quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Agora, sim, vamos morrer, reunidos! (Augusto dos Anjos)


Morte: um fato recalcado
Breve intróito


Tendo assistido a dois acontecimentos da vida, pela televisão, antes de me pôr a escrever este texto, a saber, ao resgate de mineradores chilenos que estavam submersos numa mina há noventa e quatro dias, e a uma reportagem sobre a assistência a crianças portadoras de algum déficit de inteligência, oferecida por uma instituição filantrópica, assomou-me à consciência a ideia de que os malefícios que acometem os seres humanos, sem que deles sejam culpados, é fonte abundante de experiências de solidariedade. É com o sofrimento, quer nosso, quer do outro, que nos tornamos mais sensíveis às experiências de amor e de solidariedade.
Doravante, proporei uma reflexão sobre a morte – este fantasma que nos espreita a cada instante e que teimamos em querer (em vão) exorcizar. Para muitos, decerto, trata-se de um tema de mau gosto, nada apreciável; no entanto, cuidarei de conferir-lhe contornos filosóficos. Procurarei abordá-lo sem recorrer à linguagem de carnificina, da putrefação e dos fétidos cadáveres. Não poderia deixar de citar três poemas: um de Augusto dos Anjos, o famigerado poeta do mau gosto; os outros dois, de minha autoria. Atentemos para eles:


Vozes da morte
Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura
Tu, com o envelhecimento da nervura
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho, E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura.
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos

Na multiplicidade de teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte ainda teremos filhos!
(Augusto dos Anjos)



Catarse
No inverno, vou aposentar-me do mundo
Saldar-me-á Deus as dívidas à Morte
Rogar-Lhe-ei apenas os benefícios do túmulo
E a certeza de ventura à minha prole

E neste dia, quando mais um leito ocupado
A gênese de minha carne então vencida
As raízes de plátanos terão evolado
A Dor visceral de minha alma enternecida

E a terra merencória de soluços repleta
Semeadora de cadáveres, necrófago ventre
Devora plácida toda carne fria que recende

A podridão protoplásmica que dantes era
O solar adorado dos progênitos do carbono
Necrópole da ventura. Da alma o abandono.
(BAR)



Tempo ingrato
Olha! Já sorris à desventura
De alma temente. E a alvura
De nossos lençóis. A cama arde
Gemidos de amor tu não calaste!

Olha! Vê quanto inda me tentas!
Fingidos sorrisos. Fuga doída
Ó Morte, traiçoeira, já acenas?
Já cortejas a mim, fiel amiga!

Vês que tempo ingrato? Amarga a vida!
Fúlgidos verões já me têm passado...
Compondo versos doidos à revelia

Enterro no horizonte o sonho fátuo
E gozar da ventura de amor bendito!
Que junto a mim jaz na cova ao lado.
(BAR)


O leitor perceberá, sem dificuldade, que o meu poema que se segue imediatamente ao de Augusto dos Anjos tem clara inspiração neste poeta. Tanto um quanto o outro lembra-nos de nossa natureza perecível, ao mesmo tempo em que nos anima a esperança de perpetuidade através de nossa prole. Os nossos descendentes representam, assim, a tentativa de continuidade metafísica de nossa existência.
Devemos, de imediato, reconhecer o óbvio: a morte é um fato natural, tal como o nascimento, a sexualidade, a sensação de fome e de sede. Destarte, a consciência da morte nos torna viva a ideia de nosso pertencimento à ordem natural, na qual se acham os seres vivos. Com a factualidade da morte, nos animalizamos. Assumimos a nossa natureza biológica, cuja existência está necessariamente enlaçada à morte. Claro é que, na medida em que somos seres de consciência superior e, portanto, na medida em que estamos conscientes de nossa finitude, experimentamos angústia diante da certeza da morte – certeza esta que deve ser afastada para que possamos viver com relativa serenidade.
Diremos mais do óbvio: todo ser vivo nasce grávido da morte; no caso dos seres humanos, essa gravidez é uma gravidez da qual estamos conscientes, muito embora a ideia da morte seja, por força de nossas experiências sociais, por força da ordem social que, na contemporaneidade, tem muita dificuldade para lidar com ela, seja recalcada. Diremos mais: nascer é iniciar uma trajetória cujo fim inevitável é a morte. O sociólogo Èmile Durkheim disse, certa vez, ser a sociedade um bando de homens que caminham em direção à morte inevitável. É um fato irrecusável, portanto, que todo ser humano, particularmente, traz em si o germe de seu próprio aniquilamento. A morte está em nós em estado de potência (para usar um termo aristotélico). Está adormecida, havendo de, um dia, despertar. Lembro aqui também Fernando Pessoa que se referiu a nós como “defuntos adiados”, donde se conclui que o nascimento inaugura a virtualidade da morte, que só é adiada por algum tempo.
Se considerarmos, segundo atestam dados do IBGE, que a expectativa de vida dos brasileiros, atualmente, em média, é de 72 anos, sendo que, entre as mulheres, no ano passado, chegava a 76 anos, ao passo que, entre os homens, a expectativa reduzia-se a 69 anos, devemos aceitar o fato de que temos pouco mais de 70 anos para construir sentidos às nossas vidas (e não me refiro ao sentido transcendente, quando dizemos do sentido em relação à existência humana) e para experienciarmos intensamente os momentos, não menos efêmeros (de certo modo, raros) de felicidade. E estou assumindo aqui o pressuposto de que o objetivo último da vida humana seja a felicidade. Com Freud, assumo que os homens buscam o prazer e se esforçam por evitar o desprazer.
A morte, enquanto experiência única e, ao que parece, indolor – e, muitas vezes, inesperada, - traz-nos à consciência a fragilidade de nosso corpo, uma das fontes de sofrimento humano, segundo Freud. A morte é a cessação da libido – instinto de vida. Como estado inanimado do corpo, põe-nos diante do nada, supressão da lembrança e da história individual, soberania do vazio completo, da ausência plena do sentido. A consciência do nada, evocada pela experiência da morte alheia, gera angústia.
Como observa Norbet Elias, em A solidão dos moribundos (2001: 21), a morte, na Idade Média, era tratada de modo mais aberto do que o é atualmente. Assim, nos ensinará o autor:
“Em comparação com o presente, a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar. Isso não quer dizer que fosse mais pacífica”.
(ib.id.)
Em tempos remotos, segundo o autor, a morte era um acontecimento mais público, visto que, com exceção de freiras e monges, dificilmente as pessoas viviam sozinhas. Atualmente, a morte é afastada da consciência das crianças. Afirma o autor:
“Uma vaga sensação de que as crianças podem ser prejudicadas leva a ocultar delas os simples fatos da vida que terão quer vir a conhecer e compreender”.
(p. 26)
O encobrimento ou recalcamento da morte se dá, por exemplo, na esperança cultivada numa vida além-túmulo. Segundo o autor, “o medo de nossa própria transitoriedade é amenizado com ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar” (p. 44). Há uma evidente resistência à desmitologização da morte em nossa modernidade.
A ideia de Deus serve aos homens como um subterfúgio ao sentimento aterrador experienciado quando da consciência da morte como possibilidade do nada. Entre o homem vivo e a esperança em Deus, medeia a morte como fato inegável e irredutível. Eis aí o abismo que nasce em nossa existência. O autor observa, ainda, que a sexualidade é menos reprimida atualmente do que a morte. Acrescenta ainda não ter havido significativa diminuição da tendência a afastar das experiências de vida a morte, desde o século XIX.
Evidentemente, a morte, como experiência cultural, será encarada de modo diferente, de acordo com as culturas. Culturas há em que o acontecimento da morte é festejado, caso em que o sofrimento, a tristeza e o choro dão lugar a alegria, festejo e cantoria. Em certos lugares do nordeste do Brasil, é comum servir comida no velório.
O temor e o terror que experimentamos diante da factualidade da morte são produzidos pelo imaginário que cerca a morte. Eles decorrem da imagem que antecipamos da morte. A resistência à aceitação dela, de um ponto de vista sociológico, é reforçada pela tendência atual ao socorro de medicamentos e técnicas que possibilitem a “juventude eterna”. O retardamento do envelhecimento se acompanha da alegria decorrente da ideia de que retardamos, assim, a morte. Tal retardamento alcança o status de uma neurose coletiva pela juventude cada vez mais prolongada.
Ao se referir aos avanços da medicina no sentido de nos familiarizar com a ideia de que morrer é um fato natural e biológico, Elias observa:
“As pessoas bem sabem que a morte chegará, mas saber que ela é o fim de um processo natural ajuda a aliviar a angústia”.
(p. 56)
Terei de discordar do autor, nesse tocante. Não creio em que saber que a morte é um fim de um processo natural amenize a angústia, porquanto a morte, para a maioria das pessoas, representa a ruptura de laços afetivos, quase sempre, muito entranhados, os quais serão substituídos pela saudade, que, ao invés de consolar, nos abandona ao sentimento de vazio. A morte de uma pessoa que amamos lega-nos uma saudade pesada, que se hospeda durante muito tempo em nossa alma, reaviando-nos o vazio da dor, da ausência de um complexo de experiências de vida – portanto, de um complexo histórico compartilhado, encarnado.


