segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O não-dito

                               
        Entre guerra e paz: o não-dito


Em meio à euforia e contentamento, os acontecimentos violentos que envolveram  incursão policial e militar no chamado Complexo do Alemão (Rio de Janeiro), no ano passado, fizeram eclodir uma série de informações e discursos. Estes últimos trouxeram à tona palavras como terror, terrorismo, guerra, entre outras. Aquelas, propaladas pelos meios de comunicação, especialmente televisivos, se nos apresentavam desconectadas e fragmentadas. Eu fiquei à deriva em meio à sua enxurrada, sem ter certeza, afinal, do que era fato ou irrealidade. É provável que pessoas mais distraídas ou não experimentadas nas estratégias discursivas sequer tenham percebido o largo uso de construções linguísticas formadas com o verbo no futuro do pretérito composto (lembra? Teria dito, teria falado....). A função discursiva deste uso reside em que, através dele, o locutor não se compromete com a veracidade ou validade do que comunica; é como se ele colocasse o dito na boca de outros (“ouvi dizer...”). É uma estratégia que serve para isentar o locutor da responsabilidade pelo que diz.
Os discursos tiveram uma importância inegável, muito embora reconhecível apenas por profissionais que trabalham com a linguagem. Sabe-se que todo discurso (re)constrói o real; não o espelha. Assim é que os discursos propalados pela mídia, mormente nos dias em que se deu o conflito, exerceram, a par das forças policiais e militares, o seu poder na construção ideológica da realidade. Vale notar, de passagem, que o discurso das autoridades, sobretudo das que comandavam a tropa das polícias civil e militar, instaurou duas esferas ideológicas, necessariamente, antagônicas no imaginário social: a do Bem, representada pelas forças policiais e militares; e a do Mal, cujos representantes eram os traficantes. O modelo de mundo aí criado se espelha no modelo de mundo das histórias de super-heróis, nas quais o herói (o Bem) duela com o vilão (o mal). O herói é dotada das maiores virtudes; é todo-poderoso e incorruptível; o vilão, ao contrário, é repleto de vícios, corruptível e, embora também muito poderoso, está fadado ao fracasso. No final, o Bem sempre vence.
O discurso também exerceu uma função especial na construção de uma imagem positiva da polícia, na medida em que reforçou o apoio popular às incursões feitas no morro. O que se pretendia mostrar é que, dessa vez, o povo estava de mãos dadas com a polícia. Até cartas de agradecimento e incentivo foram encaminhadas a repórteres para que seu conteúdo fosse lido ao vivo, embora também incluíssem uma boa dose de receio do abandono. Instaurou-se, por força do discurso, uma atmosfera amistosa, em que se reiteravam valores como união, parceria, apoio e co-participação popular.
Não obstante, não tardaram em surgir algumas denúncias de abuso de poder policial. Isso já foi suficiente para se instaurar outra atmosfera, certamente sombria, densa, pois que repleta de dúvidas e desconfiança. Será possível? – nos perguntamos. As denúncias estão sendo apuradas, é claro. Vamos aguardar... Há quem desconfie de que os moradores estariam sendo forçados por traficantes que ainda estariam no morro, imperceptíveis, a detratar a polícia.
É claro que não nos seria surpresa alguma, caso tais denúncias reflitam a verdade; afinal, não rareiam os casos em que a polícia abusa do exercício do seu poder, extorquindo, e agredindo cidadãos pertencentes às classes sociais menos favorecidas.


