domingo, 14 de novembro de 2010

Amo quando me sinto significado no coração do outro

 

                          Amar o próximo como a si mesmo?


No capítulo quinto do livro O mal-estar na civilização (2010), Freud convida-nos a refletir sobre a lição evangélica de sentido universal que, para ele, é anterior ao próprio cristianismo, Amarás o próximo como a ti mesmo. Sua argumentação se estriba em alguns pressupostos que convém conhecermos, pois que eles dão sentido ao desenvolvimento dela. São eles:
a) Os seres humanos são naturalmente agressivos; há uma inclinação natural do homem à agressividade;
b) A vida civilizada ou aculturada constitui um meio de que se serviram os homens para coibir seus instintos agressivos;
Tais pressupostos podem ser confirmados, se atentarmos para os dois excertos a seguir tomados a Freud, no referido trabalho.
“O ser humano não é uma criatura afável e carente de amor que, no máximo, é capaz de se ofender quando é atacada, mas que ele pode contar com uma cota considerável de tendência agressiva no seu dote de impulsos. Por esse motivo, o próximo não é apenas um possível objeto sexual, mas também uma tentação para se satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dor, torturá-lo e matá-lo”.
(p. 124)
“A cultura precisa fazer de tudo para impor limites aos impulsos agressivos do homem, para deter sua manifestação através de formações psíquicas reativas”
(p. 125)
Freud, ao cabo deste último excerto, cita o famigerado pensamento do filósofo inglês Hobbes – “O homem é o lobo do homem”, com vistas a avalizar a sua tese. O autor também nos lança um desafio, ao nos perguntar:
“quem, a partir de todas as experiências da vida e da história, terá coragem de contestar essa máxima?”
(idem).
Decerto, a História da humanidade está repleta de exemplos do poder destrutivo dos instintos agressivos dos seres humanos; escusa elencá-los; mas também não rareiam os casos em que são patentes os sentimentos de caridade, de filantropia, de amor desinteressado. Poderíamos argumentar que a perspectiva de Freud é reducionista ou unilateral. Sucede que o que está em questão aqui é: por um lado, a crença de Freud em que a agressividade está alicerçada na estrutura psíquica humana; portanto, essa agressividade é universal; por outro lado, a crença em que nossos instintos agressivos são domados mediante os mecanismos repressores e disciplinadores da cultura. Na perspectiva de Freud, as práticas de amor são experiências a que somos induzidos, com repressão. Destarte, segundo o psicanalista
“(...) o emprego de métodos que têm o propósito de estimular os homens a identificações e relacionamentos amorosos de meta inibida, daí as limitações da vida sexual e daí também o mandamento ideal que ordena amar o próximo como a si mesmo, e que realmente se justifica pelo fato de nenhuma outra coisa se opor tanto à natureza humana original”.
(p. 125)
Enquanto escrevo, o Fantástico exibe reportagens sobre casos de agressão a idosos e a bebês (estes últimos são vitimados, não raro, pelo próprio pai). Em outra ocasião, assisti, pela televisão, a grupos de estudantes desferindo socos e pontapés uns nos outros, numa cena de selvageria lastimável . Certamente, esses fatos constituem fortes argumentos para validar a tese de Freud; mas, ainda assim, devemos levantar uma questão: os homens são, como Freud acreditava, naturalmente, agressivos ou, senão toda, grande dose de sua agressividade poderia ser colocada na conta da sociedade? Essa é uma questão que o autor nos suscita. Deixemo-la em aberto, por ora.
Volvamos ao amarás o próximo como a ti mesmo e nos detenhamos na interpretação que Freud faz dessa máxima. De um modo geral, o argumento de Freud consiste em fazer ver que o amor é um bem muito valioso que não pode ser desperdiçado. Para Freud, a consciência de que entre mim e o outro há uma relação filogênica, ou seja, de que ambos somos seres humanos, ambos compartilhamos da mesma dignidade humana, não é suficiente para que eu possa amá-lo. Escreverá Freud:
“O meu amor é algo valioso para mim, que não devo desperdiçar sem prestar contas. Ele me impõe deveres, que devo estar disposto a cumprir com sacrifício. Se eu amar uma pessoa, ela deve merecê-lo de algum modo (...). Ela o merece se, em aspectos importantes, for tão parecida comigo que eu possa amar a mim mesmo nela; ela o merece se for mais perfeita do que eu, de modo que eu possa amá-la como ideal de minha própria pessoa; tenho de amá-la se for filho de meu amigo, pois a dor de meu amigo, quando algum sofrimento o atinge, também seria a minha dor, e eu teria de partilhá-la”.
(pp. 119-120)
O autor preconiza que não podemos amar um estranho, alguém com quem sequer temos afinidade, com quem sequer compartilhamos uma história afetiva, experiências de sentimentos de benquerença. Convém destacar dois aspectos na argumentação de Freud, como fora desenvolvida no excerto acima: por um lado, parece-me clara uma disposição narcísica para manifestar amor, ou seja, o que amo não é o outro, o que procuro amar no outro não são as suas qualidades, os seus atrativos, mas a mim mesmo refletido nele; por outro lado, de maneira paradoxal, a disposição para amar é motivada por um sentimento de solidariedade, como no caso do filho do amigo, a que o autor se referiu.
O cenário que nos apresenta Freud é caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo: o estranho, segundo o autor, antes de merecer amor, merece desprezo e mesmo ódio, visto que ele mesmo não parece demonstrar amor por seu “próximo”. Os homens, na perspectiva de Freud, tendem à imoralidade; estão sempre dispostos a tirar proveito de alguma situação que se lhes apresente favorável. Não obstante sua posição, o autor confessa-nos:
“Se esse grandioso mandamento dissesse “Amarás o teu próximo como o teu próximo te ama”, eu não protestaria”.
(pp. 121-122)
Aqui, ele abre-nos mais um caminho longo para cultivar férteis reflexões, pois que, implicitamente, nos diz que amar implica reciprocidade. Cabe lembrar que, até o momento, sequer levantei a dúvida acerca do conceito de amar entrevisto na máxima em torno da qual venho desenvolvendo este discurso. Decerto, não se trata do amor sexual, tampouco do amor maternal ou paternal. Trata-se de um amor que pode ser definido como um sentimento que nos inclina a fazer o bem e jamais prejudicar quem quer que seja. A medida desse amor se avalia na quantidade de lágrimas que derramamos, caso o objeto de nossa benquerença morra. Decerto, a dor que sinto pela morte de um mendigo ou de qualquer outro estanho não é comparável à dimensão da dor que experimento na morte de um ente querido. Há laços afetivos cuja intensidade e solidez a máxima do Amarás o próximo como a ti mesmo não é capaz de recobrir.