A morte como desligamento


O nascimento de um ser humano representa uma abertura consciente para o mundo, cujo valor reside, fundamentalmente, em possibilitar a experiência da consciência. Lembro que consciência é consciência de alguma coisa. O homem é um ser mundano que se distingue das outras formas de vida pela especificidade de suas experiências conscientes.
Para Sartre, a mente só existe na medida em que alcança o seu objetivo. As pessoas estão conscientes do mundo em si. A existência da mente só é possível pela existência de um mundo material circundante. Sartre concebe a consciência como um nada em si e, como tal, precisa ser consciência de um mundo, pois só assim alcança a dimensão do ser. Vejamos como Sartre concebe o movimento e a relação deste com a consciência:
“É simultaneidade estar em um lugar e não estar lá. Em momento algum podemos dizer que o ser da passagem está aqui, sem correr o risco de pararmos bruscamente lá, e nem podermos dizer que não está, ou que lá não é lá, ou que está em outro lugar. Sua relação com o lugar não é uma relação de ocupação”.
Segundo a perspectiva sartreniana, o movimento é realidade para a consciência. O não-estar onde estava e o não-estar onde estará levam-nos a conclusão de que o objeto em movimento é exterior ao si. Essa perpétua transitoriedade de não-ser constituem negações atribuídas pela consciência. Assim, para Sartre, só existe movimento para a consciência. Deixemos as implicações e os problemas que podem suscitar essa compreensão sartreniana e consideremos a contribuição de Hurssel, de modo sucinto, ao tratar da consciência.
Como fenomenólogo, Hurssel entende que a consciência só existe pela intencionalidade, ou seja, só existe na medida em que se abre para o mundo, cessando a interioridade vedada. Somente a consciência do mundo é que torna possível a consciência de si (a autoconsciência). Assim é que precisamos estar no mundo para termos consciência de nós mesmos. Por consciência, Hurssel entende o conjunto de atos perceptivos que visam (tem por objetivo) e tocam objetos do mundo. Estou consciente quando vejo, ouço, toco, sinto, etc. O alargamento que confere ao conceito de consciência representa a negação do conceito de cogito (eu penso) de Descartes. Em Hurssel, a consciência se estabelece sobre o noema (unidade de sentido para a consciência). É consequência de nossa própria condição de seres de consciência a necessidade de fundar nossa existência sobre o sentido. Buscamos o sentido como único meio de nos ligarmos ao mundo. No que toca ao conceito de noema, esclarece-nos Hurssel: “ao contrário da árvore, o noema da árvore não queima”. O noema é, portanto, o conhecimento da árvore. Dirá Depraz, em seu livro Compreender Hurssel (2008):
“[o noema] participa da dinâmica consciencial a título de núcleo objetivo de sentido”.
(p. 35)
Sabe-se também que nós somos seres de consciência reflexiva. No ato de reflexão, em lugar de nos projetarmos adiante em direção ao mundo, nos voltamos para nós mesmos. Esse retorno sobre nós mesmos permite-nos interrogar a vivência/ experiência imanente do objeto.
Do exposto até aqui, não é difícil concluir que o morto, enquanto tal, não tem mais consciência de mundo; de certo modo, o estado de inanimação do defunto representa o aniquilamento de sua humanidade na dimensão consciente. O corpo inconsciente é tão-só matéria destinada à putrefação, que resultará nos restos mortais. Aqui, o poema O deus-verme, de Augusto dos Anjos, parece pertinente. Refiro apenas a primeira e última estrofes:
Fator universal do transformismo,
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.
(...)
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica,
Cabe aos seus filhos a maior porção!
O desligamento do mundo deve ser entendido como ruptura em termos de possibilidades de continuar tendo experiências psicossociais, mormente na dimensão libidinoso-afetiva. No tocante ao emprego da expressão “os mortos”, Elias nos dá a saber a relação entre a morte e a memória dos vivos:
“(...) as pessoas mortas em certo sentido ainda existem não só na memória dos vivos, mas independentemente deles. Os mortos, porém, não existem. Ou só existem na memória dos vivos, presentes ou futuros”.
(pp. 40-41)
Para os moribundos, a iminência da morte representa a perda de coisas que, para eles, podem ser significativas. A questão que a inevitabilidade da morte nos propõe é: a que devemos atribuir valor significativo na vida?


