segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Fotografia


Fotografia

Ao cabo de um dia inexpressivo, a noite, madrasta traiçoeira, visita-me sombria. Ao romper desta noite, ocorreu-me que jamais tive sobre a prateleira do quarto um porta-retrato com uma fotografia em que se estampasse uma imagem de mim junto a uma imagem de amor encarnado. Nunca experimentei a sensação – provavelmente, aprazível - de deter-se a olhar um encontro prazenteiro e congelado naquele pedaço de papel fotográfico, que aprisiona os bons momentos de nossas vidas, para que eles não se esvaiam na memória e também para que eles sejam sinais à posteridade de que houve vida em nossos corpos. A fotografia, à semelhança de um museu, eterniza a nossa existência, embora nem nosso corpo nem nossa alma permaneçam; somos apenas impressões de vida; resquícios de um estado de existência; imagens fixadas e inanimadas, abandonadas a um tempo que não voltará... Na fotografia, nosso corpo está amalgamado com o tempo; nesse pedaço de papel, finalmente, tornamo-nos capazes de nos unir ao tempo de tal modo, que compomos com ele uma só unidade, morta, mas inseparável e eternamente feliz, desde que a natureza não se encarregue de pulverizar o papel, reduzindo-o a migalhas de impressões de vida... Sucedendo isso, reunir-se-ia a fotografia – impressão de felicidade congelada – a todas as outras matérias do mundo, num laço de comunhão fraterna, porquanto "tudo quanto é matéria torna-se pó"...
Só não se tornam pó a indiferença, o desamor, a frigidez, a leviandade humanas; a intolerância, o racismo, o sexismo, a ignorância crassa. Todos esses sentimentos ou atitudes, irmanados, alocam-se no corpo de algumas pessoas, ao longo da vida; e deles se tornam hospedeiras... Não me é possível dizer que, após transpassar os portões da morte, um ser humano hospedeiro possa expurgá-los; cuido que assim deve ser; afinal, não haveria razão para crer em que, casando-se com a morte (casamento inevitável e, de fato, legítimo, pois o padre é Deus), o infeliz tivesse de experimentar o dissabor de suas relações afetivas novamente... Espera-se, penso eu, que, no enlace com a morte, viva-se, finalmente, a comunhão pura e perfeita do amor; pura, porque não estaria eivada de egoísmo (não haveria mais o “ego”), de indiferença, de mágoa, de lubricidade, etc. ; perfeita, porque traria o selo de Deus, que não discrimina os homens rotulando-os de teístas e ateus, de fiéis e hereges.
O álbum de fotografia! Ah! É um baú de ilusões... Sim, mas de ilusões verdadeiras... Afinal, os acontecimentos que povoam cada pedaço de papel que ali se acha foram factuais, muito embora, ao deter-nos na observação das imagens, se nos afigure que podemos revivê-los, submergindo naqueles “mundos” congelados e tornando-nos mais uma personagem das “cenas” de nossas vidas, das quais fomos, muita vez, os protagonistas. Algumas outras vezes, delegamos esse papel a uma tia esclerosada, a cujos desejos não nos poderíamos obstar, sob pena de viver sob murmúrios de reprovação ou de imprecação; outras vezes, tivemos de ceder aos caprichos de um tio beberrão e mal-amado que, após ter enviuvado, já não distingue mais os espécimes de pessoas que revisitam sua cama. É... Felizmente, o leitor nunca teve um tio assim, não é? Mas ele existe; vive quiçá na mais politizada e decorosa família brasileira, ostentando um sorriso brejeiro, enquanto, com uma das mãos, segura uma caneca de cerveja, obtida em Beer Feast, a custo de alguns arranhões e hematomas, ao lado de uma dessas “turbinadas” que pousam em qualquer aeroporto, ainda que “o controlador de vôo” seja tão incompetente quanto arcaico. Talvez, ele conserve uma foto assim, relegada ao acervo de suas fanfarrices. Não se deve, jamais, aceitar uma foto dessas, sob pena de macular a morada cândida dos acontecimentos perfectizados, que, com inestimável esmero, se conservou...
Ah! Como é bom ostentar na estante de casa uma foto de um encontro amoroso, de um beijo selado perante um bando de desconfiados e de agourentos, que, às ocultas, maldiziam a união... Ah! Como é bom, ante o retrato, desatar a chorar, de sorte que as lágrimas que nos caem dos olhos deitem sobre o papel como pequenos flocos cristalinos de dor, em cuja composição entra uma grande dose de saudade diluída numa densa dose de mágoa... Quando se abandona a um pranto convulso, sente-se o diafragma comprimir, ao que se seguem espasmos dolorosos da alma, que, debalde, conquanto com notável perseverança, procura se libertar da prisão corporal e alçar vôo catártico aos Céus das virtudes divinas. Nessas horas, o ar – ópio dos pulmões – nos escapa; a escuridão que nos assalta os olhos faz-nos entregar-nos ao travesseiro, já embebido em lágrimas.
Ah! Não tenho uma fotografia assim... Estou imune a essa experiência desgostosa, por isso me lancina impiedosa tristeza fotografada em minha alma.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O controle da televisão


A regressão da consciência pela televisão


No seu trabalho Simulacro e Poder – uma análise da mídia, Marilena Chauí, referindo a lição de Adorno e Horkheimer, patenteia-nos:

“Adorno e Horkheimer assinalam que a “atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural” não deve ser explicada em termos psicológicos, pois “os próprios produtos paralisam aquelas faculdades”. São feitos de modo que a sua apreensão adequada exige rapidez de percepção, capacidade de observação e competência específica, porém impedem, efetivamente, a atividade mental do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desenrolam rapidamente à sua frente”.

Começarei, pois, anunciando a minha tese: é possível e indispensável construir percepções críticas das feições do real. Insisto em que é imprescindível ampliar a nossa percepção do real, de modo a apreender criticamente os diferentes aspectos da realidade social, cultural e política. Para tanto, é importantíssimo o convívio aturado com o livro. A leitura é que abrirá as janelas pelas quais poderemos ver o mundo de diferentes perspectivas, poderemos compreendê-lo e interpretá-lo com mais profundidade. No cotidiano, conservamos nossas crenças e visões parciais do real. Nossas interpretações são rasas e superficiais. Urge, assim, aguçar nossa sensibilidade e percepção para apreender as causas e fatores que subjazem à realidade imediata e aparente, e que a explicam verdadeiramente, rompendo, assim, com as representações ideológicas, que buscam justificar uma determinada ordem social. Essa ruptura se faz pela apropriação do livro, como instrumento que possibilita maior participação no processo social.
Vou considerar, para efeito de reflexão, dois produtos televisivos oferecidos ao consumo da massa telespectadora: o Big Brother Brasil – um dos enlatados americanos que uma grande maioria esmagadora da sociedade brasileira costuma consumir – e um quadro do Fantástico, em que se exibia a vida privada de famílias brasileiras, que eram supervisionadas por especialistas, cuja função era ensiná-las a viver e prescrever o que elas deveriam fazer para solucionar seus conflitos.
O Big Brother foi inspirado no livro 1984, de George Orwell, escrito em 1948 (data invertida para 1984), em que se descreve uma sociedade totalitária, cujos habitantes são permanentemente vigiados por câmeras de televisão. A infração de alguma regra ou lei implicava prisão e tortura. As pessoas, embora não convivessem umas com as outras, sentiam necessidade de se comunicar; para tanto, elas “conversavam” com uma imensa tela de televisão, através da qual se exibia um rosto bondoso, chamado de “O Grande Irmão”, que as vigia e lhes falava, sem, na realidade, dizer-lhes nada. Nessa sociedade totalmente controlada, havia o Ministério da Verdade, que era responsável por produzir a mentira, deturpando fatos e oferecendo versões modificadas do real, que atendiam aos interesses do Grande Irmão. Instituído um departamento chamado de “Novilíngua”, tornou-se possível modificar os sentidos das palavras, de sorte que as pessoas não conseguiam compreender o verdadeiro sentido delas.
Vale notar que o conteúdo crítico da obra foi esvaecido, no momento em que ele foi aproveitado para a produção de um programa televisivo que visa ao entretenimento da massa. Marilena Chauí (2008: 297), nesse tocante, escreve:

