crítico!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Invejo todas as pessoas o não serem eu" (Fernando Pessoa)

 
                                  

                                            Pessoa em mim
                            Impressões do desassossego


Ainda estou por descobrir se a vida me está atravessada na alma, ou se eu nasci atravessado na vida. No entanto, tenho este sentimento vigoroso de mim e ele abriu-me um livro que é só meu. Suas páginas são manchadas com minhas lágrimas e com o meu sangue. E nelas eu estampo minhas tristezas, desnudo minha alma que vive a deslizar pelo amor. Embora poucas, as alegrias que ficam espalhadas não são menos intensas.

Tenho uma forte sensação de mim. Não temo a morte porque compreendo que toda forma de vida tende a ela. É o imperativo natural: tudo que vive deve morrer. Abro as páginas de Pessoa e o que acho ali me traz uma paz perturbadora, um espanto sereno; e me deixo estar, com os olhos pregados nestas palavras:

“Fui um momento com consciência, o que os grandes homens são com a vida. (...) Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção de mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós”
(pp. 70-71)

O desassossego de Pessoa acolhe-me como um ninho acolhe uma ninhada. Este desassossego aninhado em minha alma desde que fui lançado a essa existência que excede às pretensões da razão, e desde que lhe reconheci o caráter contingente, pelas mãos de Sartre, esse desassossego me é tão íntimo, que suspeito teria sido eu que o sentia em outras épocas.

“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira”.
(p. 71)

Não sinto medo da morte, tampouco me esquivo de pensá-la. Ela, como o amor, é tema recorrente em minhas páginas. Pensar a morte permite-nos sentir mais visceralmente a vida, a vida que pulsa em nossas entranhas, não do corpo, mas da alma. Quando pensamos, nos comprometemos mais com a vida. Pensá-la é ressenti-la. E cada pensamento que dedicamos a ela é um pouco dela que ressentimos. Quando pensamos sobre a morte, retiramos-lhe a catadura de horror. De fato, não acordamos da morte, como acordamos de um sono. O despertar para a morte só pode acontecer quando reconhecemos à vida o direito de morrer. Somos grávidos da morte, e esta certeza não se pode abortar. Abortam-se vidas prematuras, mas a morte está entranhada em nós; nascemos pré-destinados a ela. Não há vida sem morte; nem se pode morrer sem estar vivo. É óbvio, dirão, mas insistimos em negar essa implicação.

“O que tem a Assustadora Morte para Assombrar o Homem,
Se as Almas, assim como os Corpos, morrem?...
Da aflição e da dor nos libertaremos;
Não iremos sentir, porque não Seremos”.

(Lucrécio)

Se não mais seremos, não mais sentiremos; não-ser é o fim da consciência. Nada restará de nós, salvo as lembranças na memória dos que aqui ficaram. E, se, por ventura, tivermos sido artistas, legaremos nossa obra à posteridade; isso já é uma forma de sobreviver; mas entenda-se bem: a obra não torna à vida o artista, apenas o torna rememorável. O pó deixa a sua grandeza na obra legada. Isso distingue os artistas (poetas, escritores, escultores, pintores...) dos demais. A morte não os aniquila por completo.
A morte, que, por definição, não nos legará dor alguma (simplesmente porque não há mais o que sentir, quando se está morto) é temida porque ela atinge a todos nós, seres cientes dela, indiscriminadamente. A ela não importa se você se realizou ou não enquanto ser humano. O medo da morte advém, na verdade, do medo da não-realização enquanto pessoa. Provavelmente, uma pessoa que se realizou numa vida de longevidade não temerá tanto a morte.
A fragilidade da vida e a inexorabilidade da morte não me assombram, não me atormentam; sinto-as na lucidez imperturbável de meu espírito; sinto-as pulsantes em minha carne. Eu represento a morte de tudo quanto é baixo nesta vida e proclamo as alturas das coisas delicadas, frágeis, porém sublimes: a alma, o amor, a amizade, a ternura, a existência, a consciência de existir, de estar em relação de significação com os outros...
Eu só sei de mim, se não ignorar o outro, mas preciso dar-lhe a indiferença para alcançar uma dimensão mais potente e íntegra de mim. Dar-se demais ao outro nos fragmenta, e não convém viver colhendo os pedaços de nós, pois que talvez não tenhamos tempo de reunir os fragmentos.
Não temo a morte e sei que ela me espreita; porém o sentimento que tenho dela me adverte, me sinaliza como devo experienciar o tempo breve que tenho de vida. Eu existo por consentimento da morte. A morte é como o credor que nos permite viver, a despeito das dívidas. Viver bem é adiar o pagamento.
Uma consciência aguçada da existência implica reconhecer que a divisão passado-presente-futuro é mera abstração feita pelos homens, é uma forma de representar a temporalidade que se experiencia; uma dimensão que, de outro modo, é um ir-se imensurável. Donde se segue que o futuro é a não-consciência; que sou no presente e só posso saber de mim neste instante mesmo em que estou consciente de que sou entre as coisas e as pessoas que me cercam. O futuro não é senão o presente que não se realizou para a consciência para a qual só há presente (o passado é memória da qual temos que tomar consciência, só assim o passado é presente a nós). A vida se dá a nós através dos momentos, dos instantes e dos sentimentos experienciados, desde o momento em que acordamos até o momento em que repousamos para o sono da noite. A vida se dá a nós pelos relacionamentos, pelo existir que é estar em relação com o mundo, uma relação significativa. Os homens são seres de sentido e o sentido lhes é essencial. Homens vêem-se às voltas com questões sobre o sentido da vida. Quando o sentido lhes escapa, a vida perde o valor. Essa necessidade de dar sentido às suas experiências de mundo explica por que os homens precisam dar sentido à morte. Se a morte é o fim da consciência, se ela porá fim a tudo que experienciamos, então deve ela também ter sentido. Somos caçadores de sentido! Mas a morte é o esvaziamento do sentido. Vida e morte nos vinculam ao absurdo. A morte implode a razão. A vida a excede. À razão resta compreender os modos como a vida se dá, como se manifesta, como é experienciada, sem nunca pretender alcançar-lhe as raízes que lhe permitiram acontecer (para o homem comum deve ser assim). A vida aconteceu e nós passamos a existir. Trazemos na alma excesso de sentido que será destinado ao nada. Para mim, é isso que torna a vida plena de sentido.