quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"Se a morte é inevitável, a felicidade é necessária" (BAR)

                               

                           A felicidade
             Reflexões para a maturidade



      Quem quer que suponha que eu não sinta certa inquietude no momento exato em que me ponho a lançar sobre o papel minhas concatenações verbais equivoca-se redondamente. Quem quer que suponha que eu não sinto dificuldade para expressar com a devida coerência a complexidade das nebulosas de pensamentos que vão, não sem muito custo espiritual, tomando formas palpáveis e límpidas, à medida que vou dedilhando este teclado, está igualmente equivocado.
      A inquietude e a dificuldade experimentadas decorrem da seriedade com que desempenho tão laboriosa tarefa: escrever para fazer-me sentir e compreender. Uma manhã que começou ensolarada cedeu aos ventos atormentados que prenunciavam a mudança do tempo. Não tardou para que o azul do céu fosse dissipado pelo acúmulo de nuvens densas de água. Uma chuva fina caía dolorosamente como se estivesse sendo espremida pelo céu. Não sei que haja outra atmosfera favorável ao recolhimento do espírito aos espaços abertos pelas palavras. Creio ser o clima convidativo para longínquos vôos espirituais.
            Penso não errar ao dizer que todo o labor filosófico consiste em pôr em debate nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes e quase nunca questionadas. Penso ainda não errar ao afirmar que a atividade filosófica é trabalho de reflexão sobre conceitos. Eu poderia valer-me de uma autoridade como Deleuze para assegurar a validade dessa afirmação, mas já o fiz em outra oportunidade. Por isso, ficarei satisfeito se o leitor não objetar ao axioma já referido e que exprimo nestes novos termos: a filosofia é trabalho espiritual sobre conceitos.
           Não precisamos ser especialistas em filosofia para saber que toda pergunta iniciada com o que é...? é fundante em todo empreendimento filosófico. Sabemos que Sócrates inquiria seus conterrâneos sobre o que eram muitas coisas: o que é a virtude?; o que é a liberdade?; o que é a justiça, etc. Sabemos também que a palavrinha “ser” (é) foi, ao longo da vasta história da filosofia ocidental, muito cara aos filósofos. A pergunta com “ser” é a pergunta sobre a essência mesma das coisas. No entanto, como em matéria de filosofia as respostas não são tão importantes como as perguntas, ao perguntarmos sobre o quê das coisas, estamos mais preocupados com o processo discursivo, racional de avaliação e justificação de nossas afirmações, crenças sobre o mundo.
          Acrescentaria ainda mais: a filosofia ousa questionar o óbvio. Tudo que nos é óbvio raramente é (re)pensado. É óbvio que somos livres, porque não estamos encarcerados ou mantidos em cativeiro. É óbvio que o amor é preferível ao ódio, e assim por diante.
      Então, eu gostaria de convidar o leitor a refletir comigo sobre a felicidade. Lembro aqui a lição do filósofo Daniel Dennett, segundo a qual importa aos filósofos a forma como a pergunta é feita, já que os filósofos se destacam por ser grandes perguntadores. A capacidade de perguntar é o que os notabiliza. Começo, pois, com a pergunta clássica: o que é a felicidade?
            Não nos apressemos. Não convém tentar respondê-la com declarativas simplistas, tais como a felicidade é isso ou aquilo. Desde já, quero que saiba o leitor que eu não vou me delongar nas alusões ao pensamento de filósofos sobre o tema. Não quero abarrotar a sua cabeça com meditações de outras mentes que, embora reconhecidamente dignas de referências e reverências, poderiam inibir ou tornar pouco produtivas nossas reflexões. No entanto, penso ser um bom caminho inicial a posição de Aristóteles, ao pensar a felicidade como a satisfação experimentada pelo homem em seu íntimo quando se dá conta da harmonia entre suas atividades e os objetivos a que elas visam. Para o filósofo estagirita, a felicidade depende da realização do homem enquanto homem, ou seja, a realização de suas qualidades específicas, a saber, racionalidade, linguagem e sociabilidade.
       Gostaria de que o leitor retivesse essas três qualidades e percebesse a relação intrínseca entre elas, tendo ainda em conta que a linguagem é fundante, isto é, está na base da racionalidade e da sociabilidade.
     Aristóteles permite-nos situarmo-nos num terreno discursivo mais sólido, o que significa dizer que não vamos ficar a pensar a felicidade como algo abstrato, que dependa de uma comunhão do nosso eu com o astral ou qualquer dimensão metafísica imaginável. Por outro lado, também a felicidade parece estar associada a certos estados de serenidade espiritual, ou seja, estados caracterizados por ausência de preocupações. Práticas que contribuem para esvaziar o ‘eu’ como o budismo podem contribuir para a felicidade interior, mas certamente a felicidade não se reduz à mansidão.
          Há algum tempo, o programa Globo Repórter exibiu uma reportagem sobre pessoas que preferem viver apartadas do convívio social; pessoas que optam por velejar durante meses sozinhas em mar aberto. Mas havia pessoas também que, uma vez tornadas viúvas, ficaram acometidas de depressão em decorrência da solidão. Para essas pessoas, depois de muitos anos de casamento, a vida sem o parceiro amado as tornou muito infelizes. Decerto, o amor é uma fonte abundante de felicidade. E quando penso em amor o leitor deve inferir a palavra reciprocidade.
           A reportagem nos leva a pensar que a felicidade está intimamente ligada à sociabilidade. Em outras palavras, para muitos de nós, é difícil ser feliz sem estar em relação com os outros. Não podemos negar que nós somos seres para sociabilidade. Afirmar o homem é um ser social é afirmar o óbvio. No entanto, devemos ter em conta que nascemos dotados para a sociabilidade; digamos, temos uma natureza que se inclina à vida social. Mas ainda aqui teremos de nos defrontar com alguns problemas. Tenho de forçosamente trazer à cena um pouco do pensamento de Freud, em O mal-estar na cultura. Espero que o leitor paciente, porque creio contribuir para o bom encaminhamento das reflexões feitas até aqui. Antes de referir a posição de Freud, vale atentar para os pressupostos básicos de sua reflexão sobre a condição humana. Ei-los abaixo:

a) os homens são seres dotados de impulsos que visam à satisfação; uma grande dose desses impulsos são agressivos;

b) a cultura se funda na necessidade de repressão do impulso de Eros (prazer) e de Tanatos (morte);

c) é o programa do princípio de prazer que estabelece a finalidade da vida humana.