“Essa história terrível sobre o controle de corpos, corações e mentes das pessoas por sistemas cruéis de vigilância em sociedades totalitárias teve seu conteúdo crítico inteiramente esvaziado ao servir de modelo para um programa de televisão “engraçado e divertido”, um entretenimento, como acontece com tudo na indústria cultural”.
Não intento refletir sobre a relação da televisão com a Indústria Cultural; no entanto, cumpre salientar que a televisão é parte integrante da Indústria Cultural – expressão que recobre a exploração comercial e vulgarização da cultura, transformada em produtos para consumo. A Indústria Cultural é a indústria do entretenimento – entretenimento que, segundo Adorno, acarreta resignação e alienação.


Certa vez, envolvi-me numa altercação com um amigo, telespectador típico do Big Brother: sua consciência crítica é embotada e sua ignorância o fez acolher passivamente a proposta do programa – entreter. De sua parte, houve também uma postura anti-intelectualista, já que tendeu a revoltar-se contra as posições intelectuais que insistem em criticar a influência danosa e o alcance do programa na vida do homem comum, arrebanhando milhões de pessoas no país inteiro que, em frente à tela do televisor, têm sua atenção e interesse captados para a superficialidade, a mesmice e a vulgaridade.
Meu amigo não se apercebia de que programas desse gênero visam à diversão e ao entretenimento que alienam, que embotam a consciência crítica, que impedem a atividade do pensamento. Não se dava conta de que é possível e necessário experienciar o entretenimento que não aliene, mas que, desafogando a consciência do cotidiano sufocante, promova oportunidades para novas formas de perceber, entender e sentir o mundo. Podemo-nos entreter assistindo a filmes americanos, como os enlatados do tipo “Não é mais um besteirol americano”; mas o cinema promove quase sempre algum grau de reflexão crítica, o que não sucede com os produtos televisivos a que somos adaptados. Aliás, o próprio nome do filme é uma expressão crítica que ironiza as comédias pastelão americanas, caracterizadas, especialmente, por semi-nudez e banalização da morte e violência. Acrescente-se que há filmes norte-americanos que propiciam a reflexão, tais como Inteligência Artificial, O homem bicentenário, O Show de Truman, Rede de Intrigas, para citar alguns. No filme Uma noite no museu, estrelado por Ben Stiller e Robin Williams, há uma cena em que um caminhão de limpeza urbana atropela homens da caverna, pulverizando-os. A cena provoca risos, mas poucos talvez fossem capazes de perceber que, ali, se representava a pulverização ou esquecimento do passado histórico pela força da modernidade e de seus avanços tecnológicos. O caminhão de limpeza, aparelhado com recursos tecnológicos, representa o moderno, o progresso suplantando o “antigo”, o “atrasado” (os homens da caverna). Representa, enfim, a necessidade pós-moderna de superação de um passado, de uma história que é negada pela supervalorização de um presente perene e vazio.
O Big Brother oferece um conteúdo desinteressante a quem se dedica às experiências intelectuais diárias. Ao homem habituado à prática de leitura regeneradora não interessam as intrigas, as supostas relações sexuais, os mexericos, a vulgaridade, as “situações-limites” e, diga-se de passagem, constrangedoras a que são submetidos os participantes do programa; tampouco interessam as patuscadas promovidas, as conversas triviais e superficiais, que giram em torno do comportamento dos adversários. E cabe salientar que tudo ocorre no esquema de competitividade típico de uma sociedade de capitalismo avançado. Tudo se dá numa atmosfera que aprisiona os participantes como ratinhos em laboratórios cuja resistência física e sociabilidade são testadas, sob a aparência de um “jogo” cujas jogadas são manipuladas para atender aos interesses de audiência. Constrói-se um “faz-de-conta” que absorve o telespectador, já sob o efeito da infantilização promovida pela televisão, numa atmosfera marcada pelo anestesiamento da consciência reflexiva.
Há quem, beneficiário de televisão fechada, assista à imagem de uma piscina vazia ou de pessoas dormindo em quartos. Não raro, são essas as imagens oferecidas ao grande público do Big Brother. Do outro lado da tela, ficam as pessoas esvaziadas de pensamento reflexivo, “aprisionadas” pela expectativa de que se iniciem alguns embaraços de ancas ou algum mexerico. O tempo consumido em frente à tela da televisão, quando da apresentação do programa, poderia ser mais bem aproveitado; é um tempo desperdiçado que o livro e as atividades intelectuais poderiam preencher.
O Fantástico, programa exibido pela Rede Globo aos domingos, entretinha seus telespectadores com um quadro em que famílias brasileiras de classe média eram vigiadas por câmeras e acompanhadas por especialistas que ensinam como se deve viver, o que se deve fazer. Do outro lado, há um público que dá opinião e "escolhem" os novos hábitos que devem ser assumidos pelos membros da família. A par da tentativa de a televisão e os especialistas intervirem imediatamente na vida da família, há a invasão da privacidade que é oferecida como um banquete aos telespectadores. Não raro, exibem-se as intrigas entre irmãos em rede nacional para o deleite do grande público.
O indivíduo arguto e crítico apreende, sob a aparência de uma prestação de serviços, sob a aparência de uma tentativa de conscientização, a diluição da privacidade e a intervenção da televisão e dos especialistas, que são convocados a orientar os membros da família nos seus afazeres cotidianos. Marilena Chauí nos adverte que há em nossa sociedade um discurso da competência, disseminado por profissionais especializados nas mais variadas áreas do saber humano, que nos ensinam como viver, o que fazer, o que pensar. Esse discurso produz um efeito de verdade e, por ser reproduzido por quem detém o saber, reveste-se do poder de inculcar ideias, opiniões, formar hábitos, comportamentos; afinal, é interiorizado por um público constituído de indivíduos dóceis (submissos, obedientes), passivos e intimidados, que crêem não deter saber algum, que se crêem incompetentes. O programa do Fantástico ilustra a interferência direta e poderosa desses profissionais a serviço dos interesses comerciais dos meios de comunicação, como a televisão. Na sociedade imagética, sucede a espetacularização da vida, inclusive da vida privada das famílias.
Do exposto, parece lícito concluir que não estamos distantes de uma sociedade como a que é descrita no livro de Orwell, especialmente se levamos em conta os recursos tecnológicos empregados por serviços de espionagem no Brasil e no mundo – serviços que têm, cada vez mais, atendido aos interesses das pessoas comuns, como nos casos de mulheres e homens que supõem estar sendo traídos pelo parceiro. Nos estabelecimentos públicos (bancos, consultórios médicos, etc.), e também em elevadores, é comum encontrarmos uma placa em que se lê a mensagem “Sorria, você está sendo filmado”.
Lembro que a conscientização sobre a importância de reciclar, de cuidar da saúde, mediante uma dieta adequada e exercícios físicos, de evitar o desperdício (de luz, água, alimentos, etc.) deve ser estimulada, mas tal conscientização pode ser conseguida com programas de entrevista e debate (como o Sem Censura, da TVE Brasil, por exemplo), com leitura de reportagens e livros, com palestras em universidade e em escolas, etc., e não através de programas que fazem diluir-se o limite entre o público e o privado, expondo a vida privada a toda a sociedade, que a consome como num banquete.
Somente a leitura assídua e diversificada pode regenerar os sentidos que foram embotados durante o tempo em que o telespectador, anestesiado, passou em frente ao televisor. E cabe lembrar que, ao contrário do que se costuma pensar, a televisão é que cria e se propõe satisfazer os desejos que supomos ter. Tais desejos são produzidos em nós pela propaganda e pela publicidade exibidas na televisão. Assim, expressou-se Marilena Chauí (2008) a respeito da televisão na vida do homem comum:

“(...) como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos, e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento, os meios satisfazem imediatamente nossos desejos porque não de nós atenção, pensamento, reflexão, crítica e perturbação de nossa sensibilidade e nossa fantasia. Em suma, não pedem o que as obras de arte e de pensamento nos pedem: trabalho sensorial e mental para compreendê-las, amá-las, criticá-las, superá-las”.

E vale acrescentar: a televisão, antes de inibir o exercício do pensamento reflexivo, sequer o exige.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

René Descartes é considerado o fundador da filosofia moderna e maior representante da racionalidade


Como nos tornamos humanos?


Este texto resulta de um sentimento de perplexidade que se sintetizou num maravilhamento que cuidei deveria partilhar com vocês, leitores. Esse estado de alma é decorrência da leitura do primeiro capítulo do livro As paixões ordinárias, de David Le Breton, intitulado de Corpo e simbolismo social. A questão fundamental sobre a qual o autor se debruça é a emergência das emoções como produtos culturais. A tese basilar se exprime com as seguintes palavras:



“As percepções sensoriais, ou a experiência, e a expressão das emoções parecem emanar da intimidade mais secreta do sujeito; entretanto, elas também são social e culturalmente modeladas. Os gestos que sustentam a relação com o mundo e que colorem a presença não provêm nem de uma pura e simples fisiologia, nem unicamente da psicologia: ambas se incrustam a um simbolismo corporal que lhes confere sentido, nutrindo-se, ainda, da cultura afetiva que o sujeito vive à sua maneira”.
(p. 9)

O excerto leva-nos à conclusão de que não existe uma origem fisiológica absoluta, tampouco psicológica, para as nossas emoções. Raiva, rancor, amor, ciúme, etc. são emoções que aprendemos a manifestar por força da nossa socialização. Tal proposição ficará elucidada ao longo do desenvolvimento deste texto.


1. O animal humano


          A razão, a linguagem e a cultura são instâncias da realidade responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies de animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele; sua inserção na realidade do mundo depende de um processo de socialização que é ininterrupto. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real. Ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por um consistente processo de aprendizagem ao longo da vida. Os animais, no entanto, estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para a sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc., mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de contar com a ajuda de outros significativos que o acolhem (particularmente, seus pais).
A criança aprende a sobreviver em contato com as normas de sua sociedade que, através de processos formativos, vai criando as condições necessárias para que ela “descubra” o mundo, se relacione com ele de modo ativo e construtivo. Evidentemente, a aprendizagem, que é um processo de modificação do comportamento na experiência, serve para a adaptação do homem à estrutura de sua sociedade. Para ilustrar a atuação dos agentes sociais na formação da consciência da criança, convém atentar para as palavras da psicóloga Maria Luiza Silveira Teles (1989: 21):
“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
A vida em sociedade requer que cada indivíduo tome parte da dialética social; para tanto, constitui um processo importante da imersão do indivíduo na estrutura social a interiorização. Ela constitui a base primária de compreensão de nossos semelhantes e do mundo enquanto realidade social dotada de sentido. Na interiorização, a sociedade se interioriza em nós, ou seja, apreendemos os processos subjetivos do outro, tornando-o subjetivamente significativo para nós. A subjetividade do outro torna-se significativa para nós. Note-se bem que, na interiorização, um indivíduo assume o mundo em que os outros vivem. O mundo dos outros, uma vez compreendido por um indivíduo, passa a ser o seu mundo também. Cada um passa a fazer parte do ser do outro. É por meio da socialização, que é o processo pelo qual o indivíduo é amplamente e consistentemente introduzido no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela, que o indivíduo torna-se sujeito e, portanto, capaz de viver em sociedade. Essa socialização é gradativa: primária na infância, tendendo a ampliar-se, à medida que a criança cresce e se desenvolve.


2. Natureza e Cultura


O termo cultura será entendido aqui como a totalidade das características de uma realidade cultural (Santos, 2006), e não como sinônimo de acervo de conhecimentos que um indivíduo acumulou. Cultura é uma dimensão do processo social, é uma construção histórica, portanto, humana; é produto, pois, de uma coletividade humana.
Creio ser assaz esclarecedora a definição de cultura oferecida pelo eminente antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, que transcrevo abaixo:
Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante de certas situações”.
A cultura é o campo da ação e da vontade humanas; a natureza é o reino da necessidade e da causalidade. Na natureza, as coisas estão organizadas segundo uma ordem necessária, segundo leis sobre as quais os homens não têm domínio; na cultura, os homens agem segundo sua vontade, a fim de atingir determinados objetivos; é nesse domínio que se instituem os valores de bom e mau, de verdadeiro e falso, de útil ou nocivo, de belo e feio, etc.
Gostaria de destacar dois aspectos importantes na definição de cultura: o primeiro afeta à sua dimensão simbólica e essa característica leva-nos a reconhecer que a relação entre os homens com a realidade que os envolve é uma relação fundada em significações, dependente, portanto, da linguagem. O segundo toca ao fato de a cultura servir como uma espécie de “lente” através da qual o homem percebe, interpreta e compreende a realidade. Esta não pré-existe às suas experiências culturais, mas é uma construção da interação entre a sua cognição, percepção, linguagem e cultura.
A cultura surge no momento em que os homens estabelecem um sistema de regras e conduta, que visam a assegurar a sobrevivência da comunidade. Essas regras não podem ser transgredidas sob pena de alguma forma de punição. Os homens, ao criarem a Lei, organizam toda a vida da comunidade; determinam-se, assim, os modos de transmissão de costumes às gerações posteriores e preside-se a ações que serão responsáveis pelas instituições tais, como a família, a religião, as formas de trabalho, as formas de poder, guerra e paz, etc. Com a Lei, os homens dão a sua existência, que não é simplesmente biológica, uma concretude simbólica. É pelo poder simbólico da linguagem que os homens atribuem às coisas, aos objetos, ao entorno biossocial em que vivem significações ou sentidos. As relações do homem com o mundo são relações essencialmente simbólicas. Por exemplo, costumamos atribuir valor ou significado a objetos (imagens religiosas, patuás, vestimentas usadas em rituais, etc.). A dimensão simbólica é responsável pelo estabelecimento dos valores, tais como “bem”e “mal”, “bonito” e “feio”, “verdade” e “falsidade”, etc. Lembro que tais palavras designam valores que atribuímos às coisas.
Foi a proibição do incesto e o costume de comer alimentos cozidos que nos distanciaram do universo natural. Disso se conclui que a sexualidade e a culinária foram responsáveis por introduzir a dimensão simbólica na vida humana. Graças a essa dimensão, que inclui também o trabalho, os seres humanos tomaram consciência do tempo e de diferenças temporais, como passado, presente e futuro. Ademais, tomaram consciência da morte e lhe atribuiu sentidos; organizaram o espaço, significando-o com as noções de perto, distante, abaixo, acima, ao lado, etc. Os homens passaram, graças à diferenciação do tempo e do espaço, a se relacionar com o ausente, distinguindo, por exemplo, o sagrado do profano, os deuses e os homens.
Podemos destacar, abaixo, em síntese, a importância da dimensão cultural na vida humana nos seguintes itens:

a) A cultura determina o comportamento humano e fornece justificações para as suas realizações;
b) Os padrões culturais, subtraindo, ainda que parcialmente, dos homens os instintos, os orientam em seus atos;
c) A cultura permite ao homem adaptar-se aos diferentes ambientes naturais;
d) A cultura permite ao homem modificar o ambiente em que vive, transformar o mundo;
e) A cultura torna o homem dependente da aprendizagem, libertando-o de um condicionamento genético, ou seja, de uma relação imediata com o meio determinada geneticamente.
f) A cultura, porque é um processo acumulativo de experiências históricas de gerações anteriores, estimula e, ao mesmo tempo, limita a atuação dos indivíduos.

Para encerrar esta seção, gostaria de referir o passo do antropólogo Roque de Barros, em seu livro Cultura – um conceito antropológico (2008), em que podemos compreender melhor a ideia de que a cultura fornece-nos uma moldura ou um quadro referencial pelo qual “vemos” o mundo:


“O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”.
(p. 68)


O exemplo mais interessante oferecido pelo antropólogo, com o qual abro caminho para a próxima etapa de minha discussão, que se desenvolverá sobre o processo de humanização do homo sapiens pela cultura, é o do riso. O riso, que é uma propriedade dos homens e de primatas superiores, é primariamente um fenômeno biológico, resultante da contração de certos músculos da face e da emissão de um dado som vocal. Em geral, o riso exprime estado de alegria. Não obstante a natureza biológica do fenômeno, os homens riem diferentemente. Conta o autor que um índio Kaapor, ao rir, emite um som profundamente alto, de modo que sua risada assemelha-se a gritos de guerra; ademais, a expressão facial em nada parece com a que estamos acostumados. Um observador de fora, ao ver um japonês rindo, poderia concluir que todos os japoneses riem da mesma maneira, muito embora os japoneses concordem em que o riso varie de uma pessoa para outra em sua cultura. Os japoneses percebem uma variação de um mesmo padrão cultural, que não é percebida por um brasileiro, por exemplo.
Do exposto, devemos reconhecer que gestos, comportamentos que, aparentemente, parecem ser reflexos de disposições biológicas são, na realidade, modelados culturalmente. É da influência da cultura sobre o corpo que vou me ocupar na próxima seção.



3. As crianças selvagens


Em Paixões Ordinárias – livro já referido no limiar desta exposição -, David Le Breton apresentará casos impressionantes, bem documentados, de cuja veracidade o próprio autor diz não ser possível duvidar, de crianças que foram abandonadas e acolhidas por certos animais, entre os quais lobos. Evidentemente, nos dirá o autor, que muitas delas foram devoradas por esses animais; outras, no entanto, foram livradas da morte e acolhidas por eles. Dou lugar à voz do autor, que nos conta:
“(...) dispomos de informações precisas a respeito de uma dezena de casos de crianças-lobos, evocados por R. M. Zingg, na obra que este autor dedicou ao tema. A história de Amala e Kamala é, particularmente, a mais rica em documentação, em virtude da publicação do diário do pastor Singjh que, juntamente com sua esposa, acolheu as meninas durante toda a vida das mesmas”.
(p. 19)
E prossegue:
“No ano de 1920, durante uma viagem à região de Midnapore, o pastor é advertido pelos indígenas da presença de “homens fantásticos” na floresta. Em companhia de alguns homens, ele vai até o local e, ao crepúsculo, avista três lobos adultos, dois filhotes de lobos e duas crianças – de aspecto irreconhecível – saírem de seu covil. Essas últimas se comportam exatamente como os lobos, primeiro mostrando suas cabeças, com alguma precaução, farejando e observando de todos os lados, antes de deixar o esconderijo. As duas meninas foram capturadas, adotadas pela família do pastor e receberam os nomes de Amala e Kamala. A constituição física das crianças verificou-se rica em ensinamentos: maxilares proeminentes, dentes comprimidos e cortantes, caninos longos e pontiagudos, olhos estranhamente brilhantes na penumbra, articulações inflexíveis nos joelhos e quadris. Espessas calosidades marcavam as palmas de suas mãos, cotovelos, joelhos e as plantas dos pés. Suas línguas pendiam de lábios grossos e escarlates. Elas imitam a respiração ofegante e o bocejar dos lobos, abrindo amplamente os maxilares. Elas enxergavam no escuro sem dificuldade.”
(idem)
O autor relata também que as meninas bebiam leite e água como os gatinhos. Como se vê, o comportamento delas foi adaptado ao comportamento dos lobos. Isso implica o reconhecimento de que o corpo humano é maleável, adaptável às condições naturais em que vive.
Ensinará o autor:
“Nesse período da vida, durante o qual a criança socialmente integra e assimila a função simbólica do seu grupo; aquele que foi isolado pelas circunstâncias e posto na situação excepcional de “adoção” por um desses animais hospitaleiros ao homem, não tem alternativa senão calcar sua relação com o mundo sobre aquilo que ele observa no cotidiano. Nos primeiros anos de vida, a criança revela uma imagem fidedigna, posto que amiúde desairosa, dos comportamentos daqueles que a entornam. Neste caso, o animal vem preencher, com suas representações específicas, as potencialidades incultas em consequência do rapto do meio humano”.
(pp. 20-21)
É interessante notar que os animais cumpriram o papel do outro significativo para essas crianças. A experiência corporal delas é modelada pelo comportamento dos lobos. Um sentimento como o de alegria era desconhecido delas, pois, como relata o pastor que as acolheu, elas nunca riam. As únicas emoções que pareciam conhecer eram a cólera ou a impaciência. Sentimentos como o de vergonha, o de pudor também eram ignorados por elas. Acostumadas a viver em ambientes gélidos, não tinham sensibilidade ao frio. O processo de aculturação em casos como esse, em geral, não é completamente bem-sucedido; casos há em que a morte é inevitável.
“No caso das meninas de Midnapore, Amala não sobreviveu a alguns meses de captura; Kamala, ao revés, assimilou um princípio de socialização graças aos esforços do Pastor Singh e de sua esposa. Ela aprendeu a ficar na posição ereta, conheceu o sentimento de pudor, o riso, a sensibilidade ao frio, um princípio de linguagem, adquiriu o controle esfincteriano e fecal, modificou os seus gestos, etc.. Lentamente, cercada da afeição do pastor e de sua esposa, ela adquiriu uma atitude receptiva à ritualidade social”.
(p. 22)
A história das meninas Kamala e Amala patenteia-nos que o homem é um ser dotado de potencialidade, ou seja, de uma disposição impressionante à sobrevivência em quaisquer condições a que se veja entregue. Novamente, lançam luzes as palavras do autor, que observa:

“Experimentando tais fronteiras como uma evidência, as crianças que dividem alguns anos de sua existência com animais interpelam-nos profundamente sobre o sentido do vínculo social, e, paralelamente, sobre os limites do corpo. Suas histórias fendem um abismo em certezas aparentemente inquebrantáveis. Talvez seja por esse motivo que os debates sobre o tema raramente evitam apaixonadas manifestações. Após o retorno à comunidade humana é difícil afastar a impressão de que suas histórias revelam campos e suas inteligências às dimensões aceitáveis socialmente. A maioria das crianças “selvagens” abduzidas de seu meio de adoção morre precocemente”.
(p. 23)
O caso de Victor do Aveyron é, igualmente, impressionante, mas um pouco diferente das meninas de Midnapore. Victor, antes de ser abandonado - condição em que permaneceu por longo tempo - viveu um curto período de socialização, o que lhe permitiu sobreviver em tal condição. Foi capturado por camponeses, em 1800, depois de ter sido visto pela primeira vez em 1797. O menino ficou sob a tutela de um pedagogo, Jean Itard. Lemos o seguinte a respeito de um acontecimento da vida do garoto:

“Em pleno inverno, Itard, por vezes, avistara Victor nu, rolando sobre a neve. As temperaturas mais baixas não causam incômodo ao seu corpo. Itard admiravas-se com a resistência térmica da criança e com a sua jubilação em face do rigor dos elementos. (...) O pedagogo então submeteu Victor a uma série de ações enérgicas visando a perturbar as percepções térmicas que esse último havia inventado para si quando vivia nos planaltos do Aveyron. Ele relatou no seu diário com qual rigor infligia a Victor, diariamente, demorados banhos quentes, sucedidos por banhos gélidos, vestindo e em seguida abrigando a criança calorosamente. Um lento trabalho de erosão, de supressão e de fragilização modificou as atitudes primárias da criança, que se tornou sensível às variações climáticas”.
(p. 27)
Percebe-se, claramente, que o menino foi submetido a um longo processo de “lapidação”, cuja consequência imediata foi a redução de sua imunidade a doenças, fato que o tornou frágil. Nesse caso, o menino não tinha alternativas. Tendo sido interrompida a sua socialização, não dispunha de meios para exercer um papel ativo em face do processo de “aculturação” que sofria. Ao contrário, a criança que se beneficia de uma socialização normal e continuada, embora não esteja completamente livre de processos condicionantes, de ações modeladoras, tem relativa liberdade para agir (dependendo do contexto sócio-histórico, é claro). Com amadurecimento, ela tenderá a ganhar maior autonomia. Isso não era possível no caso de Victor.
É interessante notar que seu corpo era adaptado ao meio ambiente em que viveu durante anos, isolado da civilização. Consoante nos conta o autor,

“A sensibilidade térmica de Victor era adaptada às condições ecológicas de sua existência num ambiente adverso. Outras manifestações corporais de Victor suscitaram alguma surpresa: sentado ao lado do fogo, ele tomava, sem nenhuma pressa, os pedaços de carvão ardentes que caíam da lareira e nela os recolocava. Na cozinha, ele frequentemente tirava com as mãos as batatas da água fervente onde elas cozinhavam para em seguida comê-las”
(p. 28)

Victor, a despeito dos esforços do pedagogo, jamais conseguira falar. Com a deficiência linguística, o menino tinha carência na elaboração de pensamentos, o que confirma a ideia de que sem linguagem verbal não há possibilidade de pensamento.


4. O que concluir?
Os casos das crianças selvagens levam-nos ao reconhecimento do papel fundamental que cumpre o outro na vida de um ser humano. Esse outro é responsável por induzir a sociabilidade daquele com quem estabelece relação. O corpo humano é investido de significado quando do relacionamento com o mundo, para o qual é necessário o concurso de outras pessoas.
O domínio da linguagem é um meio de inserir-se num universo humanamente construído; desprovida dela, o ser humano não é capaz de organizar a realidade segundo os padrões da sociedade. A linguagem é um fator determinante da humanização do homem.
A organização da realidade se dá na relação com o outro através da linguagem. O outro não é apenas um estruturador do mundo para mim, é também quem avalia, pondera, afeta-me enquanto ser. Ensina-nos o autor:
“Estamos em nosso corpo “como numa encruzilhada habitada por todos”, escreve raivosamente Artaud, que viveu, numa forma de despojamento e de alienação, a fidelidade do seu corpo contra todo o simbolismo exterior. Meu corpo é meu por carregar traços de minha história pessoal, de uma sensibilidade que é a minha, mas contém igualmente uma dimensão que em parte me escapa, remetendo aos simbolismos que conferem substância ao elo social, sem os quais eu não seria”.
(p. 37)
A moral, o sentimento de justiça e injustiça é consequência da socialização. Nenhum homem nasce com senso de moralidade; ele desconhece, completamente, o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim, o que pode ou não pode fazer. A sociedade é que lhe fornecerá tais referenciais.
Estar com Sartre a razão ao advogar que o homem se faz a si mesmo ao existir. E a existência humana – reitero essa ideia – depende da presença, do reconhecimento do outro. Somos na medida de nossas relações significativas com o nosso entorno social. Nossos hábitos, nossos comportamentos, nossos traços biológicos são resultado da relação com o meio ambiente, condicionada pela cultura.
Descartes estava errado, ao sugerir que a ideia de Deus era inata ao homem. A criança selvagem não tem religião, não é capaz de conceber qualquer entidade de semelhante natureza.
Espero que tenha sido avivada no leitor a ideia de que, se, por um lado, a cultura é responsável por nos afastar da condição de imanência à natureza, de afrouxar os laços que, em virtude de uma pré-disposição biológica, podemos manter com ela; por outro lado, a ausência de sua atuação e penetração põe em evidência a capacidade impressionante de o organismo humano adaptar-se à vida animal.
Devemos, humildemente, reconhecer que, para além de nosso garbo racional de homens civilizados, somos animais humanizados.