Caixão não tem gaveta, mas morrer custa caro


Em O que é morte (1999), Maranhão nos mostra que ainda existe uma estratificação nas práticas funerárias, a qual não é senão reflexo de uma sociedade dividida em classes. Cito, na íntegra, o trecho em que o autor nos fala dessa desigualdade que, existindo entre os vivos, refletem entre os mortos:
“Para evidenciar a verdade dessa afirmação basta que façamos uma visita a um cemitério tradicional. Lá encontraremos, como que reproduzido detalhes, a sociedade dos vivos: avenidas, ruas, praças e jardins por onde os transeuntes podem circular orientados por placas indicativas; o habitat individual e o coletivo, a administração local e a capela. E assim como nas grandes metrópoles iremos nos deparar, nas grande necrópoles, com arranha-céus e, ultimamente, com fornos crematórios tão sofisticados como as modernas usinas – pois tanto quanto o solo urbano, o solo cemiterial é bastante dispendioso e igualmente sujeito a especulações, o que não permitem desperdícios de espaço”.
(p. 36)
Os cemitério aos quais se destinam os corpos dos mortos dos pobres são mais rústicos, com sepulturas pobres e mal-acabadas. Conclui o autor:
“Em um mundo em que o econômico é o Rei, quem não tem haver não tem ser, quem continua tendo continua sendo: esta é a lei fundamental do nosso cemitério, que inventa concessões ‘perpétuas’ de sessenta ou de cem anos, para nutrir a esperança e a ilusão de que o ter continuará a ser”.
(p. 38)
Numa sociedade dividida em classes, como a sociedade brasileira, os indivíduos se relacionam em condições de desigualdades, marcadas por hierarquias sustentadas pelo poder e pelos privilégios econômicos, culturais e políticos. A divisão social do trabalho, característica das sociedades capitalistas, se reflete também nas circunstâncias de enterro dos mortos. O cemitério reflete um ambiente de estratificação social que constitui a realidade da vida social. É verdade que o fim – a morte – é comum aos ricos e aos pobres, ou seja, a morte não distingue os homens em termos de classe sócioeconômica, cultura, etnia, gênero, poder, mas, assim como os indivíduos se distinguem no tocante à sua residência, mais ou menos luxuosa, mais ou menos rústica, assim também são discriminados em termos de sua moradia definitiva. Direi mais: assim como os indivíduos se distinguem em termos do lugar social que ocupam, assim também se diferencial em termos de “lugar mortal” que virão a ocupar. Concluímos, com pesar, que, nas sociedades capitalistas dos países subdesenvolvidos, todos morremos, mas não todos vamos para o mesmo buraco. O buraco de uns é bem mais ornamentado!


O que concluir


Não pretendi nutrir no seu espírito, leitor, maior angústia ou desalento. Num primeiro momento, ficamos meio resistentes a refletir sobre a morte. No entanto, longe de nos afligir, a reflexão sobre a morte, sobre como experienciamos esse acontecimento singular e a compreendemos, pode nos levar a uma compreensão menos unilateral da vida e mais integrante e profunda. Saber que a cada novo dia nos aproximamos da morte, que o céu de cada manhã, ensolarado ou nublado, chuvoso ou não, nos torna mais próxima a morte, permite-nos a possibilidade de repensar nossas prioridades, de nos aperceber de quão inútil é a nossa azáfama, as nossas ambições materiais, a nossa necessidade de poder, de riqueza, nosso egoísmo, nossa altivez, indiferença e sentimento de auto-suficiência; leva-nos a avaliar até que ponto valorizamos as relações afetivas, com os nossos familiares e com a pessoa que escolhemos para com ela dividir nossas experiências de vida. É nesse instante, em que somos inundado de uma percepção penetrante do valor da vida, que nos ilumina a consciência a importância do Amor. Essa palavrinha com quatro letras e quatro fonemas, pronunciada, muita vez, a esmo por muitos de nós, sem que tenhamos, claramente, a dimensão significativa de sua essência: que me parece ser o cuidar.
É este Amor que desejaremos em nosso leito de morte. Assim como nossos bens materiais, nossa formação acadêmica e toda sorte de conhecimentos acumulados ao longo de nossas experiências de mundo não terão valor algum, à iminência de nosso suspiro derradeiro, assim também de nada valerão as nossas conquistas, os nossos amores de bolso; porque, a essa altura, nossos bolsos já estarão rasgados, e os amores que eles acumularam, terão se esvaído. Apenas o Amor singular eleito de nosso coração, estará à cabeceira de nossa cama, segurando a nossa mão e nos confortando, ou junto ao nosso caixão, chorando por nós.
É esse Amor que desejo: um Amor que, em face da inexorabilidade da morte, nos faça conscientes de que valeu a pena viver.