O princípio de prazer significa que o homem busca o prazer e se esforça para afastar o desprazer. Nesse tocante, nos ensinará Freud:


“(...) Esse princípio [o de prazer] comanda o funcionamento do aparelho psíquico desde o início; não cabem dúvidas quanto à sua conveniência, e, no entanto, seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Ele é absolutamente irrealizável, todas as disposições do universo o contrariam; seria possível dizer que o propósito de que o homem seja “feliz” não faz parte do plano da Criação”
(pp. 62-63)

      
       Em o futuro de uma ilusão, Freud argumenta que todo indivíduo é inimigo da cultura e que esta é resultado de um esforço por conter-lhe as paixões, muito embora pare ele, indivíduo, se volte o interesse geral.
       O que devemos ter em conta é que: a) Freud não concebe o ser humano como inatamente propenso à fraternidade e ao amor, mas como um ser dotado de uma grande propensão à agressividade e à aversão social, sempre que seus impulsos não são satisfeitos como deseja; b) ele também entende a cultura como uma organização essencialmente repressiva, que impõe limitações à satisfação dos impulsos humanos.
        No mundo de Freud, a felicidade plena é inalcançável em virtude das próprias condições culturais da existência humana. Os seres humanos desejam a permanência do estado de prazer e dele não querem mais sair. No entanto, a cultura não pode, pela sua própria constituição repressora, tornar plenamente feliz esse homem que está destinado a ser permanentemente insatisfeito. Nesse sentido, Freud lança-nos de cara contra a nossa ilusão, ao escrever em O mal-estar na cultura:


“Aquilo que em sentido estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição. Muito menores são os obstáculos para experimentar a infelicidade”
(p. 63)
(grifo meu)



         Como se vê, Freud atribui à própria constituição humana (quer psíquica, quer fisiológica, quer social) a causa das limitações de satisfação de nossa felicidade. Mas devemos deixar esse aspecto - importante, decerto – de lado, para nos atermos ao que ele afirma sobre a experiência de infelicidade.
         A experiência é, sem dúvida, um terreno seguro para fertilizar quaisquer reflexões. É razoável que nos valhamos dela para buscar a confirmação da validade de nossas crenças, para sustentar alguma verdade em nosso trabalho argumentativo. Freud defende ser a felicidade um fenômeno episódico. E devo dizer que, antes de iniciar este texto, enquanto ainda formulava alguns pensamentos sobre o tema, ocorreu-me que experienciamos uma felicidade episódica. Muitos de nós parecemos concordar com a ideia de que são raros os momentos felizes na vida e que devemos aproveitá-los intensamente. Reunir toda a família no Natal está entre esses momentos de felicidade tão cara a nós.
     Custa-me aceitar pensamentos triviais como ‘a felicidade é já estar vivo’, ‘viver já é motivo de felicidade’, já que ignoramos completamente as condições socias de existência humana. Os homens, ao longo dos tempos, buscaram muitos caminhos para a felicidade, mas acredito que certas condições básicas são necessárias à felicidade, tais como alimentação, saúde, educação, moradia e lazer. Essas condições dependem também do alicerce familiar, do amparo e amor, primeiramente, de nossos pais, mas também de nossos avós, tios, etc.
     Sabemos que não basta estar vivo para sentirmo-nos felizes. O que dirá se você estiver preocupado com a possibilidade de perder o emprego? O que dirá se você tiver um ente querido hospitalizado, padecendo de uma doença incurável? O que dirá se você  tiver experienciado o legado da traição da pessoa que você amou e a quem dedicou grande parte de sua vida? O que dirá se você estiver com o coração dolorosamente afetado pelo desprezo da pessoa com quem você compartilha uma vida conjugal? O que dirá se você estiver enfrentando a triste e difícil situação de ver um filho sucumbir ao vício de entorpecentes? Em qualquer condição referida aqui, certamente, você não estaria feliz.
        Fico tentado a trazer à cena o valor incomensurável da experiência amorosa como uma fonte de felicidade abundante. Mas vou protelar essa intenção, por ora.
      Eu não disponho de tempo nem de espaço para avaliar, com a disciplina que nos exige uma reflexão séria, se há algum sentido de verdade na afirmação freudiana sobre a existência de menos obstáculos à infelicidade. Decerto, as relações sociais são uma das causas do sofrimento (e, portanto, da infelicidade) dos seres humanos apontadas pelo próprio autor . Não podemos escapar à infelicidade e ao sofrimento; mas podemos contar com pessoas que nos ajudem a enfrentá-los.
        No prólogo de A morte da Fé,  Sam Harris põe-nos diante de nossa condição humana, aos nos lembrar:


“Não sabemos o que nos espera depois da morte, mas sabemos que vamos morrer. Obviamente, deve ser possível viver eticamente – com uma preocupação genuína pela felicidade de outros seres sencientes – sem ter a pretensão de saber coisas sobre as quais somos absolutamente ignorantes. Considere o seguinte: todas as pessoas que você já conheceu, todas as pessoas que você viu passar na rua hoje, vão morrer. Todas as que vivem bastante sofrerão a perda de amigos e parentes. Todas perderão tudo que amam neste mundo. Até que isso aconteça, por que não desejaríamos ser generosos com todas as pessoas?
(p. 263)
(grifo meu)