Para pensar...


a) A cultura penetra no ser do homem domando-o e contendo a força de seus instintos. Mas ela não consegue suprimi-los. Em que situações agimos instintivamente?
b) Os homens são seres cuja existência é destinada a ser social? A vida em sociedade é a única forma de existência para o homem? Se houver outra, qual seria?
c) A criança, embora leve desvantagem, nos seus primeiros anos de vida, em relação aos filhotes de animais, tem uma admirável capacidade para a aprendizagem e desenvolvimento cognitivo. Isso tornaria a condição social do homem inevitável?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Feminilidades


Às imagens feminis de minha primavera




Escrevo às sonhadoras, às desalentadas, às jovens que, algum dia, tomaram em mãos aquela carta amarelada de um amor a que juravam plena devoção e puseram-se a chorar gemendo e murmurando o nome dele como uma criança que, na escuridão de uma cova de amor, chama por sua mãe... Escrevo às moças em cujo espírito pululam fantasias de amor... Escrevo também às moças que ousaram, numa noite, dizer que não mais se apaixonariam por homem algum, porque todo homem é indiferente ao seu sentimento de benquerença e às suas aspirações passionais... Escrevo às jovens que, embora idealizem o homem que satisfaça seus anseios, podem não estar maturadas para acolhê-lo em seu coração. Escrevo às jovens que dizem não tolerar os românticos, pois que o tenham por piegas. Escrevo àquelas que vivem sozinhas, na companhia de sua solidão... Às moças que, por uma decepção amorosa, cuidaram, por longo tempo, que melhor seria viver só, e viver apenas dedicando-se ao estudo ou ao trabalho, e que não mais lhes seria agradável ocupar seu tempo com arquitetar em seu coração um meio para se aproximar ou requestar a afeição de quem sequer lhes pousou os olhos. Escrevo àquelas que, em algum dia, ouviram dizer o rapaz por quem, durante muitas noites, debulharam-se em lágrimas e sem o qual, numa insensatez pungente, disseram não poderiam mais viver, palavras mudas e vazias, tais como “sabe que é... tipo assim, nós dois...sabe... Eu preciso de um tempo... quer dizer, eu gosto de você, mas é que...”. Escrevo àquelas que, numa night, ouviram um figurão vomitar lugares-comuns – ou pior! – ouviram-no dizer versos plagiados! Se bem que alguns não se atreveriam a tal astúcia, por lhes faltar perspicácia... Pense-se em quão laborioso lhes seria abrir um livro de sonetos e dele colher alguns versos....Escrevo às intelectuais, às filósofas do cotidiano, às céticas, às moças em cuja mente paira dúvida sobre o amor... Escrevo às românticas.... Escrevo àquelas que desejam manifestar amor ao seu companheiro, mas receiam que ele se vanglorie disso e, ao invés de lhes retribuir na mesma medida a doação, se lhes dê as costas, convencido de que, ao primeiro sinal, virão até ele como cordeirinhos.
Escrevo, enfim, às enamoradas, às que são resignadas e altruístas, às que não receiam sentir paixão... Às que são resilientes e dão a volta por cima. Escrevo àquelas que, com lágrimas enxutas, sonham com um novo pôr-do-sol. Àquelas que, ao se olharem no espelho, se cuidam belas, atraentes, dignas de serem amadas... Escrevo aquelas que pintam o rosto e participam de militância em prol dos direitos da mulher.... Escrevo àquelas que são tristes, mas estampam no semblante um sorriso dissimulado, só para que não lhes notem a lamúria. Escrevo àquelas que se uniram e lutaram por condições igualitárias numa sociedade marcadamente hierarquizada, preconceituosa e machista.

Há muito, muito tempo atrás...


Cavernosos


Naquele tempo era assim: os homens pré-históricos disputavam a companhia da fêmea, travando duelos violentos entre si. O vencedor arrastava-a pelos cabelos até a caverna, onde, naturalmente, copulavam. A cópula era impudica, à vista de todos os outros membros da tribo.
Não havia muitas posições eróticas. O Kama Sutra ainda não fora inventado, de modo que o papel da mulher nas relações sexuais se limitava ao “estar presente”. O homem, normalmente, só fazia sexo numa única posição, e não era a “papai-e-mamãe”; era a dos “cachorrinhos” mesmo. Em certo momento, a mulher virou-se de ventre para cima, e o homem, estupefato, gozou do prazer que a nova posição erótica lhe oferecia. Ah! Sim, a mulher passou a ser co-participante na relação sexual, mostrando ao parceiro que o prazer era recíproco; era só uma questão de diálogo...
Todavia, existe um fato, ou melhor, uma crença bíblica, que parece dar primazia ao homem no mundo. Deus criou Eva de uma das costelas de Adão. O Divino criou primeiramente o homem, depois criou a mulher; e, ainda, a partir de uma costela de um homem. Eis em Adão o símbolo máximo da soberania masculina no mundo.
Mas acalme-se. Adão, como foi retratado por Michelangelo, em um quadro denominado de “A criação do homem”, não é modelo a que muitos homens modernos aspirariam. A razão é muito simples. Qual é o símbolo máximo com que os homens impõem sua doutrina machista e imperialista? O falo. Sim, o símbolo fálico. Inatingível. Adão o tinha minúsculo, quase um borrão. Certamente, o pintor, por ser adepto do pensamento machista, não concederia a tal símbolo dimensões mais generosas, já que isso, talvez, pudesse denegar sua masculinidade, ou, pelo menos, maculá-la perante a sua estirpe. Por outro lado, se Adão visse como sua genitália fora retratada, provavelmente se envergonharia, porque a maior ofensa que se pode fazer a um homem moderno é atribuir a sua genitália adjetivos diminutivos.
Os homens de hoje se espelham nos bravos guerreiros medievais, que impunham suas espadas em defesa de suas propriedades ou de suas ideologias, ainda que, neste último caso, não se encontre muito eco. Os homens atuais erigem seus falos e cantam num só coro: “Tesudos, unidos, jamais serão vencidos!”.
Ana Cristina César, poetisa da geração de 70, escreveu um poema, cujo título é “cartilha da cura”; expressou-se assim: “as mulheres e crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”. Lembrou-me a Revolução Industrial, fato preponderante para a instituição do capitalismo. Nessa época, as fábricas tornaram-se locais onde se realizavam a divisão do trabalho e a imposição do horário e da disciplina ao trabalhador. As mulheres e crianças eram submetidas a trabalhos estafantes e recebiam, ainda, salários indignos, menores que os dos homens.
Os homens deveriam coibir seus instintos primitivos de prazer, para circunscrever sua energia ao trabalho fabril. Portanto, nada de gastar energia com atividades outras; o capitalismo não requesta amor. À mulher cabia a tarefa de educar os filhos (quando o tinham) e ler... Mas a leitura às vezes incutia-lhe sonhos e aspirações utópicas; muitas se frustraram; faltou-lhes a realidade concreta que os livros não teciam.
Amor? Só nos livros.
Hoje já não há mais o lirismo desmedido que outrora habitara o âmago dos trovadores portugueses e dos românticos brasileiros. A vassalagem masculina sucumbiu ao orgulho que concede o lucro. Nós somos os capitalistas! Basta! Compramos tudo, inclusive o amor interdito no berço.
Uma mulher venusta intentava autonomia amorosa. Acreditava, ingenuamente, que a sua Igreja lhe concederia uma sorte próspera. Dizia a pobre moça que a Igreja é a casa de Deus e o local onde se realizam as prédicas do Evangelho. Não fora feliz em suas investidas amorosas; mas o seria, segundo ela.
Esqueceu-se, mulher, de que sua Igreja é dos homens. Há muitas mazelas que até mesmo o mais ímpio dos homens se assustaria. Lutero revoltou-se contra a hipocrisia religiosa que perdurou séculos. Mas não o estimo; havia razões econômicas envolvidas. Contudo, valeu-nos a lição de que o poder religioso não podia confundir-se com o poder político.
Em época de antropocentrismo predominante, o homem busca égide sob as asas do criador, que liberta e aprisiona seus desejos mais incônscios. Neste oxímoro, vivemos...
Resta aos intelectuais discutir a hipocrisia ideológica vigente. A sociedade fecunda mitos de que a posteridade se alimenta, e, nesta azáfama, esquecemos o que da podridão podemos resgatar. Não havendo escolhas, desvanecemos nossos sonhos na mais difusa linguagem, para não morrermos no silêncio que nos comprime os pulmões.
Sempre haverá, porém, aqueles homens néscios que assomam mais um degrau da insipiência, cuja própria retórica iterativa lhes concede uma conduta burlesca, mas prestigiada por um pequeno grupo de fêmeas, cuja consciência foi transfigurada por uma educação que se preocupou com a castidade inviolável e o pudor supérfluo, sem perceber que a herdeira não pôde alçar vôos, porque lhe cortaram as asas, ao invés de a ter ensinado (etimologicamente, ‘marcar com sinal’) a não farfalhar como a folhagem ao primeiro sinal de vento. Esquecem-se de que não se amputa a perna a alguém, para que não fuja; ensina-se sempre o caminho de volta para a casa. Também não se emudece a quem não se deseja ouvir; voltam-se os ouvidos ao léu.
A barbárie inunda o dia-a-dia. Os espectros de nosso imaginário que entre as sepulturas passeiam não são tão assombrosos quanto os cavernosos vivos que rastejam a nossos pés e que ruminam as palavras defecadas por sua excelência e majestade, por sobre as quais expõem sua catadura especiosa, mas inadvertidamente consumível.
(BAR)

