quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Se 5 bilhões de pessoas acreditam em uma coisa estúpida, essa coisa continua sendo estúpida." (Anatole France)

                 



                                
                                Para além da ignorância: do ser ateu



Feuerbach tem muito a nos ensinar, em A essência do Cristianismo (2009). Os religiosos deveriam permitir-se à leitura deste eminente filósofo alemão, que legou ao mundo um estudo antropológico, lúcido e consistente, da religião, em especial, do cristianismo. Ele vai às raízes, onde Deus é inventado. À página 134, escreve:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio: o homem vem depois. Assim distorce a ordem natural das coisas! O principio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”

Reitero aqui: Deus é a essência objetiva do homem. É somente possível um debate equilibrado e racionalmente orientado se os religiosos estiverem de acordo quanto a esta premissa: foram os homens que inventaram Deus. Inverter essa relação é ideologia. E o leitor que me lê me diria: mas pensar assim desmontaria todo edifício da fé, mostraria que as religiões são fabricações humanas pelas quais os homens contemplam, adoram a sua própria essência, nada além disso. Decerto, é isso que Feuerbach se esforçou por nos fazer ver. Para ele, a religião representa a cisão do homem consigo mesmo. Nas palavras do autor,

“(...) ele [o homem] estabelece Deus como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito. Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem é transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador, Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades”.
(p. 63)

Depreendemos daí que Deus é a antítese do homem. Na religião, se dá a cisão entre o homem e sua essência, que é objetivada como Deus.
Certamente, Feuerbach contribuiu significativamente para a consolidação de meu ateísmo. Entretanto, como insisti em recente controvérsia com alguns desconhecidos cristãos, numa rede virtual de relacionamentos sociais, meu ateísmo é fundamentado e, embora eles me tenham admoestado de que eu, como o supõem, não li a Bíblia, ou pelo menos não da forma como eles a leram, eu me tornei ateu, em grande medida, porque alcancei uma compreensão dos fatos, da história que a eles escapa. E insisti em que a religião promove a ignorância – e não só uma ignorância que atenta contra o bom-senso, mas também uma ignorância histórica. Afinal, eles se vangloriam de serem leitores (dedicados?) da Bíblia, mas nada sabem a respeito da História de sua fabricação. Estou quase certo de que livros como Evangelhos Perdidos (2008), de uma das maiores autoridades nos estudos do cristianismo primitivo, Bart D. Ehrman, não chegaram ao conhecimento deles (e provavelmente, não chega ao da maioria dos religiosos, que em igrejas, entoam cantos, se ajoelham e louvam as palavras que constam dos evangelhos canônicos). Entretanto, esses mesmos religiosos ignoram o fato de que existem outros evangelhos, hoje, então conhecidos, que foram considerados heréticos e excluídos do cânone. Ensina-nos Ehrman a este respeito, na referida obra:

“Quase todas as Escrituras “perdidas” dos cristãos primitivos eram falsificações. Com relação a isso concordam acadêmicos de todas as correntes, liberais e conservadores, fundamentalistas e ateus. O livro atualmente conhecido como o Proto-Evangelho de Tiago declara ter sido escrito por ninguém menos que Tiago, irmão de Jesus (ver Mc 6:3; Gl 1:19) (...) Mas quem quer que tenha escrito o livro, não foi Tiago. (...) Isso é verdade também com relação a quase todos os Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses que vieram a ser excluídos do cânone e falsificações em nome de apóstolos famosos e seus companheiros”.
(p. 28)

Há, portanto, aí, um testemunho histórico de que a Bíblia que chegou até nós foi produto de uma série de disputas, de falsificações e exclusões, em favor dos que detinham o poder. Nesse tocante, Ehrman levanta as questões seguintes:

“Como falsificações puderam entrar no Novo Testamento? Possivelmente, é melhor reverter a pergunta: por que falsificações não entrariam no Novo Testamento? Quem estava compilando os livros? Quando o fizeram? E como eles poderiam saber se um livro supostamente escrito por Pedro foi de fato escrito por Pedro, ou se um livro supostamente escrito por Paulo era realmente de Paulo? Até onde sabemos nenhuma dessas cartas foi incluída em um cânone de textos sagrados até décadas após terem sido escritas, e o cânone do Novo Testamento como um todo ainda não alcançaria sua forma final pelos dois séculos seguintes. Como alguém podia saber, centenas de anos depois, quem tinha escrito tais livros?”

(p. 30)

A VERDADE é intricada e depende de um esforço intelectual ao qual os religiosos que seguem fielmente as doutrinas que lhes são entulhadas na mente não demonstram qualquer disposição. É mais cômodo acreditar que a Bíblia realmente foi escrita por homens agraciados pela inspiração de Deus e não por muitas mãos que, ao longo de muitos séculos, falsificaram e deturparam textos e travaram lutas de poder em torno dos escritos que iam sendo forjados. É mais cômodo acreditar que a única visão de mundo verdadeira e a única forma de compreender a natureza de Cristo são as que foram institucionalizadas pelo cristianismo “vitorioso” do que saber sobre a existência de uma ampla diversidade de cristianismos, recoberta pela designação Cristianismo primitivo. Nos séculos II e III, havia pessoas que acreditavam em um único Deus, mas também havia quem acreditasse em dois, trinta, ou mesmo em 365 deuses (ver. Ehrman, p. 18).
Também nesses séculos, houve cristãos que creram que a Escritura Judaica (“Antigo Testamento”) fora inspirada por um Deus único e verdadeiro. Outros, por outro lado, acreditavam que, embora inspirada pelo Deus dos judeus, ele não era o Deus único e verdadeiro. Houve ainda aqueles que acreditavam que ela fora inspirada por uma divindade maligna. E, finalmente, havia cristãos que negavam qualquer inspiração.
Naqueles tempos, também houve aqueles que divergiam em crenças a respeito da natureza de Jesus. Houve aqueles que atribuíam a Jesus a dupla natureza: humana e divina. Houve os que acreditavam que ele era apenas divino e não humano. Outros ainda creram ser Jesus homem que fora adotado por Deus para filho, mas que não era divino por si mesmo. Havia cristãos que acreditavam ter sido Jesus humano; e Cristo, divino - este teria habitado o corpo de Jesus temporariamente e inspirado seus ensinamentos e milagres, abandonando-o antes da morte.
Nos séculos II e III, cristãos houve que acreditavam que a morte de Jesus nada tinha a ver com salvação; outros, porém, pensavam ao contrário: a morte significou a salvação do mundo. E ainda havia grupos que acreditavam que Jesus nunca morreu.
A religião nunca poderá pretender à verdade; seu pilar é a (confiança sem provas). Com que critério se poderia definir qual das muitas crenças que circulavam naqueles tempos era a verdadeira?
Na seção As Escrituras perdidas (p. 20), Ehrman nos ensina que os Evangelhos encerrados no Novo Testamento foram todos escritos anonimamente; só posteriormente lhes foram atribuída autoria. Nas palavras do autor:

Mas na época em que esses nomes estavam sendo associados aos Evangelhos, outros livros da mesma espécie tornavam-se disponíveis, textos sagrados que eram lidos e reverenciados por diferentes grupos cristãos em todo o mundo: um Evangelho, por exemplo, que declarava ter sido escrito pelo discípulo mais próximo de Jesus, Simão Pedro; um outro de seu apóstolo Filipe; um Evangelho supostamente escrito pela discípula de Jesus, Maria Madalena; um outro do próprio irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.”