              É possível supor que, para Freud, essa disposição para a generosidade não se daria sem alguma retribuição satisfatória, já que os homens, ao demonstrá-la, visariam a alguma forma de benefício recompensador exterior. No entanto, deixando de lado a concepção de Freud sobre a natureza humana, o que Harris nos ensina é pertinente à reflexão que até aqui vim desenvolvendo. O autor nos lembra que o sofrimento e a infelicidade estão à nossa espreita e que afetará a todos nós, homens destinados à morte. Resta-nos, entre o nascimento e a morte, a vida; e isso, certamente, é muito, se consideramos a possibilidade de que não poderíamos estar aqui para pensar sobre isso.
      Harris nos sugere que a felicidade é um sentimento que deve ser proporcionado, possibilitado aos que conosco compartilham suas vidas. Mas, decerto, ele vai mais além: defende que a felicidade deve ser extensiva a todos os seres humanos e devemos nos esforçar para fazer os outros (mesmo os que nos são estranhos) felizes.
       Não consigo deixar de pensar na distinção entre bem-estar e felicidade. Em nosso cotidiano, experienciamos, muito frequentemente, sensações de bem-estar. Desde que não sejamos acometidos de algum aborrecimento ou enfermidade, podemos gozar de períodos longos de bem-estar (físico ou mental, ou ambos). Mas a felicidade deve habitar as zonas mais profundas e íntimas do ser. Não tem ela nada de superficial, por isso não penso a felicidade como sentimento resultante da aquisição de riqueza material. Não está no acúmulo de dinheiro e de capital (imóveis, carros, etc.).
        Não creio que possamos ser felizes em longos estados de solidão. A consciência da morte, legado de nossa condição de seres de inteligência superior, de seres racionais, leva-nos a rejeitar longos períodos de solidão. Nosso próprio nascimento inaugura as possibilidades de uma vida destinada a relacionamentos. Se encontramos um bebê abandonado por sua mãe em algum canto por onde passamos, nosso instinto para a sobrevivência e para evitar a morte de um ser inocente e indefeso nos orientará a ação. Podemos levá-lo ao primeiro hospital que encontrarmos para que lhes sejam dispensados os cuidados devidos. Ora, a solidão desse bebê o levaria à morte. Sabemos que, para ele sobreviver, deverá contar com pessoas de bom coração que o alimentem, o vistam e o acolham. Ele deverá ser destinado à adoção e, sendo adotado (caso a mãe não possa ser localizada) por uma família que lhe possibilite as condições indispensáveis ao seu desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, ele terá grandes chances de ter experiências de felicidade.
        Se, com Freud, no que estou de acordo, a felicidade é uma experiência episódica, se só nos resta experienciar momentos de felicidade e nunca a felicidade permanente, podemos viver momentos de felicidade plena. A experiência amorosa parece prová-lo. Quando amamos, sentimo-nos plenamente felizes. E o terreno de abundante felicidade está no desejo do outro e no desejo compartilhado com o outro. É que a felicidade do amor se ancora no interior. A comunhão favorecida pelo amor é, certamente, um sentimento fértil de felicidade. Diante dela, nenhuma riqueza outra tem valor suficiente para nos contentar.
      O amor permite-nos que sejamos felizes com a felicidade do outro; ao sentir o outro feliz, também nos sentimos felizes. As outras formas de felicidade tendem a ser egoístas, porque centradas no ‘eu’ que a experiencia. Mas, no amor, a felicidade que proporciono à pessoa amada é também a minha felicidade. Quem ama, afinal, sente felicidade ao dar-se conta de que o outro é feliz.
     É claro que o amor impõe-nos, por assim dizer, um desafio à experiência de felicidade, sempre fugaz e episódica. Esse desafio consiste em reconhecer que a felicidade é um bem que deve ser partilhado e comum, ou seja, extensivo a ambos os envolvidos; uma felicidade recíproca, em suma.
    No amor, esforçamo-nos para a realização da felicidade mútua, e não individual. Certamente, podemos amar e desamar e amar quantas vezes forem necessárias para sentimo-nos felizes na felicidade do outro. Se o amor não fosse uma fonte abundante de experiências de felicidade – e de uma felicidade essencial – ele não valeria sequer uma gota de tinta da pena de nossos corações desejosos de vida.
       A felicidade está para o amor assim como a vida está para a morte: há um vínculo necessário. Uma vez vivos, morreremos; enquanto vivos, desejaremos amar para sermos plenamente felizes.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

"Se a alma humana é imortal, um crente do século XXI é tão imortal quanto o homem de neandertal" (BAR)


            
             Das gerações – enquanto existimos


A morte de um parente – como sucedera recentemente com minha avó materna – leva-nos a nos confrontar com o fato de que nossa existência é finita. Minha mãe hoje declarou-me: não importa quão dolorosa seja a morte de uma pessoa que amamos, temos de continuar a vida. Uma dolorosa verdade, sem dúvida: depois da morte, a vida deve continuar.
Assumir o ateísmo, afirmar a inexistência de qualquer divindade, de qualquer providência divina implica negar a existência da alma, como uma espécie de holograma, como uma entidade imaterial que, não obstante, é representada com contornos corpóreos (pense nos espectros representados no cinema). Assumir o ateísmo implica negar a possibilidade de uma existência a-corpórea ou espiritual depois da morte. Para os ateus, a morte é o fim da vida consciente; não há vida pós-morte; não há alma que transcenda à matéria.
É claro que a negação da vida pós-morte é baseada em evidências. Quando vemos um corpo num caixão, vemos um corpo imóvel, destituído de suas funções vitais (não há atividade cerebral, batimento cardíaco, respiração, etc.). Ninguém que morreu se manifestou a algum de nós, vivos, para nos dizer se há ou não uma vida após a morte. Mas, principalmente, há o fato de que algo como espírito (no sentido metafísico) não existe no universo materialmente organizado.
Muitos pensadores ateus insistem no fato da pluralidade de religiões ou cultos, cada qual deles com suas divindades. As três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) professam a crença em um único Deus, supostamente o verdadeiro. Os demais povos que não professam a crença no deus de Abraão, de Jesus Cristo ou de Maomé estariam errados. A pluralidade de religiões é, assim, mais uma evidência de que elas são criações culturais, humanas. Afinal, é razoável supor que, se o Deus de uma das três religiões monoteístas aqui referidas fosse o Deus verdadeiro, ele poderia revelar-se a todos os povos, de modo a contribuir para que todos, ao cabo, abraçassem a mesma crença (quem sabe assim pondo-se um fim às guerras ideológicas da fé?!).
Quem tiver a oportunidade de ler Uma breve história do mundo, de Geoffrey Blainey, conhecerá muito sobre a trajetória humana neste planeta, desde o aparecimento dos primeiros hominídeos nos territórios do Quênia, Tanzânia e Etiópia (na África) até o século XX. A relação humana com o sobrenatural é, como sabemos, antiquíssima. Naquela obra, podemos ler a respeito da civilização que floresceu na Mesopotâmia, em 3.700 a.C.:

“Os sacerdotes, com seus rituais, sacrifícios e orações, pediam que os ventos soprassem na direção certa trazendo e molhando o chão ressecado. Imploravam também, quando suas preces eram atendidas além da medida, que a água das enchentes baixasse. E mais: proclamavam as maravilhas do universo”.
(p. 53)

Sabe-se que muitos povos primitivos atribuíam à natureza um simbolismo mágico. A ignorância desses povos tornava-os suscetíveis à atribuição de divindade a corpos celestes. Vejamos as passagens abaixo:

“Nas tribos nômades e nos vilarejos rurais, os fenômenos meteorológicos causavam muito medo. Na Tasmânia, os aborígenes ficavam apavorados com as grandes tempestades. “A chuva forte da noite”, escreveu um observador branco em 1831, “seguida do lampejo vívido de raios e de trovoadas ensurdecedoras fez os nativos demonstrarem enorme temor”. Na noite seguinte, a visão de uma “faísca elétrica” no céu escuro provocou gritos de pavor. Talvez a simples ideia de ser atingido aumentasse o medo (...)”
(p. 41)

“Os povos nômades, que viviam sob as estrelas, e os povos já estabelecidos em lugares fixos, que viviam sob os céus sem nuvens das primeiras civilizações do Oriente Médio, tinham toda a razão em observar o céu noturno – em noites sem Lua, era um tapete maravilhoso estendido sobre eles. Seu aspecto mudava constantemente, e os padrões das alterações eram observados e comentados. No clima seco da Austrália Central, onde não existiam rios permanentes, alguns grupos aborígenes consideravam a Via Láctea um grande rio celeste. Aos olhos de muitos povos, criaturas poderosas viviam no firmamento. Para outros, um buraco escuro na Via Láctea era a casa do demônio”.
(pp. 42-43)