O que estuda a Linguística?

Muito prazer, a Linguística!


Não consigo pensar em conhecimento sem que eu lhe confira uma função de emancipação. Claro é que certas formas de conhecimento são dispensáveis, como, por exemplo, saber como funciona o mercado da prostituição. Se disso podemos concluir que nem toda forma de conhecimento tem uma função dignificante, também é possível sustentar que todo conhecimento está suscetível a valorações sociais.
Para mim, duas formas de conhecimento foram assaz valiosas: a da Linguística e a da Filosofia. Aquela é anterior e mais sólida do que esta, evidentemente. Excogitei na possibilidade de dar a conhecer aos meus leitores um pouco da contribuição da Linguística para a minha formação acadêmica e, sobretudo, humana.
Desde já, convém ficar claro que não vou me exceder em fundamentações e requintes teóricos. Estou ciente de que não escrevo para especialistas; portanto, cuidarei para não enfadar os leitores. Embora a variedade linguística em que este texto é vazado me traia, esforçar-me-ei por apresentar e discutir o tema de modo mais simples possível.
Começarei, pois, afirmando que, não obstante haver outras tantas contribuições, a Linguística, mormente na sua versão aplicada, viabiliza a formação da consciência crítica do professor. Essa é uma contribuição que quero aqui assinalar: o recém-graduado em Letras, se familiarizado com os estudos desenvolvidos no campo da ciência linguística, tem o potencial necessário para adotar uma atitude crítica em face do ensino tradicional de português. Vale dizer que me dirijo, nesse momento, aos alunos, então professores, que passarão a atuar nos ensinos fundamental e médio. A questão que deve ser aventada aqui e na base da qual desenvolverei meus pensamentos é a seguinte: O que é indispensável ao professor de português saber quando de sua atuação em sala de aula na escola? Vejamos.
Não estou preocupado em elencar conhecimentos, o que seria tarefa exaustiva e improfícua. Quero apenas indicar aquilo que me parece ser indispensável para que a prática pedagógica do professor de português seja minimamente eficiente. Creio em que é importante, num primeiro momento, ter em conta a concepção de gramática com a qual ele desenvolverá seu trabalho pedagógico. Aqui, aliás, há a primeira grande ruptura com o senso-comum, já que, para a grande maioria esmagadora de nossa sociedade, gramática é um conjunto de regras para se falar e escrever corretamente. Trata-se, portanto, do que se costuma chamar, nos meios acadêmicos, de gramática normativa, que Franchi (2006: 16) define como se segue:
“Gramática é o conjunto de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores”
(ênfase no original)

Não vou descer a pormenores na avaliação dessa definição, mas convém esclarecer quem são os especialistas a que Franchi se refere. Eles são os gramáticos e/ou filólogos (os mais renomados de nosso tempo são Evanildo Bechara, Celso Cunha e Rocha Lima) a quem compete prescrever as regras de uso da norma culta. Tanto o papel desses estudiosos quanto o conceito de norma culta propiciam discussões fecundas, das quais eu, evidentemente, não vou me ocupar. Basta insistir em que a gramática normativa é a disciplina que prescreve (dita) as regras de uma das variedades da língua, as quais devem ser conhecidas e dominadas pelos falantes nativos a fim de que sejam bem avaliados socialmente. Essa definição já nos deixa entrever um pouco da contribuição da Linguística para a formação do professor. Ora, o que ele costuma ensinar na escola é a gramática normativa – e na sua versão clássica e ortodoxa –, a qual, embora se acredite no contrário, não compreende a totalidade de usos da língua; mas tão-só aqueles usos que são considerados social, cultural, política e ideologicamente prestigiosos.
A primeira lição que todo professor deve aprender é: o que está ensinando não é como se deve falar e escrever “corretamente”; o que está ensinando é, na verdade, como se deve falar e escrever numa dada variedade da língua (a variedade padrão ou de prestígio) para que se possa ser bem avaliado socialmente. Além disso, é indispensável reconhecer que o uso da variedade padrão não é extensivo a todo e qualquer contexto comunicativo. Mesmo o falante mais bem escolarizado, o intelectual, o douto, o professor não se expressará de acordo com as regras da variedade padrão do português em qualquer situação comunicativa. É preciso adequar a variedade da língua à situação comunicativa de que participamos. Cada situação exige um certo grau de formalidade linguística; em outras palavras, cada situação comunicativa exigirá uma determinada variedade linguística. Não falamos do mesmo modo quando estamos numa entrevista de emprego ou na praia com os amigos. Nesse tocante, a adequação social em termos linguísticos é semelhante a qualquer outra forma de adequação de comportamento social. Não vamos a um casamento de bermuda e sandálias, porque o código cultural deste contexto prevê o uso de outra espécie de vestimenta.
A segunda lição é a que toca ao reconhecimento do preconceito linguístico, disseminado e sustentado pelas classes dominantes e reproduzido por toda a sociedade. Tal forma de preconceito, que penetra no inconsciente social (as pessoas sequer se dão conta dele, mesmo os mais escolarizados, integrantes da elite intelectual do país), se fundamenta numa série de mitos, de superstições, de noções equivocadas do tipo “certo” e “errado”, de juízos de valor como “bom”, “ruim”, com os quais são classificadas as diferentes formas de uso linguístico. A ideologia do erro linguístico mascara mais uma forma de preconceito social. Pois é isso: o preconceito linguístico não é senão mais uma forma de manifestação do preconceito social comum no Brasil (embora não seja uma peculiaridade da sociedade brasileira; o preconceito linguístico existe em praticamente todas as sociedades do mundo civilizado).
Reconhecer e combater o preconceito linguístico é também papel do professor, não só dos linguistas. Não quero sustentar a crença em que tal combate seja tarefa fácil e que logrará sucesso num tempo breve. Essa forma de preconceito está arraigada em nossa cultura e é resultado de séculos de colonização portuguesa, de perpetuação de um ensino de português normativista, ortodoxo, que fez face às descobertas da Linguística, desde a sua institucionalização como disciplina universitária em nosso país na década de 60. No entanto, o professor universitário que, numa turma de quarenta alunos (e me refiro aos alunos do curso de Letras), consiga que dez deixem os bancos universitários conscientes do seu papel sócio-político e pedagógico e da necessidade de se arvorar em defensores da emancipação sociolinguística de seus futuros alunos, esse professor já terá logrado sucesso.
A título de ilustração, considerem-se as seguintes ocorrências:

(a) Quando a gente chegamu, eles já tinha saído.
(b) A gente não sabemu se comportar.