(p. 20)

Evidentemente, conforme assinala o autor, alguma pessoa decidiu pela inclusão de quatro desses primitivos Evangelhos no cânone. Donde a pertinência das questões suscitadas por ele:

“Mas como foram tomadas essas decisões? Quando? Como se poderia ter certeza de que estavam corretos? E o que aconteceu com os outros livros?

Vale notar ainda que os estudiosos não estão de acordo se Paulo foi realmente o autor de suas cartas. Há cartas atribuídas a Paulo que não constam do Novo Testamento, como as muitas que ele enviara ao filósofo romano Sêneca.
A única verdade que subsiste, neste terreno de disputas e crenças divergentes, é a verdade dos fatos, da história, que é trazida à cena por estudiosos como Ehrman. A verdade sobre a fabricação das Escrituras Sagradas pode ser resumida nestas linhas:

“Hoje sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. (...) Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos para o inglês [e para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares dos Estados Unidos [e do Brasil]. Outros livros vieram a ser rejeitados, escarnecidos, amaldiçoados, atacados, queimados, completamente esquecidos – perdidos”.

(p. 21)
Em face das evidências, em face da verdade a respeito da fabricação da Bíblia, pergunto-me com que direito os religiosos podem me censurar por não acreditar em Deus e não acreditar que Jesus tenha operado milagres e tenha sido, em parte, divino? Para mim, o fato de a Bíblia ter sido resultado de uma série de cópias, falsificações e escolhas politicamente determinadas é uma prova suficiente de que não representa nem a mente de um suposto Deus, tampouco fora inspirada por ele. Como poderia Deus ter silenciado em face dessa fragmentação e deturpação de seus pensamentos? Escusa lembrar que há entre os Evangelhos constantes do cânone contradições, como a que diz respeito ao local onde Jesus nasceu. Isso também aponta para o fato de que a Bíblia é um produto literário de mãos e mente humanas.
Os estudiosos admitem, há muito, que mesmo os textos incluídos no cânone são  falsificações. Alguns preferem chamá-los de escritos “pseudonímicos”.
O que a História nos revela sobre Jesus? Que ele era um profeta judeu, um dentre os muitos pregadores que circulavam na Palestina do século I d.C. Jesus anunciava o Reino de Deus – e Reino de Deus não fora empregado como uma metáfora. Jesus acreditava que Deus viria à Terra para estabelecer o seu Reino, sem injustiças e desigualdades sociais. A intervenção divina seria uma intervenção política, que poria fim às relações de classe.
Jesus, contudo, se destacara dos demais profetas, por três razões: primeiramente, ele rejeitava a luta armada; demonstrava-se impaciente com a observância exagerada dos preceitos judaicos; e aceitava as mulheres entre seus seguidores, o que contrariava os costumes das correntes rabínicas da época.
Paulo de Tarso, que outrora perseguia cristãos, converteu-se, tornando-se, segundo alguns estudiosos, o inventor do Cristianismo. Na realidade, foi ele seu principal propagador. Todavia, se considerarmos o modo como Paulo encarava a condição da mulher, seu pensamento é um verdadeiro retrocesso em relação à posição de Jesus. Na Primeira Epístola a Timóteo (2, 11-15), declara:

“A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão. Pois não permito que a mulher ensine nem tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, na caridade e na santificação, com modéstia”.

Pergunto-me como uma visão de mundo tão machista e sexista pode ainda orientar o pensamento de muita gente no século XXI, em sociedades modernas que vêm rejeitando as condições de assimetria entre os gêneros, em sociedades em que o homem deixou de ser o pai de família e provedor, em sociedades em que, reconhecidamente, as mulheres vêm alcançando maior participação social e política?
No entanto, devemos nos acautelar. Parece que nem todas as cartas são de autoria de Paulo. Em Gl 3: 28, Paulo declara: “em Cristo, não há homem ou mulher”. Paulo consentiu que mulheres falassem em igrejas, mas recomendava que cobrissem a cabeça, quando orassem e profetizassem.
De qualquer forma, é historicamente comprovado que as condições de existência da mulher, naqueles tempos, eram drasticamente limitadas e caracterizadas por submissão à figura patriarca.
O ateísmo nos permite um olhar de fora, do exterior, não-contaminado, não-infectado de dogmas, preceitos, crenças infundadas. O olhar ateísta permite-nos compreender a religião como uma instituição humana que, historicamente, serviu a interesses políticos. Pensá-la como uma realidade que paira sobre o meio sócio-cultural e político, que está além deste mundo e que, portanto, não pode ser colocada em debate, é mascarar o fato de que ela é uma realidade produzida por homens e, como tal, passível de discussão e entendimento.
Se, por um lado, podemos dizer que Jesus, enquanto viveu, teve boas intenções, pregando o amor, a pacificação e a igualdade; por outro lado, também é correto afirmar que seus ensinamentos não foram bem assimilados pelas gerações posteriores. Em 385, bispos pediam a cabeça de hereges. Em O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus,  lê-se a respeito dessa prática nefasta:

“O primeiro a sofrer as consequências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher”.
(p. 50)