Religião em debate


O que dizem os filósofos?
A religião em debate
Introdução

Talvez, a primeira lição que um estudante de filosofia deva aprender, tão logo ingressa numa faculdade, é que filosofar é ter o direito de pensar, de refletir. A filosofia, assim, abre-nos um espaço de liberdade para a expressão do pensamento, para a construção de discursos conflitantes e divergentes. O pensamento é a sua matéria-prima, mas não o pensamento escravizado(r) e dogmático. A filosofia promove o pensamento livre e desimpedido, pouco importa que ele apresente lacunas, seja desviante, em algum sentido. Porque a primeira lição que um estudante de filosofia deverá aprender é que até os grandes filósofos se equivocam, são passíveis de crítica, de objeções. Na realidade, a filosofia é um discurso que se abre para a crítica; ela funda um espaço de crítica renovável. A verdade é seu objetivo último, mas ainda a verdade é passível de crítica. O que me parece certo é que a filosofia, ao mesmo tempo em que enseja o debate crítico, condição esta para a sua própria subsistência, também é terminantemente infensa ao dogmatismo. A filosofia buscará lançar luzes sobre a escuridão dos discursos dogmáticos; nos demoverá do apego às nossas certezas, não suscitando, necessariamente, uma postura niilista, mas certamente retirando-nos o véu que nos impedia de ver o irracional, o ideológico, o preconceito, as opiniões sem fundamento. A filosofia buscará os fundamentos; pretende atingir o Ser, superando as aparências.
Costumo dizer, como escritor (no sentido lato da palavra) e estudioso da linguagem, que a construção de um texto tem um caráter artesanal. Escrever é uma forma de artesanato – o artesanato da escrita. Certa vez, quando ainda lecionava no ensino médio, pedi a meus alunos que escrevessem sobre as suas próprias dificuldades ao escrever. A grande maioria disse que a principal dificuldade é não ter ideias. Isso corrobora uma obviedade: todo trabalho de escrita depende de uma elaboração prévia do pensamento, de um pensamento que, com ser reflexivo, deve-se voltar sobre seus próprios produtos. O sujeito do discurso não é um sujeito adâmico; seu discurso estabelece-se sobre discursos anteriores, ao mesmo tempo em que funda um novo discurso que antecipa ou projeta tantos outros discursos potenciais e posteriores. Todo dizer se estabelece sobre um já-dito. Não há discurso original nem originário. O sujeito não é a fonte de seu discurso, lugar subjetivo donde jorram as palavras; o sujeito é construto do discurso e, como tal, é atravessado pela ideologia e situado sócio-historicamente. Tudo isso nos leva à conclusão de que o texto é um produto sócio-histórico e, na medida em que ele é trazido a lume, não pertence mais ao autor (que representa, ideologicamente, a unidade do discurso, embora o sujeito seja disperso).
Creio ter me delongado demais. Refaço, pois, o caminho discursivo. Se aceitarmos que a filosofia não deve, pelo seu discurso, não raro, hermético, afugentar os mais otimistas, tampouco inibir a expressão do pensamento que se pretenda crítico, convém que admitamos a proposta deste texto que não tem por objetivo declarar o ateísmo como o único caminho eticamente seguro para o homem pós-moderno. Seu objetivo é fazer fervilhar ideias, animar espíritos adormecidos, inquietar intelectualmente, plantar indagações, mitigar o peso dogmático que nos oprime e conforta. É preciso ter em conta que o pensamento dos três eminentes homens de conhecimento que procurarei apresentar e discutir aqui é passível de crítica, ou melhor, sofreu críticas ao longo da história. Por isso, eles não anunciarão a verdade última; pois, em filosofia, não há uma única verdade. Nietzsche negava a verdade, para ele a verdade era o ponto de vista.
Ao cabo da leitura, conscientes de que não estamos de posse de verdade alguma, deveremos nos contentar com o desconforto, com a náusea, de que nos fala Sartre. Lembre-se, leitor, de que não podemos viver comodamente no mundo; é preciso incomodá-lo e sentir-se incomodado, somente, assim, ainda valerá nosso esforço orgânico matutino e rotineiro que nos faz querer ver mais uma aurora e persistir na busca por um sentido que justifique nossa existência, que se nos apresenta em sua forma crua e contingente.
A primeira dificuldade que encontro para compor este texto é tentar não fragmentar, tampouco deformar o pensamento dos três homens que se dedicaram a compreender e criticar o fenômeno religioso, mas, ao mesmo tempo, não dar a este texto uma extensão que exorbite da paciência do leitor, de sua boa vontade em dedicar parte do seu tempo de vida à sua leitura. Pense, leitor, que, da mesma forma que lhe seja custoso concentrar-se na leitura deste texto, cujos limites não sei precisar exatamente agora, igualmente árduo é meu trabalho em construí-lo. Somos, pois, cúmplices de um mesmo sacrifício: o de lidar com a exigência da linguagem de penetração espiritual, de atenção inexorável. Com efeito, nós estamos acostumados a fazer uso da língua com vistas a atender nossas necessidades básicas e utilitárias. Valemo-nos dela como mero instrumento de comunicação. Agora, ela nos cobra uma atitude contemplativa e reflexiva. A decisão é sua, leitor. De resto, este texto seguirá o seu curso; cabe a você decidir entre trilhar os caminhos que ele lhe oferece, ou cessar o movimento de seu espírito, para se ocupar com urgências de seu cotidiano.
1. Marx: a religião como ópio do povo
Dentre os três pensadores que escolhi, para fomentar uma reflexão sobre o que a filosofia tem a nos dizer sobre a religião, está o economista e filósofo alemão Karl Marx (1818-1883). Ele nasceu no século XIX, num contexto histórico caracterizado pelo liberalismo alemão, que anunciava, ainda sob os auspícios das ideias da Revolução Francesa, a crítica ferrenha ao Estado e aos seus aliados, a saber, a Igreja e a religião – muito embora fossem elas fracos aliados.
Marx foi o precursor de um movimento de ideias filosóficas, políticas, sociais e econômicas que compunham um corpo teórico denominado, posteriormente, de marxismo. Este movimento ficou conhecido também como materialismo histórico, que se desenvolve a partir da crítica ao idealismo hegeliano, segundo o qual o Espírito absoluto era o sujeito da história. Contrariamente a Hegel, Marx dirá que são os homens concretos, em contextos sócio-históricos determinados, organizados nas esferas de produção, que fazem a história. São eles que produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. A História não é a História da objetivação do Espírito, consoante pensara Hegel. Para Marx, consoante ensina Marilena Chauí, em O que é ideologia (2006: 47):
“A história é a história do modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência. É a história do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou indireto dos bens naturais ou pela procriação), como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma de propriedade, e que constituem as formas de relações de produção)”.
Marx rejeitou o idealismo de Hegel, mas aproveitou a forma como o pensamento deste grande filósofo se desenvolveu. Marx herda, portanto, o método dialético. Também de Hegel Marx herda a concepção do homem como ser social. Investindo seu pensamento do método dialético, Marx buscará superar o parecer social, para compreender o ser social (ou seja, o como a realidade é concretamente produzida). Aqui, nos mostrará que, o que parece ser relações justas e igualitárias, serão relações injustas e opressoras. Marx propunha conciliar a teoria e a prática. Acreditava que, sem a orientação da teoria, toda prática é cega. Seu objetivo era mobilizar a classe do proletariado à revolução e à posterior instauração do socialismo, como movimento intermediário para a consolidação do comunismo, cujo fundamento consistia na abolição plena do Estado – uma comunidade imaginária, necessariamente, exploradora, já que a serviço dos interesses das classes dominantes.
Não poderia aqui, evidentemente, pretender dissecar o pensamento de Marx, apresentando-os em suas miudezas, o que demandaria muito tempo e esforço. Para o que me interessa, basta ter em conta o conceito de alienação, na base do qual Marx desenvolverá sua crítica à religião. Antes de apresentá-lo (sempre de maneira breve e grosseira), creio ser necessário esclarecer o que se entende por materialismo histórico. A palavra materialismo evoca a ideia de matéria. Na filosofia clássica, o materialismo é a doutrina que entende ser possível reduzir a realidade à matéria. O materialismo nega a existência de entidades como alma ou espírito. Já o materialismo proposto por Marx, chamado materialismo histórico entende a história como a história da luta de classes. Esta história se desenvolve nos processos de transformação social decorrentes dos conflitos entre os interesses das classes dominantes e os das classes dominadas. Destarte, Marilena Chauí vem lançar luzes sobre o conceito, ao nos ensinar:
“A matéria social de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações sociais entendidas como relações de produção, ou seja, como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações”.
(pp. 52-53)
Para Marx, a religião é uma forma de alienação decorrente de uma alienação mais profunda: a alienação do trabalhador explorado no processo de produção capitalista. É no contexto econômico que se acha a essência da alienação do homem. Os trabalhadores são expropriados dos meios de produção de seu trabalho. Eles são não-proprietários. Dispostos e setorizados na linha de produção capitalista de modo fragmentário, os trabalhadores são obrigados a desempenhar cada qual uma função; ao cabo do processo, perdem a consciência do todo que produziram. Eles não se reconhecem no produto de seu trabalho, pois que não se reconhecem como os verdadeiros produtores daquilo para cuja produção empregaram/venderam sua força de trabalho. Se tomarmos para exemplo uma indústria automobilística, podemos compreender a contradição instaurada pelo capitalismo: cada trabalhador que se ocupa da fabricação de um carro, operando com a tecnologia, é responsável por uma etapa apenas no longo processo de fabricação do automóvel. Não só eles não se reconhecerão como produtores, mas também estarão privados de se beneficiar do produto de seu trabalho, já que o salário que recebem tem o valor suficiente para que se alimentem, se vistam e continuem com o mesmo trabalho de produção de mercadorias.