O social está em nós


Em face do universo frio e insensível de Freud, o que dizermos ao nos deparar com as seguintes palavras, colhidas do livro A sociedade individualizada (2008), de Zygmunt Bauman?


“Aceita”, “compartilha”, “dignifica” – dignificada pelo ato de compartilhar e pelo acordo franco e tácito de respeitar é o que é compartilhado. O que chamamos de “sociedade” é um grande aparelho que faz apenas isso; “sociedade” é outro nome para concordar e compartilhar, mas também o poder que faz com que aquilo que foi acordado e compartilhado seja dignificado”.
(p. 8)




Decerto, não é possível existir sociedade sem acordo, sem compartilhamento; ao mesmo tempo, cabe à própria sociedade dispor de mecanismos que garantam a sustentação desse acordo. Bauman nos ensinará serem as sociedades “fábricas de significados” (idem), donde se segue que todas as nossas experiências sociais são fundadas em significados e se orientam por eles. Nossa condição humana sofre, contudo, de um embaraço: por um lado, somos arremessados a uma sociedade que veio antes de nós, ou seja, que pré-existia à nossa própria existência e que continuará a existir após a nossa morte; por outro lado, nossa condição é autotranscendente; somos seres que se inclinam à transcendência e que não encontram outro modo de viver, senão pela busca de transcendência, que consiste numa forma de desafiar a própria vida. Diferentemente dos animais, somos seres conscientes da morte; sabemos que vamos morrer. Não há possibilidade de sentido e de felicidade fora da sociedade. Se, por um lado, ela se nos apresenta como uma entidade supra-individual infensa à realização de nossa felicidade, não há possibilidade de experienciá-la fora de seus limites. Nossa felicidade depende, fundamentalmente, dos vínculos sociais.
Em Amor Líquido, no capítulo intitulado de Sobre a dificuldade de amar o próximo, Bauman retoma a reflexão de Freud sobre a máxima do Amarás o próximo como a ti mesmo e a orienta no sentido de enfatizar o amor a si mesmo. Vou apresentar, de imediato, a tese do autor, que se exprime nas palavras seguintes:


“(...) para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação do status do objeto digno do amor – alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos”.
(p. 100)
(grifo meu)



O amor-próprio, segundo Bauman, constitui um fundamento para a própria sobrevivência humana. O autor nota que os animais não precisam dele para viver. É esse fundamento que torna a vida humana diferenciada. Assim, fazendo eco a Freud, escreverá: “o preceito do amor ao próximo desafia e interpela os instintos estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência por ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege” (p. 99).
Para Bauman, “aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade” (p. 98). Está clara a importância conferida pelo autor à moralidade. Lançando outro olhar sobre o preceito, Bauman buscará nele a expressão da importância de considerar “a singularidade de cada um” (p. 101).
Depois de encerrar o capítulo anterior, ensinando-nos sobre a influência reificadora do mercado consumidor no modo como experienciamos nossas relações afetivas, o autor nos convida a pensar no valor do amor como ingrediente indispensável à força de vida, à vontade de sobreviver, de existir. Suas ideias vêm em socorro de minha tese, já esposada em outros textos, segundo a qual amar é estar vulnerável. Para mim, há dois ingredientes que tornam o amor um sentimento que vai na contramão de qualquer pretensão individualista: a reciprocidade e a vulnerabilidade. Lêem-se as palavras de Bauman:


“Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver “em mim” – ou não deve? – algo que eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros – não existem? – que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu “faço a diferença” para os outros além de mim. O que digo e sou e faço tem importância – e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar”
(p. 101)



O prazer de sentir-se amado decorre da consciência de que nossa singularidade é reconhecida, admirada e desejada pelo outro. É a consciência de que fazemos a diferença na vida daquele que é nosso objeto de amor que nos torna felizes.
A proposição de Bauman – vale reiterar, segundo a qual só posso amar a mim mesmo na medida em que me sinto amado pelo outro – semeou-me algumas ideias. Uma delas é que o autor lança-nos um desafio; deveras, um desafio à ideologia individualista que reza a necessidade de valorizar a si mesmo em detrimento do outro, de reservar a si mesmo o posto mais alto das prioridades da vida. Sucede que, em matéria de amor, não há espaço para a centralidade do ego. Se todos assumirem o amor-próprio como um fundamento para se precaver contra as desilusões das experiências amorosas, viveremos uma vida emocionalmente miserável; cheios de brio, encouraçados num sentimento de auto-suficiência, fazendo nossas emoções orbitarem em torno do ego, mas arrastando uma existência atolada num lamaçal de solidão.
Não é possível amar com armadura; para amar, é preciso despir-se; não de nossas roupas, que vestimos e retiramos com facilidade; mas dos sentimentos que nos enganam, pois que semeiam em nossa mente a crença de que evitar os vínculos afetivos basta; no entanto, não basta, é como uma anestesia, seu efeito há de passar. Superado o estado de anestesiamento, sentimo-nos dispostos a beber da fonte inesgotável do amor, pois só ele é capaz de nos restituir a alegria inocente e cândida, que residia em nossos sonhos de infância.
A pessoa cheia de si é vazia e se perde em seu vazio, porque, simplesmente, se esquiva ao fato de que nossa condição de seres mortais e de seres desejosos de sentido impõe-nos o desafio da transcendência. Estar consciente da morte é também estar consciente do envelhecimento – uma das vias de acesso a ela. Quem haverá de querer envelhecer sozinho? Se a morte é inevitável e inexorável, e se ela arrebanhará a todos, inclusive aqueles a quem tanto amamos e com os quais compartilhamos nossas experiências afetivas mais densas, mais significativas, mais viscerais, que homem ou mulher não desejará percorrer o breve caminho de sua existência encontrando, em toda noite, fria ou estrelada, enluarada ou sombria, nos braços de um amor, o conforto de sua lassidão, o recôndito de sua angústia, o jardim florido de sua tristeza?
Decerto, aprendo a amar a mim mesmo, porque fui amado por outros, com quem construí uma existência significativa. Esses outros são, evidentemente, nossos pais, nossos irmãos, nossos tios; enfim, todos aqueles que compõem a nossa família. Amo-me, porque fui amado nos seios de minha mãe, porque fui neles nutrido, porque eles proveram meu alimento e dele aproveitei a energia necessária para que eu suportasse uma existência que não fora escolhida por mim.
Bauman nos leva a pensar sobre o amor que não se encerra nos limites do ego, sobre um sentimento transcendente que proclama a comunhão de singularidades; o amor pressupõe dois; se concentrado no desejo centrípeto do ego, converte-se num sentimento ardiloso, pois que nos convence da ideia de que o regime ditatorial do ego nos basta.
O amor talvez seja isto: uma nau que nos permite navegar nos mares da existência cujas ondas se derramam e beijam a morte. E não queremos que esse beijo sele uma vida desencantada!