Também na Idade Média, muitas pessoas, inclusive sacerdotes, acreditavam poder determinar o local exato onde morava o demônio.
A crença em que forças sobrenaturais (divinas ou demoníacas) estariam atuando por detrás dos fenômenos naturais, ou melhpor, seriam responsáveis por eles, remonta aos nossos antepassados. Naqueles tempos muito remotos, os seres humanos mantinham uma relação mítica com o universo natural; foram necessários milhares de anos para que o pensamento mítico fosse abalado pelo advento do pensamento racional.
Outro interessante testemunho de nosso gênio criativo para o misticismo religioso é dado por Daniel Dennett em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural. À página 109, no capítulo As raízes da religião, escreve:

“Os jivaro, do Equador, acreditam que você tem três almas, a alma verdadeira, que você tem desde o nascimento (esta volta ao seu lugar de nascimento depois da morte, e aí se transforma num demônio, que morre, por sua vez, virando uma mariposa gigante, que quando morre vira nevoeiro); a arutam, uma alma que você obtém por meio do jejum, banho em uma cachoeira e tomando um sumo alucinógeno (torna você invencível, mas tem o hábito infeliz de ir embora quando você está em dificuldade); e a musiak, a alma vingadora que foge da cabeça de uma vítima e mata seu assassino. É por isso que você tem que ficar fora do alcance da cabeça de sua vítima”.

Talvez, você se ria de uma crença tão fantástica, mas me pergunto sobre se há uma diferença fundamental entre crer numa alma que vira uma mariposa gigante e crer no Espírito Santo ou na ascensão de Cristo corporificado ao céu, ou ainda crer em que uma pequena rodela de pão ázimo e um pouco de vinho num cálice são realmente o corpo e o sangue de Cristo transformados.
O caso dos habitantes da ilha de Tana, no Pacífico, quando da chegada das forças norte-americanas, durante a Segunda Guerra Mundial, patenteia-nos quão ingênua é a crença num Messias. Os soldados americanos foram à ilha para recrutar trabalhadores que ajudassem na construção de uma pista de pouso e de uma base na ilha Efate, que era uma ilha vizinha de Tana. O retorno dos trabalhadores foi repleto de histórias sobre homens brancos e negros que possuíam riquezas inimagináveis ao povo de Tana. Os ilhéus ficaram confusos. Os que foram convertidos ao cristianismo deixaram de ir à igreja e iniciaram a construção de pistas de pouso, armazéns, capacetes, modelos de aviões esculpidos. Não tardaram a marchar com as letras USA pintadas, esculpidas ou tatuadas no peito e nas costas, professando a crença em John Frum como seu Messias (não há nenhum registro de que John Frum foi o nome de algum soldado americano).
Acompanhemos, nas palavras de Daniel Dennett, citando MotDoc (2004), o restante desse fato:

“(..) Quando o último GI norte-americano foi embora, no fim da guerra, os ilhéus previram o retorno de John Frum. O movimento continuou a florescer e, em 15 de fevereiro de 1957, uma bandeira norte-americana foi erguida na baía Enxofre para declarar a religião de John Frum. Nesse dia, todos os anos, é comemorado o Dia de John Frum. Eles acreditam que John Frum está esperando escondido no vulcão Yasur com seus guerreiros para entregar seus presentes ao povo de Tana. Durante as festividades, os anciãos marcham em uma imitação de exército, um tipo de treinamento militar misturado com danças tradicionais. Alguns levam imitações de rifles feitas de bambu e usam memorabilia do exército norte-americano, como bonés, camisetas e casacos. Eles acreditam que seus rituais anuais atrairão o deus John Frum do vulcão e entregarão sua carga de prosperidade a todos os ilhéus [MotDoc, 2004]”
(p. 111)

A visão de mundo apocalíptica, na bíblia, apontava uma destruição absoluta e iminente do mundo. No Evangelho de Marcos, disse Jesus que alguns de seus discípulos não provariam a morte antes da chegada ao poder do Reino de Deus. Aconteceu, contudo, que a geração passou e o Reino de Deus, cuja vinda era iminente, não veio (v. Ehrman, 2008).
No tocante à possibilidade de sermos nós, seres humanos, dotados de uma alma transcendente imortal, uma visão ateísta, para ser coerente, deve ater-se às evidências, todas apontam para a impossibilidade disso.
Eu aceito, sem inquietude e desespero, felizmente, o peso das evidências: nossa vida consciente sucumbirá à morte. Estou ciente de que os homens conferem à sua existência significações que lhes são caras. Acreditamos que gozamos de privilégios existenciais em comparação com as demais formas vivas, quer tenham alguma forma de inteligência desenvolvida ou não: somos amados por um deus todo-poderoso e somos dotados de uma alma que gozará da vida eterna após a morte. Mas, e se estivermos errados?
Nossos antepassados estavam errados ao endeusar estrelas? Povos primitivos atribuíam divindade ao sol. Estariam eles errados?
Recentemente, um furacão, chamado Irene, atingiu o Canadá e os Estados Unidos, matando, nesse último país, mais de dezoito pessoas.
(http://www.sidneyrezende.com/noticia/143211+furacao+irene+deixa+canada+sem+energia+eletrica).

   Assistindo a mais um dos sem-número de eventos naturais catastróficos, no Fantástico, ontem, concluí: ‘estamos diante de mais uma dentre as milhares evidências de que a natureza mostra sua força cega, indomável e soberana’. O que eu via era uma força extraordinária de uma natureza onipresente, que não dá espaço para nenhuma forma de deus todo-poderoso.
Fico pensando onde estão nossos antepassados? Seus espíritos ainda sobrevivem em algum lugar transcendente? Ou seremos só nós, homens civilizados da era moderna, os beneficiados pela imortalidade da alma? Serão os nossos deuses os vitoriosos, ao fim de nossa breve passagem pela vida?
O que sei (e sabemos todos) é que muitas gerações já passaram e as que estão vivendo também passarão. Outras mais, muito provavelmente, surgirão. É possível que as novas gerações venham a superar muitas de nossas ilusões, fantasias e crendices. É possível que essas gerações superem as formas de religiões existentes e estabeleçam outras, ou as eliminem a todas. Quem sabe essas gerações superem o a irracionalidade religiosa e alcancem um grau mais elevado de aperfeiçoamento moral e racional?
Penso ser assim a nossa existência: atravessada por gerações que se esforçam por trabalhar a relação dialética entre tradição e inovação, entre o velho e o novo, entre a conservação e a ruptura. Não podemos nos esquecer de que nós, hoje, pertencemos a uma geração de seres humanos que vivem num mundo secularizado (embora ainda marcado pela tensão entre racionalidade e fé) e, enquanto existimos, existem também as nossas visões de mundo, crenças, verdades, mas outras gerações também existirão e também produzirão e conservarão suas visões de mundo, crenças e verdades.
Se a crença na imortalidade da alma revelar-se verdadeira (um dia?), então um cristão do século XXI é tão imortal quanto o homem-de-neandertal.



quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Há alguns anos atrás...