Para Marx, o trabalho no capitalismo é trabalho alienado, visto que “é aquele no qual o produtor não se pode reconhecer no produto de seu trabalho porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais ou seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho”. (Chauí, p. 54). É o proprietário que é dono do capital.
A religião para Marx decorre de condições socioeconômicas de alienação. A religião é a expressão apenas dessa alienação. A ideia de Deus é um produto dessa atmosfera alienante. Para Marx, a promessa da religião é ilusória, dado que ela apenas oferece a libertação imaginária, projetando a liberdade do homem para um além-mundo. Nesse sentido, a religião não se preocupa com o sofrimento do homem, com as condições socioeconômicas de exploração e injustiça em que vivem as classes menos favorecidas. É tão-só a práxis revolucionária que emancipará os homens. A afirmação “a religião é o ópio do povo” se tornou emblemática na crítica de Marx à religião, pois que ela exprime a ideia de que a religião entorpeceria a consciência humana, tornando-a conformada diante das condições de injustiça social, na esperança de alívio e felicidade numa vida transcendente.
Deus é, assim, produto de uma projeção da essência humana para fora de si, concepção essa desenvolvida anteriormente por Feuerbach, para quem o conhecimento de Deus é autoconhecimento do homem. Com vistas a tornar claro esse momento da crítica de Marx, refiro na íntegra as palavras de Urbano Zilles, em Filosofia da Religião (1991: 127):
“Na alienação religiosa, o homem projeta, segundo Marx, para fora de si, de maneira vã e inútil, seu ser essencial e perde-se na ilusão de um mundo transcendente. Aceita, pois, o conceito feuerbechiano de alienação. A religião nada mais é que a projeção do ser do homem num mundo ilusório. Com ela aliena-se a si mesmo. A religião faz o sujeito predicado, alçando Deus sobre as nuvens, em vez de dar-se conta de que o céu está sobre a terra. Enquanto Feuerbach se contentara em denunciar intelectualmente a alienação religiosa, sem indagar suas causas, Marx admite que a religião é uma ilusão, não porém, ilusão puramente falsa. É uma maneira da existência humana intrinsecamente falsa. A religião nasce, segundo Marx, da convivência social e política perturbada dos homens”.
Portanto, para Marx, a religião não passa de um epifenômeno de um fenômeno infra-estrutural econômico alienante. Acreditava que, com base na crítica intelectual, superando as condições de injustiça social e miséria, libertar-se-iam os homens da alienação religiosa. Segundo Marx, a religião forneceria um consolo aos homens numa realidade social injusta da qual eles, sob o efeito da ideologia, não se consideram seus produtores (embora o sejam). O ateísmo de Marx representa a afirmação da essência do homem, a tentativa de levar os homens à emancipação, pela consciência e pela práxis, que os conduziriam a superar as condições sociais de injustiça, geradas pelo processo de produção capitalista, assegurado por um Estado autoritário e explorador. Seu ateísmo nega a Deus e afirma o homem.
Certamente, esse recorte do pensamento de Marx é simplista, mas adequado aos propósitos deste texto. O ateísmo de Marx não está, evidentemente, isento de críticas, uma das quais é feita pelo próprio Urbano, em seu livro acima referido. O autor questiona o fato de Marx ter analisado a religião no contexto de uma sociedade capitalista do século XIX, mas não ter sequer levantado a hipótese de que a religião poderia ter uma função diferente numa sociedade socialista. Ademais, Urbano se pergunta se a religião não poderia assumir novas formas. O fato é que, ao pretender profetizar o fim da religião com a revolução do proletariado, com a instauração do que ele, Marx, chamou de “ditadura do proletariado”, o economista alemão sequer suspeitou de que a sua profecia igualmente seria uma ilusão. É fato também que nos países socialistas ainda persistem sociedade dividida em classes, com Estado e religião. Nos países em que o comunismo se instaurou, o Estado assumiu formas totalitaristas, como no socialismo da Coréia do Norte, considerado uma ditadura totalitária.
Costumo dizer que religião e política são duas matérias que inflamam os espíritos, animam paixões, incendeiam atitudes radicalistas que podem deflagrar o terror. Em contextos socialistas, igrejas e religiões foram perseguidas; na educação, se impôs o ensino ateísta, pela conservação da legislação stalinista.
Marx, certamente, fracassou em seu projeto de erradicar a religião. Para alguns críticos, o marxismo se transformou numa religião atéia, dada sua doutrina promitente e dogmática. Segundo Urbano, “os cristãos criticam o marxismo não por causa de seu humanismo, mas por causa de seu humanismo mutilado” (p. 135).
2. Nietzsche e o ateísmo niilista
Friedrich Nietzsche, insigne filósofo alemão do século XIX, ficou conhecido por sua crítica ácida ao cristianismo. Seu ateísmo se desenvolveu, a despeito do reconhecimento de suas raízes cristãs, já que Nietzsche fora filho de um pastor protestante, tendo desejado, ainda na mocidade, tornar-se um pastor também. Talvez, Nietzsche tenha sido o mais lúcido dentre os cristãos; Urbano se pergunta se Nietzsche não seria um cristão reprimido.
Para tentar sumariar a crítica que Nietzsche faz à religião, particularmente ao cristianismo, me apoiarei nos seguintes conceitos cunhados pelo filósofo alemão: o eterno retorno, super-homem e a vontade de potência. Devemos reconhecer, de imediato, que a filosofia nietzscheniana é uma filosofia de afirmação da vida e do homem.
Assim como Marx, que exprimiu seu ateísmo de modo sintético na frase “a religião é o ópio do povo”, Nietzsche também tinha a sua frase aforismática, que era “Deus está morto”. Antes, porém, de compreender o que significa essa afirmação, devemos voltar nossa atenção para a concepção que Nietzsche tinha de religião. Para ele a religião ou o cristianismo negava a vida no âmbito teórico e prático. Reconheceu que, no discurso cristão, o homem e o mundo são aviltados, a vida é desvalorizada em favor de uma vida transcendente. A religião, assim, destrói a vida.
Em Humano demasiado humano (apud. Urbano, p. 166), afirma:
“Nunca houve religião que contivesse, nem mediata, nem imediatamente, nem em dogma nem em parábola, uma verdade. Porque foi de inquietação e da necessidade que cada religião nasceu. Foi através dos erros da razão que a religião se insinuou na existência; terá talvez, ao ver-se posta em perigo pela ciência, introduzido falsamente uma teoria filosófica no seu sistema, para que ali a encontrem estabelecida mais tarde, mas trata-se de artimanha de teólogos, surgida no tempo em que uma religião duvida já de si própria”.
Nietzsche acusa o cristianismo de inaugurar uma moral de rebanho. O filósofo ataca a obra de Paulo de Tarso, a quem se atribui o papel de inaugurador histórico do cristianismo, dizendo ter sido ela produzida “com o cinismo lógico de rabino”, pois que teria deturpado a felicidade proclamada por Jesus. Ao declarar a morte de Deus, Nietzsche restitui ao homem o seu lugar de direito na vida e na história neste mundo. Os homens são os assassinos de Deus, mas não têm consciência de seu assassínio. Deus é criação da fraqueza dos homens, de sua debilidade. A morte de Deus significa a liberdade do homem. Matando a Deus, a humanidade se renova, sai das trevas da submissão e da moral de rebanho e afirma a vontade de potência. Nietzsche não afirmou não acreditar em Deus, afirmou, implicitamente “eu tenho vontade de que Deus não exista”. Deus é, assim, apenas um pesadelo, uma fuga. Não subjaz àquela expressão um estado de luto, mas um sentimento de vitória do homem.
Nietzsche assume as consequências da morte que declara. A consciência da morte de Deus, que para o filósofo surgiu do nada, significa aceitar o nada – ausência plena de sentido. Nisso reside parte de seu niilismo. O homem, reconciliado com o nada, impregnado do sentimento niilista, afirma-se como potência. A vontade de potência exprimisse como a vontade de o homem superar a si mesmo. O homem quer ser Deus, no lugar de Deus deve surgir o super-homem, o homem que valoriza a vida instintiva, que, uma vez reconhecendo a irracionalidade da moral, dos costumes, dos valores, funda seus próprios valores. O super-homem não é um homem todo-poderoso, mas um homem que experimenta a liberdade em toda a sua potência e autenticidade. É o homem livre das amarras do costumes, o homem cuja tarefa é construir seus próprios valores. Para Nietzsche, crer em Deus é agarrar-se a falsos valores, é permanecer entorpecido no estado de ignorância. Destarte, nos esclarece Urbano (p. 174):
“O homem atribui valor às coisas para dominar a vida. Assim, o mandamento cristão do amor é a afirmação dos fracos. Quando falamos em valores, falamos sob a perspectiva da vida. Os valores originam-se da necessidade da vida. Não têm significação metafísica ou religiosa. Se os valores forem projetados na religião, considerados como valores dissociados da vida, tornam-se hostis à própria vida”.
Nietzsche proclama a volta ao nada. Seu niilismo, contudo, é ativo, expressa-se pela vontade de poder. Nele, o homem quer ser, ele é resgatado pela consciência da submissão a valores absurdos. O filósofo proclama os homens a viver esta vida em toda a sua potência. O conceito de eterno retorno, que consiste em pensar o tempo de modo cíclico, de sorte que não se pode admitir uma separação entre um passado, um agora e um futuro, pois que o instante vivido neste exato momento já fora vivido em outro momento. O futuro já é passado, e o presente é tão passado quanto o futuro. O tempo é um retorno eterno. Tudo que se vive já foi vivido. É através do conceito de eterno retorno que Nietzsche tenta superar o niilismo. Segundo Urbano, trata-se de um conceito que encerra em si uma contradição, já que, ao mesmo tempo em que busca superá-lo, também o afirma cabalmente. O eterno retorno radicaliza o niilismo: não há promessa de uma vida transcendente num futuro atemporal, não há Deus que nos assegure tal portentosa felicidade.
Evidentemente, a crítica nietzschiana da religião também sofreu críticas, mas destas não me ocuparei aqui. Consideremos, finalmente, o legado de Freud.