O não-dito

Alguns especialistas eram convocados a apresentar sua perspectiva sobre o acontecimento, que foi considerado um “marco histórico” na política de segurança pública da cidade do Rio de Janeiro. Nada melhor do que ouvir o que tem a dizer, por exemplo, um sociólogo, num momento em que a população, “satisfeita”, mas acuada, e a mídia, alardeando a vitória do Estado, comemoravam a reconquista de território. “Finalmente, o Estado se impôs, depois de trinta anos de descaso!”. O sociólogo, não contaminado pelo sentimento de euforia, apresentou uma visão mais ampla: insistiu na necessidade de reforma da polícia, de investimento em educação, moradia, saúde, que beneficie aquela comunidade.  Decerto, há muito que ser feito e o sentimento de euforia pelo “dever cumprido” não pode ofuscar uma visão mais abrangente que sinalize os caminhos futuros que deverão ser percorridos.
Falou-se muito em paz. Todos querem paz, mas não há paz sem guerra. A guerra está em potência: inscrita nas armas, na força militar, na necessidade de poder; está pulsante no desejo de liberdade e é alimentada pela ignorância crassa, que é funda, visceral e, ao que me parece, irremediável. Basta que tenhamos um mínimo de consciência histórica para nos apercebermos de que a trajetória humana, mormente do homem civilizado, neste planeta, se deu através de inúmeras guerras e conflitos. Fazer guerra é intrínseco à condição humana. Todo o processo civilizatório por que passaram os homens através dos séculos – processo esse que é infindável – foi marcado por guerras, conflitos, massacres, genocídios, morte. A motivação é vária: econômica, religiosa, étnica, social, etc. Em geral, existem duas causas recorrentes em toda guerra: a necessidade de poder e de conquista de território. Elas estão intimamente ligadas: conquistar território significa estabelecer domínio e poder. A História Humana é a história das construções de grandes impérios, símbolos do poder absoluto. Lembre-se, talvez o mais famoso, o Império Romano (31a.C – 475 d.C.). Quanto às guerras, escusa elencá-las, pois que são muitas, algumas das quais ainda persistem, como a do Afeganistão e a da Palestina. No tocante a esta última, algumas palavras são necessárias.
Durante muitos séculos, a Palestina foi ocupada por uma maioria muçulmana; a minoria era constituída por cristãos e judeus. No final do século XIX, entretanto, ocorreu um grande fluxo migratório de judeus para aquela região, devido à perseguição russa. A par dessa causa, havia também entre eles o desejo de constituir um Estado nacional judeu. Em 1917, período em que sucedia a Primeira Guerra Mundial, o governo britânico declarou seu apóio à instituição de um Estado nacional judeu, desde que a população árabe não fosse prejudicada. Para garantir que o intento judaico lograsse êxito, a Grã-Bretanha passou a administrar a região, sob a supervisão da Liga das Nações. A situação se agravou quando Hitler assumiu o poder: a perseguição aos judeus, então intensificada, e o holocausto acarretaram o aumento da imigração dessa população da Europa.  
Em 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas consentiu que a Palestina fosse dividida em dois Estados: um árabe; e o outro, judeu.  Essa separação daria a Jerusalém um grande poder internacional. Evidentemente, os árabes ficaram insatisfeitos e não hesitaram em recusar tal plano. Com a retirada das forças britânicas da região, em 1948, David Ben Guiron (então chefe de governo de Israel) proclamou o Estado de Israel, fato a que se seguiu uma guerra entre judeus e árabes palestinos.