Para sentir-se confortado numa religião, como o cristianismo, é preciso ignorar a sua História, é preciso ignorar os sem-número de eventos de violência, de conflitos perpetrados por homens de fé. É preciso ignorar e se ajoelhar, se submeter, crer sem questionar, ter fé sem usar-se da inteligência racional, sem ousar refletir por um instante sequer, limitando-se a reproduzir o que se vem ensinando há séculos de doutrinação. “Cristo nos salvou”, “Deus é amor”, “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”, etc.
As religiões, e já nos ensinara Rubem Alves, são feitas de símbolos. As pessoas religiosas ignoram isso; os católicos creem realmente que no cálice há o sangue de Cristo e que a hóstia é parte do corpo e agradecem por participar desse canibalismo simbólico. A cruz é, no cristianismo, símbolo da salvação, mas o judaísmo a vê como símbolo da maldição. A mim, me custa aceitar a cruz como símbolo de salvação, já que era um local de sofrimento e morte – a pior forma de punição aplicada a criminosos na Antiguidade. Há, aqui, uma violência simbólica.
           Ser ateu significa romper com uma longa tradição de falsificações, de adestramento psicológico, de aviltamento do humano e da inteligência, de assassinatos, guerras, disputas, conflitos. O ateu não é só aquele que afirma não existir divindade alguma, mas também aquele que se recusa a compactuar com uma longa história de absurdos e imposturas, que se recusa a ser um herdeiro de uma tradição que conserva os homens num delírio.
Aqueles que insistem em valer-se da Bíblia como autoridade no modo como vêem o mundo e o interpretam sequer desconfiam de que a leem segundo a leitura que lhes é ensinada na igreja; não leem criticamente; leem como leitores passivos, que se apóiam numa leitura institucionalizada e teologicamente conveniente. Lêem segundo o filtro interpretativo legado por uma tradição de Concílios. Lêem aquilo que deve e pode ser lido. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"Por que eu devo permitir que o mesmo Deus que abandonou seu filho me diga como cuidar do meu?" (Robert Green Ingersoll)

                                   
                                                      


 ATEÍSMO QUE LIBERTA   CONTRA TODA
     FORMA DE PRECONCEITO



Escusa dizer que eu não me tornei ateu da noite para o dia e que esta condição resultou de incessantes períodos de leitura e reflexão. Só mesmo com leitura e reflexões aturadas pude expurgar o excesso de crenças e opiniões infundadas de que uma longa tradição religiosa, da qual eu fui, acidentalmente, uma continuidade, me impregnou. Esta herança tornara-me deslumbradamente ignorante ou, se preferirem, um ingênuo conformado. Conformado com a esperança de que houvesse uma existência metafísica para uma ideia: a de deus, embora eu não me cuidasse um religioso conformado; ao contrário, estava sempre questionando as convicções dos paroquianos, dos familiares e discordando, em silêncio, de toda a pregação cansativa do padre. Eu era um rebelde metafísico em potência, que veio a descobrir a vantagem de viver uma vida que pudesse ancorar-se em explicações e justificativas racionais, com base em evidências disponíveis.
As religiões são um insulto à dignidade humana e elas promovem o aviltamento do humano: os homens precisam se rebaixar para adorar a deus (que não é senão, com Feuerbach, a própria essência humana projetada para fora de si e pensada como um Ser a quem se atribuem qualidades humanas superlativizadas). Toda forma de religião é, historicamente, infensa à razão. Como não encontrem justificativas racionais para validar suas doutrinas, os homens de religião se valeram do conceito de (que é uma confiança sem ter provas). Assim, ensina-nos uma longa tradição discursiva monoteísta: “tenha fé, e ignore as evidências”.
Onfray, em Tratado de Ateologia (2007), escreve, nesse tocante, o seguinte:

“O monoteísmo detesta a inteligência, virtude sublime que define a arte de ligar o que, a priori e para a maioria, passa por desligado. Ela torna possíveis as causalidades inesperadas, mas verdadeiras: produz explicações racionais, convincentes, apoiadas em raciocínios; recusa toda a ficção fabricada. Com ela, evitam-se os mitos, e as histórias para as crianças. Não há paraíso depois da morte, não há alma salva ou condenada, não há Deus que sabe tudo e vê tudo; bem conduzida, e de acordo com a ordem das razões, a inteligência, a priori atéia, impede todo pensamento mágico”
(p. 53)

O monoteísmo ainda ensina-nos ser esta vida de pouco valor e nos incute a crença em que uma vida mais próspera e feliz nos aguarda depois da morte, sem embargo da falta de evidências. As religiões se fundam na ignorância e se desenvolvem pelo medo, pela angústia, pelo desespero daqueles que, conscientes da sua finitude, não encontram sentido em sua vida, sem ancorarem-se na crença na existência de um Criador de todas as coisas, muito embora esse Criador, infinitamente benevolente e amoroso, também teria sido o responsável por criar inúmeros microorganismos e parasitas que causam uma série de enfermidades nos demais seres de sua criação, incluindo aqueles pelos quais ele teria certa predileção (ou não): os homens. Como explicar por que o hiv, o câncer e as inúmeras bactérias existam pelas mãos de um Ser que só quer o bem do homem?
As críticas à mentalidade religiosa podem ser feitas de diferentes maneiras, podem enveredar-se por diferentes caminhos; no entanto, aqui vou apresentar uma crítica mais fundamental, a que se apóia no raciocínio, no poder que a razão tem de representar um estado-de-coisas verificável e confiável do mundo. Veremos, assim, que é a ignorância o pilar do discurso religioso, um discurso envenenado, impregnado de crenças aleijadas e irracionais.
Devemos assumir, tacitamente, a existência de Deus, sem provas, como o fazem os religiosos. Logo as proposições abaixo se baseiam no pressuposto de que Deus existe.

1a proposição: Deus é quem criou o universo e de tudo que nele existe.
(essa proposição implica, entre outras coisas, que Deus criou a Natureza e os seres que participam dela; logo os animais sencientes)

2a proposição: Deus é todo-poderoso

3a proposição: Deus é bom, ou melhor, boníssimo.