3. Freud: a religião como neurose obsessiva
Podemos encontrar um denominador comum ao pensamento de Marx, Nietzsche e Freud, no tocante à crítica que fazem à religião e à ideia de Deus: todos três tratam-nas como fruto de uma ilusão. Todos três também se arvoram no combate crítico a toda forma de submissão a valores e aceitação de verdades eternas inquestionáveis.
Freud (1856-1839), considerado o pai da psicanálise, nasceu numa família judaica ortodoxa, mas aderiu ao ateísmo ainda na infância. Experimentou certo anti-semitismo de cristãos, o que reforçou seu desapreço pela religião. Freud entusiasmara-se com os auspícios da ciência de sua época, uma ciência que evoluía promissora, especialmente com o surgimento da teoria evolucionista de Charles Darwin, por cujas ideais foi influenciado.
O interesse de Freud não era discutir a existência ou não de Deus. Para ele, Deus não existe; essa ideia é pressuposta em toda a sua tentativa de explicar o fenômeno e o sentimento religiosos. Freud propôs um mito, pelo qual explicava a origem da religião, particularmente do judaísmo-cristianismo.
O psicanalista entenderá as experiências religiosas à semelhança das experiências nos estados de neuroses obsessivas: a ambas há em comum a compulsão por repetir certos atos. A religião significaria a renúncia às pulsões egoístas. Para Freud, Deus nasce de um sentimento de desamparo, experimentado pelo homem, já na sua infância, por consequência da perda da proteção da mãe e, principalmente, do pai. A religião substituiria a proteção paterna pela projeção de um Pai divinizado e elevado ao céu, a quem se delegaria o papel de protetor.
A ideia de Deus decorre da tentativa de o homem dominar a natureza e de defender-se contra as suas forças devastadoras e destrutivas. Assim é que os homens olham-na como um pai todo-poderoso, resgatando a condição infantil, na qual a criança se mostra desejosa do amparo do pai. Como a religião nasce no interior da cultura, afinal, é produto da cultura, e como a cultura é a expressão da necessidade humana de coibir os seus instintos agressivos que, do contrário, levariam a humanidade à ruína, numa “guerra de todos contra todos”, Deus é criado na esperança de que os homens sejam protegidos contra a irracionalidade e as ameaças da natureza.
Assim como o neurótico, o religioso se recusa a aceitar o sofrimento e a aridez da vida. Na neurose, assim como na religião, os homens fogem para um mundo infantil, em busca da proteção perdida. A religião vem preencher um vazio no homem. Embora reconheça que as religiões contribuíram para coibir a agressividade natural dos homens, questiona-as nos seguintes termos: a) por que devemos crer sem exigir provas racionais? b) Devemos crer por força da tradição, da crença de nossos antepassados? c) Devemos crer pelas provas da tradição? Ele nos responderá: a) se se nega a apresentar provas, é porque se sabe não tê-las; b) nossos antepassados acreditaram em muitas coisas, que hoje sabemos serem falsas; c) devemos questionar a procedência dessas provas.
Ao referir-se ao sentimento de dependência do homem para com o divino, escreverá Freud em O mal-estar na cultura:
“(...) não se deve simplesmente a uma sobrevivência dessas necessidades infantis, mas é permanentemente reanimado pela angústia do homem diante da preponderância do destino”.
Já Jung propunha fazer ciência a partir do divino. Em seu tempo, o teólogo alemão Eugen Drewermann, também psicoterapeuta, critica o discurso eclesiático por não alcançar o fundo da alma humana. Para ele, a Igreja não se preocupa com os problemas reais da existência humana. O trágico dessa existência é consequência da natureza pecaminosa do homem. Novamente aqui, está em foco a tendência da Igreja a aviltar a condição humana e o mundo em que os homens vivem. A teologia sobre a qual recai a crítica de Drewemann é a que reza que, para saber, primeiro é preciso crer. O conhecimento chega-nos pela Revelação cristã – revelação esta que não passa de um grande mistério, um modo de mascarar o que, na realidade, é um vazio.
Finalmente, cabe considerar por que razão a sexualidade é privada de seu caráter sacramental, de sorte que o sexo traz o selo de pecado, no Antigo Testamento. As religiões da Natureza e da fecundidade se constroem com o simbolismo masculino e feminino, os quais são destinados, pela relação sexual, a se unirem. A terra é, assim, o símbolo do feminino; e o céu, do masculino. O céu fecunda a terra. A relação sexual é, pois, sacralizada. Temendo o crescimento de tais religiões, o judaísmo, e posteriormente o cristianismo, atribuirá ao sexo o valor de pecado, considerará a sexualidade como uma via para a perdição e para o pecado. Portanto, no Antigo Testamento, o sexo é dessacralizado.
Reitere-se que, para Freud, o sentimento e a prática religiosos decorrem de uma infantilização do homem. Dirá o inventor da psicanálise: “O homem não pode permanecer criança. O infantilismo deve ser superado”. Para Freud, um indivíduo que goza de saúde mental deve escusar essa “neurose obsessiva e universal da humanidade”.
4. Que caminhos se abrem?
Ainda que a exposição do pensamento desses três pensadores, que se dedicaram, entre outras coisas, a refletir sobre a religião e a lançar sobre ela sua crítica, tenha sido muito simples, parece-me que ela nos ilumina alguns caminhos para reflexão. Esquematicamente, veja-se o que podemos colher das reflexões de cada um dos eminentes pensadores:
a) De Marx
Uma das preocupações de Marx foi estudar o que leva as pessoas a não se aperceberem das condições de injustiça e exploração em que vivem na sociedade capitalista. Marx buscou explicar o que fazia com que as pessoas continuassem a viver em tais condições. A resposta à sua indagação se achava no conceito de ideologia. Com o conceito de ideologia, Marx mostrará o porquê de os homens não serem capazes de superar tais condições, visto que a ideologia fornece um conjunto de justificações/ explicações coerentes que invertem a relação entre a ideia e o real. Destarte, na ideologia, as ideias explicam o real, e não ao contrário. A ideologia mascara o verdadeiro real, ou seja, as condições reais de existência. O que é uma condição de injustiça e exploração aparece, nos sistemas ideológicos, como condição justa e igualitária. Por exemplo, a ideologia ensina/ prescreve que o trabalhador trabalha em troca de um salário; mas mascara o fato – o que realmente acontece – de que o trabalhador vende sua força de trabalho, a qual é mais uma mercadoria, em troca de um salário, cujo valor não corresponde ao tempo de trabalho gasto para a produção de uma mercadoria, visto que desse valor é descontada a mais-valia, que é o valor de trabalho não-pago (lucro do capitalista e fonte de seu capital). No processo de produção, tanto os trabalhadores quanto o dono dos meios e das condições de produção (o capitalista), se tornam mercadoria. Nesse processo, os homens são reificados (transformados em coisas). Marx perceberá que tal processo redundará num fetichismo de mercadoria, ou seja, uma situação em que as mercadorias terão, por assim dizer, vida própria, decorrência da alienação. Sabe-se que o termo fetiche é tomado à religião e significa um objeto que tem poder místico ou mágico sobre quem o adora. No fetichismo de mercadoria, as mercadorias parecem ter vontade própria e elas medeiam as relações entre seus produtores, então também transformados em coisas (mercadorias). O valor da mercadoria, que aparece quando da compra pelo consumidor, é produzido em outro lugar e momento. Nem os consumidores nem os trabalhadores têm consciência de como esse valor é determinado; ele, assim, se torna independente tanto de uns quanto de outros.
A religião, interpretada sob a perspectiva ideológica e fetichista, deverá ser considerada, assim, uma forma de ideologia, visto que, na religião, inverte-se a relação entre o real e a ideia. Em outras palavras, entre os verdadeiros produtores e o produto. Assim, na religião, Deus (o produto, a ideia) aparece como criador e os homens (seus produtores reais), suas criaturas. Antropologicamente, a ideia de Deus e as religiões, com todas as suas entidades, rituais e símbolos, são criação humana. Os homens é que criaram deuses, e não ao contrário. Eis, então, a inversão ideológica.
Para Marx, a ideologia é, pois, uma falsa consciência, muito embora tal interpretação não seja aceita por muitos teóricos atualmente. O termo ideologia será, aliás, entendido de modo diferente, dependendo do especialista e de sua perspectiva teórica. Teóricos há que insistiram no caráter hegemônico da ideologia, a saber, no fato de ela servir para estabelecer e sustentar relações de dominação e reproduzir o status quo, que favorece aos grupos dominantes.
Marx acusava as religiões, especialmente o cristianismo, de não se preocuparem com a miséria dos homens, com os reais problemas sociais. A acusação tem fundamento, pelo menos o tinha à época. Vale lembrar que o próprio Leonardo Boff, em seu livro Igreja, Carisma e Poder, oferece um retrato das formações teológicas ao longo do tempo e reivindica uma nova teologia ( a Teologia da Libertação) que se voltasse para as causas populares, para os direitos e necessidades das classes populares. No presente momento, não posso avaliar se a Igreja está mais preocupada em conservar seu prestígio e em policiar a obediência aos seus preceitos ou em mobilizar-se no sentido de participar ativamente do processo social. Lembramos, contudo, que o nosso Estado é laico, o que significa que não pode intervir nos domínios e assuntos eclesiásticos. Igreja e Estado ocupam esferas separadas. O Estado assegura aos cidadãos o direito de professar qualquer religião e crenças. O que nos parece necessário é uma abertura maior da Igreja para a discussão de assuntos polêmicos, tais como o aborto, eutanásia e o casamento homossexual, por exemplo. Recentemente, ao saber que a Dilma estaria disposta a descriminalizar o aborto, um padre solicitou à comunidade de sua paróquia que não votassem na candidata do PT. Refiro abaixo um trecho da reportagem, colhida do site www.band.com.br/jornalismo/eleições 2010.
“Durante o sermão da missa realizada nessa terça-feira dentro da comunidade católica Canção Nova, o padre José Augusto disse aos fiéis que o país irá mudar para pior se a candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff, vencer a eleição.