Qualquer falante escolarizado perceberá que tais formas se desviam da norma de prestígio da língua, que se costuma chamar de norma culta. Em (a) e (b), observamos um desacordo com essa norma, atinente à concordância verbal. Não reproduzi, nesses exemplos, a pronúncia tal como ela se realizaria (cf. /chegamu/, /sabemu/ e /saídu/), pois nos basta ter em conta o “desvio” apontado. Se comparamos tais construções às que são recobertas pela norma culta, ou seja, às suas correspondentes formas-padrão,

(c) Quando nós chegamos, eles já tinham saído.
(d) Nós não sabemos nos comportar.

deveremos reconhecer que entre elas só há diferença de uso. Assim, toda língua é um balaio de variedades ou diferenças de uso. O considerar (a) e (b) como “erradas” e (c) e (d) como “certas” resulta de uma valoração social, com grande dose de preconceito elitista. Não há nada na construção de tais enunciados que justifique o rotular umas de “erradas” e outras de “corretas”. O que a ideologia do preconceito linguístico mascara é o fato de que as avaliações negativa e positiva conferidas a cada qual dos pares dessas construções são motivadas pelo status social do falante que as utiliza. É só porque (a) e (b) são formas de uso tipicamente comum entre os falantes pertencentes às classes sociais menos favorecidas, às quais se nega o acesso aos bens culturais prestigiados e cujos membros têm grau de escolaridade baixo, em relação aos membros das classes mais abastardas, que tais formas são consideradas “erradas”, “feias”, “estropiadas”. Do exposto, se deve concluir que as formas linguísticas valem tanto quanto valem socialmente os seus usuários.
Eu procuro sempre fazer ver aos meus alunos do curso de Letras que, toda vez que fazemos um comentário negativo sobre, por exemplo, a fala de uma empregada doméstica, ou de uma pessoa que provenha de uma comunidade carente, quase sempre fazemo-lo acompanhado de justificativas do tipo “pobrezinho(a), não tem instrução”, “também, olha só onde ela (ele) mora”, etc.
Esclareçamos, de uma vez por todas: todo falante nativo de português, independentemente de sua origem geográfica, classe social, gênero, idade, etnia, grau de escolaridade sabe português, sabe falar português. Nem todos, entretanto, têm a oportunidade de ter acesso à variedade de prestígio – tarefa esta que cabe à escola.
Chegamos, pois, a outra lição da qual o professor de português deve estar consciente: a existência da variação linguística. Não há erros, mas tão-só diferenças de uso. E, definitivamente, é preciso que seja rechaçado outro equívoco, um disparate, infelizmente, reproduzido pela mídia e pelos pseudogramáticos de plantão que, ignorando completamente o trabalho desenvolvido pelos mais renomados especialistas nos grandes centros de pesquisa linguística de nosso país, insistem em propagar a gramatiquice que não faz senão agravar ainda mais a já baixa auto-estima linguística do brasileiro, contribuindo para perpetuar o preconceito linguístico: os linguistas não defendem o famigerado “vale-tudo” em matéria de língua. Nada disso. Tampouco, vale crer na ideia de que “havendo comunicação, não há problema”. Também não é isso. As diferenças de uso serão condicionadas e avaliadas segundo as expectativas sociais que permeiam as esferas de poder. Avulta aqui a necessidade de reconhecer a organização hierárquica na base da qual os atores sociais, cumprindo determinados papéis sociais, atuam linguísticamente. Assim, o uso da língua é uma forma de marcar a hierarquia social. O linguista não ignora as relações de poder entre linguagem e sociedade. Todo uso da língua, em alguma medida, é um ato político (no sentido lato do texto), na medida em que ele reflete a luta de classes no nível ideológico.
Quando uso a língua, negocio significados, procuro atender às minhas necessidades comunicativas e a satisfazer às expectativas de meu interlocutor. O linguista, em suma, não ignora a estratificação que há no vasto espectro de usos da língua. Há um forte sentimento de estratificação na prescrição dos usos da língua e o linguista não está alheio a isso. Ele reconhece que apropriar-se das variedades de prestígio é apropriar-se de um poderoso capital linguístico. Usar a língua é exercer uma forma de poder social. Por isso, os linguistas são unânimes em advogar que cabe à escola o ensino da norma culta ou da variedade padrão do português, embora respeitando as outras variedades da língua. Cabe a ela propiciar aos estudantes o acesso à norma linguística de prestígio e o domínio dos recursos que ela estão associados para que ele possa ter maior mobilidade social.
Se, por um lado, o linguista rechaça a ideia equivocada e preconceituosa de que existem formas “certas” e formas “erradas” de usar a língua; por outro lado, ele reconhece a necessidade de adequação dos usos aos diferentes contextos sócio-comunicativos, como condição indispensável para a maior participação social dos falantes, para uma inserção mais significativa deles no processo social que, em se tratando do nosso país, é marcado por profundas desigualdades socioeconômicas. Pensar o uso da língua em termos de inclusão e exclusão social constitui uma das competências dos linguistas.
A Linguística, em suma, é uma ciência, ainda jovem, se comparada a outras ciências; mas uma ciência já há muito estabelecida (embora vulgarmente ignorada), cujo objeto de estudo é a língua(gem). Como toda ciência, ela é orientada empiricamente, trabalha com coleta e análise de dados reais da língua; adota uma metodologia específica e rechaça toda e qualquer valoração de ordem subjetiva, ideológica e eivada de preconceito.
Ùltima nota
O único “fracasso” da linguística, no que toca à sólida formação teórico-metodológica do professor de português, repousa na incapacidade de ela livrá-lo do estereótipo social que lhe confere os papéis imaginários de ‘guardião da pureza do idioma’, ‘detentor do saber linguístico legítimo’, ‘profundo conhecedor do português’ ou mesmo de um ‘policial da língua’. Não obstante exibir sua formação em Linguística, é inevitável que, diante de pessoas comuns, todo aquele que é formado em Letras seja recebido com a famigerada observação “ele é professor de português”, do que se infere: “cuidado ao falar!”.
E lembre-se, leitor: é vão pretender explicar que a formação dada aos alunos do curso de Letras é outra, que existe uma ciência chamada Linguística, que não existe certo e errado em matéria de língua, etc., etc., etc. As pessoas, em geral, querem receitas: se elas procuram um professor de português, é simplesmente para saber se elas podem ou devem dizer ou escrever tal ou qual coisa. E nada de iniciar a explicação com depende... Isso, certamente, vai enfadar o inquisidor, que está afoito para solucionar sua dúvida, justa, mas alimentada por uma profunda ignorância, infelizmente, perpetuada.