Inúmeros acordos de paz foram feitos e desfeitos; a situação de conflito ainda persiste em nossos tempos. Como se vê, a paz é um ideal desejado, mas ela só pode ser alcançada, se satisfeitas certas condições. E estas, se satisfeitas, devem beneficiar uma e outra parte. Não sucedendo isso, o conflito deverá continuar. A paz é como uma senhora idosa, muito esbelta e desejada, que sempre nos escapa, em virtude de nossa cegueira. Paz é uma ideia e pertence ao domínio do espírito, não da experiência. Quando muito, o que notamos, neste último domínio, é apenas a sua sombra, porque a guerra está corporificada, encarnada na agressividade humana que, segundo Freud, tem raízes em nosso aparelho psíquico.  Só nos preocupamos com a paz nos estados de conflito, de revoltas, de guerrilhas e de guerras.
Já que mencionei a perspectiva freudiana, vale referir aqui três personagens históricas que ficaram famosas por seus excessos de agressividade. A primeira delas foi Nero, que, tomado de um sentimento megalomaníaco, incendiou Roma, enquanto entoava em versos o seu feito aterrador. Posteriormente, chegou a perseguir os cristãos e os judeus, acusando-os de incendiários. Não nos esqueçamos, contudo, de que, antes de incendiar a cidade, ele matara a sua mãe. E para poder casar-se com Popéia, também assassinou a própria mulher. O caso de Cláudio I, imperador de Roma entre 41 a 54 d.C., vale ser notado por nos causar pasmo, em virtude de sua estupidez. Cláudio mandou matar a sua esposa, porque estava insatisfeito com o comportamento dela, que era muito impetuoso e escandaloso, para casar-se com Agripina, mãe de Nero, que, muito grata, o envenenou.
A terceira personagem é o rei da Inglaterra Henrique VIII, que ficara famoso por sua vida conjugal, muito embora tenha contribuído para o desenvolvimento político e econômico da Inglaterra no século XV. O rei era casado com Catarina de Aragão, com quem desejava ter um herdeiro do sexo masculino. Como isso não fosse possível, ele pediu ao papa a anulação do casamento. O papa não a consentiu, porque estava subordinado ao imperador Carlos V; este, por sua vez, era sobrinho de Catarina. Insatisfeito, Henrique VIII rompeu relações com Roma, tornando a Igreja inglesa uma Igreja Nacional Anglicana. Posteriormente, divorciou-se e se casou com Ana Bolena. Desconfiado de que esta o estava traindo, Henrique VIII mandou matá-la. Casou-se com uma terceira, a qual lhe deu um herdeiro do sexo masculino, mas tão-logo ela morreu. Casou-se com uma quarta, mas dela divorciou-se logo, pois que se apaixonara por uma quinta, com quem se casou. Infelizmente, esta foi decapitada, porque o rei também suspeitava de sua infidelidade. Por fim, casou-se com a sexta mulher que, felizmente, sobreviveu a ele.
O caso do rei da Inglaterra é, certamente, tragicômico; não obstante, é bastante revelador da agressividade humana que quase  sempre é contaminada por grande dose de paixão. Crimes passionais datam de muito tempo, como se vê; e certamente são agravados pelo sentimento de poder.
Finalmente, considere-se o caso de As Cruzadas. Elas foram movimentos militares de inspiração cristã, que visaram a permitir a peregrinação à Terra Santa, que fora proibida pelos muçulmanos. As Cruzadas culminaram com a conquista de territórios e contribuíram muito para o desenvolvimento do comércio com o Oriente. Não tardou a instituição de um Estado a partir dos territórios da Prússia Oriental e do Báltico.