                                                  Reaprendendo a amar


 Há alguns anos atrás, eu a surpreenderia com um buquê de rosas ou com uma bela caixa ornada de rosas e poesias. Sem, ao menos, ter conversado com você, eu já revelaria as delícias de minha alma.
Há alguns anos atrás, eu suporia estar lhe agradando com essas gentilezas, sem sequer conhecê-la verdadeiramente. Há alguns anos atrás, bastar-me-iam as sugestões de minha idealização, de minha imaginação, de meus suspiros cordiais. E, sem que você imaginasse, eu elucubraria alguns sonetos, nos silêncios de minhas noites, inspirados na sua imagem.
Há alguns anos atrás, eu estaria atacado de minha febre lírica irremediável. E o gênio ultra-romântico estaria apossado de mim e conduziria minha pena imaginária a compor meus versos de amor endoidecidos.
Mas tudo isso teria de mim há alguns anos atrás. Algumas sessões de terapia foram necessárias para exorcizar esse espírito liricamente impetuoso e  incomum. Meu lirismo se antecipava a mim, há alguns anos atrás.
Há alguns anos atrás, eu sofria mais, eu chorava mais, eu morria mais por tudo isso. Mas há alguns anos atrás eu não era a mesma pessoa que eu sou hoje.
Há alguns anos atrás, eu não acreditava que sempre podemos mudar e reaprender a amar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O prazer da leitura



                              Leitura e resistência
                       Por que resistimos à leitura?


Em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural (2006), o filósofo Daniel Dennett, escreve sobre a atividade de todo filósofo:

“Sou um filósofo, não um biólogo, um antropólogo, um sociólogo ou um teólogo. Nós, filósofos, somos melhores em fazer perguntas do que em respondê-las, e isso pode parecer, para algumas pessoas, uma cômica admissão de futilidade (...) Mas qualquer pessoa que tenha abordado um problema realmente difícil sabe que uma das tarefas mais árduas é encontrar as perguntas certas e a ordem de fazer essas perguntas”
(pp. 29-30)

Tendo em conta esse ensinamento, quero dizer algumas coisas sobre o título deste texto. Encerrará ele uma pergunta adequada? Pensei em estampar a pergunta: por que lemos pouco? Mas isso implica a pressuposição de que nós, brasileiros, lemos pouco. Há pesquisas que confirmam isso, é verdade; mas essa pressuposição encaminharia minhas reflexões em um sentido que não é o pretendido. Não estou interessado em avaliar as influências sócio-culturais, ideológicas e econômicas que dificultam o acesso à leitura ou a inibem. Muitos culpam a televisão; outros estendem a culpa à internet, ao vídeo-game, à sobrecarga de tarefas, à escassez de tempo, minguado em longas e exaustivas jornadas de trabalho, etc.
Quando se coloca como matéria de debate a influência negativa da televisão na formação de leitores, questiona-se, principalmente, o poder sedutor das imagens, ou melhor, a capacidade que elas têm de simplesmente não exigir a atividade de pensamento. Expressões como anestesiamento da consciência, regressão da consciência, semiformação, entre outras, perpassam os discursos críticos sobre a relação intricada entre televisão e livro, ou, em outras palavras, entre ver televisão e ler livro. Mas, devo esclarecer, refiro-me ao hábito de ver televisão e ao hábito de ler livros. O hábito, por definição, implica repetição, automatismo. É toda forma de comportamento que adotamos cotidianamente, de modo quase sempre irrefletido.
Tenho, contudo, de interromper o curso de minhas palavras aqui, porque não pretendo refletir sobre essa relação. Na verdade, quero pensar a leitura como uma experiência. Desse modo, pensarei a leitura relacionada à vida comum, individual; e a partir do individual, tentarei pensar sua influência sobre o coletivo.
Já deve ter ficado claro que por leitura entendo a atividade de interpretar e compreender textos. Leitura é interpretar, produzir sentido. É claro que podemos ler outros objetos passíveis de interpretação, tais como uma obra de arte (pintura, escultura), filmes, expressões corporais, o mapa astral, a mão de uma pessoa, etc. Queiramos ou não, em todo momento, estamos lendo o mundo.
É oportuno o ensinamento de Paulo Freire, quando nos ensina, em A importância do ato de ler, que a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra e esta leitura deve ser a continuidade daquela. Palavra e mundo se interpenetram; são indissociáveis. Não é óbvio para todos que o mundo é interiorizado em nossa consciência pelas palavras; mas é.
É na relação palavra-mundo (tão bem lembrada pelo educador brasileiro) que situo minha reflexão sobre a resistência à leitura. Como eu esteja preocupado com o individual nesse tocante, começo por contar um pouco sobre minha relação com a leitura.
Os livros, ou melhor, a leitura de livros, para mim, tornou-se extremamente importante com a maturidade de minha vida universitária. Ao final do curso, ler se transformou numa atividade indispensável à minha vida. Deixou de ser resultado de uma exigência acadêmica para uma necessidade intelectual. Creio ser essa transição uma etapa fundamental para que gostemos de ler e ler mais, e mais.
Gosto é coisa que se molda culturalmente e depende da experiência. Não podemos dizer que não gostamos de maçã, se nunca experimentamos, comemos uma maçã. E se me perguntam se eu gosto de caviar, tenho, para não incorrer em equívoco, limitar-me a dizer “não sei”. E não sei, porque nunca experimentei. Posso até não ter vontade de experimentar, certamente por força dos hábitos alimentares determinados em minha cultura. Gosto mais de feijão com arroz e não sinto necessidade de comer ovas de peixes. Não podemos negar aqui a influência da cultura: ela educa-nos também do ponto de vista alimentar, ela impõe-nos padrões alimentares aos quais nos habituamos, molda nossos gostos e preferências alimentares.
É claro que a transição a que me referi só é possível em condições sócio-culturais e educacionais que as favoreçam. Não podemos negar que a leitura, tradicionalmente, no âmbito escolar, sempre esteve relacionada à obrigação (ler para fazer testes, provas, resolver exercícios de interpretação, etc.), mas quase nunca trabalhada como uma atividade interacional, dialógica, de construção de subjetividades, de formação da consciência crítica-emancipatória, de autonomia intelectual, etc. Em geral, o leitor-aluno era um leitor passivo que se submete ao texto, que tomava o autor como senhor do que diz/escreve. E nós somos herdeiros dessa tradição. Isso, certamente, é um obstáculo àquela transição.
O tema é demasiado complexo, como se vê. Há muitas conjunturas a considerar: classes socioeconômicas, políticas educacionais que incentivem a produção cultural (como a leitura), incentivo familiar, etc. De minha parte, minha mãe deu uma grande contribuição para que eu me tornasse, hoje, um leitor inveterado de livros. Ela lia histórias infantis para mim antes de dormir, quando eu era criança. Eu apreciava ouvir aquelas histórias, que se repetiam muitas noites. Eram vários livros, mas eu gostava de um em especial: A bonequinha preta. Era a história de uma bonequinha que queria ver a rua e desobedeceu a sua mãe aproximando-se demais da janela. Ela caiu, mas foi, porsteriormente, encontrada por um feirante... A moral da história é: sempre obedeça aos seus pais.
A leitura ganhou espessura em minha vida quando reconheci que somente através dela conseguiria alcançar meus objetivos profissionais. Como minha profissão é alicerçada na leitura (professor de português tem de ser, antes de tudo, um leitor; afinal, como podemos formar leitores, se não somos leitores?), para mim não foi custoso passar por aquela transição. Fico, sinceramente, intrigado (para dizer o mínimo) quando percebo que muitos alunos fazem Letras e admitem não ter o hábito de ler. Isso é contraproducente. A condição mínima para cursar Letras é apreciar a leitura. Isso vale também para todos os cursos universitários, mas, nessa área, especificamente, é condição imprescindível, porque é nela apenas que a linguagem, mormente em sua forma escrita, é objeto de estudo, de reflexão. Não só se lê muito, mas aprende-se muito sobre como se lê, sobre como se constroem os objetos simbólicos (textos), sobre os mecanismos da linguagem, sobre as possibilidades de leitura, etc.
O fato de eu ter-me formado em Letras não é suficiente para justificar meu interesse pela leitura; apenas explica-o em parte. Evidentemente, não precisamos fazer Letras para sermos leitores experientes e gostarmos de ler. Por isso, considero que aquela transição decorreu de outras experiências que vivi.
Houve um grande período em minha vida em que os livros foram meus melhores amigos, ou substituíram-nos. Eles preenchiam um vazio, decorrente de um sentimento profundo de deslocamento em relação ao mundo. De certo modo, buscava nas páginas de livros um refúgio; elas me serviam para uma fuga. A realidade era dura demais, fria demais, indiferente demais. Nos livros, sobre os quais me debruçava, num silêncio quase sagrado (porque imperturbável), eu buscava conforto e contentamento. Mas eu não me alienava, não me alheava do mundo. Porque o mundo me chegava através dos livros.
Quando lemos, complexificamos nossas percepções de mundo, as aprofundamos, as modificamos. Lemos para compreender melhor o mundo. Lemos também para aprender a viver nele, sem nos conformamos totalmente a ele. Lemos para incomodá-lo e não para vivermos comodamente nele.
Nos momentos mais graves de meus estados depressivos, os livros me eram um amparo. Eles amparavam meus sentimentos, meus pensamentos. Evidentemente, só a leitura não bastava. Era preciso estabelecer uma ponte entre leitura e realidade. A construção dessa ponte não foi fácil, visto que quanto mais letrados ficamos tanto mais seletivos socialmente nos tornamos. Quando lemos mais, restringimos mais nossos círculos de amizade.
Por muito tempo conservei a crença em que eu só conseguiria ser feliz amorosamente se eu encontrasse reciprocidade intelectual no outro. De certo modo, quanto mais letrados ficamos mais desejamos nos relacionar com pessoas com quem possamos ter afinidade intelectual, pessoas que contribuam para o nosso aperfeiçoamento intelectual também.
Felizmente, não conservo mais essa crença não só porque não há razão para supor que haja relação necessária entre reciprocidade intelectual e prosperidade amorosa, como também porque essa forma de pensar me legava uma imagem que julgava não me ser adequada. Ao contrário do que poderiam pensar, eu sou uma pessoa bastante sociável, só me faltava a consciência do lugar da intelectualidade, do legado das leituras na convivência com as pessoas.
Devemos sempre ter em conta  que, se, por um lado, ler expande nosso espírito, alarga nossa consciência social, de mundo, torna mais complexas nossas formações de pensamentos, nossas ideias, lega-nos a necessidade do questionamento, da não-aceitação a dogmas, a crenças para as quais não é possível uma justificativa racional, nos torna mais sensíveis aos engodos das ideologias; por outro lado,  acaba por nos reorientar os modos de conviver nesse mundo,  modifica as esferas de nossa sociabilidade, fazendo com que abandonemos certos círculos de amizades, ou, ao menos, limitemos nossa atuação neles.
Creio em que, para se começar qualquer discussão sobre o valor da leitura na vida social, valeria a pena começar com a pergunta: que lugar tem a leitura em minha vida?