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O homo sapiens é homo loquens




                     
                          A Lingua(gem) é constitutiva do que somos


No momento exato em que inicio a composição deste texto, estou sozinho. São dez e cinquenta e sete da manhã de uma segunda-feira de novembro e eu me encontro a sós comigo mesmo. Deveras, não estou completamente sozinho; além de meus cachorrinhos, essas criaturas caninas angelicais, estou na companhia das palavras que, tal como eles, são fiéis amigas. Em algumas horas, estarei a caminho do trabalho; serei mais um dentre a multidão impessoal que se concentra em todo lugar (no metrô, nas grandes avenidas e calçadas do Centro da Cidade, nos ônibus, etc.). Também serei mais um indivíduo sem rosto, que acompanhará o fluxo do ir-e-vir cotidiano. Serei mais um transeunte andando com pressa, administrando mentalmente suas urgências, seus afazeres, ao mesmo tempo em que elabora alguns pensamentos mais gerais ou menos circunscritos à azafama do dia-a-dia.
Entretanto, há uma perplexidade em mim que me distingue entre os indivíduos massificados no seu vai-e-vem frenético: eu me pasmo com o fato de que as pessoas falam a todo momento. Em outras palavras, eu me espanto com o fato de que nós, seres humanos, em todas as nossas atividades sociais, quer nas esferas públicas (na rua, no trabalho, no clube, na praia, na faculdade, na escola, etc.), quer na esfera privada (em casa com amigos e familiares), nós falamos. Nós estamos envoltos com as palavras, quer em sua forma falada, que em sua forma escrita, a todo momento. Para onde quer que olhemos, elas estão lá. É claro que o nosso universo humano, que é social, está impregnado de diferentes formas de linguagens: não só a linguagem verbal, materializada através das línguas e, portanto, composta de signos (palavras, frases), mas também as linguagens não-verbais, tais como gestos, sinais de trânsito e outras formas simbólicas que nos orientam em nossas experiências de mundo. Mas a linguagem verbal leva vantagem sobre essas outras formas de linguagem, porque ela é dotada da propriedade de traduzibilidade, ou seja, ela pode exprimir os conteúdos expressos pelas outras formas de linguagem. Por exemplo, ao nos depararmos com a placa em que se estampa uma bicicleta sobre a qual se dispõe, verticalmente, uma tarja vermelha, sabemos o que esse signo significa. Podemos expressar esse significado mediante uma frase como: é proibido o tráfego de bicicletas. Diremos que essa frase é um signo porque ele aponta para, ou melhor, ele está “no lugar de outra coisa”. Seu significado, nesse caso em particular, é também o efeito que ele produz em nosso comportamento. Esse enunciado trata-se de uma ‘ordem’, um ‘comando’, cuja finalidade é desencadear um comportamento no falante.
Pensar sobre o ser humano é pensá-lo como homo loquens, ou seja, homem de fala, de linguagem. É evidente que todo aquele que pretender refletir sobre o homem, enquanto ser-no-mundo (Dasein), deverá reconhecer, de imediato, a complexidade da natureza ou condição humana, conforme a perspectiva filosófica que adotarmos. É constitutiva dessa complexidade o que se costuma chamar de faculdade da linguagem. Ao longo da história e até a contemporaneidade, muitos filósofos e linguistas destacam essa faculdade como a linha divisória entre os homens e os animais. De minha parte, afirmo que a faculdade da linguagem é um componente essencial do complexo humano. A essencialidade da linguagem, quer em termos antropológicos, quer em termos ontológicos, é um axioma sustentado por muitos especialistas atualmente.
Citarei o pensamento de alguns especialistas sobre a importância da linguagem no desenvolvimento da espécie humana. Para tanto, vou-me valer das citações de B. Mondim, no seu livro O homem, quem ele é? (2008). À página 138, o autor citará as palavras de T. H. Huxley, famoso zoólogo e escritor inglês (1825-1895). Segundo o eminente especialista, é a linguagem que constitui fundamentalmente o ser do homem:
“o que é senão o poder da linguagem – essa linguagem que lhe dá a capacidade de registrar a sua experiência e torna, assim, cada geração mais sábia do que a que a precedeu e mais em sintonia com a ordem estabelecida do universo? O que é, senão este poder da linguagem de registrar a própria experiência, que coloca o homem em condição de ser homem – permitindo-lhe olhar para frente e para trás e apreender, em um sentido obscuro, o mecanismo deste maravilhoso universo? O que é senão a linguagem que distingue o homem de todo o mundo dos animais?”
(p. 138)
O filósofo e físico-químico, Michael Polanyi (1891-1976), também é trazido à baila, com vistas a mostrar ao leitor que
“ A enorme superioridade do homem com relação aos animais é devido paradoxalmente a uma vantagem quase imperceptível no momento inicial nas suas faculdades inarticuladas. A situação pode ser retomada nos três pontos seguintes: a superioridade intelectiva do homem deve-se quase exclusivamente ao uso da linguagem. O dom da palavra, porém, não se pode dever a vantagens pré-linguísticas.. Todavia, se se deixam de lado os elementos linguísticos, os homens acham-se minimamente avantajados na resolução das espécies de problemas que nós submetemos aos animais (...)”.
(p. 139)
Finalmente, Heidegger, com uma visão metafísica da linguagem, nos mostrará que o Ser se revela na linguagem. Ademais, destacará o valor antropológico dessa fascinante faculdade.
“O homem fala. Nós falamos na vigília e no sono. Falamos sempre, até quando não proferimos nenhuma palavra mas escutamos ou lemos, mas nos dedicamos a um trabalho ou nos perdemos no ócio. De um modo ou de outro, falamos ininterruptamente. Falamos porque o falar nos é inato. O falar não nasce de ato particular de vontade. Diz-se que o homem é de natureza falante e é próprio dele, ao contrário das plantas e dos animais, é o ser vivente capaz de falar. (...) Pretende-se dizer propriamente a linguagem faz do homem o ser vivente que é enquanto homem”.
(p. 140)
Gostaria de chamar a atenção do leitor para os fragmentos que estão em negrito nas duas últimas citações referidas: em primeiro lugar, em Polanyi, devemos reconhecer a intrínseca relação entre a capacidade intelectual humana, tão venerada pelos antigos filósofos e pelos contemporâneos – diria mais, reconhecida por qualquer homem minimamente escolarizado, e a linguagem. A razão só é possível graças à linguagem. Em segundo lugar, Heidegger anuncia uma tese que será desenvolvida, muito posteriormente, por Chomsky – embora esse tenha sofrido, a rigor, influência cartesiana – segundo a qual a faculdade da linguagem é inata e específica da espécie humana. É essa faculdade que nos torna seres linguísticos. Heidegger ainda acentua a essencialidade da linguagem no ser do homem – ser que se constitui e se manifesta linguísticamente.
O nome do linguista e antropólogo Benjamin Lee Whorf, discípulo do também linguista e antropólogo Edwar Sapir, está ligado (e ganha notabilidade) à famigerada Hipótese de Sapir-Whorf, a qual toca à questão da interdependência entre linguagem e pensamento. Tal hipótese apresenta duas versões: uma forte, de caráter determinista; e uma mais “fraca”, que tão-só assinala a influência da linguagem nas diferentes visões de mundo relativamente aos usuários de línguas diferentes. É a versão mais “fraca” que tem aceitação mais geral nos tempos de hoje. Ela nos diz que o modo como compreendemos a realidade, como a pensamos é influenciado pelo modo como a nossa língua materna a “recorta”. Assim, um esquimó terá muitas palavras designando “neve” em sua língua materna, por se tratar de um elemento