Vamos ignorar que na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento (convido o leitor a ler O Problema com Deus, de Bart. Ehrman), Deus não era uma personagem tão boa assim; aliás, era muito maléfica. O Deus de Abraão era capaz, inclusive, de fazer pacto com o diabo. Mas vamos ignorar isso, por ora. O Deus de amor fora anunciado por Jesus (muito embora se acredite que esse mesmo deus reserve aos transgressores um local onde haveria dor e ranger de dentes).
As três proposições afirmam coisas a respeito de deus: na primeira, afirma-se que ele é o Criador de tudo quanto existe; a segunda que ele pode tudo, que seu poder de atuar é irreprimível, ele é absoluto, nada o constrange, nada pode impedi-lo de agir; a terceira, enfim, afirma que ele é bom e, sendo bom, rejeita o mal.
Ocorre que tal deus deveria contribuir significativamente para a vida de todos os seres vivos criados por ele. Agora, confrontemos o conteúdo destas proposições com o que realmente acontece no mundo. Em primeiro lugar, como criador de todas as coisas, deus demonstra-se bastante incompetente ou mal: ele criou vírus, bactérias, terremotos, vulcões, enfim, toda uma sorte de manifestações naturais que podem nos fazer enfermos ou nos reduzir a pó. A natureza nos dá provas suficientes de que não há ninguém no comando. Ele bem que poderia resolver (já que pode tudo) o problema dos sismos entre as placas tectônicas, acabando com os terremotos, que não indicam qualquer propósito e que, ao contrário, apontam para o fato de que a formação do planeta não se deu segundo um projeto inteligente. Um ser infinitamente inteligente seria capaz de reconhecer que vibrações do solo com poder de destruição em larga escala não contribui em nada para a prosperidade e felicidade dos seres que habitam estas terras. Não “servem” ao bem deles. Os religiosos supõem ter em mãos um testemunho da “mente” de deus, então gostaria que explicassem a razão da existência dos terremotos sob a ótica de Deus.
Ora, se a Natureza lança diante dos nossos olhos tantos fenômenos catastróficos que indicam que, se houvesse um ser benevolente cuidando de cada um de nós, ele deveria ser capaz de evitá-los, então lidamos com uma evidência para a conclusão de que não há deus nenhum. E ainda fica a nos incomodar a questão: por que um Ser infinitamente bondoso iria criar terremotos, vulcões, furacões, tsunamis, tornados, etc? Por que um deus infinitamente bondoso iria criar parasitas, bactérias, vírus, todos agentes patológicos?
Ainda no tocante à ignorância, tive já a oportunidade aqui de divulgar um texto em que dou exemplos de homossexualismo entre os animais não-humanos. E tive a oportunidade de fazer ver, na base de evidências, que o homossexualismo é um comportamento que participa da natureza; portanto, natural. È preciso muita ignorância para ter a ousadia de afirmar que o homossexualismo é inatural e que o natural é o comportamento heterossexual. E é preciso também grande dose de ignorância para afirmar que o homossexualismo é em si condenável, já que entre povos antigos a prática homossexual era aceitável e apreciável. Os antigos gregos mantinham práticas homossexuais e bissexuais. Assim era antes que as ideias cristãs, pelas pregações de Paulo de Tarso, invadissem o território conhecido como Ásia Menor e chegassem às mentes dos habitantes de Corinto. Muitas sociedades antigas aceitaram o homossexualismo; outras mais o rejeitaram. Assim também nem todas as religiões o condenavam: as da Grécia pagã o adotavam em seus rituais. No entanto, é com o advento e o fortalecimento do cristianismo, ou seja, com a sua propagação pelo mundo ocidental que as práticas homossexuais passaram a ser não só condenadas, como também perseguidas. Pode-se dizer que as culturas influenciadas pelas religiões abraâmicas tendem a ser intolerantes com o homossexualismo. A ideia absurda segundo a qual Deus condena a homossexualidade se deve a tais influências na formação do pensamento ocidental.
Na agenda dos desafios deste primeiro decênio do século XXI, está o combate à intolerância religiosa e à perseguição aos homossexuais. A homofobia tem crescido em nossa sociedade e é urgente que nossas autoridades atentem para o fato de que se trata de uma dentre as formas de discriminação e violência, não raro, justificadas pela herança da doutrinação judaico-cristã. É inaceitável que grupos separatistas, formado por jovens ignorantes e estúpidos, continuem a violentar indivíduos, pelo simples fato ou suspeita de que sejam homossexuais e ainda justifiquem tais atos hediondos por uma suposta autoridade, seja a Bíblia, seja deus. Novamente, vemos aqui quanto uma visão de mundo, provinda de uma cultura distante temporalmente (cultura centrada na figura paterna, autoritária e que inseria a mulher numa condição de degradante submissão) pode influenciar o modo como muitos indivíduos de gerações posteriores, vivendo numa época diferente, atuam e compreendem as condições de existência numa sociedade que busca trabalhar suas desigualdades numa forma democrática de governo laicizado.
É fato que muitas religiões do mundo incluem ensinamentos anti-homossexuais. No Islamismo, em geral, o homossexualismo é proibido. O cristianismo também não o aceita, tratando-o como pecado.
É urgente que se dilua a áurea sagrada da religião, sob a qual muitos homens se encobrem e na qual se garantem quando buscam justificar os atos mais execráveis. É preciso reconhecer, de uma vez por todas, que as religiões têm prestado um lamentável serviço para a depravação da razão e da inteligência humanas e para a justificação da barbárie.

O cristianismo nos afirma que há um homem invisível, que vive no céu e vigia tudo o que fazemos, o tempo todo. O homem invisível tem uma lista de 10 coisas que ele não quer que a gente faça. Se você fizer qualquer uma dessas coisas, o homem invisível tem um lugar especial, cheio de fogo, fumaça, sofrimento, tortura e angústia onde ele vai lhe mandar viver, queimando, sofrendo, sufocando, gritando e chorando para todo o sempre. Mas ele ama você! (George Carlin)


                                               
 
                                    A morte da fé


Nesta nova oportunidade, atendendo às exigências de meu espírito intelectualmente inquieto, gostaria de dar a saber aos leitores as contribuições de Sam Harris, em A morte da Fé (2009), para a construção de uma consciência crítica sobre os fundamentos e imposturas da fé religiosa.
Não se trata, a rigor, de uma resenha, mas de um convite à leitura deste grande trabalho do filósofo e neurocientista Sam Harris. Vou selecionar (até onde li) as passagens que me chamaram a atenção, no tocante ao seu poder argumentativo. A preocupação do autor é lançar por terra os fundamentos da fé religiosa, insistindo na necessidade de combater o seu poder nocivo e mortal à sobrevivência humana. Nesse tocante, atacará, pela raiz, o fundamentalismo islâmico que, para ele, é a maior ameaça à vida humana no século XXI.
Cuidarei para que o pensamento do autor não seja fragmentado, quando da apresentação das passagens mais poderosas argumentativamente. Na contracapa, lemos o seguinte:

“Incisivo e provocador. A morte da fé propõe uma reavaliação completa do estatuto ético das crenças religiosas. Defendendo sem concessões o primado da razão sobre a fé. Sam Harris investiga os fundamentos teológicos das principais religiões do mundo sem se intimidar com o enorme desafio teórico suposto pela tarefa. Baseando-se numa erudita bibliografia para demolir, um a um, os mitos construídos ao longo de milênios de inquisições, guerras santas e genocídios, Harris aponta o terrorismo islâmico como o maior dos perigos que a sobrevivência da fé impõe ao mundo civilizado. A morte da fé constitui, sobretudo, uma vigorosa denúncia da natureza intrinsecamente violenta e sectária das religiões dogmáticas”.
(grifo meu)