A recorrência de palavras como guerra, terror e terrorismo, nos noticiários e jornais, como representações da realidade são dotadas de sentido ideológico, já porque não captam o mundo tal como ele é (nesse caso, elas não refletem a realidade mesma), senão expressam o modo como as pessoas se relacionam com as suas reais condições de existência, já porque o efeito ideológico apela para a manutenção da ordem, sem a qual não há possibilidade de vida social.  Oportunas aqui são as palavras de Bauman (2008):

“(...) as coisas estão em ordem se você não precisa se preocupar com a ordem das coisas; as coisas estão em ordem se você não pensar, ou não sentir a necessidade de pensar, na ordem como um problema muito menos como uma tarefa. E uma vez que você começa a pensar na ordem, isso é sinal de que algo em algum lugar está fora de ordem, de que as coisas estão escapando de suas mãos, e por isso você deve tomar alguma atitude para colocá-las na linha de novo”.

(p. 44)


Os incêndios provocados em carros e ônibus pelos criminosos desestabilizaram a ordem. A mobilização das autoridades estaduais, federais e militares se deu com a finalidade de restaurar a ordem, que é indispensável ao controle. Sem controle, não há vida social. A ideologia, encarnada na subjetividade, se nutre do ânimo e do sentimento de medo provocado pelos ataques para estimular a atuação do Estado, ao mesmo tempo em que reafirma o poder dele, que se cuidava arrefecido.
A paz, em face da monstruosidade realística da guerra, são apenas fumaças que saem de suas explosões; breves momentos entre uma explosão e outra. Não é possível, se nos dispusermos a ler um pouco sobre a História da humanidade, esperar que chegará o dia em que os homens não mais guerrearão; talvez, a paz possa estar ao alcance de outra espécie de seres que venham a habitar este planeta, caso a espécie humana venha a extinguir-se. Enquanto houver homem, a guerra será sempre uma realidade em potência.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Indústria Cultural

            Aspectos (de)formativos da indústria cultural 
                                   revisitando a questão




Para compor este texto, foi necessário, obviamente, um estudo prévio, que demandou leitura bem variada e aturada de livros e artigos. À medida que lia, tomava notas de passagens dos textos, dava-lhes meus próprios contornos, estabelecendo, tanto quanto possível, as devidas relações entre elas. O esforço empreendido em organizá-las de acordo com um princípio de coerência semântico-discursiva não me livrou de experimentar um caos intelectual, quando me dei conta de que não mais reconhecia as conexões entre elas.
A essa dificuldade acrescente-se a própria complexidade nas quais estavam implicadas as questões. Impõe-se, então, reconhecer uma tarefa em cuja realização deverei empregar todo o vigor de meu espírito: tornar este texto inteligível ao leitor não iniciado.
Começarei, pois, parafraseando Kant: “despertei de meu sono encantado”, quando comecei a estudar sobre o conceito de indústria cultural e a compreender os processos de subsunção e dominação dos indivíduos mediante a transformação de bens culturais em mercadorias destinadas ao consumo de massas. Contudo, cuido ser importante que não me apresse, pois que não só poderei tropeçar nas palavras, como também confundi-lo, leitor.
Antes de fazer incursão no terreno do que se tem entendido por Indústria Cultural, conceito que remonta aos filósofos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, convém situá-lo no interior da sociedade pós-moderna do capitalismo avançado.


1. Contexto sócio-histórico

A decadência das imagens e representações de inspiração religiosa e divina representa a dissolução do que restava de uma era pré-capitalista. As transformações históricas subsequentes – sociais, políticas e econômicas – que ocorreram desde o fim do século XIX e que se tornaram mais intensas a partir do século XX, mormente na Europa Ocidental, expressaram-se em termos de industrialização, urbanização e uma profunda reorganização da sociedade. Essas transformações carrearam novas formas de dominação social, dando ao conceito de ideologia novos contornos.
Urge, ter em conta, portanto, para a adequada compreensão dos mecanismos opressores e reificadores da indústria cultural, o contexto da pós-modernidade caracterizado pela saturação de imagens, pela influência massificadora dos simulacros nas condições de vida e de trabalho dos indivíduos (valores, práticas sócio-culturais). Essa sociedade, imersa em simulacros, em imagens que acabam por corresponder à totalidade do real é chamada por Guy Debord, filósofo e diretor de cinema, sociedade do espetáculo. Espetáculo, aqui, deve ser entendido como aparência. A sociedade do espetáculo é a afirmação de toda a vida humana como simples aparência. É, em síntese, a transformação da experiência humana em aparência.
A carência espiritual, decorrente do declínio das imagens divinas, veio a ser suprida com as imagens fornecidas pela industrialização e pela comercialização e pelo consumo de produtos numa escala mundial. A força de produção das imagens exerce influência nos processos formativos das pessoas. O que aparece e está em destaque esgota a totalidade do real.
Na sociedade do espetáculo, contrariamente ao que propunha Descartes, o juízo é mantido em suspenso quase permanentemente e este estado é reforçado pelo esquematismo da indústria cultural, o qual é responsável por impingir aos indivíduos um verdadeiro adestramento espiritual, fazendo-os acreditar que as ideias que possuem são inerentes à sua verdadeira consciência. Os indivíduos, então consumidores, permanecem entorpecidos, estado do qual só saem, caso se sintam impressionados.
Os indivíduos são induzidos ao consumo dos produtos culturais disponibilizados pela indústria cultural com a promessa de felicidade de que eles se revestem. O consumo de tais produtos sinaliza para o tipo de inserção social do indivíduo, cujo sucesso depende de sua identificação com os valores e produtos que se transformam em mercadorias.