importante em suas experiências de mundo diárias. Para ele, é indispensável fazer distinções entre os estados de neve (ou tipos de neve). A hipótese também nos permite ver a intrínseca relação, decerto, complexa, entre língua e cultura: nossas experiências culturais são estruturadas, organizadas, codificadas nas categorias que nossa língua materna nos fornece. O inglês, embora disponha da palavra slum, com a qual podemos traduzir a palavra portuguesa ‘favela’, não codifica a realidade ‘favela’ com a qual, nós, brasileiros, temos experiência. Slum, para um falante nativo de inglês, designa os guetos onde residem as minorias raciais e os pobres. A favela, tal como nós a conhecemos, não é parte da experiência de mundo dos americanos ou ingleses.
Não caberia aqui desenvolver mais estas questões, interessantes, decerto. Gostaria apenas de referir o seguinte excerto do linguista Mario Perini, em seu livro A língua do Brasil amanhã e outros mistérios (2004: 43), no qual nos chama a atenção para nossa crença comum sobre a relação língua e realidade:
“A ideia de que a diferença entre as línguas se resume em maneiras distintas de se referir aos objetos do mundo natural pode ser chamada de “teoria ingênua” da relação entre língua e realidade. E, como a maior parte das teorias ingênuas, é ao mesmo tempo simples, evidente e incorreta. Aqui, como em muitas outras áreas do conhecimento, aquilo que nos parece imensamente óbvio é simplesmente falso (não é óbvio que o sol nasce no leste? Mas na verdade não é o sol que nasce, é a Terra que gira).”
Cada língua segmenta a realidade de uma maneira diferente. Nossa relação com o mundo se dá na base das categorias fornecidas pela nossa língua materna. Em russo, a palavra ruka significa toda a extensão corpórea que vai do ombro até a ponta dos dedos (inclui o braço e a mão); por outro lado, a palavra noga designa o conjunto formado pela ‘perna’ e pelo ‘pé’. Note-se que, embora os russos identifiquem, sensorialmente, o pé e a perna, a representação dessas partes do corpo, que, para nós, falantes nativos de português, são distintas, é para eles feita com uma só palavra. Os russos não codificam a diferença entre ‘pé’ e ‘perna’, como nós, falantes do português fazemos (Perini, 2004: 47).
Vejamos, por fim, a contribuição do linguista norte-americano Noam Chomsky, considerado por alguns linguistas o segundo grande revolucionário da Linguística, ao lado de Ferdinand Saussure. Não tenciono discorrer sobre a complexidade de seu pensamento de modo detido, evidentemente. Vou apenas assinalar algumas ideias que nos avivam a consciência da essencialidade da linguagem na vida dos seres humanos.
Chomsky nos ensinará e, ao fazê-lo, desencadeará bastante controvérsia e interesse entre os linguistas da segunda metade do século XX (mas suas ideias repercutem até os dias de hoje nos centros de pesquisa linguística do mundo), que a faculdade da linguagem é inata e específica da espécie humana. Isso significa dizer que a criança nasce com um dispositivo inato que lhe permite adquirir, a princípio, qualquer língua. A esse dispositivo ele chama Dispositivo de Aquisição da Linguagem (em inglês, convencionou-se expressá-lo com sigla LAD). Formalmente, a faculdade da linguagem se expressa nos termos de uma Gramática Universal, que inclui, numa segunda versão da hipótese, princípios e parâmetros. Os princípios são as regras gerais ou universais, portanto, comuns a todas as línguas do mundo. Os parâmetros seriam, pois, as regras específicas da língua a que a criança é exposta no processo de aquisição da linguagem. A criança, na base de processos dedutivos e indutivos, seleciona o valor que um determinado parâmetro deve tomar. Assim, adquirir uma língua é diferente de aprender uma língua. Não aprendemos a falar português, mas adquirimos o português, enquanto língua