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"A alma equilibrada conjuga amor com conhecimento" (BAR)


Quando falamos coisas inteligentes


A certa altura de minhas leituras matinais habituais, se me deparou um trecho que me repercutiu vivamente no espírito, em No que acredito (2011), do filósofo Bertrand Russel. Topa-se, no capítulo segundo (A vida virtuosa), um pensamento simples, mas cuja verdade deixa-nos atônitos (pasmo foi o que senti ao lê-lo):

“A vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento”
(p. 44)

Decerto, minha perplexidade tem mais a ver com o fato de que quem o enuncia é um filósofo do que, propriamente, com o conteúdo do enunciado, dado que conjugar numa mesma frase amor e conhecimento é uma prática linguística que me é muito peculiar. Não me resta senão concordar, nesse tocante, com Russel. E tenho, forçosamente, de concordar também com o que ele nos ensina na página seguinte a respeito do valor do amor relativamente ao conhecimento:

“Ainda que o amor e o conhecimento sejam ambos necessários, em certo sentido o amor é mais fundamental, na medida em que levará indivíduos inteligentes a buscar o conhecimento a fim de descobrir de que modo beneficiar aqueles que amam”.
(p. 45)
(grifo meu)

Não intento aqui esmiuçar os pensamentos de Russel sobre a questão da vida virtuosa. Trouxe-os à baila apenas porque eles me animaram o espírito a expor algumas reflexões sobre ideias que lhe ficaram a pulular. Deter-me-ei nelas doravante.
Para algumas pessoas, atualmente, não há, a rigor, filósofos, já que filósofos precisam do ócio. Certamente, essa imagem do filósofo é apropriada para definir os gregos antigos, os quais dispunham, como Sócrates, de tempo livre para pensar e questionar. Sócrates, aliás, ficou famoso também por seu hábito de indagar as pessoas comuns que circulavam nas ruas de Atenas sobre a validade de suas opiniões e de suas crenças. Platão nos dá testemunho das ocasiões em que aconteciam os diálogos durante os quais os participantes expunham seus pensamentos sobre diversos temas. Essas ocasiões envolviam, muitas vezes, reunião de amigos ao redor de uma mesa farta de alimentos. Comia-se, bebia-se e filosofava-se...
Em virtude de transformações históricas (que não poderiam ser aqui levantadas), entretanto, os filósofos que se formam nas universidades do mundo são chamados de “filósofos profissionais”. Eles cumulam a função de pesquisadores e de professores de filosofia; isso, contudo, não os impede de produzir a sua filosofia, especialmente quando as universidades a que estão vinculados lhes possibilitam (com financiamento e incentivo à pesquisa) condições necessárias à sua constante atividade de pensamento. O filósofo Daniel Dennett, ainda em pleno exercício de suas atividades filosóficas, é um exemplo (e para ficar só neste dentre os milhares existentes) de filósofo que produz conhecimento ao mesmo tempo que o ensina a seus alunos na Tufts University.
É claro que a observação de que hoje pode-se falar de "filósofos profissionais" sugere as condições típicas de uma sociedade capitalista, nas quais a quantidade de tempo empregado à produção é proporcionalmente inversa à quantidade destinada ao lazer ou, se quisermos, ao ócio. Em outras palavras, time is Money – é necessário empregar mais tempo ao trabalho (e aqui entra a ideologia que faz a cisão entre ‘trabalho manual’ e ‘trabalho intelectual’, fazendo do primeiro, aliás, a única forma “verdadeira” de trabalho) e reduzir o tempo livre, que poderia ser destinado, entre outras coisas, ao exercício do pensamento reflexivo. Aos que são privados de uma formação continuada e qualificada, a dependência ao imperativo de produção se agrava. Como seja mais difícil o sucesso na reivindicação de melhores salários e da diminuição da carga horário de trabalho, nessa circunstância, não vêem alternativas senão empregar sua mão-de-obra e submetê-la às condições determinadas pelo empregador (capitalista). Quanto menor a qualificação maior a submissão. E escusa dizer que vivemos na era do conhecimento e da necessidade crescente de especialização, o que torna ambos fatores determinantes de inserção e maior participação sociocultural, política e econômica dos sujeitos sociais.
A vinculação entre saber (conhecimento) e poder fica patente no ensinamento de Jean-François Lytoard, em A Condição Pós-Moderna (2009). Gostaria de citar o trecho em que o autor nos ensina sobre a importância do saber na pós-modernidade:

“O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde seu “valor de uso”. Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países mais desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em via de desenvolvimento (...)”
(p. 5)

Pode-se, sem muito custo, depreender daí as condições que tornam possível aos nossos estudantes, especialmente do nível escolar, pensar que certos conhecimentos não servem para nada. Esse é o caso, tradicionalmente, da filosofia, enquanto disciplina escolar. O conhecimento ou saber é algo que deve ser consumido e deve servir para alguma finalidade prática. Seu valor é medido pelo quanto ele é útil para angariar algum benefício imediato. Não devemos, entretanto, culpar nossos alunos de pensar assim; na verdade, muitas pessoas pensam da mesma maneira e continuam a reiterar a crença em que filosofia não serve para nada, que ela está apartada do mundo, que ela é privilégio de poucos iluminados, ou de pessoas que vivem com a cabeça na lua. Como ensinou-nos Marx, a forma como pensamos explica-se pelas condições socio-econômicas em que vivemos: o real justifica as ideias, e não o contrário (o contrário é ideologia). 