Estou ainda no terceiro capítulo desta instigante e lúcida obra intelectual e, por isso, me limitarei a expor os trechos que me despertaram atenção especial até então. O primeiro capítulo, cujo título é A razão no exílio é dedicado à discussão do papel da crença na vida individual e do mito da moderação na religião, ou seja, o autor avalia o que é ser um religioso moderado, aquele que diz respeitar a liberdade de crenças religiosas diversas. A par dos religiosos moderados há os religiosos extremistas, mas reconhece o autor que as pessoas de fé se situam num continuum.
No tocante à natureza da crença, tema que será explorado no segundo capítulo, já no primeiro capítulo escreve o autor:

“Uma crença é uma alavanca que, uma vez acionada, move quase tudo o mais na vida de uma pessoa. Você é um cientista? É liberal em política? É racista? Todas essas são apenas vários tipos de crenças em ação. Suas crenças definem a sua visão de mundo; elas ditam o seu comportamento; são elas que determinam as suas repostas emocionais para com os outros seres humanos. Se você duvida, imagine como a sua experiência de vida mudaria de repente se você passasse a acreditar em uma das seguintes afirmações:
1.Você só tem mais duas semanas de vida.
2.  Você acaba de ganhar na loteria – o prêmio é de 100 milhões de dólares.
3. Seres extraterrestres implantaram um receptor no seu crânio e estão manipulando seus pensamentos”.
(pp. 10-11)

No capítulo segundo (dando um salto a título de coerência temática), o autor define crenças da seguinte maneira:

“As crenças são princípios de ação, seja lá o que forem em termos cerebrais, elas são processos pelos quais nosso entendimento do mundo (seja correto ou equivocado) é representado e disponibilizado para orientar o nosso comportamento”.
(pp. 58-57)
(ênfase no original)

O autor destaca a relação entre crença e comportamento, e nos lembra que


“O poder que a crença exerce sobre nossas vidas emocionais parece ser total. Para cada emoção que somos capazes de sentir, existe uma crença que pode despertá-la em questão de momentos”.
(p. 59)

Crenças e convicções, segundo Harris, devem ser coerentes, tanto do ponto de vista lógico quanto semântico, com vistas a se tornarem válidas. Além disso, tanto umas quanto outras devem representar  um dado estado do mundo. Assim, ensina-nos:

“Para saber a que se refere uma dada convicção, preciso saber o que minhas palavras querem dizer; e, para saber o que minhas palavras querem dizer, minhas convicções devem ser minimamente coerentes. Não há como fugir do fato de que existe uma estreita relação entre as palavras que usamos, o tipo de pensamentos que podemos pensar e o que acreditamos ser verdade a respeito do mundo”
(p. 60)

Embora reconheça que os seres humanos não são sempre logicamente coerentes, ensina-nos ainda, à página 65:

“Para que seja possível o conhecimento do mundo, mesmo o mais básico, as regularidades no sistema nervoso devem refletir, de forma coerente, as regularidades do ambiente. Se cada vez que eu visse o rosto de uma mesma pessoa um conjunto de neurônios diferentes disparasse no meu cérebro, eu não teria como formar uma lembrança dessa pessoa. O rosto dela poderia parecer um rosto num dado momento, e uma torradeira no momento seguinte, e eu não teria por que ficar surpreso com sua incoerência, pois não haveria nada que conferisse coerência a um dado padrão de atividade neural”.
(p. 65)

A leitura desse último excerto já nos dá a medida da consistência teórica com que o autor, um filósofo e neurocientista, trata da questão do conceito de crença. Não há dúvida de que suas reflexões se baseiam nos conhecimentos, ainda em tenro desenvolvimento, das ciências neurológicas.
Ainda no capítulo segundo, na seção A fé e as evidências, o autor começa a avaliar as implicações que o conceito de crença, então definido e discutido anteriormente, terá no domínio da fé. De agora em diante, discutirá o conceito de crenças religiosas. Aqui questionará o fato de elas serem colocadas à margem do discurso racional e de, por isso, não poderem ser submetidas à crítica. Ele nos mostrará que elas não se distinguem, essencialmente, das outras crenças, para as quais necessitamos de justificativas que as validem.

“Não é necessário nenhum conhecimento especial e psicologia ou neurociência para observar que os seres humanos em geral relutam em mudar de ideia. Como muitos autores já observaram, somos conservadores nas nossas convicções, no sentido de que não acrescentamos nem subtraímos algo do nosso estoque delas sem que haja razão para isso”
(p. 69)

Esse trecho sugere quão difícil é a uma pessoa religiosa modificar, abandonar ou, ao menos, pôr em dúvida, as suas crenças dogmáticas. Lembra o autor que as convicções, assim como as crenças, como sejam tentativas de representar estados de coisas no mundo, devem elas estar relacionadas coerentemente (ou corretamente) com este mundo, pois só assim podem ser consideradas válidas. Assim, escreverá, com perspicácia:

“(...) Tampouco posso dizer coisas como “Acredito em Deus porque isso faz com que eu me sinta bem”. O fato de que eu me sentiria bem se existisse um Deus não me oferece a menor razão para acreditar na existência de um Deus por qualquer outra afirmação consoladora. Digamos que eu queira acreditar que há um diamante do tamanho de uma geladeira enterrado em algum lugar no meu quintal. É verdade que eu me sentiria muitíssimo bem se acreditasse nisso. Mas será que eu tenho alguma razão para acreditar que realmente há no meu quintal um diamante milhares de vezes maior do que qualquer um já descoberto? (...) Acreditar que Deus existe é acreditar que estou em alguma relação com a sua existência de tal forma que sua existência é em si a razão para a minha crença. Deveria haver alguma conexão causal, ou uma aparência disso, entre o fato em questão e a minha aceitação dele. Assim, podemos ver que as crenças religiosas, se quiserem representar convicções sobre a forma como o mundo é, devem ser comprovadas como quaisquer outras”.
(p. 71)
(grifo meu)

De fato, as crenças religiosas não representam a forma como o mundo funciona; não representam nenhum estado do mundo. Não se apóiam em evidências, porque não há evidências que as sustentem, que as justifiquem. Nesse tocante, o autor é incisivo e insiste:


“Simplesmente não existe outro espaço lógico para as nossas convicções sobre o mundo que ocupamos. As afirmações religiosas, enquanto pretenderem tratar da forma como o mundo é – Deus pode realmente ouvir as suas preces; Se você tomar seu santo nome em vão, coisas muito ruins vão acontecer com você, etc. -, terão de se posicionar em relação ao mundo e às nossas outras convicções a respeito dele. E é somente se forem posicionadas dessa forma que afirmações desse tipo poderão influenciar nossos pensamentos e comportamentos subsequentes. Para uma pessoa afirmar que suas convicções representam um verdadeiro estado do mundo (visível ou invisível; espiritual ou mundano), ela deve acreditar que suas convicções são consequência da forma como é o mundo. Isso, por definição, a deixa vulnerável a novas evidências”
(p. 72)
(ênfase no original)

Ainda nesse parágrafo, o autor observa que

“(...) se nenhuma mudança concebível no mundo puder fazer uma pessoa questionar suas convicções religiosas, isso prova que suas convicções não estão levando em consideração nenhum estado do mundo. E ela não poderia afirmar, portanto, estar representado o mundo, de forma nenhuma”.