materna, cuja gramática (sistema de regras) se desenvolve num processo tão natural e rápido quanto a faculdade de andar. A aquisição de nossa língua materna, que se torna, então, um componente tão fundamental do que somos, é um processo que independe de estímulos, tais como propostos pelos behavioristas. Não dominamos nossa língua materna por repetição, como se costuma pensar. Assim, podemos dizer que aprendemos uma língua estrangeira e essa aprendizagem, em geral, depende de processos formais de ensino (freqüentamos um curso, fazemos uma faculdade, utilizamos materiais didáticos, fazemos exercícios, etc.); mas a nossa língua materna, em nosso caso, o português, é uma forma de conhecimento que nós desenvolvemos na base de um conhecimento universal e inato – a faculdade da linguagem.
Se, nós, falantes nativos de português, quer sejamos pobres ou ricos, intelectuais ou analfabetos, homens ou mulheres, brancos ou negros, jovens ou velhos, sabemos falar português, usamos o português em todo o momento, então, com Chomsky, seremos forçados a dizer que nós somos falantes competentes em português (nossa língua materna). Nós somos dotados de uma competência linguística. Essa competência constitui o conhecimento que todo o falante nativo tem das regras da gramática de sua língua materna, graças às quais é capaz de produzir e compreender um número, teoricamente, ilimitado, de enunciados. Todo falante nativo de português sabe que uma frase como (a) é bem-formada ou é gramatical, no sentido de que foi construída de acordo com as regras previstas pela gramática de sua língua materna; mas rejeitará uma frase como (b), por ser agramatical (o asterisco significa “agramaticalidade”).
(a) Ele está andando depressa.
(b) * Ele está andado depressa.
Também aceitará uma sequência como (c), mas rejeitará uma sequência como (d):
(c) O menino saiu.
(d) *Menino o saiu.
O problema em (b) está em que o verbo “estar” não se articula à forma de particípio. Diremos que “estar” rege ou se combina com “gerúndio” (cf. Ele está andando depressa). Não me aterei a explicações. Basta fazer ver que o falante nativo “sabe” (e esse saber é intuitivo, implícito, não-consciente) que (b) não é uma frase do português, já que desobedece à regra: ‘verbo estar entra a fazer parte de uma locução verbal quando o verbo principal é uma forma de gerúndio’. Já em (d) transgrediu-se uma regra referente à ordenação ou à disposição das unidades linguísticas na frase. Sabemos que o artigo deve preceder o substantivo, em português. Dizemos, assim, “o menino”, mas não “menino o”.
Todas essas questões estão profundamente implicadas no ensino de língua materna. A consciência da competência linguística, comum a qualquer falante nativo que faz uso normal de sua língua materna, é indispensável ao professor que ensina língua materna a falantes nativos dessa língua. O aluno não entra na escola para aprender a falar português, já que ele já fala muito bem a sua língua antes do ingresso na escola. O que o aluno não domina é uma variedade da língua específica, uma variedade que goza de prestígio social, a saber, a variedade padrão ou culta. Então, devemos reconhecer que é papel da escola ensinar a língua padrão, ou seja, aquela variedade da língua portuguesa que constitui um capital linguístico prestigiado socialmente e cujo domínio é indispensável para que o falante seja participante ativo do processo social e que tenha acesso aos bens culturais valorizados; em suma, para que tenha maior participação política, cultural e social. O reconhecimento desta função inalienável da escola leva-nos a denunciar uma forma de preconceito bastante arraigada em nossa cultura, embora quase nunca reconhecido pela grande maioria esmagadora da sociedade brasileira: o preconceito linguístico. Mas isso é assunto para uma outra oportunidade.