Trata-se, portanto, de ideologia ou crenças infundadas aquelas formas de pensar, frutos de uma ignorância muito comum, mesmo entre os mais escolarizados. Aliás, devo ser honesto: no tempo em que ainda era universitário, nos primeiros períodos do curso de Letras, eu também acreditava que filosofia era um discurso quase exotérico, que nada me dizia a respeito de coisas importantes. Com o passar do tempo, dei-me conta de que os filósofos se interessaram pelo estudo da linguagem (aliás, muita coisa que sabemos hoje de gramática (no sentido vulgar do termo) e que aprendemos na escola remonta às reflexões de Platão (séc. III a.C.), seguido por Aristóteles) e, desde então, aprofundando meus estudos em filosofia da linguagem, dei o “salto intelectual” que muito me beneficiou: comecei a conhecer o pensamento de grandes filósofos. Hoje, estudar filosofia é, então, um prazer.
Para o filósofo Antônio Gramsci, a faculdade de filosofar é extensiva a todos os homens. Evidentemente, é preciso que se lhes sejam dadas as condições (sociais, culturais, educacionais) necessárias para que venham a desenvolvê-la. Decerto, filosofar não é conhecer profundamente o pensamento de um ou outro filósofo. Conhecê-lo é importante num sentido dialógico: claro, nenhum de nós é um sujeito adâmico que diz a primeira palavra, que pensa o primeiro pensamento, que é a fonte de tudo que diz e pensa; pensamos e dizemos com os outros; nossas reflexões se formam na esteira de uma longa tradição de mentes que pensaram antes de nós.
Se, por um lado, é com Sócrates que aprendemos que o filósofo não se confunde com o erudito, que o filósofo é um indivíduo que, reconhecendo ser ignorante, deseja saber, deseja a verdade e, para alcançá-la, se vale da razão; por outro lado, é com Deleuze que podemos aprender sobre a matéria-prima da filosofia, a saber, o conceito.
Vou-me deter um pouco num tema importante: a criação de conceitos. Para o filósofo Deleuze, em O que é filosofia? (2009),  a filosofia é o trabalho de criação contínua de conceitos. Como veremos, essa concepção lançará algumas luzes sobre o próprio fazer filosófico, ou seja, sobre o próprio exercício de filosofia.
Deleuze ensinará que todo conceito é complexo, porque constituído de vários componentes. Não há, portanto, conceito simples. Mas disso não se pode concluir que o conceito é um todo acabado que encerra todos os componentes. Para ele, o conceito tem irregularidades. O conceito também se entende pela sua relação com os problemas. Ademais, todo conceito se relaciona a outros conceitos. Assim, todo conceito é relativo, dada a sua relação com os seus componentes e com outros conceitos, mas também absoluto, pela sua consistência e posição que ocupa num terreno conceitual, mas também pelas condições que impõe aos problemas.
Para que fique clara a complexidade de todo conceito, pensemos no conceito de ave. O conceito de ave compreende as noções de ‘animal’, ‘vertebrado’, ‘voar’, ‘penas’, ‘asas’, ‘bico’, ‘ovos’, etc. Duas noções são importantes aqui: a de extensão e a de intensão. Entende-se por extensão de um conceito o conjunto ou a classe de entidades ou objetos recoberto pelo conceito. Por exemplo, ‘ave’ é extensivo a galinha, canário, papagaio, etc. Por outro lado, intensão designa as propriedades de um conceito na base das quais ele é definido. Assim, o conceito de ‘ave’ tem uma definição intensional que inclui as noções de ‘animal’, ‘vertebrado’, ‘voar’, ‘asas’, etc.
Todo conceito só se torna operacional pela sua definição. Na verdade, sua validade depende da definição. Mas do que são feitos os conceitos? Reformulando a questão: o que é necessário para podermos construir pensamentos baseados em conceitos? Precisamos de palavras. As palavras, longe de serem etiquetas de que nos valemos para identificar ou nomear as coisas do mundo, são formas de criação de conceitos. As palavras, repito, permite-nos criar conceitos mediante os quais organizamos nossas experiências de mundo numa estrutura dotada de sentido. Não há possibilidade de existir pensamento conceitual fora dos domínios da  linguagem verbal.
Não existe uma separação entre o mundo, de um lado; e as palavras, de outro. Na verdade, o mundo, ou melhor, as nossas experiências de mundo são interiorizadas (pela consciência) e tornadas ‘dados’ de nossa consciência mediante os conceitos criados pelas palavras.
Convém aqui lembrar a função simbólica da linguagem, mediante a qual a linguagem fornece as categorias na base das quais organizamos nossas experiências de mundo e tornamo-las dados de nossa consciência, ou seja, formas de conhecimento.
Vejamos um pouco como se dá isso. Pensemos no conceito de ‘galinha’. Se assumirmos que ‘águia’ seja um protótipo (o modelo) para a categoria ‘ave’, devemos reconhecer que ‘canário’, ‘andorinha’, ‘gaivota’, ‘papagaio’ estejam mais próximos desse protótipo, ou seja, do conceito de ‘ave’, de que 'águia' é o um modelo, do que  ‘galinha’ (embora seja considerado uma ave). Mas devemos lembrar que a galinha não voa, ao contrário das espécies de aves aqui referidas. E devemos reconhecer que a categorização científica sobrepõe-se à categorização feita pelo senso-comum. Assim é que, para muitas pessoas, o morcego é uma ave, visto que voa. Mas o mínimo de instrução científica nos permitirá dizer que ele é um mamífero e, portanto, não pode ser incluído na categoria das aves (já que nenhuma ave se alimenta como os mamíferos).
O léxico é um campo muito fértil para explorarmos a função simbólica da linguagem, já que ele nos fornece as categorias que, organizadas em campos semânticos, permitem-nos construir campos cognitivos que expressam nossa compreensão da realidade. Por exemplo, ao pensar no conceito de ‘galinha’, posso desencadear um frame ou modelo cognitivo que inclui outros conceitos como ‘pinto’, ‘ovo’, ‘galinheiro’, ‘chocar’, ‘fazenda’, etc. A experiência nos dá o conhecimento de que a galinha não voa, mas caminha, anda. Logo, um enunciado como (a), embora gramaticalmente bem-formado, é, semanticamente, inaceitável, porque não descreve um estado-de-coisas do mundo tal como o conhecemos:

(a) A galinha voava para o sul.

Mas uma frase como (b) é perfeitamente aceitável, porque representa ou descreve um dado estado-de-coisas do mundo:

(b) A galinha vive no galinheiro.

Pensemos ainda nos conceitos de ‘andar’, ‘voar’ e ‘saltar’. Podemos associar o primeiro conceito a outros como ‘homem’, ‘mulher’, ‘cachorro’ e ‘carro’ (muito embora, quando associado a este último, a noção se modifica). Podemos associar ‘voar’ tanto a ‘avião’ quanto a ‘ave’, mas não a ‘carro’ ou ‘casa’. Sabemos que o sapo ‘salta’, homens e mulheres também podem saltar, mas o ‘carro’ não salta, nem a ‘pedra’  ‘chora’.  Isso é óbvio demais, mas por justamente ser óbvio demais não é pensado. A semântica estrutural nos permitirá compreender bem essas relações com a noção de semas (componentes de significado). Ora,  a forma 'chorar' só pode relacionar-se com 'seres' [+ animado], em geral [+ humano]. Portanto, chorar é um conceito que envolve o conceito de animação/humanidade. Uma pedra, como seja desprovida de animação, não pode "chorar".
Pensemos também na relação hipônimo-hiperônimo, ou seja, entre um termo mais específico e um termo mais geral. Dizemos que ‘transporte’ é hiperônimo de ‘carro’, ‘ônibus’, ‘avião’, e cada um destes é hipônimo daquele. Se pensarmos no conceito de ‘mobília’ como hiperônimo para ‘mesa’, ‘cama’ e ‘sofá’, tendemos a negar a relação dele com ‘liquidificador’ ou ‘geladeira’, que seriam mais propriamente integrantes da classe ‘eletrodoméstico’.
A filosofia, desde a antiguidade, nasce como um estudo alicerçado no logos (palavra, discurso). Tem razão os filósofos que entendem a filosofia como um discurso, mas de um tipo específico. Trata-se de uma forma de discurso que se baseia na razão (no sentido de que se submete aos seus princípios) e que está preocupado com a busca da verdade.
O discurso filosófico, racional, por excelência, opera com conceitos, sua matéria-prima. Quando um filósofo se pergunta sobre o conceito de liberdade, por exemplo, é sobre seus componentes que ele se pergunta. Aqui, a razão opera sobre o interior do conceito e, nesse sentido, ela é auto-reflexiva. Todavia, não basta fazer abstração (ou seja, isolar o conceito da realidade). O testemunho empírico, a experiência, em suma, é indispensável. Qualquer definição de liberdade não pode escusar as formas como ela tem sido experienciada ou cerceada ao longo da História.
Aprendi com a filosofia que devemos estar atentos à forma como pensamos, à forma de nossos raciocínios, aos seus conteúdos, ao modo como os concatenamos, para evitar contradições, falácias. Aprendi com a filosofia a explorar a relação intrínseca e fascinante entre linguagem e pensamento. Nesse sentido, a filosofia promove o retorno do pensamento sobre o pensamento elaborador. O pensamento reflexivo (o que “reflete”) é pensamento que se volta sobre a própria atividade pensante.
Aprendi com a filosofia (embora também seja uma exigência da forma de atividade de pensamento científico) a necessidade de definir os termos, os conceitos que empregamos em nossos discursos; em outras palavras, evitar a polissemia tanto quanto possível. Aliás, qualquer discussão só pode ir adiante se os interactantes estiverem de acordo quanto aos conceitos dos termos empregados, bem como se compartilham dos pressupostos envolvidos na discussão. 
A análise do discurso vem corroborar essa necessidade de nos situarmos no domínio discursivo e na esteira conceitual quando interagimos. Dependendo da formação discursiva, as palavras terão sentidos diferentes. Uma sigla como MST (movimento dos sem-terra) terá um sentido na boca de um representante desse movimento que reivindica o direito a usufruir da terra, e outro na boca de um latifundiário.
Evidentemente, nas conversações cotidianas, em que predomina o senso-comum, o rigor na precisão de conceitos, no acerto quanto às nossas interpretações das palavras, na delimitação de domínios conceituais, na clareza de definições é, muita vez, dispensável, muito embora certo grau de assentimento seja necessário. Ora, devemos estar de acordo quanto aos sentidos que damos às palavras que empregamos; discussões calorosas surgem, muitas vezes, dos mal-entendidos em relação aos significados que pretendemos atribuir às palavras que empregamos num dado contexto. Mas, insisto, que não pensamos como filósofos em nossas atividades triviais do cotidiano, nem os filósofos se comportam como tais.
Comportar-se de modo inteligente é saber qual o lugar da inteligência, quando e como deve ser empregada. Falamos coisas inteligentes quando os outros esperam que as falemos, do contrário, seremos pedantes. A inteligência deve atrair e não repelir; deve causar admiração e entusiasmo, e não intimidação e desconforto.