1.2. Indústria cultural: sua atuação e dominância

Ignorando a problemática conceitual resultante da aproximação dos vocábulos indústria e cultura, para a composição do termo “indústria cultural”, é lícito considerá-lo como expressão do caráter industrial e padronizado da produção cultural, que se intensificou com o desenvolvimento da indústria e com a racionalização das técnicas de divulgação e distribuição de seus produtos, os quais foram destituídos de seu valor humano, resultado de trabalho espiritual e criativo, para destinarem-se ao consumo de massas carreando em si uma finalidade de dominação ideológica.
Os produtos culturais fabricados e seriados em processos industriais, disponibilizados pela indústria cultural, sucumbem aos interesses ideológicos, os quais se expressam por meio de um discurso que exalta e reitera o desejo pelo novo e pelo progresso, desejo que é criado nos indivíduos. A dinâmica que engendra a produção e comercialização dos bens culturais mascara, por força da ideologia, a verdadeira e mais antiga motivação do mercado: a obtenção de lucro.
Como bem observam Adorno & Hokheimer (1985: 95), a cultura, ao servir à comercialização, perde sua aura. As produções artísticas são destituídas de seu caráter transcendente e de sua função crítica e contra-hegemônica para tornarem-se meras mercadorias de consumo. As pessoas, por sua vez, consomem passivamente, ou seja, embotada sua consciência crítica, não precisam despender energia psíquica em tão prazerosa atividade. A indústria cultura promove a banalização e vulgarização da cultura e torna a consciência dos homens-consumidores infantilizada e regredida. A violência ideológica aí consiste em subestimar a capacidade espiritual e de compreensão dos indivíduos e de subjugar sua consciência. A semiformação fomentada pela indústria cultural é responsável pelo conformismo, o qual se expressa, consoante ensina Marcondes (2008: 53):

“[em] comportamento de dependência social e moral consistindo para um indivíduo em adotar de modo mais ou menos mecânico ou inconsciente sem exame ou espírito crítico, as opiniões, as normas, os modelos, os costumes e usos de seu meio social ou do grupo com o qual se identifica; aceitação do status quo”.

A indústria cultural atua no sentido de produzir uma regressão de consciências, de sorte que os indivíduos, impedidos de se auto-diferenciar, compõe juntos uma massa homogênea.  Os procedimentos empregados pela indústria cultural servem para iludir, manipular, fazendo da aparência a verdade. Dá-se um empobrecimento da produção cultural.