Isso nos mostra quão as crenças religiosas estão apartadas do mundo, porque, afinal, não dizem nada sobre algum estado do mundo. Há inúmeras passagens em que o autor prova-nos que a fé é uma impostura. Devemos ter em mente que as crenças religiosas, fundadas na ignorância, dispensam as provas, sequer as exigem (e isso é respaldado no próprio evangelho (João 20, 29 – “Bem-aventurados os que não viram e creram”). Nesta próxima passagem, Harris mostra quão arraigadas são as crenças religiosas, a tal ponto que nem o mais aterrador acontecimento vivenciado pela humanidade é capaz de suprimi-las:

“(...) em qualquer esfera da vida as convicções são um cheque que todo mundo insiste em descontar deste lado da sepultura: o engenheiro diz que a ponte vai aguentar; o médico diz que a infecção é resistente à penicilina – as razões que essas pessoas apresentam para suas afirmações sobre o funcionamento do mundo podem ser desmentidas. O mesmo não acontece com o mulá, o padre e o rabino. Nenhuma mudança neste mundo, ou no mundo em que eles vivem, poderia demonstrar a falsidade de muitas de suas convicções não se originam em qualquer observação do mundo, nem do mundo que eles vivenciam. (Elas são, no sentido de Karl Popper, “infalsificáveis”). Aparentemente, nem o Holocausto levou judeus a duvidarem da existência de um Deus onipotente e benevolente. Já que ver a metade do seu povo ser sistematicamente jogada nos fornos crematórios não é uma prova contra a noção de que um Deus todo-poderoso cuidando dos interesses desse povo, parece razoável supor que nada mais poderia ser
(p. 76)
(grifo meu)

De fato, nem o Holocausto, nem as inúmeras guerras em nome da fé perpetradas até hoje pelos homens, nem mesmo o sofrimento mais pungente e aterrador que ainda possa recair sobre todos nós que este mundo habitamos serão uma prova suficiente para que os religiosos deixem de acreditar na existência de Deus (insisto, num Deus que é infinitamente benevolente e todo-poderoso). Aliás, Deus só pode ser pensado com esses predicados; se lhos retiramos, ele deixa de ser deus. Quem desejaria a existência de um deus impotente ou mau?
A seção Fé e loucura está repleta de passagens ironicamente inteligentes. Não há como passar por ela sem alguma forma de perplexidade e prazer intelectual. A seção inicia-se com as seguintes palavras:

“Já vimos que as nossas crenças estão estritamente relacionadas com a estrutura da linguagem e com a aparente estrutura do mundo. Nossa “liberdade de crença”, se é que existe, é mínima. Será que uma pessoa é realmente livre para acreditar em uma afirmação para a qual não há provas? Não. A prova (seja lógica ou sensorial) é a única coisa que indica que uma dada crença ou convicção realmente se refere ao mundo. Nós temos nomes para definir pessoas que têm muitas convicções para as quais não há justificativa racional. Se essas convicções forem extremamente comuns, chamamos essas pessoas de “religiosas”; caso contrário, provavelmente serão chamadas de “loucas”, “psicóticas” ou “dementes”. A maioria das pessoas de fé é perfeitamente sã, é claro, mesmo as que cometem atrocidades por conta de suas crenças. Mas qual é a diferença entre um homem que acredita que Deus vai recompensá-lo com 72 virgens se ele matar um punhado de adolescentes judeus e outro que acredita que criaturas da estrela Alfa Centauri estão lhe enviado mensagens para a paz mundial através de seu secador de cabelo? Existe uma diferença, é óbvio, mas essa diferença não coloca a fé religiosa sob uma óptica lisonjeira”
(p. 82)

O parágrafo que se segue lança luzes sobre a argumentação do autor, no tocante à relação entre loucura e religião:


“Apenas certos tipos de pessoas acreditam no que ninguém acredita. Se alguém é governado por ideias para as quais não há provas (e que, portanto, não podem ser justificadas numa conversa com outros seres humanos), isso em geral indica que há algo de gravemente errado na sua mente. Sem dúvida, há sanidade nos grandes números. No entanto, é mero acidente histórico o fato de que se considere normal na nossa sociedade acreditar que o Criador do universo escuta os seus pensamentos, mas acreditar que Ele se comunica com você por meio de pingos de chuva em código Morse batendo na janela do seu quarto é uma demonstração de doença mental. Por isso, embora as pessoas religiosas não sejam, em geral, loucas, suas crenças fundamentais certamente o são. Isso não surpreende, uma vez que a maioria das religiões meramente canonizou algumas manifestações de ignorância e loucura ancestrais e as passou para nós como se fossem verdades primordiais. Isso faz com que bilhões acreditem no que nenhuma pessoa sã poderia acreditar por conta própria. Na verdade, é difícil imaginar um conjunto de crenças mais indicativo de doença mental do que o que se encontra no cerne de nossas tradições religiosas”
(pp. 82-83)
(grifo meu)

Aqui, em minha rua, passa, às vezes, um homem que sofre de algum tipo de enfermidade mental. Ele não representa ameaça alguma aos transeuntes e gosta, especialmente, de falar às mulheres paradas no ponto de ônibus, prometendo-lhes casa, carinho e conforto, caso venha a ganhar na loteria. Recentemente, presenciei esse caso. A mulher, ao ouvir isso, sorriu, sem jeito. Ela, provavelmente, deve ter entendido que ele era “maluco”. Mas, se por acaso, ele lhe dissesse que Deus iria abençoá-la com milhões de reais – talvez, ela sussurrasse para si: amém!  e concluísse, felizmente, “ele é maluco, mas sabe o que fala”.
É interessante notar que se alguém que crê em Deus disser a outro crente que ouviu a voz de Deus, certamente, essa pessoa seria considerada “louca”. É que a loucura, nesse caso, deve ser convencional, ou seja, compartilhada na forma de cânones por uma dada comunidade cultural. Todos os que crêem devem participar da loucura e talvez a único acordo que se pode ter, no domínio da religião, é que Deus, definitivamente, não tem voz (nem corpo, nem cheiro...).
Referindo-se ao dogma da Eucaristia, na Igreja Católica, (o autor cita um trecho da Profissão de fé da Igreja Católica) escreve o autor:

“Jesus Cristo – que, aliás, nasceu de uma virgem, enganou a morte e subiu aos céus corporalmente – agora pode ser comido sob a forma de uma bolacha. Depois de algumas palavras em latim faladas sobre uma taça do seu borgonha favorito, você também pode beber o sangue dele. Há alguma dúvida de que, se existisse apenas um solitário adepto dessas crenças, ele seria considerado maluco? Mais ainda, existe alguma dúvida de que ele seria maluco? O perigo da fé religiosa é permitir que seres humanos normais possam colher esses frutos da loucura e ainda considerá-los sagrados. E, já que cada nova geração de crianças continua aprendendo que as afirmações religiosas não precisam ser justificadas como todas as outras, a civilização continua sitiada pelos exércitos do absurdo. Nós estamos, neste momento, matando uns aos outros por causa de literatura antiga. Quem teria imaginado que algo tão tragicamente absurdo seria possível?
(p. 83)
(grifo meu)

Finalmente, o que nos tem a dizer o autor sobre a moderação religiosa? Decerto, muita coisa; no entanto, cinjo-me a referir um trecho que ilustra, sinteticamente, sua posição nesse tocante:

“O problema que a moderação religiosa apresenta para todos nós é que ela não permite que se diga nada de muito crítico acerca do literalismo religioso. Não podemos dizer que os fundamentalistas são malucos, pois estão simplesmente praticando a sua liberdade de religião, não podemos sequer dizer que eles estão enganados em termos religiosos, já que o conhecimento que eles têm sobre as Escrituras em geral é igualável. Tudo que podemos dizer, como moderados religiosos, é que não gostamos do custo, em termos pessoais e sociais, que a adoção plena das Escrituras nos impõe (...) A moderação religiosa é produto do conhecimento secular e da ignorância escritural – e ela não tem nenhum respaldo, em termos religiosos, para ser colocada lado a lado com o fundamentalismo. Os textos em si são inequívocos: são perfeitos em todas as suas partes. À luz desses textos, a moderação religiosa parece apenas uma falta de vontade de submeter-se plenamente à lei divina. Ao deixar de viver segundo a letra desses textos, e ao mesmo tempo tolerar a irracionalidade dos que assim vivem, os moderados traem igualmente a fé e a razão (...)”
(p. 21)
(ênfase no original)

Não custa lembrar a importância do discurso ateísta para a formação de indivíduos autônomos e críticos intelectualmente: o ateu ousa pronunciar – religião se discute sim!  As crenças religiosas não têm nada de especial para serem resguardadas de avaliações racionalmente orientadas para desnudar-lhes a inconsistência e incoerência. As crenças religiosas soam no vácuo completo, porque só servem ao desejo e à imaginação.








sábado, 19 de novembro de 2011

"Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia (....)" (Fernando Pessoa)

                                      

                                                  Divagações
                                              Do desassossego

Bastam-me estes dois passos de Pessoa, em Livro do Desassossego, para que eu possa aqui dar um testemunho de mim. Deles se originará esta enxurrada de reflexões, com as quais eu me derramo neste papel virtual.

“O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”.
(p. 56)

“Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou”
(p. 45)

Intentando evitar a fratura do pensamento do poeta, refiro abaixo, na íntegra, os textos donde estes fragmentos foram retirados:

Tornamo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino”.


Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não pensar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco”.