“Os rumos da nação brasileira estão prestes a mudar para pior se, neste segundo turno - e eu vou falar com clareza - o PT ganhar”, disse ele. Suas falas foram registradas ao vivo pela TV e também foram parar na internet, em vídeo que já foi visto mais de 16.000 vezes na rede mundial de computadores (o vídeo foi posteriormente retirado do Youtube).

“Podem me matar, podem me prender, podem me processar, e, se tiver de ser preso serei, mas eu não posso me calar diante de um partido que está apoiando o aborto”, completou José Augusto, que também se pronunciou contra o casamento homossexual.

Ele ainda afirmou que o PT estaria tentando aprovar leis contra os meios de comunicação religiosos, que passariam a ter uma hora de programação por dia. “Ai daqueles que se filiaram aos partidos comunistas”, pregou o padre. “Quem compactua com pessoas que aderem ao aborto está excomungado”, disse também o religioso.”
Atento à repercussão do episódio, o fundador da comunidade Canção Nova, não hesitou em declarar:
“Ontem, mesmo dia do sermão, o monsenhor Jonas Abib, fundador da comunidade Canção Nova, divulgou uma nota oficial, na qual diz: "a Canção Nova mantém-se alinhada à catequese da Igreja Católica e à sua doutrina comprometida com o direito à vida e à dignidade humana".