1.2. O poder ideológico

O conceito de ideologia é um desses conceitos para os quais há inúmeras definições, de acordo com o autor e sua perspectiva teórica. Limito-me, aqui, a considerá-lo como forma de representação do aparecer social de tal modo, que esse parecer se torna a realidade social. A ideologia, portanto, mascara ou oculta a realidade, invertendo a relação entre ela e as ideias: nos processos ideológicos, o real não justifica as ideias; ao contrário, são as ideias que justificam o real. Esta concepção de ideologia como forma de ocultamento da realidade social remonta à Marilena Chauí (2006).  Creio ser esta concepção adequada à discussão que ora desenvolverei.
A ideologia está a serviço da hegemonia. Sua função é deformar e manter o status quo, legitimando as condições de injustiça e opressão sociais. Conquanto a ideologia são se confunda com indústria cultural, é inegável a relação intrínseca entre elas. Parte inerente dos mecanismos de dominação e manipulação da indústria cultural, a ideologia estabelece padrões de comportamento que visam ao conformismo.  Os homens passam a acreditar que as ideias, então adquiridas, sejam suas próprias ideias.
A ação ideológica torna-se ainda mais perniciosa quando da observação do fato de que ela se traveste de um pseudo-liberalismo alicerçado na liberdade e na autonomia individuais, de sorte a impedir aos homens a livre expressão de sua individualidade e de sua singularidade.  Não há, portanto, espaço para subjetividades, as quais são convertidas numa organização totalitária de modos de pensar, agir e sentir.
A ideologia produz uma falsa consciência e padroniza a expressão do pensamento. A falsa consciência impede a autonomia intelectual.


2. A função da estandardização e da racionalização

A estandardização consiste no processo pelo qual os bens culturais são padronizados quando de sua fabricação e colocados em larga escala para a satisfação de massas de consumidores. Trata-se da produção em série do modelo fordista aplicado à cultura. O que se verifica, nesse processo, é a incansável repetição de padrões.
A estandardização da cultura, então transformada em cultura de massa, leva os indivíduos a se comportarem segundo certos padrões e esquemas, os quais são responsáveis por: a) imobilizar suas capacidades de autonomia de expressão; b) levá-los a identificar-se com as formas heterônomas que os homogeneízam.
A racionalização, a seu turno, encarada na perspectiva da teoria crítica da Escola de Frankfurt, pode ser entendida como

“a justificação de certas práticas de dominação como necessárias ao progresso e ao desenvolvimento social, ocultando, entretanto, os verdadeiros interesses da classe dominante”.
(Marcondes, 2006: 234)

A racionalização também pode ser entendida como uma técnica aplicada a um processo de produção a fim de torná-lo menos dispendioso e mais eficaz.
A aplicação da técnica e da ciência ao campo da comunicação fez com que elas deixassem de ser forças produtivas para tornarem-se instrumentos de poder e de dominação. Seu poder consiste em alienar e massificar os indivíduos das sociedades industriais e altamente administradas.
A razão instrumental, na medida em que fomenta processos de produção destinados a um fim (pois é isso que pressupõe), torna as relações entre homem e natureza e dos homens entre si, basicamente, instrumental, pragmática e utilitária.
Contra esse esvaziamento espiritual e emocional das relações humanas, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa, através da qual se poderia alcançar a revolução das relações humanas na dimensão cultural, a qual compreende arte, emoções, mitos, tradições, etc.


3. Considerações finais

A complexidade da questão levar-me-ia muito mais longe, o que não seria conveniente, dados os modestos propósitos desta exposição.  Muitos problemas ficaram em aberto, tais como o papel da mídia (televisão, rádio e cinema, especialmente) no processo de embotamento e de regressão das consciências, visto ter ela um poder, claramente, intensivo e manipulador; a realização efetiva da democracia, a qual não parece possível se não inclui as condições culturais; a liberdade relativamente ao impedimento de autonomia individual perpetrado pela ação da indústria cultural, etc.
A sociedade de que sou membro está lá fora, operante e gigante. E eu estou aqui dentro, no microcosmo de meu quarto, em frente ao computador, após ter estado durante grande parte do tempo envolto aos livros – estas janelas que me abrem o mundo, que me traz à consciência as formas perniciosas de opressão, alienação e massificação sociais, cujo agravamento se atribui, em grande medida, à indústria cultural. Estou eu aqui inquieto, mas consciente desta existência frenética, acelerada e fugaz, que se escorre na liquidez do tempo moderno.