Últimas palavras


Tenho me dado conta do número crescente de pessoas que, ao se graduarem em Letras, acabam não seguindo a profissão para cujo exercício essa área forma indivíduos. O descontentamento com o magistério ou com o próprio papel de professor de língua portuguesa – figura esta que, no imaginário social, aparece sempre como um indivíduo antiquado, conservador e legislador do uso da língua, como aquele diante do qual se deve ter cuidado ao falar, porquanto se acredita ser ele um conhecedor da “língua culta” ou do “português correto” – além, é claro, da irrisória remuneração do professor -, são, certamente, os principais fatores que desestimulam os então formados em Letras a desempenhar a função docente.
No entanto, creio haver também um outro fator: a quase completa ignorância do graduando, então recém-ingresso na universidade, a respeito do que se estuda no curso de Letras. Tal ignorância se deve ao fato de toda a sua herança escolar, em matéria de ensino de língua portuguesa, ter-lhe enfiado pela goela abaixo todo um cabedal de análises estruturais e taxionomia de gramática do português e ter-lhe ensinado que o português se resume à variedade padrão (embora essa crença nunca tenha sido colocada nesses termos). O que o aluno aprende, ao sair do ensino médio, é que: a) ele não sabe falar sua língua materna; b) português é muito difícil e c) para saber falar português, é preciso aprender gramática.
O aluno, então, graduando em Letras, pensa que fazer Letras é só estudar aquele cabedal de nomenclaturas e análises que já havia muito mal estudado no colégio ao longo de, pelo menos, onze anos de escolaridade. No entanto, ele chegará aos bancos das salas de aula do curso de Letras e descobrirá a existência de uma ciência, ainda muito nova, se comparada a outras ciências, como a astronomia, a biologia, por exemplo, chamada Linguística. Ele então estudará nomes como Ferdinand Saussure, Noam Chomsky, Roman Jakobson, entre outros e, provavelmente, ficará atônito. É possível que ele também venha a estudar a Sociolinguística e será neste momento em que uma luz acenderá a sua consciência: existe o preconceito linguístico! Ele se dará conta de que as relações entre língua e sociedade são extremamente complexas e perpassam as diversas esferas de poder sócio-político, ideológico e cultural que envolvem homens e mulheres, classes dominantes e classes dominadas, jovens e velhos, falantes de diferentes regiões do país, etc.
Definitivamente, não é tarefa do linguista ficar catando substantivos e fazendo análises sintáticas, muito embora fazer análise e dominar a terminologia da linguística sejam conhecimentos que fazem parte de sua competência, tal como o biólogo deve saber sobre a taxionomia que reúne os seres vivos em classes, espécies, reinos, etc. Como o biólogo, que deve saber sobre a fisiologia dos insetos e do corpo humano, sobre a sua estrutura e funcionamento, também o linguista precisa saber sobre a estrutura e funcionamento do sistema linguístico, mormente da estrutura e funcionamento de sua língua materna.
Todo graduando em Letras deve sair da faculdade sabendo que deverá enfrentar os seguintes desafios, quando do exercício da prática docente em língua portuguesa:
a) discutir/combater o preconceito linguístico;
b) desenvolver as competências comunicativa e textual dos alunos;
c) promover um ensino que trabalhe com a língua em uso, ou seja, que considere os textos em sua funcionalidade.
Ensinar os alunos a reconhecer e classificar os complementos verbais, o sujeito, as orações subordinadas não contribui em nada para que eles se tornem falantes cada vez mais competentes em sua língua materna. A gramatiquice tradicional deve dar lugar à reflexão sobre a língua orientada para o uso que dela fazemos, para os efeitos de sentidos que desejamos produzir ao interagir através de textos.