Em outro trecho, diz que a Canção Nova "não vê cada candidato por suas bandeiras, mas os acolhe como filhos amados de Deus. Cada fiel deve votar de acordo com suas convicções e com a doutrina social da Igreja. (...) Por fim, peço em nome da Canção Nova, perdão por qualquer excesso", diz ele no comunicado.”
O trecho em que Dilma afirma sua intenção segue-se abaixo:
“Em outubro de 2007, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, foi sabatinada pelo jornal Folha de S. Paulo e disse: "eu acho que tem que haver a descriminalização do aborto. Hoje, no Brasil, é um absurdo que não haja a descriminalização do aborto". O vídeo foi postado na internet por pessoas simpáticas ao PSDB e está presente em blogs de apoio à candidatura tucana.”
b) De Nietzsche
O foco da crítica de Nietzsche parece ser o aviltamento do mundo e do homem pela religião. A tradição judaico-cristã, como sabemos, entende os homens como naturalmente pecadores, pois frutos do pecado original, e o mundo um lugar de perdição, de tentação. Não é por acaso que, de acordo com a representação religiosa da realidade, o mundo ocupa a posição intermediária entre o céu e o inferno, estando os homens, nesse nível intermediário, em conflito; constantemente tentados e indecisos entre a necessidade de buscar a “salvação” pela obediência aos preceitos do céu e o medo de sucumbir ao terror do inferno. O mundo só viria, assim, agravar esse conflito, donde se segue a importância da religião (a qual “re-liga” (“re-ligação”) o homem ao céu, portanto, a Deus). Viver no mundo é viver perdido: nascemos sem saber por que e vivemos para ser salvo sem saber do quê.
Com Nietzsche, podemos trilhar um caminho que nos leva à valorização da vida instintiva, da vida neste mundo, permitindo-nos questionar a desvalorização do homem pela religião e do próprio mundo em que vive. Essa desvalorização que, a princípio, parece entrar em conflito com a ideia de um Deus que ama a humanidade, que é infinitamente benévolo, trata-se de um estratagema para conservar os religiosos num estado de desamparo, de “culpa”, única condição para que se mantenham fiéis à doutrina e às práticas religiosas. Com Nietzsche, podemos dizer que, uma vez assumindo o valor do homem, uma vez restituindo-lhe a vontade de potência, uma vez valorizando esta vida, e não uma suposta vida transcendente, a do além, as religiões e a própria ideia de Deus deixariam de ter razão de ser. Deus, que está morto, segundo Nietzsche, seria, assim, enterrado; e as religiões se esvaziariam de sua força, de seu domínio sobre a consciência coletiva.
Finalmente, com Nietzsche, aprendemos que os valores não são criação de deuses e de religiões, mas dos próprios homens; como tais, são passíveis de transmutação. A chamada “moral de rebanho”, instituída pelo cristianismo, que prega uma obediência cega e dócil, pois irrefletida, cuja origem Nietzsche localiza no apóstolo Paulo de Tarso, principal propagador do cristianismo, deverá ser substituída com o nascimento do super-homen, uma classe de homens que reconhece seu potencial e explora todas as suas possibilidades. Deus sai de cena para que o super-homem ocupe o lugar de protagonista de sua própria vida.
Talvez, pudéssemos dizer que Nietzsche se notabilizou pelo seu espírito acidamente crítico e mordaz; um espírito demolidor de fundamentos, de crenças cristalizadas e irracionais, de dogmas que escravizam. Mas, certamente, Nietzsche foi um filósofo intrigante; quiçá, terá provocado admiração e repulsa, amor e ódio. Às vezes, temos a impressão de que ele era um soberbo, até intolerante e preconceituoso. Como fosse contrário aos costumes, ficamos tentados a considerá-lo um homem imoral, defensor da desrazão dos valores e profeta da decadência da sociedade ocidental. Pouco ainda li sobre Nietzsche, portanto, não me atrevo a avaliar criticamente sua contribuição à filosofia, decerto significativa e rica. Gostaria, entretanto, de referir três trechos do livro Ecce Homo (“Eis o homem”), que constitui uma autobiografia. Lá encontramos, no capítulo Por que sou um destino,
“Tenho conhecimento do meu destino. Sei que algum dia o meu nome estará relacionado, em recordação, a algo de terrível, a uma crise como nunca ocorreu, à mais tremenda colisão das consciências, a uma sentença definitiva pronunciada contra tudo aquilo que se acreditava, exigia e santificava até então. Eu não sou um homem, sou uma dinamite. E, não obstante tudo isso, não tenho rompantes de fundador de religiões; as religiões são coisas de gentalha (...)”
“A minha verdade é espantosa, porque agora a mentira se denominou verdade. “Transmutação de todos os valores”; eis a minha fórmula para um ato de suprema determinação de si mesmo na humanidade, ato que em mim tornou carne e gênio. O meu destino exige que eu seja o primeiro homem honesto, que eu me sinta em oposição às mentiras de vários milênios”
“Sozinho, fui eu o descobridor da verdade, porque fui o primeiro a sentir como tal a mentira... O meu gênio está nas minhas narinas. Polemizo como nunca se polemizou e, entretanto, sou o contrário de um espírito negativo”.
(p. 117)
c) De Freud
Vimos que Freud estava, particularmente, interessado em buscar as origens da religião, bem como a origem do sentimento religioso. Ou seja, queria saber que força é esta que impele os homens à religião. Na obra Totem e tabu, Freud recorrerá a um mito para explicar como a religião teria surgido. Assim, para Freud, ela surge de um assassínio. O homem primitivo adorava o totem. Este era um animal comestível. Uma vez ingerida a sua carne, os homens das tribos acreditavam estar possuídos do poder do totem, que seria transmitido às gerações. Como os membros das hordas tinham de submeter-se ao poder do mais forte, sob cujo domínio mantinha as fêmeas, eles se uniram para assassinar o chefe. O crime sucedeu várias vezes, até que julgaram por bem fazer um pacto, segundo o qual deveriam passar a respeitar o totem. Também instituíram a exogamia, com vistas a evitar a luta entre eles. Para Freud, dava-se aí o início das sociedades organizadas.
Evidentemente, há muitas teorias que tentam explicar como as religiões começaram, nenhum, aliás, pode ser provada. A origem das religiões continua um mistério insolúvel. Também a explicação mítica freudiana não resistiu a críticas, já que carece de fundamentação histórica. Muitas de suas hipóteses são hoje consideradas ingênuas e, portanto, caíram por terra.
Freud não estava, evidentemente, interessado na verdade histórica. Seu ateísmo orientou suas indagações e crítica à religião. Muitos que se seguiram a Freud não viam a religião como fruto de uma ilusão, de um desamparo infantil. Discípulos como Alfred Adler e Carl Gustav Jung se distanciaram de Freud, no que toca à compreensão deste e de outros aspectos relativamente à psicanálise. Adler cuidou que Freud teria dado demasiado valor à libido reduzido tudo quanto diz respeito ao comportamento dos seres humanos a ela. Jung rejeitou seu ateísmo. Adler, por exemplo, entendia a ideia de Deus como uma busca humana pela perfeição. Portanto, simpatizava com esse desejo legitimamente humano.
Creio em que o mérito de Freud tenha sido apontar para o hiato entre a natureza e a cultura. Ter sugerido que esta é o domínio da repressão ou da necessidade de reprimir os instintos agressivos dos homens – se bem que aqui caberia discutir se os homens são naturalmente agressivos, tal como pressupunha Freud – nos abre a possibilidade para a reflexão sobre o papel da religião em termos morais e éticos, o seu papel na vida dos homens, visto ser ela produto cultural. O problema é que, não raro, ficamos com a impressão de que a Igreja e as religiões pairam sobre a realidade sócio-cultural, de que são realidades suprassociais, supraculturais, porque produto do Absoluto, do Transcendente - o que é uma ilusão.
Muito ainda se poderia dizer sobre as contribuições da filosofia para a compreensão do fenômeno religioso e sobre Deus. Certamente, embora tenha me esforçado por sistematizar de modo o mais coerente possível as ideias daqueles pensadores, o quadro apresentado está longe de ser cabal; mas o creio bastante para incitar a reflexão, para abrir aquedutos pelos quais possam escoar pensamentos que nos permitam ancorar nosso espírito para além da grossa camada de obscurantismo e ignorância de que se revestiu nossa consciência quando do contato com o universo religioso. Propiciar um espaço crítico, um ambiente para férteis meditações, desimpedidas de censuras, de pavores absurdos, do medo que escraviza e nos torna conformados, esse é o objetivo deste blog.