Agora, preciso sentir-me. Preciso pensar, mas pensar dói. Não que seja uma dor que repercuta fisicamente; é uma dor mais aguda porque esteriliza a alma; é quando desejamos tanto dizer, que as palavras se tornam escassas, elas nos escapam; o sentido míngua. Na cama, livros espalhados; estava disposto a lê-los, mas os deixei ali, para escrever. Ler e escrever, ler e escrever, escrever e ler, e ler para pensar e escrever para refletir sobre o já pensado e sentir o que foi lido e escrito e pensado. Ao cabo dessas atividades, resta-me o sentir. É o sentir a que viso. O sentir é o sentido – o sentido para o qual aponta meu esforço intelectual. No início, eram as palavras; no fim, é o sentir.
Meu irmão, que, em raras ocasiões pode dizer-me alguma coisa significativa, declarou-me, há poucos dias, que há pessoas que apenas passam pela vida. Sim, como os transeuntes por que nós passamos cotidianamente e deles nos esquivamos. Alguns de nós são transeuntes da existência. Atravessam as ruelas, as ruas, as estradas, as avenidas da vida com o único propósito de chegar ao outro lado. São meros atravessadores que sabem – aliás como todos nós sabemos – que vão morrer e, ainda assim, se contentam em apenas atravessar.
E eu não me refiro aos indigentes, ao largo dos quais passamos indiferentes nas ruas. Não me refiro aos desgraçados, aos miseráveis, aos marginalizados deste mundo, cuja existência míngua a cada dia, sem que de nossas pálpebras caia uma gota de lágrima. E não nos culpemos por isso, já que não temos para com eles nenhuma afinidade. O lamento, quando há, é sufocado pela indiferença, que é nosso escudo contra as decepções da vida. Ser indiferente é um estratagema para nos protegermos; ser indiferente, muitas vezes, é necessário. A felicidade de cada um de nós depende de que olhemos para o mundo indiferentes; nosso olhar deve ostentar a indiferença, porque, do contrário, viveríamos imersos num profundo mal-estar e faríamos da melancolia nossa acompanhante no viver cotidiano. Tenho de reconhecer, em que pese o excesso de sentir que tece a essencialidade de minha alma, que certa dose de insensibilidade é condição para que possamos olhar através da janela, mesmo num dia chuvoso, e sentir a alegria de viver.
Dizia que não me referia aos indigentes, mas aos que foram privilegiados pela vida, ou, se preferirem, os privilegiados socioeconomicamente.  No entanto, não quero dar ao meu discurso um tom sociológico. Existem, como cantou Tim Maia, os que nascem para sofrer e os que nascem para sorrir. E dentre os que sorriem demais ou esporadicamente, dentre os que são abastados e os que vivem sem muitos recursos econômicos, há uma grande faixa de pessoas que entulham a vida de prazeres fugazes, que não alcançam senão as aparências das relações e que, portanto, apenas seguem na travessia.
Estas pessoas estão, portanto, de acordo com uma das formas de a vida se dar; elas seguem as tendências como seguem as roupas da moda; e como a moda é, por definição, comportamento efêmero, é o espaço institucional em que tudo que circula é passageiro e descartável, essas pessoas estão sempre dispostas a abandonar certos padrões, certas tendências, certos modismos, sempre que lhe são oferecidas alternativas, novidades, últimos lançamentos. A travessia torna-se assim camaleônica. Elas se adaptam a dadas condições de existência social; dançam conforme a dança (enquanto se entusiasmam com as novas músicas). Acontece que eu não sei dançar muito bem, minha dança descompassa e meu canto desafina. E a música de minha alma remonta a tempos antigos em que o deleite provinha das sonatas do coração.
Donde se segue que há entre mim e a vida um profundo desacordo, visto que eu sou fiel a mim mesmo, estou tão de acordo comigo, que só posso dormir tranquilo quando o primeiro pensamento da manhã se harmoniza com o último pensamento da noite, tornando-me presente a mim mesmo. Evidentemente, ao longo do dia, milhares de pensamentos trafegaram em minha alma, alguns, certamente, desencontrados; mas, ao cabo de um dia, se meu último pensamento traz-me à consciência o sentido de unidade entre o que fui (em momentos anteriores) e o que sou, posso, então, dormir um sono sereno.
A intuição do poeta a respeito de nossa incapacidade de nos conhecermos a nós mesmos realmente é confirmada pelas ciências da mente. Somos um estranho vivendo em nós mesmos. Algumas pessoas experimentam isso de modo desastroso; outras lidam com esse estranhamento com serenidade; outros mais com perspicácia; e ainda há os que, estranhando-se a si mesmos, fazem arte. Há os que se sentem confortáveis em si mesmos; e há os que dariam tudo para evadir-se (assim mesmo furtivamente, para que não sejam notados pelo superego, que viria nessa tentativa de fuga uma transgressão).
Entre os transeuntes da existência, há milhares que pedem muito à vida. Desejam carros, milhões de reais, aquela viagem dos sonhos, um condomínio de luxo, um corpo escultural, o cargo de poder, entre outras tantas aspirações. Sinto que meu sofrimento primevo fez-me pedir pouco à vida, salvo o desejo de vivê-la. Isso, talvez, seja muito, mas nem sempre a vida me caiu como uma roupa bonita que nos torna irresistível numa noite agitada. Houve tempo em que a vida me era pesada, me sabia indigesta.
Com a maturidade e, embora na infância ofertado com mimos e presentes, descobri, entre as superfluidades que entulham nossas vidas, o essencial. Então, pedi à vida esse essencial: amor e conhecimento. O conhecimento, ou o saber é uma riqueza cuja conquista só dependia de mim (embora eu tenha contado com a ajuda de tantos outros); mas notem “com a ajuda”. O amor, contudo, não depende de quem o deseja; o amor implica o outro; e os outros com os quais me relacionei não participavam da mesma extensão do amor da qual eu tomava parte. O amor convoca o outro a participar de um mesmo sentido conosco. Não tardou para que eu reconhecesse que a reciprocidade amorosa era um pedido exorbitante. É que para muitos o amor não é o essencial; é um adendo que se vier a calhar, muito bem, senão, o eu se abarrota de si e, na ilusão de sua auto-suficiência, pensa ou diz, mesmo que contrafeito, “estou feliz sozinho”.
A felicidade na solidão é uma ilusão constante numa geração incapaz de experienciar relações duradouras e emocionalmente consistentes. Frustrados, homens e mulheres da modernidade líquida enganam-se a si mesmos, e supõem, mesmo que contrariamente à própria natureza da espécie de que eles são exemplares (de uma perspectiva biológica), que eles se bastam a si mesmos. A crença na felicidade de viver solitariamente é produto da ideologia individualista que prescreve a supremacia do indivíduo sobre o coletivo. Primeiro eu, depois eu, depois eu e... depois eu...
Entendam, mesmo que eu possa parecer enfadonho, mas o óbvio é carecido de atenção, já que, muitas vezes, ele nos elucida: nós, seres humanos, somos seres sociais. A relação entre o indivíduo e o todo (a sociedade) é uma relação dialética, na medida em que não há indivíduo sem o social, e este não pode ser pensado sem os indivíduos que o compõem. Mas a ideologia individualista mascara essa evidência.
Felizmente, existe o amor, que nos convoca para olhar o social, o amor nos implica nesse social, nos abre para o outro. A abertura que o amor nos provoca, que é nossa capacidade de nos relacionar com o exterior (não só com o interior), torna-nos sensíveis ao entorno social, que inclui as pessoas a quem destinamos carinhos ou nossas disposições de afeição. E não se entenda esse amor como amor universal, que é uma utopia, uma idealização, fruto de nossa ingenuidade. Freud nos ensinara a esse respeito: o amor é uma moeda cara demais para ser distribuída aleatoriamente ou a todos. É impossível amar aquele que nos é estranho, com o qual não temos nenhuma afinidade.
Talvez, melhor seria falar em moral. É a ela que devemos, na verdade, essa abertura para o social. A moral surge no momento em que um homem se relaciona com outro homem, em que cada um tem de reconhecer o domínio de sua individualidade e liberdade e atuar em benefício comum, ou, ao menos, tentando evitar prejuízos recíprocos. A moral surge no instante do confronto com o sujeito e o social, ou o mundo. No entanto, creio em que sem o amor não é possível a moral. Mas insisto em que se trata de uma forma específica de amor: é o amor que rejeita toda forma de violência. Claro: se os homens vivessem abandonados aos seus impulsos, atacando e matando uns aos outros, a vida em comunidade seria impossível e é mais vantajoso para a vida individual que haja um esforço cooperativo entre todos - homens e mulheres.
Já enfadado, fico com a sensação de que não disse tudo. Ao tentar externar-me com exatidão, creio ter oferecido senão inexatidões de minha alma; é a sensação de que eu me escapo a mim mesmo e nunca atinjo um núcleo de sentido palpável. Talvez, porque o sentido não é palpável mas fluente... ele se esvai... escorre e tentado capturá-lo, nos perdemos no meio do caminho, como quem se encontra perdido numa encruzilhada.
Sinto que sou um projeto irrealizável e que o meu eu mesmo é uma afronta ao mundo. De resto, sobra-me aquela sensação de que estou de acordo com o eu sou.